Enegrecendo a fala das mulheres: as contribuições de Lélia González para o português brasileiro
Blackening women's speech: Lélia González's contributions to Brazilian Portuguese
Ennegreciendo el discurso de las mujeres: las contribuciones de Lélia González al portugués brasileño
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
alcione.nawroski@gmail.com
Universidade de Varsóvia, Varsóvia, Polônia.
k.chrzan@student.uw.edu.pl
Recebido em 08 de agosto de 2022
Aprovado em 20 de novembro de 2022
Publicado em 25 de fevereiro de 2024
RESUMO
O artigo trata da participação de Lélia González na formação da língua portuguesa falada no Brasil, por meio da sua trajetória de vida. Nesta perspectiva, a autora levanta alguns conceitos como amefricanidade, feminismo negro e pretoguês, os quais serão investigados sob uma pesquisa bibliográfica que objetiva analisar as contribuições de Lélia para o feminismo negro e consequentemente a influência da língua de senzala na língua oficial. Com expressões populares, gírias e sarcasmos, Lélia Gonzáles nos mostra como o "dialeto da senzala” materializado na “mãe preta” influenciou a fala dos brasileiros. Por mais de três séculos, as mulheres negras nas Américas enfrentaram o trabalho pesado, a exploração sexual, a falta de apoio e os estereótipos criados em torno da sua identidade que as deixou na marginalidade. Destarte, Lélia González recupera sua ancestralidade e mostra por meio da sua trajetória de vida o quanto o povo brasileiro carrega da “mãe preta” na língua portuguesa falada no Brasil.
Palavras-chave: Lélia González, Amefricanidade, Feminismo Negro, pretoguês, preconceito racial.
ABSTRACT
The article deals with the participation of Lélia González in the formation of the Portuguese language spoken in Brazil throughout her life. In this perspective, concepts such as Amefricanidad, black feminism, and pretoguês emerge, treated under bibliographical research that aims to analyse Lélia's contributions to black feminism and, consequently, the influence of the enslaved person's language on the official language. Using popular expressions, slang, and sarcasm, Lélia Gonzáles shows us how the "senzala dialect" materialized in the black mother and influenced the Brazilian language. For more than three centuries, black women in the Americas have faced hard work, sexual exploitation, lack of support, and the stereotypes created around the identity they have left behind. Thus, Lélia González recovers her ancestry and shows through her life trajectory how much the Brazilian people carry the “black mother” in the Portuguese language spoken in Brazil.
keywords: Lélia González, Amefricanity, Black Feminism, pretoguês, racial prejudice.
RESUMEN
El artículo trata de la participación de Lélia González en la formación de la lengua portuguesa en Brasil, a través de su historia de vida. Así, la autora plantea algunos conceptos como amefricanidade, feminismo negro y pretoguês, que serán investigados en el marco de una investigación bibliográfica que pretende analizar las contribuciones de Lélia al feminismo negro y, consecuentemente, la influencia de la lengua de senzala en la lengua oficial. Con expresiones populares, argot y sarcasmo, Lélia Gonzáles nos muestra cómo el "dialecto senzala" materializado en la "madre negra" influyó en la lengua portuguesa brasileña. Durante más de tres siglos, las mujeres negras de América se enfrentaron a trabajos forzados, explotación sexual, falta de apoyo y estereotipos creados en torno a su identidad que las dejaron al margen. Por lo tanto, Lélia González recupera su ascendencia y muestra a través de su historia de vida lo mucho que el pueblo brasileño tiene de la "madre negra" en la lengua portuguesa hablada en Brasil.
Palabras clave: Lélia González, Amefricanidad, Feminismo Negro, pretoguês, prejuicio racial.
Introdução
A partir da década de 1970, vimos a ascenção dos movimentos feministas e consequentemente mais e mais mulheres negras furarem as bolhas da universidade e assim tecerem reflexões teóricas acerca de si mesmas. Tomando como cenário a língua e a cultura brasileira, escolhemos dissertar sobre a vida e a participação de Lélia de Almeida Gonzales - ativista, intelectual, professora - na formação da língua portuguesa falada no Brasil. Lélia mostrou por meio de sua trajetória de vida, que a medida que tomava consciência da sua identidade nos espaços que frequentava, mais questões poderia levantar para repensar a formação do Brasil. Tomando como base suas publicações, gostaríamos de destacar alguns pontos, dando especial atenção aos conceitos de amefricanidade, feminismo negro e pretoguês.
O artigo objetiva analisar as contribuições de Lélia González para a formação da língua portuguesa falada no Brasil, levando em consideração a participação das mulheres negras na educação do “povo brasileiro” por meio do dialeto apreendido nas senzalas (Castro, 1983). Para tanto, escolhemos um corpus bibliográfico capaz de contemplar os três principais conceitos levantados, permeados por outras questões que circunscrevem a temática evidenciada.
Com base na pesquisa bibliográfica, o artigo versará por primeiro na Lélia que toma consciência de sua negritude no decorrer da sua vida, evidenciando a mulher da pele preta. Na segundo seção, pretendemos levantar algumas questões sobre a sua contribuição para o feminismo negro. Na terceira, “enegrecendo o feminismo” trataremos sobre o percurso das mulheres negras no interior dos movimentos feministas. E por fim, na quarta seção, daremos continuidade a questão levantada anteriormente, para evidenciar o “enegrecimento da fala” como marca da africanização do português brasileiro.
Lélia - mulher da pele preta
Lélia de Almeida Gonzalez nasceu em 1 de janeiro de 1935, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. De uma família pobre, de dezessete irmãos, onde todos tiveram que trabalhar desde cedo. Filha do operário, Joaquim de Almeida e da empregada doméstica, Urcinda Seraphina de Almeida Acácio; Lélia era a penúltima filha, e por isso foi tratada com os mimos de uma neta, teve mais oportunidade de se beneficiar da educação (Gonzalez, 1980b). Contudo, ela não ficou com as melhores lembranças dos primeiros anos escolares, como descreve:
Então, eu tive oportunidade de estudar, fiz jardim de infância ainda em Belo Horizonte, fiz escola primária e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra. (González, 1980b, p. 383).
Em 1942, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, em virtude do irmão Jayme de Almeida, jogador de futebol do Clube Atlético Mineiro assinar um contrato com o Clube de Regatas Flamengo no Rio. Nesse mesmo ano, perdeu o pai e por isso, seu irmão teve um impacto significativo em sua vida (Ratts & Rios, 2010a). Lélia tratava-o como um segundo pai:
Meu pai simbólico foi o Jaime...meus companheiros de infância eram meu irmão mais novo e os sobrinhos. Meu pai já era de cabelos brancos... bem mais velho que minha mãe...efetivamente meu pai foi o Jaime... eu fiz o mesmo percurso [de] que ele foi modelo...ele ultrapassou a barreira da cor... (Viana, 2006, p. 45 apud Ratts & Rios, 2010a, p. 20).
Além do irmão Jayme, sua mãe, mesmo analfabeta, influenciou-a na formação de seu caráter e a incentivou na educação. Sobre isso, Lélia destacou:
Um dia minha mãe chegou pra mim e perguntou o que estava estudando: ciências, biologia, reprodução. Aí ela olhou para mim e então saiu, depois deu uma volta e disse: ‘De hoje em diante eu não tomo mais conta de você, não’. Ela me deu responsabilidade sobre mim mesma e isso refletiu em termos do meu crescimento intelectual: por outro lado, do ponto de vista afetivo, entrou uma interiorização do racismo, eu não queria saber de homem perto de mim. Todos os meus colegas no colégio e na faculdade eram somente colegas, nada além disso. (O Pasquim, 1986, p. 9 apud Ratts & Rios, 2010a, p. 25).
Se por um lado, poderíamos detectar um descaso da atitude da mãe para com a filha Lélia, por outro lado, vimos que ela entregou a responsabilidade da educação à própria filha, uma vez que o avanço intelectual fugia da sua alçada e a partir desse momento precisava buscar por isso sozinha. Por meio da sua história de vida, compreendemos que Lélia teve mais oportunidades do que outras mulheres negras da sua época, impedidas muitas vezes de saírem de casa por inúmeros fatores, acometidos pelo preconceito racial e de gênero.
Nos depoimentos, vemos que Lélia era muito dedicada aos estudos; tinha boas relações com as amigas que a convidavam para estudarem juntas. Recorda que isso tornou-a mais autônoma na família. Além dos amigos, os professores também desempenharam um papel importante e, como ela diz, deram-lhe muita força. (Gonzalez, 1986). Convém mencionar que Lélia era uma aluna inteligente e perspicaz.
Nessa trajetória acadêmica, Lélia distanciou-se cada vez mais da realidade das mulheres negras de sua faixa etária e origem social. De um lado, ela era tímida e reprimida, mas, de outro, uma estudante que se destacava. Indicações, portanto, de que “aquela pretinha legal” não pararia por ali: iria bem mais longe. (Ratts & Rios, 2010a, p. 26).
Em 1946, Lélia frequentou o ginásio na Escola
Técnica Rivadávia Corrêa e em 1952, cursou o científico no tradicional Colégio
Pedro II. Nos anos 1958-1963, estudou história, geografia e filosofia na
Universidade do Estado do Guanabara (atual Universidade Estadual do Rio de
Janeiro). Formada em bacharelado e licenciatura nas áreas mencionadas, começou
a dar aulas. Mais tarde, cursou doutorado em Antropologia Social. Também
trabalhou como professora universitária.;
A carreira docente de Lélia começou no ensino superior, precisamente em 1963, nas Faculdades de Filosofia de Campo Grande (Feuc) e Filosofia, Ciências e Letras da UEG, mas sua atuação ganhou maior destaque na Universidade Gama Filho e nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, na qual exerceria as funções de Coordenadora do Departamento de Estudos e Pesquisas do Centro Cultural (1973-1974), vice-diretora da Faculdade de Comunicação (1973-1974) e diretora de Departamento de Comunicação (1974-1975)”. (Viana, 2006, p. 54 apud Ratts & Rios, 2010a, p. 28).
Além disso, dominava três idiomas com perfeição - inglês, francês e espanhol. O domínio da língua francesa possibilitou-lhe a tradução das seguintes obras: Curso moderno de filosofia (1968); Compêndio moderno de filosofia (1968); e História dos filósofos ilustrada pelos textos (1970). (Viana, 2006, p. 51 apud Ratts & Rios, 2010a, p. 30). Também deu aulas de filosofia, história da educação, história moderna e contemporânea no ensino secundário. “Lélia foi bem recebida nas escolas devido a suas capacidades de comunicar-se com os alunos e levantar argumentos” (Felippe, 2009, p.8 apud Ratts & Rios, 2010a, p. 28).
Entretanto, durante sua trajetória, admitira que em muitos momentos negou sua identidade negra, no que tange a sua aparência, nomeadamente a textura dos cabelos. De cabelos encaracolados e frisados, tentava iluminá-los e reduzir o volume porque na época havia uma tendência de moda para cabelos lisos e suaves (Ratts e Rios, 2010a). “O cara dá um jeito assim... passa um creme rinse, fica mais claro, dá uma esticada no cabelo, tudo bem... E eu não quero dizer que não passei por isso, porque eu usava peruca, esticava o cabelo, gostava de andar vestida como uma lady.” (González 1980, p. 203). Percebemos nos comentários de Lélia que ela buscava atender um certo padrão de beleza, possivelmente para ser melhor aceita entre aqueles com quem convivia. Entretanto, a atenção dada a esse padrão de beleza fez com que abandonasse sua verdadeira identidade, bem como se ajustasse a certos ideais de branquidade, como ela mesma reconhece: “na faculdade eu já era uma pessoa de cuca perfeitamente embranquecida, dentro do sistema” (González, 1980b, p. 383).
Além disso, destaca que a ideologia do branqueamento teve um impacto forte sobre si:
Era uma forma de rejeitar o meu próprio corpo. Essa questão do branqueamento bateu muito forte em mim e eu sei que bate muito forte em muitos negros também. Há também o problema de que na escola a gente aprende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros, na própria universidade, o problema do negro não é tratado nos seus devidos termos. Esse processo de branqueamento só parou quando eu me casei (González, 1986, p. 290).
As percepções sobre sua identidade mudaram quando conheceu seu primeiro marido, Luiz Carlos Gonzalez na Faculdade de Filosofia; branco, de origem espanhola, Lélia precisou enfrentar a desaprovação da família dele. Eles não a aceitaram, não acreditavam que pudessem se casar.
A família do meu marido achava que o nosso regime matrimonial era, como eu chamo, de “concubinagem” porque mulher negra não se casa legalmente com homem branco; é uma mistura de concubinato com sacanagem, em última instância. Quando eles descobriram que estávamos legalmente casados, aí veio o pau violento em cima de mim; claro que eu me transformei numa “prostituta”, numa “negra suja” e coisas assim desse nível...” (González, 1980b, p. 383-384).
Foram experiencias muito difíceis para Lélia, que levaram-na às reflexões e abordagens mais tarde incluídas em seus escritos e palestras sobre a situação das mulheres negras no Brasil. Em relação ao marido, “sempre demonstrou muito afeto, a quem chamou de um ‘cara muito legal’” (González, 1980b). Luiz Carlos rompeu o contato com seus familiares devido a animosidade que criaram com sua esposa. Anos mais tarde, atormentado por conflitos familiares, suicidou-se, o que levou Lélia, mais uma vez, a refletir sobre as atitudes do seu falecido marido:
Luiz Carlos foi muito importante na minha vida [...] ele rompeu com a família, ficou do meu lado e começou a questionar a minha falta de identidade comigo mesma. Isso dói [...], por isso eu tenho orgulho de trazer o nome dele. Eu nunca troquei o meu nome, podia estar com o meu nome de solteira, Lélia de Almeida, mas é uma homenagem que eu presto a esse homem branco tão sofrido [...] essa pessoa demonstrou uma solidariedade extraordinária [...] e foi a primeira pessoa a me questionar com relação ao meu próprio branqueamento. (Depoimento extraído do Projeto Perfil - Gonzalez apud Ratts & Rios, 2010a, p.31).
Em 1967, Lélia passou por um outro momento difícil em sua vida, a saber, a morte da sua mãe. Nesse momento, ela se deu conta de que sua mãe foi uma das pessoas mais importantes em sua vida. Lélia classificou-a como uma “mulher lutadora, inteligente e que tinha o dom de notar coisas importantes e depois passá-las para ela” (González, p. 384, 1980b). Mencionou ainda que, embora “índia e analfabeta, ela tinha uma sacada incrível a respeito da realidade em que vivíamos e, sobretudo, da realidade política.” (González, p. 384, 1980b). A partir daí “parti para minha negritude, para minha condição de negra. Eu comecei a verificar que a grande ilusão da ideologia do branqueamento é o negro pensar que é diferente dos outros negros, você cria uma cortina ilusória” (González, 1986, p. 291).
Em 1969, casou-se com o engenheiro Vicente Marota, pardo, de pai branco e mãe negra. O relacionamento durou cinco anos e não durou mais porque tinham visões de mundo bastante diferentes. Para Lélia, apesar de gostarem um do outro, eles não se encaixavam: “[...]era engraçado porque, enquanto eu estava em busca de mim mesma, ele procurava fugir de si próprio”. (González, 1986, p. 291).
Após o fim do casamento, Lélia começou a fazer psicanálise para descobrir sua ancestralidade. Além disso, frequentava os debates sobre a questões da negritude e estava cada vez mais interessada no tema. Fundadora do Movimento Negro Unificado – MNU, em 1978, foi à Bahia onde deu um curso sobre os noventa anos da abolição. A participação no Movimento Negro Unificado teve como objetivo combater as desigualdades entre negros e brancos e como Lélia diz, “conquistar um espaço para o negro na realidade brasileira” (González,1980b, pp 204-205).
No início dos anos de 1980, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores - PT e anos mais tarde atuou no Partido Democrático Trabalhista – PDT (Ratts & Rios 2010a). Aos 43 anos, começou a viajar muito e isso oportunizou lhe aprender coisas novas. De acordo com Ratts e Rios (2010a), desde 1978, as viagens foram importantes para ela em termos de desenvolvimento pessoal, cultural e político. Viajando pelo Brasil, contribuiu para a divulgação do Movimento Negro e a implementação de suas premissas por meio da participação em reuniões, assembleias e proferindo palestras.
A participação de Lélia González no feminismo negro
Durante a atuação no movimento negro, Lélia identificou que, apesar da luta por direitos e igualdade, bem como contra o racismo no Brasil, os homens se sobressaíam com comportamentos machistas em relação às mulheres envolvidas. Segundo Ratts e Rios (2010a), os homens se comportavam de forma autoritária, controlavam e ameaçavam as mulheres, assim como queriam tomar todas as decisões por elas. O patriarcado prevalecia e a crença no poder dos homens sobre as mulheres também. Por essa razão, na década de 1970, as mulheres negras decidiriam criar as suas próprias organizações que explicitariam os principais problemas enfrentados por elas, relacionados a gênero e cor da pele.
Além disso, Lélia Gonzalez desempenhou um papel especial na criação do feminismo negro, uma vez que sua atuação era visível nos diferentes espaços por onde circulava. Segundo ela, o feminismo foi “a busca de um novo jeito de ser mulher” (González, 2020, p. 308); era uma forma de evitar o “esquecimento da questão racial” (González, 2020, p. 309), decorrente do domínio dos homens sobre as mulheres. Em seu artigo, “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social”, Lélia elencou os motivos que tornariam o feminismo negro indispensável:
Os efeitos da internalização da ideologia do branqueamento, que remetem a oportunismos e manipulações típicos do velho paternalismo eurocêntrico das oligarquias brasileiras. A consequente afirmação/reprodução/perpetuação do mito da democracia racial. A aceitação/manutenção do chavão machista de que política é coisa de homem. A identificação com um tipo de feminismo ocidental-branco, já devidamente denunciado por seu imperialismo cultural. O pseudoconhecimento das lutas da mulher negra, dada a reprodução de categorias que, de tão aprisionantes, acabam por revelar um desconhecimento real dessas lutas. Falta de identidade própria (González, 2020, p. 364-365).
Lélia demonstrou grande resiliência para com as questões das mulheres de sua cor. Essa atuação levou mais mulheres a encontrarem nela uma força para suas causas.
[...] conhecer a Lélia Gonzalez foi um momento de revelação para mim. [...] ela organizou o que faltava, ela organizou um sentido de uma experiência única de ser mulher, ela decodificou a especificidade dessa identidade e como isso era um eixo político próprio, único, que não se podia ser dissolvido, fosse na questão racial conduzida pelos homens, naquele momento, fosse na questão de gênero, do ponto de vista da mulher, conduzida pelas mulheres brancas. (Borges, 2009, p.55 apud Ratts & Rios, 2010a, p. 51-52).
No dia 26 de
agosto de 1986, Lélia fez parte do Encontro Nacional Mulher e Constituinte que
aconteceu em Brasília, onde a questão racial fora abordada. Além do Brasil, ela
viajou para o exterior para apresentar seus trabalhos, ; assistir
conferências e dar palestras. Visitou os Estados Unidos várias vezes, onde
participou entre outros eventos, do “Simpósio Raça e classe no Brasil: novas
questões e abordagens”. Também viajou para o Senegal. Essa última visita foi
importante por vários motivos pessoais, onde fez muitas amizades e as manteve
por anos. Suas viagens também incluíram Itália, Dinamarca, Suíça, França,
Canadá, Finlândia, Panamá, Bolívia e Martinica (Ratts & Rios, 2010a).
Destarte, podemos compreender que seu envolvimento na legitimação do feminismo negro foi notável a nível nacional, mas também internacional. Através das viagens e da divulgação de temas delicados, mas necessários, relacionados às problemáticas das mulheres - raça, gênero, discriminação - contribuiu para uma maior conscientização do feminismo para as mulheres brasileiras. Ademais, as viagens também a ajudaram a encontrar suas raízes e a viver com mais consciência e harmonia em relação as suas descobertas identitárias.
De fato, graças às viagens, sobretudo para fora do país, Lélia Gonzalez reconstruiu sua visão de África e da diáspora africana. ‘Foi a partir daí que ela imprimiu maior densidade à sua negritude e ao seu feminismo com um horizonte transnacional, além de formular a categoria política e cultural de amefricanidade – que, de acordo com Viana (2006), aproxima-se bem mais das discussões contemporâneas relacionadas com a diáspora africana do que o panafricanismo’. (Ratts & Rios, 2010a, p. 69).
Antes de Lélia, não eram muitas as ativistas que viajavam para o exterior (Ratts & Rios, 2010a). Por conseguinte, ela foi uma figura importante porque representou o Brasil na questão do feminismo negro pelo mundo. Quando falamos sobre Lélia Gonzalez e sua percepção do feminismo, deve-se notar que ela o abordou multidimensionalmente, nomeadamente, de uma perspectiva latino-americana. Aqui vale a pena dar atenção ao conceito do amefricanidade, iniciado por Lélia, que lhe possibilitou ir em busca da sua ancestralidade - cultura própria dos povos negros - esquecida durante séculos. “Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas.” (González, 2020, p. 310-311).
Lelia concentrou sua atenção nas mulheres não brancas:
Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova a sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue” como se diz no Brasil), é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura. (González, 2020, p. 312).
Por conseguinte, a autora publicou o livro “Por um feminismo afro-latino-americano” onde reuniu vários textos sobre questões tangentes às mulheres. Além disso, podemos encontrar também trabalhos de temáticas conectadas com sua trajetória política e ativista, bem como entrevistas concedidas por Lélia.
Enegrecendo o feminismo
Somando-se ao conceito de feminismo negro, destacamos a expressão “enegrecer o feminismo”, que no Brasil contribuiu para enfatizar os problemas das mulheres negras.
Segundo Sueli Carneiro,
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca (Carneiro, 2003a, p. 3).
Vale mencionar que esta expressão pretende mostrar o impacto do racismo em vários aspectos, desde a política mais abrangente até os problemas que afetam grande parte das mulheres brasileiras – expressamente a violência contra as mulheres negras. Além disso, a expressão procura demonstrar a discrepância entre mulheres negras e mulheres brancas, bem como demarcar o lugar e a participação das mulheres negras no movimento feminista brasileiro, amplamente compreendido. Conforme Carneiro (2003a) observou, enegrecer o feminismo poderá: “Revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais” (Carneiro, 2003b, p.118). Consequentemente, com este movimento, torna-se possível obter uma perspectiva mais ampla sobre o feminismo e o que é importante, possibilita-nos vê-lo sob diferentes perspectivas. Destarte, o conceito de feminismo não é generalizado, mas adaptado às necessidades e circunstâncias da vida das mulheres. “Enegrecer o feminismo” é um dos elementos inerentes ao feminismo negro e permite compreender mais democraticamente os pressupostos e a questão deste movimento.
Lélia Gonzalez, durante sua trajetória intelectual, escreveu vários artigos sobre a mulher negra no Brasil. Ela escrevia sobre a contribuição da mulher negra na construção do Brasil, nomeadamente, em termos da sua cultura e história, e por isso fora nomeada “perpetuadora dos valores culturais afro-brasileiros” (González, 1982, p.120). Segundo Viana, a contribuição para o feminismo foi manifestada em diversos níveis, a começar pelas experiências pessoais quando ingressou no mundo do trabalho como babá:
Na saúde, os chás, unguentos, emplastros e banhos usados pela sabedoria adquirida no contato com natureza e herdada da ancestralidade foi, e continua sendo parte da contribuição de tantas amas, mucamas e babás, que ainda hoje encontramos no interior e nas periferias, preferencialmente lugar dos mais pobres, sempre de maioria negra. Na organização política e econômica, temos o exemplo dos Quilombos, nos quais todos tinham os mesmos direitos e as mulheres se organizavam de acordo com as necessidades. Para que umas pudessem trabalhar, outras cuidavam das crianças. (Viana, 2010, p. 2)
Além disso, elas tinham um papel importante quanto à espiritualidade e à religião. Convém mencionar que para Lélia, as mulheres negras eram folclorizadas e não valorizadas; quando por exemplo, era dada pouca atenção a elas nos livros escolares (González, 1982). Vinculou-se o fato ao grande poder dos homens brancos que eram muito mais privilegiados e apreciados do que as mulheres negras desde os conteúdos escolares. “E o que é que fica? A impressão de que só os homens, os homens brancos, social e economicamente privilegiados, foram os únicos a construir esse país” (González, 1982, p. 119).
Ademais, destacou a questão da exploração das mulheres por conta do turismo sexual, quando empresas turísticas enalteciam certos valores culturais como “afoxés, escolas de samba, frevos” (Gonzalez, 1982). Acreditava-se que aos olhos dos outros, a mulher negra se transformaria em um “produto tipo exportação” que seria “consumido pelos turistas e pelos nacionais burgueses'' (González, 1979, p.75). Lélia levantou algumas questões sociais que fizeram as pessoas se perguntarem sobre a situação das mulheres no país, questionando também quem eram as privilegiadas desta situação.
Em um dos artigos mais importantes escritos por Lélia, em 1984, intitulado “Racismo e sexismo na cultura brasileira” há um discurso sobre a mulher negra no Brasil na perspectiva de três estereótipos com os quais ela se identificou: mulata, doméstica e mãe negra. Lélia apontou a situação da mulher negra através destes três lugares; explicou exatamente do que tratam estes estereótipos e como se deram ao longo da história no Brasil. Além disso, a autora tentou mostrar como esta prática influenciou na falta de uma democracia racial, contestando a afirmação errônea de que não há racismo no Brasil. Outro motivo importante que levou a escrever o artigo foi a atenção insuficiente a estes tópicos, porque como disse Lélia, a mulher negra é abordada só do ponto de vista socioeconômico, o que dá uma visão incompleta da sua situação (González, 1980a).
Primeiramente, Lélia retratou a questão da mulher mulata - termo atribuído aos mestiços que vem da palavra ‘mula’ compreendido como “aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies” (Ribeiro, 2018, p. 66). A autora cita como exemplo a festa do carnaval que, segunda ela, marca ainda mais o mito da democracia racial. “E é nesse instante que a mulher negra se transforma única e exclusivamente rainha, na “mulata deusa do meu samba, “que passa com graça/fazendo pirraça/ fingindo inocente/ tirando o sossego da gente” (González, 1980a, p.195-196). Destaca também que na época do carnaval, a mulher negra é admirada e toda gente é fascinada por ela. Na verdade, pretende mostrar que neste momento ela está sendo objetificada e vista como um estereótipo da mulher quente e sedutora (González, 1980a).
Ao retratar o perfil da doméstica, Lélia nos conta sobre o papel que a mulher negra desempenhou no período colonial, quando trabalhava na casa de seus senhores. Dedicava-se a cozinhar, lavar e limpar, coisas típicas que as empregadas faziam naquela época. Além do mais, eram objetificadas sexualmente pelos seus senhores, os quais abusavam sexualmente delas; a cultura do estupro permeava por esse meio e ajudou a compor a sociedade brasileira. Para Lélia, a mulher doméstica negra era aquela “da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas” (González, 1980a, pp. 198-199). Além disso, acrescentou:
Antes de ir para o trabalho, havia que buscar água na bica comum da favela, preparar o mínimo de alimento para os familiares, lavar, passar e distribuir as tarefas das filhas mais velhas no cuidado dos mais novos. Acordar às 3 ou 4 horas da madrugada, para “adiantar os serviços caseiros” e estar as 7 ou 8 horas na casa da patroa até a noite, após ter servido o jantar e deixado tudo limpo” (González, 1979, p. 71).
O trabalho delas era cuidar de duas famílias ao mesmo tempo; não havia tempo para estudar. A mulher negra dependia totalmente das famílias brancas de classes privilegiadas. Tinha que empenhar toda sua energia e esforço para cuidar da casa deles. Além disso, desempenhava um papel não apenas de faxineira e cozinheira, mas muitas vezes, de mãe das crianças das famílias a quem atendia. As mulheres negras estavam muito mais presentes na vida das crianças brancas do que as mães biológicas e por isso, contribuíram significativamente para o desenvolvimento e a educação das crianças da elite, inclusive na aquisição da linguagem. Desta situação, Lélia destacou o termo “mãe-preta” - quem participou expressivamente na criação e educação dos filhos de uma classe brasileira privilegiada economicamente.
Ela, simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra. Se assim não é, a gente pergunta: que é amamentação, que dá banho, que limpa cocô, que põe pra dormir, que acorda de noite pra cuidar, que ensina a falar, que conta história e por aí afora? E a mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe deste barato doido da cultura brasileira. Enquanto mucama, é a mulher; então “bá”, é a mãe. (González, 1980a, p. 204-205).
Estudos da psicologia apontam que é nos primeiros anos da infância que a criança cria uma relação socioafetiva com a mãe. Assim, Lélia mais e mais, aprofundava suas hipóteses no encadeamento com a “mãe-preta” ou “mãe de leite”. A autora mostrou que além da dedicação e envolvimento da mulher negra na educação familiar branca, havia uma grande influência delas no período de aquisição da linguagem das crianças, portanto, o dialeto das senzalas influenciou no português falado pela elite branca. Assim, o “português” falado no Brasil é um “pretuguês”, dada a participação afrodescendente na variante brasileira da língua portuguesa. “Ela passa pra gente esse mundo de coisas que a gente vai chamar de linguagem. E graças a ela, ao que ela passa, a gente entra na ordem da cultura, exatamente porque é ela quem nomeia o pai.” (González, 1980a, p. 205).
No discurso sobre a mulher negra, Lélia além de usar o termo “mulata”, também citou a “mucama”. Segundo o Dicionário Online de Português (2021), mucama é a “criada; mulher negra e jovem que auxilia sua senhora com os afazeres domésticos ou serve de companhia nos passeios”; “ama de leite; aquela que amamentava os filhos de seus senhores.”, e conforme os significados – “também conhecida por mucamba ou mocamba; este tipo de escrava ainda tinha a obrigação de satisfazer sexualmente os seus mestres, quando assim lhes era solicitado.” Conforme Lélia (1980a), há uma combinação de mulata e doméstica, ou seja, são figuras derivadas de mucama.
Durante uma entrevista concedida em 1985, Lélia destacou que “tanto a empregada como a mulata são expressões modernas daquela que no passado foi chamada de mucama.” (González, 1985, p. 260). Por fim, os termos “mucama” e “mãe-preta” isentam as mulheres brancas de todos os seus encargos, além do distanciamento social que ocorre entre elas, uma vez que as mulheres não-brancas, além de serem serviçais, são abusadas em todos os sentidos.
Tamanha era a responsabilidade dessas mulheres, que além de serem vistas como algo “exótico”, também eram ofertadas “tipo exportação”, com anúncios em jornais para vendas, exaltando suas qualidades estéticas e presteza nos serviços domésticos. Sobre isso, recuperamos em Freyre quando destacou que:
Vários são os anúncios, nos jornais da época, de ‘mulatas de bonita figura’... ‘próprias para mucamas’; de ‘mulatinhas’ que, além de coser ‘muito bem limpo e depressa’ e de saber engomar com perícia, sabiam pentear ‘uma senhora’; de ‘mulatas com habilidades’; de ‘mulatos embarcadiços’ e de ‘cabrinhas próprios para pajens’, alguns tão caros que os vendedores concordavam em vendê-los ‘a prazo’; de ‘mulatinhas’ não só ‘recolhidas e honestas’ como tão bem-educadas para mucamas que sabiam falar francês (Freyre, 1977, p. 46).
A ama de leite era aquela mulher que, logo após o parto, precisava amamentar tanto os seus filhos como os filhos das suas senhoras brancas (Gaspar, 2009). Percebe-se que elas eram um “bom negócio” para o Brasil, pois além de serem as responsáveis diretas na atenção às crianças, também precisavam dar conta de amamentar os filhos da elite brasileira.
Enegrecendo a fala
Lélia prospectava sobre o impacto tanto do racismo como do sexismo na vida das mulheres. Ela tentou mostrar por meio da sua própria história de vida, o lugar que a mulher negra ocupa na sociedade brasileira. Ao escrever sobre a sua condição e o seu lugar na história, quebrou o silêncio, bem como negou a existência da democracia racial. Assim, “Gonzalez afirma em seu texto a voz negra, a voz do povo negro, da mulher negra. Mais uma vez a autora inaugura um debate que surge posteriormente sobre o lugar de fala.” (Oliveira, 2020, p. 96).
Lélia, além de quebrar o silêncio, conscientizou sobre a enorme influência e o papel da mulher negra na formação do povo brasileiro. Convém mencionar que, apontou a sua cultura ancestral como elemento constitutivo e parte integrante do Brasil. Seus artigos também motivam o combate ao racismo e por consequência, falar sobre a importância do feminismo negro, dialogando, em especial, com os estudos de Ângela Davis, Patricia Collins e bell hooks.
À medida que Lélia tomava consciência da sua identidade perante a sociedade brasileira, passava a assumir seus cabelos crespos, vestindo roupas de cores vibrantes para expressar um “processo de corporificação da consciência negra” (Ratts, 2010b). Ademais, sua produção acadêmica foi marcada por expressões populares, por gírias, sarcasmos que também eram um artifício de denúncia, como podemos observar na provocação acerca da ideia de “racismo às avessas” em que constata que tal crença pressupõe o reconhecimento de um racismo “às direitas”.
Lélia concentrou boa parte de seus estudos sobre o perfil do povo latino-americano nomeado pela autora de amefricano – correspondente a todos um processo histórico de adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novos termos tendo como referência o akan na Jamaica, o yorubá, banto e ewe-fon no Brasil. (González, 1988, p. 76).
As averbações de Lélia estão em acordo com Castro (1983), quando a autora destaca que os negro-africanos não foram silenciados mesmo sendo escravizados, mas falaram línguas que influenciaram o português brasileiro.
Para a autora, desde o século XVI:
Observa-se a confluência do português europeu antigo e de falares africanos ao encontro de línguas indígenas brasileiras. A partir do século XVII, com o aumento do volume desse tráfico, exigido' pela agropecuária implantada sob o regime de casa-grande e senzala, a que os indígenas brasileiros não se adaptaram, as línguas ameríndias, até então empregadas como língua veicular, perderam a sua razão de ser nos estabelecimentos da costa e começaram, sem dúvida nenhuma, a ser substituídas pelos falares africanos nas senzalas. (Castro, 1983, p 96).
Com a chegada de africanos de diferentes procedências étnicas e um contingente de povos nativos, foi necessário o estabelecimento da comunicação entre povos de línguas diferentes, o que levou a emergência de “uma espécie de língua franca que chamaremos de dialeto das senzalas” (Castro, 1983, p 96). Dialeto este que influenciou diretamente na língua portuguesa falada no Brasil, iniciado nas canções de ninar das “mães pretas” alcançando diferentes dimensões da sociedade, como um acordo de casamento:
A fala brasileira preserva sinais desse choque de cultura. Até hoje, há quem troque o L pelo R, como em farta (falta), frecha (flecha) e firme (filme). E isso é coisa antiga: em 1807, o soldado Manoel Coelho seduziu a filha de um fazendeiro, que o obrigou a se casar. Coelho escreveu em uma carta que não casaria “nem por bem nem por mar” (Revista Super Interessante SA, 2018).
Para Saussure (1995), a língua em suas manifestações orais deve ser o objeto da linguística, uma vez que a língua escrita só existe em decorrência da fala. Portanto, para o autor, é preciso estudar os sons da língua para escapar das ilusões escritas. Neste sentido, ao trazer a influência do dialeto da senzala, foi por meio da fala que Lélia levantou a amefricanidade como uma categoria linguística. “[...] aquilo que chamo de ‘pretoguês’ e que nada mais é do que marca de africanização do português falado no Brasil” (González, 1988, p. 70). E para adensar a questão, a autora traz como exemplos a ausência de certas consoantes e os dialetos crioulos do Caribe.
É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês (González, 2018, p. 208).
Sobre a substituição do l por r, Bagno (2002) destaca o fenômeno desde os primórdios no português europeu, quando nem Camões isentou-se desse mal em Os Lusíadas. Entretanto, se nos dias de hoje, alguém pronunciar chicrete, ingrês, pranta, frecha, poderá atribuir-lhe uma deficiência intelectual, porque fugirá da norma culta da língua portuguesa. Para o autor, o preconceito linguístico é decorrente de um preconceito social e González (2018) reverbera que tal preconceito fica mais explicito entre a sua gente.
E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez, e juntamente com o ambundo, provém do tronco linguístico bantu que “casualmente” se chama bunda). E dizem que significante não marca […]. Marca bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido é coisa. De repente é desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado etc e tal (González, 2018, p. 208).
Lélia chama a atenção para o preconceito linguístico advindo de um discurso dominante, dos detentores da norma culta, que ao mesmo tempo desconhecem ou ignoram a formação da língua portuguesa na variante brasileira. Além do mais, chama a atenção para o valor semântico das palavras e o papel da linguagem na instituição do racismo brasileiro.
Nos últimos tempos, com o advento das redes sociais de comunicação, os termos negro ou preto - duas palavras carregadas de signos em movimento e mudanças – são bastante reproduzidas. No Brasil, ao verificar os sentidos raciais da palavra negro, comumente o termo está relacionada a coisas negativas como “magia negra”, “mercado negro”, “humor negro” etc. Portanto, ao chamarmos uma criança de negra, tudo que é negro está relacionado a coisas negativas que interferem na identidade da criança. Diacronicamente, o termo negro no Brasil, deriva dos séculos de escravização que reverberou em usos semânticos negativos. Já nos Estados Unidos, o termo tornou-se pejorativo nas últimas décadas semelhante ao termo preto no Brasil (Nascimento, 2019).
Em se tratando do Estado brasileiro, estudos como o de Nascimento (2019) e Sansone (1997) apontam que ao longo das últimas décadas, o termo “negro” vem sendo utilizado como uma categoria político-cultural para demarcar um lugar de negritude em contraposição ao massacre cultural da branquitude. Já o termo “preto” apresenta uma variabilidade maior de signos, pois se falarmos de café preto ou carro preto, não estamos falando necessariamente de coisas negativas, pelo contrário. Embora o termo tenha sido usado ao longo da história, nos documentos estatísticos para fins de identificação racial, e consequentemente, a estratificação social – negros ou pardos. Segundo Nascimento (2019), o termo ‘negro’ está cada vez mais sendo usado em contraposição a ‘preto’. Atualmente, os dois termos coexistem e seus signos dependem do valor semântico.
Considerações finais
Durante mais de três séculos, as mulheres negras nas Américas enfrentaram o trabalho pesado, a exploração sexual, a falta de apoio e os estereótipos criados em torno da sua identidade que as deixou na marginalidade como Lélia González e suas interlocutoras nos mostram. Sob um prisma distorcido, as mulheres negras foram marginalizadas e sofreram as consequências do racismo e de sexismo. À medida que tomavam consciência da sua identidade, elas precisaram também compreender “sobre o patriarcado como sistema de dominação, como ele se institucionalizou e como é disseminado e mantido” (hooks, 2018, p. 23). As mulheres negras encontraram apoio naquelas que se identificavam com elas por questões raciais e de gênero; precisaram sensibilizar a sociedade sobre os problemas que enfrentavam com falas, expressões, gírias e sarcasmos. Assim foi a atuação de Lélia Gonzáles que fez da sua história de vida uma narrativa para outras mulheres espelharem-se, ao mesmo tempo que oportunizou-nos compreender a participação das mulheres negras na formação da sociedade brasileira.
Filhos de “mãe preta”, o povo brasileiro fala o que aprendeu nos seus primeiros anos de vida, sem muitas vezes estar consciente que aquilo que aprendeu, carrega uma história e uma origem que por séculos foi negado. O preconceito linguístico apontado por Bagno (2000), fica mais evidenciado naqueles em que a escola foi historicamente negada. Para Lélia, fica mais explicito no “Framengo”, mas pouco se discute porque não há problemas de falar “tá” ao invés de “está”. Destarte, o preconceito linguístico também carrega as marcas do preconceito racial.
A tendência de não marcar o plural dos substantivos, a troca do l por r e a pouca referência aos pronomes reflexivos são alguns destes exemplos que marcam o português do Brasil. Além disso, as especificidades da variante brasileira deve-se, entre outras questões, a diversidade étnica que compõe a formação cultural e formação da língua portuguesa no Brasil. Entretanto, estes marcadores, muitas vezes, são motivo de discriminação, por ser considerada uma linguagem de menos prestígio associada as classes menos favorecidas e com menos escolaridade. Lélia trouxe essa questão para os seus escritos e assim pôde mostrar que a língua falada no Brasil é resultante de uma diversidade étnica e linguística, expressamente marcada pela população afrodescendente.
Referências:
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