O conselho nacional de educação: a indispensável construção de uma elite política

The National Education Council: the essential building of a political elite

El consejo nacional de educación: la indispensable construcción de una élite política     

 

Franceila Auer

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

auerfranceila@gmail.com

Heitor Lopes Negreiros

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

heitornegreiros@gmail.com

Wagner dos Santos

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

wagnercefd@gmail.com

Vania Carvalho de Araújo

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

vcaraujoufes@gmail.com

 

Recebido em 05 de agosto de 2022

Aprovado em 21 de novembro de 2022

Publicado em 22 de fevereiro de 2024

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo problematizar a constituição da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação no período da elaboração da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (2015 a 2018) na perspectiva de uma elite política segundo a definição de Hannah Arendt. Caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa do tipo documental. Adota-se como fontes de análise os Currículos Lattes dos conselheiros e as portarias nº 187, de 13 de março de 2012; nº 323, de 9 de abril de 2014; nº 174, de 4 de abril de 2016 e nº 103, de 8 de fevereiro de 2018 do Ministério da Educação. Utiliza-se como instrumento de auxílio o software Gephi. Os resultados apontam que a referida Câmara do Conselho Nacional de Educação foi formada a partir das indicações de instituições com concepções de educação alinhadas ao Executivo Federal. Conclui-se que ela se distancia de uma elite política em um sentido democrático, sobretudo pelo desprezo à pluralidade em sua formação e pela não constituição de canais de interlocução pública que pudessem garantir o direito à participação e a representação da sociedade no período analisado.

Palavras-chave: Conselho Nacional de Educação; Elite política e Hannah Arendt; Política educacional.

 

ABSTRACT

This paper aims to problematize the constitution of the Basic Education Chamber of the National Council of Education in the period of elaboration of the National Common Curriculum Base for High School (2015 to 2018) from the perspective of a political elite according to Hannah Arendt's definition. It is characterized as qualitative research of the documentary type. It is adopted as sources of analysis the Lattes Curriculum of Directors and Ordinance No. 187, of March 13, 2012; No. 323, April 9, 2014; nº 174, of April 4, 2016, and nº 103, of February 8, 2018, of the Ministry of Education. It is used the software Gephi as an aid tool.The results indicate that the aforementioned Chamber of the National Council of Education was formed from the indications of institutions with education concepts aligned with the Federal Executive. It is concluded that it distances itself from a political elite in a democratic sense, mainly due to the contempt for plurality in its formation and the failure to establish channels of public dialogue that could guarantee the right to participation and representation of society in the analyzed period.

Keywords: National Education Council; Political elite and Hannah Arendt; Educational policy.

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo problematizar la constitución de la Cámara de Educación Básica del Consejo Nacional de Educación durante el período de elaboración de la Base Curricular Común Nacional para la Educación Secundaria (2015 a 2018) desde la perspectiva de una élite política según la definición de Hannah Arendt. Se caracteriza por ser una investigación documental cualitativa. Se adoptaron como fuentes de análisis los CV Lattes de los consejeros y las ordenanzas nº 187, de 13 de marzo de 2012; nº 323, de 9 de abril de 2014; nº 174, de 4 de abril de 2016 y nº 103, de 8 de febrero de 2018 del Ministerio de Educación. Se utiliza el software Gephi como herramienta de ayuda. Los resultados indican que la mencionada Cámara del Consejo Nacional de Educación se formó a partir de indicaciones de instituciones con concepciones educativas alineadas con el Ejecutivo Federal. Se concluye que se distancia de una élite política en sentido democrático, principalmente por el desprecio hacia la pluralidad en su formación y la falta de establecimiento de canales de diálogo público que pudieran garantizar el derecho a la participación y representación de la sociedad en el período analizado.

Palabras clave: Consejo Nacional de Educación; Élite política y Hannah Arendt; Política educativa.

 

Introdução

A compreensão da crise política atual no Brasil exige-nos um olhar para os acontecimentos passados, perpassando uma República proclamada sem cidadãos (BRAYNER, 2008): a) uma série de ditaduras, duas institucionalizadas, outras não; b) a redemocratização para restaurar uma democracia que havia sido derrubada, mas não completamente apagada; c) um conjunto de lutas hegemônicas e contra-hegemônicas; d) um país com muitos salvadores da pátria sempre que se encontra em desordem social, a exemplo do Collor (Caçador de Marajás), do FHC (pai do Plano Real), do Lula (o escolhido do povo) e do Bolsonaro (o homem que vai acabar com a corrupção). Trata-se de uma história não linear caracterizada por avanços e retrocessos, interrupções e continuidades, golpes anunciados explicitamente e alguns sob o pseudônimo “rupturas institucionais”.

Tudo isso desencadeou o esfacelamento da política em companhia de uma democracia fragilizada, cujo horizonte público continua longe de plasmar a dinâmica societária. Decerto “[...] vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” (ARENDT, 1968, p. 187). Como explica Müller (2018, p. 348), “[...] tempos de crise da democracia e do estado de direito são os tempos de hoje [...] tempos em que a confiança na democracia e no estado de direito está fragilizada”. Bem sabemos que, sempre que a política está em colapso, a educação, sobretudo aquela que se pretende pública, é atingida.

Entre as instituições responsáveis por garantir o funcionamento do Estado Democrático de Direito, no âmbito educacional, está o Conselho Nacional de Educação (CNE). O CNE foi criado pela Lei nº 4.024/1961 com redação alterada pela Lei nº 9.131/1995, formado pela Câmara de Educação Básica (CEB) e pela Câmara de Educação Superior (CES), cada uma composta por 12 conselheiros. Dentre o conjunto de atribuições das Câmaras de Educação que compõem o CNE, está deliberar sobre diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e acompanhar a execução do Plano Nacional de Educação (PNE). A Lei nº 9.131/1995 também estabelece que as nomeações dos conselheiros serão feitas pelo Presidente da República e deverão (pelo menos a metade dos indicados, excluindo o secretário de Educação Básica e o secretário de Educação Superior, que são membros natos) ser realizadas mediante consulta às áreas de atuação dos respectivos colegiados. Os conselheiros terão mandato de quatro anos, permitida uma recondução para o período imediatamente subsequente, havendo renovação de metade das Câmaras a cada dois anos.

A função normativa é a mais importante do CNE, pois é a que “[...] dá a verdadeira distinção de um Conselho de Educação” (CURY, 2006, p. 42). É a partir dela que os conselheiros se legitimam para interpretar a lei com os cuidados que são necessários. Eles não são legisladores e não têm mandato eleito pelo voto, mas são representantes da sociedade civil: um conselheiro é alguém que colabora com o Poder Público na prestação de uma função de interesse público relevante.

Desse modo, a função do conselheiro consiste em ser um “[...] intelectual da legislação da educação escolar” (CURY, 2006, p. 42) para que, em sua aplicação, garanta o direito à educação e, em última instância, o direito à cidadania, ao menos, como horizonte. Nesse sentido, a função normativa do CNE é materializada por meio dos pareceres e resoluções, que têm sua existência prevista na legislação e têm como finalidade executar o ordenamento jurídico.

Ao que nos parece, a constituição do CNE, no que se refere aos representantes, requer problematizações, uma vez que estamos falando de um grupo de trabalho incumbido de representar os diferentes espectros sociais a fim de garantir a participação da sociedade na constituição da educação brasileira. Assim, lançamos como problema de pesquisa: em que medida o CNE pode revelar a formação de uma elite política tal como apontado por Hannah Arendt? Se, de um lado, Arendt (1963) tem alguma restrição ao termo “elite” pelo significado que ele costuma ter, ligado à nata e àqueles que são superiores, grupo minoritário de maior prestígio social; de outro, a autora acredita que seja necessária uma elite política que venha do povo, isto é, da base de uma comunidade, e não do topo, o que difere de uma elite partidarista como uma profissão de poucos.

Em linhas gerais, Arendt (1963, p. 348-349) corrobora a reconstrução do sentido de elite política com o escopo de “[...] romper a sociedade de massas modernas, com sua perigosa propensão a formar movimentos de massa pseudopolíticos ou, ainda, os melhores e mais naturais instrumentos para entremeá-las nas bases como uma ‘elite’ que não é escolhida por ninguém, mas constitui a si mesma”. Inspirada no pensamento arendtiano, Felício (2006) revela seu apreço por uma elite democrática que assuma o compromisso público pela comunidade em que está inserida.

Ao falarmos de elite política neste artigo, algumas explicações são necessárias. Na escrita original do livro Sobre a revolução, Arendt (1963) utiliza a palavra em francês “èlite” considerando a sua etimologia: grupo minoritário de pessoas que têm na sociedade um lugar de destaque devido a certas qualidades valorizadas socialmente e não como uma elite hereditária e/ou econômica. Felício (2006, p. 37) afirma que, “[...] para Arendt, as palavras e a sua circulação contam mais do que o espaço material, pois são elas que modelam a esfera pública e tecem a opinião pública”. Arendt (1963) nos inspira a pensar que uma elite política pode romper com aquelas elites que querem conservar todo o poder em suas mãos com vistas aos interesses privados e às ideologias.

O CNE foi um ator importante durante todo o processo de elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, de 2015 a 2018), uma das principais políticas educacionais recentes, considerando o dinamismo de sua formação, até a culminância de sua atuação com o Parecer CNE/CP nº 15/2017 (que instituiu a BNCC) e o Parecer CNE/CP nº 15/2018 (que instituiu a BNCCEM). Os pareceres que formaram a base curricular do ensino médio e das demais etapas de ensino foram emitidos pelo Conselho Pleno (CEB e CES), tamanha a importância desses documentos para a educação brasileira. Nosso foco na CEB se deve ao fato de essa câmara ter se dedicado mais veementemente, durante o processo de construção do documento (por se tratar da educação básica) e também em sua finalização. Além disso, a Base tem como um de seus fundamentos os pareceres emitidos pela CEB.

Ancorado em tais posicionamentos e no problema de pesquisa anunciado, o artigo tem como objetivo problematizar a constituição da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação no período da elaboração da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (2015 a 2018), na perspectiva de uma elite política segundo a definição de Hannah Arendt. Para tanto, formulamos as seguintes questões de investigação: quais são as aproximações ou os distanciamentos da CEB/CNE de uma elite política? Quais são os critérios de escolha dos conselheiros? O que são ou quem são os representantes da CEB/CNE?    

 

Apontamentos metodológicos

Para atender ao objetivo e às questões de investigação anunciadas, assumimos a análise crítico-documental, com base nas teorizações de Marc Bloch. Ao escrever sobre a observação histórica, Bloch (2001, p. 73) afirma que, “[...] como primeira característica, o conhecimento de todos os fatos humanos no passado, da maior parte deles no presente, deve ser um conhecimento através dos vestígios”. Buscaremos, assim, nos vestígios das vinculações a instituições dos conselheiros da CEB/CNE (2015-2018), suas aproximações ou distanciamentos de uma elite política. O estudo adota como fontes os Currículos Lattes dos conselheiros – quando não encontramos as informações das suas vinculações e circularidade, recorremos ao Google – e as Portarias: nº 187 de 2012; nº 323 de 2014; nº 174 de 2016; nº 103 de 2018, nas quais estão relacionadas as instituições consultadas para indicação de nomes para a composição do Conselho. Além disso, utilizamos como instrumento de auxílio o software Gephi1 para potencializar a análise das redes de sociabilidade (vinculações) dos conselheiros. Para a organização sobre as associações dos conselheiros com as instituições e o tempo em que estiveram na CEB/CNE, elaboramos o Quadro 1.

Como recorte temporal, estabelecemos o período de construção da BNCC (entre 2015 e 2018), quando se iniciaram as discussões sobre a Reforma do Ensino Médio, culminando na Lei n° 13.415 de 2017, por entendermos como um período de intensos debates e efervescência da esfera política e educacional no Brasil, além do fato de o CNE, principalmente a CEB, terem desempenhado importante papel nesse processo. Desse modo, 19 conselheiros passaram pela CEB/CNE nesse período, pois consideramos como pertencentes os conselheiros que estiveram no órgão em algum momento no recorte estabelecido, conforme o Quadro 1.

 

CEB/CNE: vinculações e atuações

No Quadro 1, apresentamos os nomes dos 19 conselheiros que estiveram na CEB/CNE em algum momento do período de 2015 a 2018. Além disso, para facilitar a compreensão da Figura 1 (apresentada mais à frente), criamos uma identificação do nome dos sujeitos, de acordo com a última coluna do quadro.

Quadro 1 – Conselheiros no período de 2015 a 2018

Conselheiro

Período no CNE

Nome na Figura

Alessio Costa Lima

2016-2020

LIMA, A. C.

Antônio Carlos Caruso Ronca

2014-2016

RONCA, A. C. C.

Antonio Cesar Russi Callegari

2012-2018

CALLEGARI, A. C. R.

Antonio Ibañez Ruiz

2012-2016

RUIZ, A. I.

Aurina Oliveira Santana

2015-2019

SANTANA, A. O.

Eduardo Deschamps

2016-2020

DESCHAMPS, E.

Gersem José dos Santos Luciano

2016-2020

LUCIANO, G. J. S.

Ivan Claudio Pereira Siqueira

2015-2018

SIQUEIRA, I. C. P.

José Francisco Soares

2016-2020

SOARES, J. F.

Kátia Cristina Stocco Smole

2018-2019

SMOLE, K. C. S.

Luiz Roberto Alves

2012-2016

ALVES, L. R.

Manuel Fernando Palácios da Cunha Melo

2015-2016

MELO, M. F. P. C.

Maria Beatriz Moreira Luce

2014-2015

LUCE, M. B. M.

Maria Helena Guimarães de Castro

2018-2022

CASTRO, M. H. G.

Mozart Neves Ramos

2018-2022

RAMOS, M. N.

Nilma Santos Fontanive

2016-2020

FONTANIVE, N. S.

Rafael Esmeraldo Lucchesi Ramacciotti

2016-2020

RAMACCIOTTI, R. E. L.

Rossieli Soares da Silva

2016-2018

SILVA, R. S.

Suely Melo de Castro Menezes

2016-2024

MENEZES, S. M. C.

Fonte: Elaboração dos autores.

Entre os 19 conselheiros que passaram pela CEB/CNE no período de 2015 a 2018, Maria Beatriz Moreira Luce (2014 a 2015), Manuel Fernando Palácios da Cunha Melo (2015 a 2016) e Rossieli Soares da Silva (2016 a 2018) eram membros natos, por ocuparem a Secretaria de Educação Básica. Os outros conselheiros foram indicados pelas instituições consultadas (55, de acordo com as Portarias: nº 187/2012, nº 323/2014, nº 174/2016 e nº 103/2018) ou nomeados por livre iniciativa do Executivo Federal.

Chamamos a atenção para os três membros que estavam presentes na CEB/CNE por serem considerados natos e não necessariamente pelas qualidades políticas, mas porque pertenciam à administração do Executivo Federal. Afinal, como bem destaca Gentili (2009), pertencer tem os seus privilégios, fazendo com que aqueles que herdam vantagens sociais e econômicas tenham mais possibilidades de adentrar a alguns espaços do que outros que não tiveram a “sorte” de nascer em uma família privilegiada com status socialmente reconhecido.

 

Dizer o que alguém é corresponde a falarmos sobre aquelas qualidades que este possui e que são semelhantes àquelas das outras pessoas com as quais convive – ao indagarmos o que somos poderemos responder que somos cidadãos, estudantes, professores, médicos, filhos, brasileiros. Essas qualidades não singularizam e nem podem dizer quem alguém é, pois são gerais e caracterizam todos os que estão coabitando este mundo. Mas, a pergunta ‘quem somos?’ faz com que consideremos o que cada um tem de mais peculiar, de específico, ou ainda, aquilo que é singular, e essa singularidade é expressa quando nos inserimos no mundo e agimos nele, mostrando àqueles que se relacionam conosco no mundo comum quem realmente somos (SAMPAIO; CARVALHO, 2021, p. 154).

 

Podemos ser reconhecidos pelo que somos em função da cor, do gênero, da classe social, do pertencimento familiar ou do alinhamento a partidos políticos. No âmbito da política, podemos mostrar quem somos ao tornarmos audíveis e visíveis nossas razões e opiniões, tendo a coragem de expor os pensamentos, mesmo sabendo que eles são direcionados a um conjunto de espectadores interessados que podem julgá-los e até refutá-los, pois é justamente no debate de diferentes ideias que a política se faz. Desse modo, os três conselheiros citados (membros natos), mesmo escolhidos de maneira alheia ao que defende Arendt (1963), ainda poderiam mostrar publicamente seus posicionamentos, embora fossem diferentes do que defendia o Executivo Federal, sobretudo por estarem em um órgão deliberativo.

Arendt (2010, p. 201) afirma que “[...] esse envolvimento político do cidadão significa a sua participação ativa e direta nos fóruns públicos, nos quais as decisões que afetam a vida e o destino da comunidade são tomadas com respeito à pluralidade”. O encontro de diferentes seres humanos evidencia que não existimos isolados na vida em comunidade, mas coexistimos. Arendt (2020, p. 267) ressalta: "Quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra”. No que diz respeito à pluralidade que possibilita a realidade dialógica da ação política e é também a condição da vida política, Arendt (1989) discorre sobre esse conceito pautado na igualdade e na liberdade.

Cabe ressaltar que é a igualdade, como fenômeno da política, que permite que os homens e as mulheres se expressem livremente, ao se moverem entre iguais, reconhecendo seu direito de agir no mundo (ARENDT, 2006). Arendt (2016) concebe a liberdade não como um livre-arbítrio, mas como sinônimo de livre agir, superando a ideia de um domínio individual da liberdade, uma vez que a autora a compreende no movimento da política. Tendo como referência a pólis grega, Arendt (2016, p. 148) define liberdade como o “[...] estado do homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas em palavras e ações”. Se é necessária a criação de um corpo político em que a participação seja constante para a fundação da liberdade, indagamos: os membros natos (Luce, Melo e Silva) e aqueles conselheiros nomeados por escolha direta do Presidente da República (sem indicação das instituições consultadas) gozariam da liberdade de ação? O fato de pertencerem a um governo (membros natos), devendo suas nomeações ao Executivo Federal, influencia seus modos de desaparecimentos ou de aparecimentos no espaço público?

Tendo em vista que ser livre e agir é a mesma coisa para Arendt (2016), a autora chama a atenção para a liberdade de expressão e a liberdade de opinião. A primeira significa “[...] o direito de falar e ser ouvido em público” (ARENDT, 2018, p. 200). Já a segunda, “[...] é o pré-requisito para a liberdade de ação, pois nenhum homem pode agir sozinho” (ARENDT, 2018, p. 200). Questionamos, então, sobre a dificuldade de se garantir a liberdade de ação, quando a de expressão, a de pensamento, a de reunião não foram asseguradas primeiramente. Se a liberdade pressupõe movimento, não nos cabe, nem é possível medirmos a liberdade dos conselheiros, pois só somos livres no momento em que agimos.

Para Arendt (2018), a liberdade não se trata apenas de realizar o eu quero, mas sobretudo o eu posso e se faço é pelo prazer de agir em sociedade. Segundo Arendt (2006, p. 21), a política trata da convivência entre os diferentes, baseia-se na pluralidade e, ainda, “[...] política e liberdade são idênticas e sempre onde não existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaço político no verdadeiro sentido”.

Vale aqui recobrar que os outros 16 conselheiros podem ter assumido seus postos na CEB/CNE por indicações de instituições consultadas (a lei determina que a obrigatoriedade é que 50% da formação do órgão seja de indicados), conforme as Portarias nº 187/2012, nº 323/2014, nº 174/2016 e nº 103/2018, o que poderia vir a se constituir uma experiência política de “[...] disposição para o debate, a instrução, o mútuo esclarecimento e a troca de opiniões” (ARENDT, 1963, p. 309), para que conjuntamente fosse decidido quem seriam os representantes.

De acordo com Arendt (2006, p. 43), “[...] a política somente se realiza na pluralidade – não existimos isolados, mas coexistimos. Se é possível pensar isoladamente, somente é possível agir em conjunto”. Nessa perspectiva, a política não tem relação direta com governo e/ou a regulamentação estatal. A política tratada de forma burocrática e rotinizada nega o sentido da política como experiência pública (com)partilhada. Para Arendt (2006), a política se estabelece como relação no intraespaço, isto é, na rede de sociabilidades públicas criada entre os seres humanos. A autora esclarece que a política, como experiência, tecida fora dos homens e das mulheres e não neles mesmos, se faz no debate, na discussão das ideias, como um acontecimento em que todos se voltam ao bem comum e são capazes de se desvencilhar dos interesses privados, ao menos no momento em que estão reunidos.

A partir da Figura 1, elaborada considerando as instituições com as quais os sujeitos tiveram ou têm vinculações e indicaram nomes para a composição da CEB/CNE, compreendemos suas influências na constituição da cultura política daquele período. Os conselheiros (na cor preta) e as respectivas instituições (na cor azul) foram relacionados no Excel para posterior tratamento no software Gephi.

Figura 1 – Instituições consultadas e vinculadas aos conselheiros (2015-2018)

Fonte: Elaboração dos autores.

 

Apesar de as organizações consultadas não exercerem influências diretas sobre as práticas do Executivo Federal, contribuem para a constituição de uma cultura política. Desse modo, mesmo as organizações mais inexpressivas devem ser consideradas, pois as suas concepções podem, de alguma forma, encontrar ressonância em sujeitos de relevância no cenário político (como os conselheiros da CEB/CNE), e suas atividades são legíveis por meio das marcas que imprimem em declarações à imprensa, boletins internos, anuários ou jornais.

Entre a natureza de instituições consultadas, estavam: a) academias; b) associações científicas; c) confederações; d) sindicatos de trabalhadores e patronais; e) conselhos; f) federações; g) fóruns; h) sociedades científicas; i) ONGs educacionais; j) uniões de estudantes e de conselhos. A partir da Figura 1, identificamos que dez dos dezenove conselheiros eram vinculados, de alguma maneira, a instituições que indicaram nomes para a composição da CEB/CNE. Desses dez, seis deles são vinculados à ONG educacional Todos pela Educação (TPE), considerada uma das principais instituições que buscam tensionar o Poder Público e impor uma agenda educacional de acordo com os interesses daqueles que a constituem, por isso ela aparece em destaque na figura. Maria Helena Guimarães de Castro é sócia-fundadora do TPE, assim como Nilma Santos Fontanive, José Francisco Soares e Antonio Cesar Russi Callegari. Kátia Cristina Stocco Smole é associada ao TPE e Mozart Neves Ramos, que foi presidente-executivo da ONG, hoje é um de seus membros.

Para Martins e Krawczyk (2018), o TPE se constitui como uma Think Thank,2 agindo em uma densa rede de influência. Essa rede pode ser percebida a partir dos conselheiros vinculados à ONG educacional que compuseram a CEB/CNE durante o processo de elaboração de uma das principais políticas educacionais da atualidade, a BNCC, e também com as instituições que possuem alguma relação com o TPE.

A Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave), o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e o Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação (FNCE) foram, após o TPE, as instituições com mais vinculações entre os sujeitos, com dois conselheiros associados a cada uma delas. A Abave foi criada no final do governo FHC, em 2001, e se estabeleceu como uma instituição responsável por manter os princípios da concepção de educação constituída desde 1995. Teve Maria Helena Guimarães de Castro como uma de suas fundadoras e presidente. Além dela, João Francisco Soares também é vinculado à associação. Notamos que essa instituição pôde indicar nomes para a composição da CEB/CNE, cumprindo alguns de seus objetivos, de acordo com o art. 4º do seu estatuto:

 

[...] III – servir como foro de constante análise de processos e atividades de Avaliação Educacional no Brasil, permitindo uma reflexão crítica sobre os mesmos;

IV – estimular a capacitação e aperfeiçoamento na área de Avaliação Educacional;

V – promover a disseminação dos conhecimentos da área de Avaliação Educacional, criando uma cultura em que o trabalho em Avaliação Educacional possa frutificar e ser aprimorado (ABAVE, 2009).

 

A cultura de avaliação que o estatuto destaca está ancorada nas recomendações dos organismos multilaterais, sobretudo a OCDE. No ano de 2020, com a instalação da pandemia do Covid-19, a Abave realizou uma série de lives (webnários) para a discussão desse fenômeno na educação, especificamente, na avaliação. No dia 3 de setembro desse ano, a instituição teve Andreas Schleicher, diretor do Pisa/OCDE, como palestrante, tamanho o relacionamento dessas instituições.3 A Abave tem vinculações com o TPE. Além de os dois conselheiros associados a ela também serem membros do TPE (Figura 1), a associação tem, basicamente, os mesmos parceiros que a ONG educacional: Itaú Social, Fundação Lemann e Instituto Unibanco, para citar alguns.

O Consed aparece como uma instituição com duas indicações para o CNE a ele vinculados: Mozart Neves Ramos e Eduardo Deschamps, o que é compreensível, devido à sua natureza (ser um conselho que reúne todos os secretários de Educação estaduais). Mozart Neves Ramos presidiu o Consed em 2006 e Eduardo Deschamps entre 2015 e 2016 (também foi secretário de Educação de Santa Catarina entre 2012 e 2018). Entendemos que os dois conselheiros podem ter sido indicados pelo Consed, de modo que não é explicitada nas portarias a vinculação entre instituição e indicado. Mozart Neves Ramos é um associado ao TPE, evidenciando a rede educacional que tem como uma de suas atuações a composição do CNE.

Também com dois conselheiros associados (Suley Melo de Castro Menezes e Kátia Cristina Stocco Smole), o FNCE tem por objetivo reunir os Conselhos Estaduais de Educação para a defesa da educação pública e servir como guardiões das políticas educacionais. Expressa sua natureza como:

 

[...] multifacetada [de] dinâmica coletiva, construtiva e democrática que permeia nossas rotinas diárias, quando presenciamos a pluralidade de ideias, as divergências, múltiplas leituras sobre os mesmos temas e, para o bem da coletividade, prevalece a vontade da maioria. Deliberamos, normatizamos, fiscalizamos, orientamos, fazemos coisa julgada (FNCE, 2018, p. 9).

 

A entidade tem acordo de cooperação com o Consed, na busca pela melhoria da educação, além de vinculações com a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) e com o TPE, conforme afirma: “[...] o FNCE e a Uncme assumiam os compromissos de: contribuir na ‘implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação [TPE] firmando a participação efetiva nos Comitês Estaduais e Municipais do Plano de Ações Articuladas — PAR na concretização de uma visão sistêmica e estratégica da Educação [...]’” (FNCE, 2018, p. 73).

Assim, a vinculação dessas instituições com uma organização que defende interesses privados na educação (TPE) reforça, ainda mais, o estabelecimento de uma rede que busca influenciar a constituição de uma concepção de educação que vai além da elaboração de documentos e lobbys diretos no Poder Público, mas sua atuação está disseminada em instituições criadas para defender a educação pública (como o CNE), deturpando, desse modo, suas concepções fundantes e a tradição na qual estão firmadas.

Ao que nos parece, a presença do TPE, como instituição consultada para indicação de sujeitos na composição do CNE, representa a ascensão dos interesses econômicos no campo educacional, visto que a ONG tem entre os seus mantenedores: Instituto Unibanco, Itaú Social, Fundação Bradesco e [B]³ Social, entidades de grupos empresariais financeiros (bancos e o próprio mercado financeiro, representado pela bolsa de valores).

Desse modo, assim como o próprio nome de duas dessas instituições (Itaú Social e [B]³ Social), talvez seja possível falarmos não apenas da inserção de interesses privados na educação pública, mas também de um fenômeno ainda mais complexo, o surgimento da esfera social abordada por Arendt (2020).4 A esfera social é o “[...] domínio curiosamente híbrido onde os interesses privados adquirem significação pública” (ARENDT, 2020, p. 34).

Para Lafer (1989, p. 267), na esfera social “[...] que se caracteriza pela variedade, ingressamos devido à necessidade de ganhar a vida, de seguir uma vocação, de associarmo-nos a pessoas com as quais temos negócios ou interesses em comum”. Por sua vez, Telles (1990) considera que a ascensão da esfera social se dá em uma sociedade em que as pessoas agem visando a garantir suas próprias vidas, pois já deixaram de se interessar pelo bem público. Ao discorrer sobre a esfera social, Arendt (2020, p. 56) afirma que “[...] a sociedade é a forma na qual o fato da dependência mútua em prol da subsistência, e de nada mais, adquire importância pública, e na qual as atividades que dizem respeito à mera sobrevivência são admitidas em praça pública”.

Na esfera social, as comunidades políticas foram confundidas como grandes famílias e o espaço público foi invadido pelas questões econômicas, como elucidado em nossa investigação: instituições, tendo em vista a obtenção de lucros sob roupagem de defensores da educação pública, aproximam-se de conselhos de âmbito nacional, estadual e municipal, colocando em risco a experiência de uma elite que poderia se constituir como democrática.

Contudo, Arendt (2018, p. 223) destaca que “[...] o que é necessário para o domínio público é que ele seja protegido dos interesses privados que nele se intrometeram da forma mais brutal e agressiva”. Assim, a esfera social evidencia a falta de distanciamento entre o espaço privado da família e o espaço público da política. Para Correia (2008), a ascensão da esfera social fez com que a vida política fosse aproximada da vida familiar. De acordo com Correia (2008, p. 102), a política tornou-se uma função da sociedade com a implicação de que “[...] questões eminentemente privadas da sobrevivência e da aquisição transformaram-se em interesse coletivo, ainda que nunca se possa conceber de fato tal interesse como sendo público”.

Nesse sentido, entendemos que a prevalência de vinculações dos conselheiros ao TPE (e a rede de influência empresarial que isso representa) coaduna com o que Arendt (2020) compreende como a esfera social, em virtude da invasão de questões econômicas na formação da CEB/CNE, com conselheiros articulados ao TPE na defesa dos interesses privados e econômicos, que constituem a concepção de educação que pretendem estabelecer. Não podemos perder de vista que, ao falarmos de interesses privados, não nos remetemos apenas às instituições privadas no sentido de não serem órgãos públicos sob o ponto de vista estatal, mas privadas nas suas pretensões, sempre que desejos, necessidades e interesses particulares subjugam aquilo que é comum, que diz respeito a todos.

A professora Maria Beatriz Moreira Luce aparece na Figura 1 vinculada à ANPEd, Anfope, Anpae e SBPC. Mesmo sendo membro nato, por ter sido secretária da Educação Básica entre 2014 e 2015, entendemos que a professora carregava consigo a representatividade dessas instituições, que se caracterizam como entidades científicas, impulsionando a análise de que a professora representava a pesquisa educacional e o fazer científico na CEB/CNE. Destacamos que essas instituições só estavam vinculadas à Luce e estabelecidas fora do contexto da rede de influência composta por: TPE, Abave, Consed e FNCE, de modo que elas não possuem vinculações entre si.

As instituições que compõem essa rede de influência, que busca estabelecer uma concepção de educação firmada nas recomendações dos organismos multilaterais (como OCDE e Unesco), são defensoras da BNCC. A Abave, o Consed e o TPE são apoiadores do Movimento pela Base que se denomina como uma “[...] rede não governamental e apartidária de pessoas e instituições que desde 2013 se dedica à construção e implementação de qualidade da BNCC e do Novo Ensino Médio” (MOVIMENTO PELA BASE, 2021). Por estar associada a instituições que se contrapunham a esse modelo apoiado por essa rede, a professora Luce representava uma resistência às políticas educacionais propostas naquele período, possibilitando a ocorrência de tensões, disputas e negociações dentro da CEB/CNE e do MEC, já que era secretária da Educação Básica.

Luce e Chagas (2020, p. 7) compreendem resistência (em específico à reforma do ensino médio) como: “[...] uma estratégia de transformação da estrutura (subversão), pela postura de resistência ao teor da Lei nº 13.415/2017 e de adoção de proposições alternativas dentro do jogo no campo educacional”. Assim, entendemos o posicionamento da professora na CEB/CNE, reforçado pela postura das instituições que ela representava, como a ANPEd (2019, p. 1), que, juntamente com diversas entidades e movimentos sociais, se manifestam contrárias “[...] à metodologia de elaboração, discussão e implantação da BNCC, com caráter impositivo nos estados e municípios brasileiros”.

Destacamos que Luce esteve na CEB/CNE em dois períodos: de maio de 2004 a maio de 2008, e de junho de 2014 a março de 2015, como membro nato. Desse modo, seu período no conselho, durante a elaboração da BNCC, foi curto. A professora foi substituída por Manuel Fernando Palácios da Cunha e Melo na Secretaria de Educação Básica, professor que foi um dos idealizadores do Reuni.5      Atualmente (2021) ele é diretor do CAEd,6 este último com parcerias com o Pisa/OCDE.

Desse modo, Luce saiu da Secretaria de Educação Básica no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff (a partir de 2015), em um ambiente de efervescência social e protestos que culminaram na instauração do processo de impeachment (um golpe parlamentar) um ano depois, em abril de 2016. Assim, entendemos que tensões e disputas, desdobradas em negociações (de cargos no Executivo Federal, por exemplo), aconteceram, e a substituição de Luce por alguém que defendia pautas que não aquelas levantadas pelo grupo que a professora representava indicia que essas negociações se estabeleceram desde os níveis hierárquicos mais elevados (como os ministros de Estado) até os mais inferiores (como as Secretarias dos Ministérios).

Além disso, ressaltamos os representantes dos institutos federais, como o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), vinculado a Antonio Cesar Russi Callegari, também associado ao TPE, e a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), vinculada a Mozart Neves Ramos, também associado ao TPE, indiciando a importância dessa modalidade de ensino na elaboração de políticas educacionais desse período. Todavia, essas representações estavam ligadas à rede de influência empresarial na educação, pois os seus representantes eram associados a essas instituições, mas também ao TPE, organização agregadora dessa agenda.

O aparelhamento do CNE em 2016, quando o presidente era Michel Temer – após golpe parlamentar e midiático contra a presidenta Dilma Rousseff – destituiu os nomes indicados pela ex-presidenta no ano anterior, tendo como consequência a alteração da constituição do Fórum Nacional de Educação. Em resposta foi organizada a Conferência Nacional Popular de Educação (Conape) que elaborou o Manifesto em prol da democracia e da educação transformadora, como um movimento de resistência à conjuntura política daquele momento, caracterizado como uma “[...] virada conservadora no país, com o protagonismo de setores privatistas, fundamentalistas políticos e religiosos e fortalecimento do neoliberalismo” (GOMES, 2019, p. 1018).  Tal manifesto se posicionou em defesa dos avanços e dos espaços “[...] de interlocução conquistados após décadas de muita luta e que agora [foram] destruídos e/ou usurpados pelo atual golpe político, ao qual não interessa o fortalecimento de uma educação pública, laica, democrática, inclusiva, crítica e de qualidade socialmente referenciada” (p. 1018).

Assim, podemos perceber que, mesmo havendo o CNE como um conselho institucionalizado e controlado de certa forma pelo Executivo, isso não evitou a organização de um conselho popular que se mobilizasse contra as medidas de um poder político centralizado. O Conape assumiu a educação como um instrumento de luta não apenas no âmbito educacional, mas também no enfrentamento à exclusão, à pobreza, às desigualdades sociais e às concentrações de renda, conforme exposto no Manifesto em prol da democracia e da educação transformadora. O interessante da ação feita pelo Conape é a convocação aos movimentos sociais, às vozes da sociedade civil, às entidades educacionais, como se os convidasse para juntos assumirem a responsabilidade pela educação, pelas crianças, pelos adolescentes e, em um contexto macro, pelo país.

Mesmo com as ações de resistência do Conape e do seu movimento político- educacional, não houve interferências na constituição do CNE, pois tais decisões ficaram restritas ao presidente Michel Temer, já que isso é permitido legalmente. Assim, a “pluralidade” de representação na CEB/CNE, no período entre 2015 e 2018 (período de elaboração da BNCC), não foi estabelecida.

Por mais que os conselheiros fossem vinculados a diferentes tipos de instituições educacionais, seis deles eram associados ao TPE ou a outras instituições articuladas a esses interesses e com as recomendações dos organismos multilaterais (como Consed, Abave e FNCE). Além disso, ao que nos parece, houve um cuidado de compor a CEB/CNE com uma maioria favorável à BNCC, sobretudo a partir de 2016, com o aprofundamento das concepções educacionais que embasaram a reforma educacional da década de 1990 e que foram retomadas com mais evidência na construção da Base e na reforma do ensino médio (Lei nº 13.415/2017).

Compreendemos que os membros da CEB/CNE já tinham proximidades com aquelas instituições que viriam a indicá-los. Pertenciam ao Executivo Federal (membros natos) ou foram diretamente escolhidos pelo Presidente da República, fazendo-nos pensar em um possível acirramento entre as esferas pública e privada. Permeiam, nesse processo, critérios antidemocráticos e apolíticos de escolha, uma vez que, para Arendt (2018, p. 81), as mulheres e “[...] os homens eleitos para os conselhos são escolhidos na base, e não selecionados pela máquina do partido para serem propostos ao eleitorado”.

Portanto, “[...] os conselhos controlariam os partidos, não seriam seus representantes” (ARENDT, 2018, p. 79) e o fato de os conselheiros estarem em um espaço de decisões educacionais por indicações de instituições próximas a eles (a exemplo da rede de influência: TPE, FNCE, Consed, Abave) em função da vida pessoal, coloca em risco a transparência de sua atuação, visto que eles podem estar alinhados a interesses particulares e corporativistas. A vinculação dos conselheiros a instituições se faz importante para compreendermos a maneira como foi formada a CEB/CNE desdobrada na concepção de educação materializada em políticas educacionais.

Ao que nos parece, nesse processo, não houve uma grande preocupação com a abertura de canais de interlocução pública para que a comunidade em geral pudesse participar, colocando em xeque uma experiência que poderia ser democrática. Embora a democracia não seja apenas sobre quantos participam, mas, principalmente, sobre como e por que participam, Arendt (2010, p. 201) é assertiva ao dizer: “[...] qualquer um que não esteja interessado nos assuntos públicos terá simplesmente que se satisfazer com o fato desses assuntos serem decididos sem ele. Mas deve ser dada a cada pessoa a oportunidade”. É necessário o querer como predisposição para o agir político. Assim, entendemos que o direito à participação não foi garantido para todos no período de atuação da CEB/CNE, durante a elaboração do BNCC.

Vale aqui recobrar o apreço de Arendt (1963) por conselhos como organismos públicos que assumem a cogestão pela vida política tendo em vista o bem comum. Frateschi (2016, p. 38) ressalta que a elite política se constitui por homens e mulheres que pertencem aos conselhos, desde que seja respeitado “[...] o princípio da autosseleção nos órgãos políticos de base e o princípio da confiança (característicos de uma forma federativa de governo)”. Assim, aqueles que compõem a elite política desses conselhos estão ali pela deliberação conjunta da comunidade que depositou neles a confiança de representá-la publicamente e não por fazerem parte de facção, programa ou partido político burocrático, conforme compreendemos a formação da CEB/CNE no recorte temporal estabelecido neste estudo. Para Duarte (2000, p. 311), “[...] o sistema de conselhos não visa negar a representação política tout court, mas redefinir as bases sobre as quais ela se dá no contexto das atuais democracias parlamentares”. Homens e mulheres, ao participarem da esfera pública:

 

[...] fazem uso da razão pública, o que implica dizer que essa moralidade não se sustenta na razão privada. Não são interesses pessoais que colocam os homens para dialogarem na esfera pública, estes aparecem apenas na forma de opiniões que participam do universo da fala pública [...] o interesse só tem importância na política como forma de interligar os homens, mas não dá sentido à ação pública (NASCIMENTO, 2008, p. 60).

 

Desse modo, estamos falando de horizontalidade nas decisões tomadas, pois os conselhos são organismos políticos, cujo poder vem da base piramidal e não do topo, deslocando-se de uma hierarquização vertical. Arendt (1999, p. 201 e 233) ressalta que o sistema de conselhos “[...] para o qual o princípio da soberania fosse totalmente discrepante seria admiravelmente ajustado às mais diversas espécies de federações, em particular, porque nele o poder seria constituído horizontalmente e não verticalmente”. Para Arendt (2018), as decisões tomadas pelos “eleitos” devem ser questionadas e, à medida que essa representatividade não for mais condizente, pode ser deposta e outras deliberações conjuntas realizadas. Portanto, não há no pensamento arendtiano nem uma elite (aos moldes do sentido usual ou utilitário), tampouco uma hierarquização incisiva no sistema de conselhos.

É impensável uma elite de acordo com o que usualmente se compreende desse termo, como aqueles que detêm o poder pelo simples fato de serem herdeiros e de se voltarem exclusivamente por interesses privados. Na medida em que elite vem acompanhada de política, formando elite política, o sentido da política é determinante, pois é o adjetivo (política) que concede sentido ao substantivo (elite). Trata-se de uma elite política constituída de maneira democrática que tem como escopo proteger o interesse público, o bem comum, a política.

É esse o horizonte que o CNE poderia perseguir como um conselho educacional de âmbito nacional em um país com dimensões continentais que tem a educação como um direito público subjetivo reconhecido constitucionalmente. Estamos vislumbrando a CBE/CNE como um conselho à luz da democracia radical, pois “[...] lutar por uma sociedade e uma educação democráticas e com justiça social, em tempo de recrudescimento do neoliberalismo, exacerbação do capitalismo, de ideologias fascistas racistas e de extrema-direita no mundo é, portanto, radicalizar a experiência da democracia” (GOMES, 2019, p. 1019). Por sua vez, Brayner (2017, p. 191) afirma que:

 

[...] o pensamento representativo, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de se abstrair das condições pessoais e privadas, é o esteio fundamental para o exercício do julgamento. Mesmo que as condições privadas nos condicionem, a imaginação e o senso comum nos liberam do privatismo e, assim, a validade final de todo julgamento reside na sua comunicabilidade.

 

É certo que os conselheiros têm diferentes conhecimentos advindos de suas trajetórias pessoais e profissionais, mas nossa perspectiva é que seus pensamentos tenham um sentido de pertença com o mundo, de modo que os faça subverter a preocupação com a mera elementaridade da vida, despertando-os a agir e julgar sobre o que se espera da educação ao se reconhecerem como corresponsáveis por ela, uma vez que se julgamos é porque não estamos sozinhos neste mundo, mas se o fazemos é porque exercemos nossa condição de humanidade (BRAYNER, 2017).

 

Considerações finais

O percurso teórico-metodológico do nosso estudo nos leva a afirmar que o Executivo Federal direcionou a formação da CBE/CNE nesse período (2015-2018) de acordo com suas próprias intenções para que as políticas educacionais fossem estabelecidas em convergência com as concepções daqueles que estavam no lugar de poder. A pluralidade não foi necessariamente um princípio perseguido na formação da CEB/CNE no período analisado, ferindo a elite em seu sentido político. A maior parte dos conselheiros nomeados eram alinhados à concepção de educação que pretendiam estabelecer, principalmente na articulação com os organismos multilaterais e voltada para o desenvolvimento de competências.

Desse modo, a constituição da CEB/CNE tem o sentido daquilo que comumente se compreende por elite: uma minoria que detém o prestígio e o domínio sobre algo ou um grupo social, a “nata” em superioridade hierárquica e que tem ascendência das suas concepções sobre os demais. Isso se deve ao processo da formação do órgão, aos critérios que determinaram as escolhas, movimento que distancia o CNE, e especificamente a CEB, daquilo que entendemos por elite política e também sobre conselhos. Houve uma seleção dos conselheiros, cuidadosa, a partir daqueles que tinham alinhamentos em relação à concepção de educação e que tinham proximidades com as instituições com as quais o Executivo Federal pretendia estabelecer vinculações (como o TPE).

Não obstante tais tensionamentos aos aspectos identificados na constituição da CEB/CNE no período da elaboração da BNCC, buscamos concluir com “anúncios” que vislumbram outros horizontes possíveis sem necessariamente finalizarmos a discussão. O direito à participação, à condução dos negócios públicos, como movimentos revolucionários, como “tesouros perdidos” na perspectiva arendtiana e a desobediência civil são exercícios da política pujantes e essenciais para a continuidade do mundo. Mesmo em tempos sombrios, eles são possíveis porque o ser humano ao agir é capaz de interromper processos históricos até nos períodos de crise ao passo que pode inaugurar novos começos.

Assim, a ação tem origem na possibilidade de se fazer algo novo no mundo e se trata da faculdade humana de se operar milagres, pois mulheres e homens se tornam agentes quando se comunicam, discutem e interagem por meio de atos e palavras, constituindo um espaço público compartilhado. Compreendemos que a CEB/CNE pode construir novos caminhos, assim como a sociedade está propícia a ter a constituição de conselhos espontâneos organizados como uma elite política em um sentido democrático, pois é uma nova forma de exercício da política, sobretudo se pensarmos em um contexto de direitos não contemplados no (des)governo presidencialista (governo Bolsonaro 2019 - 2022) no Brasil, no qual é fundamental a transgressão a uma ordem, ao modus operandi societário vigente.

 

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Notas

1 O Gephi é um pacote de software de código aberto e gratuito utilizado para estruturação, manipulação e visualização de redes complexas. Tem, em sua base, plug-ins e métricas para a potencialização e refinamento dessas análises.

2 Think Thanks são instituições que buscam pressionar e influenciar o Poder Público na formulação de políticas públicas.

3 Webnário disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3KoGeQc9ea4.

4 Falar de esfera social em Hannah Arendt é complexo por se tratar de uma discussão polêmica que já recebeu críticas de alguns autores, a exemplo de Touraine (1996). Não obstante o reconhecimento das críticas, Telles (1999) explica que nem por isso não devemos nos instigar e levar em consideração tal conceito.

5 Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, considerado um programa alinhado com as recomendações dos organismos multilaterais. Entre suas consequências, está a precarização do trabalho.

6 Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação.

 

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