O perfil de estudantes com laudo médico em uma Escola Estadual de Ensino Médio: transformando preconceitos em patologias
The profile of students with a medical diagnosis in a State High School: turning prejudice into pathologies
El perfil de los estudiantes con informe médico en una Escuela Secundaria Estatal: Transformar prejuicios en patologías
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
betebassani23@gmail.com
Eduarda Fernandes Silva Duarte
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
eduarda.barcelos31@gmail.com
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
juliaarreb@gmail.com
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
jarofi310562@gmail.com
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
simoneclpereira@gmail.com
Recebido em 02 de agosto de 2022
Aprovado em 05 de setembro de 2022
Publicado em 12 de fevereiro de 2024
RESUMO
A presente pesquisa desenvolvida no ano de 2020 teve como objetivo conhecer o perfil de estudantes com laudo médico em uma Escola Estadual de Ensino Médio do município de Serra, Espírito Santo. Foi desenvolvido um estudo documental que permitiu análise de fichas de matrícula e laudos médicos de 21 estudantes do ensino médio. O levantamento de dados apontou que todos os alunos do estudo compunham o Atendimento Educacional Especializado da escola. Destes, 71% eram do sexo masculino. Quanto aos dados raciais, 61% se autodeclararam pardos ou pretos. Já quanto aos diagnósticos, 57% possuíam o diagnóstico de Retardo Mental, que, somados aos 19% com Deficiência Intelectual/Cognitiva, totalizaram 76% dos alunos pesquisados. Concluiu-se que, conforme o perfil dos alunos e os diagnósticos identificados, parecia haver na escola e nos diagnósticos médicos uma concepção que aponta para naturalização do desenvolvimento humano a partir de olhares atravessados por determinantes biológicos e individualizantes, demonstrando, como em vários outros estudos, que o cotidiano escolar tem sido constituído por meio de uma história marcada pelo preconceito e pela homogeneização, em que são os meninos, negros e pobres, os que mais sofrem com essa lógica.
Palavras-chave: Medicalização; Ensino Médio; Educação Especial.
ABSTRACT
The present research carried out in the year 2020 aimed to know the profile of students with a medical diagnosis in a State High School in the municipality of Serra, Espírito Santo. A documentary study was developed, which allowed the analysis of enrollment forms and medical reports of 21 high school students. The data collection showed that all the students in the research were part of the school's Specialized Educational Service. Of these, 71% were male. As for racial data, 61% declared to be brown or black. As for the diagnoses, 57% had the diagnosis of Mental Retardation, which, added to the 19% with Intellectual/Cognitive Disability, totaling 76% of the students surveyed. It was concluded that, according to the profile of the students and the diagnoses identified, there seemed to be in the school and in the medical diagnoses a conception that points to the naturalization of human development from perspectives crossed by biological and individualizing determinants. This shows that, as in several other studies, the school routine has been constituted through a history marked by prejudice and homogenization, in which black and poor boys are the ones who suffer most from this logic.
Keywords: Medicalization; High-School; Special Education.
RESUMEN
La presente investigación desarrollada en 2020 tuvo como objetivo conocer el perfil de los estudiantes con informe médico de una Escuela Secundaria Estatal del municipio de Serra, Espírito Santo, Brasil. Se desarrolló un estudio documental que permitió analizar las planillas de matrícula e informes médicos de 21 estudiantes de educación secundaria. La recolección de datos arrojó que todos los estudiantes del estudio formaban parte del Servicio Educativo Especializado del colegio. De ellos, el 71% eran hombres. En cuanto a los datos raciales, el 61% se declaró mestizo o negro. En cuanto a los diagnósticos, el 57% fue diagnosticado con Retraso Mental, lo que sumado al 19% con Discapacidad Intelectual/Cognitiva, sumaron el 76% de los estudiantes encuestados. Se concluyó que, según el perfil de los estudiantes y los diagnósticos identificados, parece existir una concepción en la escuela y en los diagnósticos médicos que apunta a la naturalización del desarrollo humano desde perspectivas atravesadas por determinantes biológicos e individualizantes, demostrando, como en Según otros estudios, la vida escolar cotidiana se ha constituido a través de una historia marcada por los prejuicios y la homogeneización, en la que son los niños, negros y pobres, quienes más sufren esta lógica.
Palabras clave: Medicalización; Escuela secundaria; Educación especial.
Introdução
Estudos realizados no Brasil, como Souza (1996, 2000), Collares, Moysés e Ribeiro (2013), Viégas et al. (2014), Collares e Moysés (2015) e Bassani e Viégas (2020), demonstram um aumento do número de estudantes de escolas brasileiras diagnosticados e medicados devido a diferentes transtornos e deficiências. Em muitos casos, estes diagnósticos ocorrem mesmo inexistindo critérios mínimos de cientificidade que os fundamentem. Em escolas públicas brasileiras, muitos alunos são encaminhados para profissionais de saúde e frequentemente são medicados cada vez mais cedo; além disso, a partir dos diagnósticos médicos produzidos, geralmente em consultas que duram poucos minutos, tais discentes passam a fazer parte da estatística da Educação Especial. Essa prática presente nas escolas públicas brasileiras demonstra que uma razão fundamentada em um modelo médico, com frequência, se sobrepõe a fundamentos pedagógicos no contexto educacional. Vigora um modelo clínico que insiste em medicalizar e patologizar as diferenças.
Alunos com plenas condições para aprender na escola, devido aos diagnósticos médicos, passam a não ser considerados normais e, ainda pior, passam a acreditar que não podem aprender por terem um problema.
A partir da estigmatização, as pessoas assim marcadas passam a receber um tratamento diferente do que é dirigido aos normais, como se isto fosse absolutamente natural. Uma diferença em relação ao padrão, diferenças já acordadas como negativas, transformam totalmente as relações, como se realmente permitissem prever/identificar pessoas ritualmente poluídas (MOYSÉS, 2001, p. 249).
Ter diagnóstico e laudo passa a ser um direito e – como direito – deve ser defendido. Com o saber médico institucionalizado, há a difusão de um discurso de que estaríamos buscando, no campo médico, um conhecimento que representasse a “verdade” sobre o desenvolvimento humano e sobre as dificuldades de aprendizagem.
É importante explicar aqui que as críticas realizadas neste estudo não são atribuídas ao uso de todos os medicamentos ou a todos os diagnósticos elaborados pelos profissionais de saúde. Conforme assinala Untoiglich (2014, p. 62, tradução nossa), “[…] os diagnósticos teriam que funcionar como bússolas orientadoras para os profissionais, sempre levando em conta que se constroem em um devir, que vão modificando-se […]”. O trabalho que o profissional vai realizando com o aluno, com a família e com a escola será fundamental e poderá, a partir da mudança das condições no processo de ensino-aprendizagem, produzir movimentos fundantes na subjetividade.
Illich (1975) assinala que em todas as sociedades as pessoas com comportamentos considerados “estranhos” constituem uma ameaça, enquanto seus modos de vida singulares não são designados de maneira formal e desde que sua conduta considerada anormal não seja assimilada em um papel conhecido. Ao definir-se um nome e um papel às anormalidades que atemorizam, essas pessoas se transformam em membros de uma categoria formalmente reconhecida. Nas sociedades industriais, o anormal tem direito a um consumo especial. A categorização social aumentou o número dos que possuem esse “status” de consumidor excepcional a tal ponto que se tornaram exceção as pessoas que não entram em nenhuma categoria terapêutica. Os diagnósticos, os laudos e a própria Educação Especial acabam ocupando o lugar de mercadoria e serão pensados como direito. Catalogar os anormais transforma quem é uma ameaça à ordem estabelecida em sustentáculo dessa ordem.
Confirmando como os diagnósticos podem revelar uma busca do controle daqueles que são considerados um perigo social, segundo Bassani e Viégas (2020), dentre os alunos do ensino fundamental que são encaminhados para atendimento médico devido à queixa escolar no município de Vitória, 70% são do sexo masculino. Porcentagem muito semelhante foi encontrada em vários estudos, como os de Carvalho (2004), Souza (2000), Souza e Sobral (2007) e Vitorino (2009). O fato é que um maior número de alunos do sexo masculino tem sido conduzido para avaliação médica, indicando que seus professores consideram que eles possuem problemas individuais que os impedem de aprender na escola. Tais encaminhamentos, muitas vezes, estão atravessados por valores e preconceitos relativos às relações de gênero que ganham corpo no chão da escola.
Mesmo que há décadas pesquisas demonstrem essa realidade, essas discussões não têm recebido a importância necessária. Portanto, busca-se neste estudo saber se essas práticas se perpetuam também no ensino médio, a fim de abrir espaço para que esses assuntos sejam mais discutidos e problematizados nesse nível de ensino, que pouco tem sido investigado. Com esse propósito, esta pesquisa buscou responder às seguintes questões: Quem são os alunos encaminhados por uma escola pública de ensino médio para diagnóstico médico? Quais são os diagnósticos encontrados? A quem servem esses encaminhamentos e laudos?
Para buscar responder a essas perguntas, desenvolvemos esta pesquisa com o objetivo de conhecer o perfil de estudantes considerados pela equipe pedagógica de uma Escola Estadual de Ensino Médio de Serra, entendidos como perfis que necessitam de diagnóstico, laudo médico e Atendimento Educacional Especializado.
O processo de medicalização da educação e sua função política
Segundo Illich (1975), a medicina passou a gerir a saúde como uma empresa, muitas ações médicas passaram a visar principalmente ao lucro, produzindo uma nova configuração de doença, um fenômeno que deveria ser compreendido como uma condição de expropriação da saúde, reconhecida e produzida pela medicina, a qual passaria a ser “uma oficina de reparos e manutenção, destinada a conservar em funcionamento o homem usado como produto não humano. Ele próprio deve solicitar o consumo da medicina para poder continuar se fazendo explorado” (ILLICH, 1975, p. 10).
A partir da concepção definida pelo Fórum de Medicalização da Educação e da Sociedade (FÓRUM, 2015), compreendemos que o processo de medicalização consistiria em transformar artificialmente questões que são de ordem institucional, social, política e econômica em problemas de origem e solução do campo médico, buscando criar uma sociedade “sadia”, tornando indivíduos considerados com comportamentos inadequados em indivíduos normalizados. Consequentemente, conforme afirma Foucault (1979), tal direcionamento assume uma função política que procura exercer intervenções na sociedade por meio do controle dos corpos.
A medicina é então considerada uma estratégia biopolítica:
[...] O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 1979, p. 80).
O diagnóstico psiquiátrico viraria uma sentença que estigmatizaria os alunos e serviria como uma prisão, com grades invisíveis e aprisionadas. Essas crianças seriam:
Estigmatizadas, discriminadas, incapazes... Crianças inicialmente normais são tornadas doentes, ao serem submetidas a olhares que não as vêem, olhares que só conseguem enxergar defeitos, carências, doenças, que só buscam olhar o que se sabe que elas, as crianças normais, não têm. Expropriadas de sua normalidade cognitiva, mental e corporal, adoecem (MOYSÉS, 2001, p. 249).
Outra discussão importante que atravessa a problematização dos diagnósticos e laudos nas escolas refere-se às questões raciais que acabam camufladas no contexto educacional. Em pleno século XXI, ainda é frequente encontrar explicações para o fracasso escolar sustentadas no determinismo racial. É importante ressaltar que, assim como todo conceito é uma construção humana, o de raça não foge a essa regra. De acordo com Moysés (2001, p. 127):
A palavra raça é introduzida no discurso científico [...] no início do século XIX, para falar das características físicas herdadas que permitiriam diferenciar os vários grupos humanos. As diferenças raciais assumem o papel de ponta de lança contra os pressupostos de igualdade da revolução burguesa. O homem, e consequentemente, os grupos de homens, os povos, são vistos como seres apenas biológicos, fruto de determinação genética exclusiva.
Moysés (2001) também destaca que Gobineau afirmava em sua teoria que o nível médio de inteligência de um negro é dois graus abaixo do nível médio de um branco e três graus abaixo de um indivíduo pertencente à raça australiana. De modo geral, os pesquisadores supostamente comprovaram em suas teorias a inferioridade dos não brancos e dos pobres. Já a teoria de Darwin foi reformulada por intelectuais da burguesia para justificar sua superioridade dando origem ao paradigma que até os dias atuais é referenciado em estudos e marca explicações sobre questões sociais, o darwinismo social, ou também chamado determinismo racial.
O darwinismo social, ou determinismo racial claramente transformava o termo raça em sinônimo de espécie, ao defender três pressupostos: a existência das raças humanas, como uma distância genética entre elas equivalente à que existe entre o cavalo e o asno, condenando, portanto, qualquer miscigenação; a continuidade entre caracteres físicos e morais, o que significa que a cultura de um povo é determinada pela raça, pelo patrimônio genético desse povo; a preponderância do grupo racio-cultural na determinação do comportamento do sujeito (MOYSÈS, 2001, p. 129).
Segundo Patto (1999), essas teses passaram a ser mais divulgadas a partir do início do século XIX e ganharam real força entre os anos de 1850 e 1930. Foram quase cem anos de propagação de teorias pautadas no determinismo biológico que buscaram explicar por que negros e pobres eram inferiores em relação aos brancos e, consequentemente, os que mais fracassavam na escola.
[...] numa ordem social em que o acesso aos bens materiais e culturais não é o mesmo para todos, o ‘talento’ é muito menos uma questão de aptidão natural do que de dinheiro e prestígio; mais do que isto, numa sociedade em que a discriminação e a exploração incidem predominantemente sobre determinados grupos étnicos, a definição de superioridade de uma linhagem a partir da notoriedade de seus membros só pode resultar num grande mal-entendido: acreditar que é natural o que, na verdade, é socialmente determinado (PATTO, 1999, p. 61).
A autora também apresenta como a superioridade racial, medida por testes supostamente neutros, a busca por respostas na biologia para questões relacionadas ao processo ensino-aprendizagem e o contexto de desigualdade de oportunidades na sociedade Liberal em que a escola foi construída determinaram as relações de professores e corpo técnico com seus alunos, bem como a relação médico-paciente nos serviços médicos atualmente.
Bourdieu (2003, p. 278) contribuirá com uma importante análise sobre como o racismo pode ser camuflado por um discurso científico, sendo naturalizado e aceito sem condenação.
[...] Assim, levado a um grau muito elevado de eufemização, o racismo torna-se quase irreconhecível. Os novos racistas deparam com um problema de optimização: ou aumentar o teor do discurso em racismo declarado (afirmando-se, por exemplo, a favor do eugenismo) mas correndo o risco de chocar e de perder em comunicabilidade, em transmissibilidade, ou aceitar dizer pouco e sob uma forma altamente eufemizada, em conformidade com as normas de censura em vigor (falando por exemplo em genética e ecologia), e aumentar assim as oportunidades de “fazer passar” a mensagem fazendo-a passar desapercebida.
Já no âmbito das políticas de Educação Especial no Brasil, Angelucci (2015, p. 2) enfatiza a importância de discutirmos como, ainda hoje, essas políticas estão sustentadas em concepções medicalizantes e patologizantes: “[...] a Educação utiliza-se de diagnósticos em Saúde para organizar sua oferta de atendimento e, mais do que isso, para fazer permanecer a clássica divisão entre sujeitos escolarizáveis e não escolarizáveis [...]”.
Ter diagnóstico e laudo se tornam um direito e, como tal, passam a ser desejados e defendidos. Políticas e legislações passam a existir para sustentar essa racionalidade.
Nessa perspectiva, o processo de medicalização de vários aspectos da conduta humana produz a possibilidade de incluir o corpo na lógica do mercado consumidor. Como essa “bioeconomia” seria constituída?
[...] a saúde constitui objeto de desejo para uns e de lucro para outros. Tendo-se convertido em objeto de consumo que pode ser produzido por uns — laboratórios farmacêuticos, médicos, etc. — e consumido por outros — os doentes potenciais e atuais —, a saúde adquiriu importância econômica e se introduziu no mercado (FOUCAULT, 2010, p. 188).
Para Caselas (2009, p. 85), essa estratégia biopolítica que produz a bioeconomia tem uma influência na constituição da subjetividade, pois interfere “[...] na possibilidade que cada um possui para formar uma identidade, um espelho de si mesmo, uma individualidade somática [...]”.
Somos confrontados com uma linguagem biológica e biomédica que categoriza a todos sistematicamente. Essa categorização dada a partir do corpo produz uma identidade, uma individualidade somática, produz sujeitos que buscam a medicina para receberem seus diagnósticos e assim serem nomeados e assumirem então suas identidades. Esses “biodiagnósticos” passam a ser buscados e tornam-se “necessários” na constituição do sujeito. Com isso, temos uma subjetividade definida pela natureza, pela biologia. Apenas aprende-se com os médicos a ler as marcas “patológicas”. O sujeito diagnosticado passa a ter o que Ortega (2006) chamou de uma “bioidentidade”.
Esses biodiagnósticos permitem aos sujeitos que os recebem a inserção em um grupo, em uma classificação, além de lhes garantirem direitos, a serem considerados cidadãos, a terem uma “cidadania biológica” (ROSE, 2007, p. 13). A Medicina passa a difundir a ideia de que quanto mais cedo diagnosticada a doença e tratada, melhores serão os resultados e garantidos os direitos do cidadão. A Educação Especial no Brasil parece estar sustentada nessa racionalidade.
A partir dessa tendência atual de medicalização da educação, buscamos, no estudo aqui proposto, levantar uma questão: qual seria o perfil do aluno com laudo médico em uma escola de Ensino Médio do município de Serra/ES?
Metodologia
A pesquisa aqui desenvolvida teve um caráter documental e foi realizada em uma instituição oficialmente denominada de Escola de Ensino Fundamental e Médio de Serra/ES, entretanto, é pertinente destacar que a escola só atendia ao Ensino Médio, por isso, durante todo o estudo, fizemos a opção de fazer-lhe referência como Escola de Ensino Médio.
O primeiro passo para a obtenção dos dados da pesquisa foi solicitar a autorização da direção da escola por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Posteriormente, buscou-se identificar como a escola realizava os registros dos alunos que já possuíam diagnóstico médico. Após essa etapa, desenvolveu-se um levantamento de dados fundamentais para o estudo, como fichas de matrícula dos alunos pesquisados contendo dados referentes ao seu perfil, relatórios individuais produzidos pela equipe pedagógica, laudos médicos e possíveis registros de tratamentos prescritos.
Foram obtidos documentos referentes a 21 alunos que atendiam aos objetivos do estudo. Esses documentos continham o seu perfil, assim como seus laudos médicos. Foi observado que todos os 21 alunos identificados compunham o Atendimento Educacional Especializado (AEE) da escola e eram considerados público-alvo da Educação Especial.
Para a análise dos dados, inicialmente, foram realizadas várias leituras de todos os documentos que continham os dados dos 21 alunos. Após essa leitura exaustiva do material, formulou-se uma síntese do seu conteúdo. A partir disso, emergiram os dados relevantes dos documentos analisados, tais como: sexo; idade; ano de matrícula; cor/raça; diagnóstico e prescrições contidas nos laudos médicos. O passo seguinte consistiu em inserir os dados dos 21 alunos em uma planilha Excel, para então produzir a estatística descritiva, bem como analisar criticamente os dados encontrados, o que será apresentado a seguir.
Resultados e Discussão
Caracterização do local de estudo
A escola pesquisada teve sua fundação de origem rural, uma vez que a região era, na década de 1940, uma propriedade agrária. Por muitos anos, a escola atendeu de 1ª até a 4ª série, constituindo-se um grupo escolar. Posteriormente, no final da década de 1970, foi transformada em um Ginásio. A partir de 1980, várias reformas foram feitas, a última delas entre 2005 e 2011, quando houve instalações de biblioteca, laboratório de ciências da natureza e de informática, sala para rádio escola etc. Com o tempo, a instituição passou a atender ao Ensino Médio juntamente com cursos técnicos. No ano de 2020, quando esta pesquisa foi realizada, a escola funcionava exclusivamente com Ensino Médio e estava localizada em um bairro com número considerável de empresas e comércios, bem próxima ao primeiro terminal urbano da região metropolitana e a uma rodovia movimentada. Situava-se em uma rua asfaltada e de fácil acesso.
O município de Serra/ES é dividido em sete regiões administrativas e os alunos do estudo estão inseridos em quatro delas. Tais regiões comportam dez bairros, sendo predominantemente compostos por habitantes com baixo poder aquisitivo.
Segundo dados da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo, o número de alunos matriculados na escola pesquisada, no ano de 2020, era de 667 nos dois turnos de funcionamento. Destes, (n=345) 51,72% eram do sexo feminino e (n=322) 48,28% do sexo masculino. Quanto aos dados referentes à raça/cor, (n=518) 77,6% se declararam pardos, (n=73) 10,9% brancos, (n=49) 7,3% pretos, (n=1) 0,15% amarelos, (n=1) 0,15% indígenas e (n=25) 3,7% não preencheram o campo referente à raça/cor.
Dados referentes ao perfil dos alunos pesquisados
Gênero e cor/raça
Do total de 21 alunos que possuíam laudo médico e compunham o AEE da escola pesquisada, 15 eram do sexo masculino, totalizando 71%, e 6 do sexo feminino, perfazendo 29% dos estudantes pesquisados. Tal dado demonstra que um maior número de meninos tem sido encaminhado para avaliação médica, como constatam também outros estudos citados anteriormente.
De acordo com o que apontam Vianna e Finco (2009, p. 273): “Os significados de gênero – habilidades, identidades e modos de ser – são socialmente configurados, impressos no corpo de meninos e meninas de acordo com as expectativas de uma determinada sociedade”. Ao contrário das meninas, que são educadas desde cedo a exercerem funções inclinadas à maternidade, a serem delicadas, dóceis, organizadas e calmas, os meninos são inseridos em uma cultura cujo homem é ensinado a ser agressivo e pouco afetivo, constituindo-se características próprias da masculinidade, que são impostas desde o nascimento, mas que incomodam no cotidiano escolar.
Assim, os dados de nossa pesquisa confirmam que as diferenças de gênero são fabricadas por estereótipos herdados de uma sociedade domesticadora, que não permite na escola a presença de meninos que não se adaptam às normas e disciplinas impostas. Por não atenderem às expectativas dos professores, são encaminhados com mais frequência para diagnóstico médico e acabam fazendo parte da Educação Especial.
Para além das questões de gênero, as discussões de cor/raça também são fundamentais à análise presente, uma vez que contribuem para o interesse de conhecer como essas concepções estão presentes no cotidiano escolar em relação ao desempenho dos alunos. Os dados obtidos mostram que, de 21 alunos do estudo, (n=12) 57% se declararam pardos, (n=3) 14% brancos, (n=1) 5% pretos e (n=5) 24% não declararam a cor/raça. Quando somamos pardos e pretos, temos um total de (n=13) 62% dos estudantes.
Patto (1999) demonstrou que os índices de encaminhamentos de estudantes para diagnóstico médico mais recorrentes historicamente têm sido de estudantes pobres e pretos, o que ilustra a crescente participação do racismo na produção do fracasso escolar e da medicalização da educação, aqui, mais especificamente, no âmbito da Educação Especial.
Apesar da existência de diversas pesquisas que problematizam os preconceitos de gênero e cor/raça nas escolas, estes aspectos ainda são pouco discutidos e não têm recebido a importância devida. Portanto, faz-se necessário um aprofundamento maior sobre a exclusão e estigmatização constituídas pela via de diagnósticos médicos de meninos, negros e pobres, no sistema educacional, bem como compreender as práticas de racismo como produtoras de sofrimento psíquico, para que se possa, cada vez mais, questionar essa sociedade em que a discriminação e a exploração predominam sobre essa parcela da população.
Faixa etária e ano escolar
A faixa etária predominante dos alunos do estudo se encontra entre 16 e 17 anos, correspondendo a (n=12) 57%, seguida da faixa etária entre 18 e 19, que corresponde a (n=8) 38%, e, por último, a faixa entre 20 e 21, totalizando (n=1) 5% do público pesquisado. Além disso, dados sobre o ano escolar demonstram predominância de alunos matriculados no primeiro e segundo ano do ensino médio, conforme Tabela 1.
Tabela 1 – Percentual de estudantes por ano escolar
Ano Escolar |
n/Percentual |
1º ano do Ensino Médio |
(n=12)/57% |
2º ano do Ensino Médio |
(n=7)/33% |
3º ano do Ensino Médio |
(n=2)/10% |
TOTAL |
100% |
Fonte: Produção dos próprios autores.
Tais dados vão ao encontro de estudos como os de Bassani e Viégas (2020) e de Souza e Sobral (2007), indicando que, a partir da idade de 13 anos, ainda no ensino fundamental, o índice de estudantes com laudo médico cai bruscamente, sendo quase inexistente no nono ano. Em decorrência disso, segundo estudos de Bassani e Viégas (2020), esta pesquisa questiona se esses dados não podem estar intimamente ligados à realidade do cotidiano escolar, uma vez que é este o período em que os estudantes passam a ter mais disciplinas, e consequentemente vários professores, que, devido à precarização das condições de trabalho, não conseguem atender às demandas de todos os alunos e acabam não tendo condições de conhecê-los, muito menos avaliar seu processo de ensino-aprendizagem.
O presente estudo não tem o intuito de defender os encaminhamentos dos alunos para diagnóstico como demonstração de cuidado e atenção, mas parece que, quando os alunos já estão no último ano na escola, ficam invisibilizados e nem dessa lógica perversa farão parte, compondo o grupo que Bassani (2013) definiu como “inclassificáveis”.
Os dados apresentados sobre o terceiro ano também precisam ser considerados porque, de acordo com Ferreira e Oliveira (2020, p. 40), “existem alunos que abandonam a escola antes de concluir o ensino médio”. A permanência de estudantes nas instituições escolares tem sido um desafio para a educação brasileira. Diversas pesquisas têm identificado altos índices de repetência e evasão que devem ter suas causas estudadas com mais profundidade.
Diagnósticos e prescrições identificados nos laudos
A partir dos laudos obtidos, foi possível ter acesso aos diagnósticos dos alunos da pesquisa, bem como aos medicamentos prescritos. A Tabela 2 foi organizada por meio de oito categorias de diagnósticos, e é importante salientar que 47% dos estudantes apresentavam mais de uma classificação diagnóstica em seus laudos, por isso a soma excede 100%.
Tabela 2 – Diagnósticos dos alunos em estudo
Diagnóstico |
n/Percentual |
|
Não possui laudo |
(n=1)/5% |
|
Enxaqueca |
(n=1)/5% |
|
Autismo |
(n=2)/10% |
|
Transtorno hipercinético de conduta |
(n=2)/10% |
|
Outros transtornos do desenvolvimento das habilidades escolares |
(n=3)/14% |
|
Deficiência intelectual/cognitiva |
(n=4)/19% |
|
Deficiência física |
(n=9)/43% |
|
Retardo Mental |
(n=12)/57% |
|
Fonte: Produção dos próprios autores.
Os dados demonstram que o diagnóstico mais encontrado foi o de Retardo Mental (nível de gravidade leve, moderado e não especificado), totalizando (n=12) 57%, e, somado aos (n=4) 19% com Deficiência Intelectual/Cognitiva, totalizam(n=16) 76% dos alunos do estudo. Consideramos que esses dados possibilitam questionar sobre como esses diagnósticos são constituídos na atualidade e como historicamente vêm sendo forjados. Quais são os critérios utilizados pelos profissionais que têm o poder de realização da classificação diagnóstica?
Percebemos que, historicamente, os estudos no campo da Deficiência Intelectual têm sido direcionados pela medicina e pela psicologia, gerando uma naturalização do desenvolvimento cognitivo a partir de uma visão organicista, reducionista e psicométrica, o que permite medir e definir o indivíduo a partir de suas faltas.
O discurso de que o aluno não é capaz de aprender porque é deficiente é fruto de padrões de normalidade impostos pela medicina, que compreende o funcionamento intelectual a partir de fatores biológicos e individuais. Assim sendo, torna-se essencial a reflexão sobre como temos concebido o conceito de desenvolvimento humano. Essa discussão é fundamental porque, além dos (n=16) 76% dos alunos que foram diagnosticados com Retardo Mental/Deficiência Intelectual/Cognitiva, tivemos ainda (n=3) 14% que receberam diagnóstico de Outros Transtornos de Desenvolvimento das Habilidades Escolares, que, somados aos anteriores, totalizam (n=19) 90% dos alunos que compunham a Educação Especial na escola pesquisada.
Consideramos aqui que o desenvolvimento humano é um processo dinâmico e complexo, que precisa ser entendido para além de fundamentos biologizantes que se pautam em classificações em torno de curvas de normalidade definidas historicamente por uma lógica psicométrica.
Moysés (2001) ressalta que precisamos ainda compreender que a transferência de pressupostos da teoria darwinista para o entendimento de fenômenos que ocorrem nas sociedades humanas constituiu o terreno onde se fundaram as teorias que tentaram justificar a discriminação entre os homens.
E neste ponto não podemos esquecer que Galton, o idealizador dos testes de inteligência, tinha por objetivo a seleção dos mais capazes para o aprimoramento da espécie humana, em postura explicitamente eugenista; primo de Darwin, Galton é considerado um dos criadores do darwinismo social e até hoje os testes de inteligência fundam-se no eugenismo e no social-darwinismo (MOYSÉS, 2001, p. 39).
Monarcha (2009) salienta que, no período de entreguerras, a “escala Binet-Stanford” passa a ser utilizada como instrumento de intervenção técnica, sendo aplicada para medir a “força mental” dos sujeitos em ambientes clínicos, psiquiátricos e escolares.
Em síntese: tornara-se possível atribuir um número às pessoas; vejamos: de 0-19 “idiota”; 20-49 “imbecil”; 50-69 “débil mental”; [...] Como se nota, os sociopatas localizam-se no extremo inferior da escala; para os demais, trata-se de canalizá-los para profissões adequadas ao nível mental (MONARCHA, 2009, p. 196).
Nesse cenário, as explicações para a diferença de rendimento escolar receberam como principal contribuição os instrumentos de medidas da avaliação das aptidões. Esse movimento difundiu a prática de submeter a diagnósticos médico-psicológicos os estudantes que apresentassem dificuldades de aprendizagem, sendo em maior contingente os das classes pobres.
À vista disso, o debate acerca da fronteira entre o normal e o anormal deve ser imprescindível, uma vez que os discursos classificatórios possibilitam que o sujeito passe a ser rotulado e estigmatizado. Tais nomenclaturas fizeram parte da história de classificações e permanecem sendo utilizadas, muitas vezes, para inferiorizar e estigmatizar. Oliveira, Bassani e Ronchi Filho (2020, p. 229) enfatizam que há uma perpetuação da imagem do sujeito incapacitado, inapto e biologicamente desajustado:
[...] denominações como “anormal”, “retardado”, “débil”, “enfermo”, “inválido”, “incapaz”, entre outras, já foram amplamente utilizadas até o surgimento de debates em torno dos estigmas carregados por elas. Desse modo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou novas discussões e classificações que procuravam levar em consideração o modo como situações sociais e culturais também produzem deficiências. Porém, mesmo após revisões, as classificações permaneceram marcadas por um modelo médico.
Ademais, é possível verificar na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) uma nota explicativa sobre o diagnóstico de “deficiência intelectual”, que veio para substituir a designação “retardo mental” ou “deficiência mental”, uma vez que seriam termos de conotação negativa:
O termo diagnóstico deficiência intelectual equivale ao diagnóstico da CID-11 de transtornos do desenvolvimento intelectual. Embora o termo deficiência intelectual seja utilizado em todo este Manual, ambos os termos são empregados no título para esclarecer as relações com outros sistemas de classificação. Além disso, uma Lei Federal dos Estados Unidos (Public Law 111-256, Rosa’s Law) substitui o termo retardo mental por deficiência mental, e periódicos de pesquisa usam deficiência intelectual. Assim, deficiência intelectual é o termo de uso comum por médicos, educadores e outros, além de pelo público leigo e grupos de defesa dos direitos humanos (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 33).
Pode-se ainda verificar no DSM-5 uma mudança em relação às edições anteriores, no que diz respeito aos níveis que são atribuídos à Deficiência Intelectual. Anteriormente eles eram determinados a partir do score obtido nos testes psicométricos de Quociente de Inteligência (QI). Agora, são estipulados quatro níveis (leve, moderada, grave e profunda), que são definidos de acordo com avaliações de funcionamento adaptativo a partir de comparações com pessoas de mesma idade, o que ainda continua sendo muito preocupante por serem definidos por critérios que padronizam e naturalizam o desenvolvimento humano.
É importante aqui destacar que as matrículas de alunos com Deficiência Intelectual apresentaram expressivo aumento nas últimas décadas no Brasil. Segundo Silva (2016, p. 41), “[...] no ano de 1998, tínhamos 181.377 alunos inseridos nesta categoria, já em 2010, esse contingente triplica, chegando a 439.670 alunos”. No ano de 2021, de um total de 1.575.955 estudantes matriculados na educação especial por tipo de deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação, tínhamos 872.917 com Deficiência Intelectual, o que corresponde a 55% (INEP, 2022). O que esses dados podem revelar da realidade educacional brasileira? Estaríamos aqui no campo da ciência ou do preconceito?
Até a atualidade, a identificação e diagnóstico desses alunos continua sendo um território nebuloso. É necessário aqui a compreensão da configuração dos testes de inteligência criado por Binet, pois os níveis ou graus da deficiência ainda são utilizados por algumas perspectivas diagnósticas. Os testes de inteligência sofrem atualmente grande oposição e questionamentos referentes ao seu uso (SILVA, 2016, p. 43).
Outro dado da pesquisa que merece destaque é a utilização nos laudos médicos e nos relatórios pedagógicos da escola da classificação “retardo mental”. Terminologia que foi oficialmente substituída por “deficiência intelectual” há mais de uma década. É necessário aqui questionar: Quem estaria no campo do retardo e do atraso, os alunos ou os profissionais que insistem nessa nomenclatura? Há um retardo, um atraso de mais de uma década na atualização da nomenclatura oficial da classificação diagnóstica que hoje é Deficiente Intelectual. Quais seriam os determinantes da manutenção de uma nomenclatura ultrapassada para a classificação de grande parcela dos alunos do estudo? Por que a insistência na nomenclatura “retardo”?
Um dos indicativos mais importantes dessa mudança foi a alteração do nome de uma das mais representativas e influentes associações da área, a American Association of Mental Retardation (AAMR) que, a partir de janeiro de 2007, modificou seu nome para American Association Intellectual and Developmental Disabilites (AAIDD), substituindo retardo mental por deficiência intelectual (PAN, 2008, p. 30).
Consideramos que a substituição do termo “retardo mental” por “deficiência intelectual”, apesar de não representar uma ruptura quanto aos fundamentos biologizantes e que naturalizam o desenvolvimento da inteligência, evidencia uma perspectiva mais fundamentada em aspectos socioculturais do desenvolvimento cognitivo, que visa oferecer apoios individualizados, além de ser menos pejorativo e ofensivo para as pessoas com deficiência.
Entretanto, parecem contraditórios os avanços nas concepções sobre funcionamento intelectual, pois o diagnóstico do Déficit Intelectual é mantido em uma perspectiva psicométrica, apontando o funcionamento intelectual e a conduta adaptativa abaixo da média como principais indicadores. O DSM-V também continua a recomendar o uso de testes para a identificação do Quociente de Inteligência (QI).
Apesar de o conceito de deficiência ter ganhado uma conotação mais social nos últimos anos em alguns países, mesmo assim o termo ainda está associado a diretrizes relacionadas ao olhar clínico e psicométrico, e os dados de nossa pesquisa apontam para um cenário ainda mais preocupante. A negação da alteração terminológica para “deficiência intelectual” pode nos remeter aos preconceitos de classe e cor/raça, que são pouco debatidos e problematizados no contexto médico e escolar brasileiro.
Consideramos também que se o aumento expressivo dos laudos contendo diagnósticos de Deficiência Intelectual já indica um processo de medicalização e patologização da Educação Especial, que muito provavelmente camufla graves problemas associados ao desmonte de importantes políticas públicas de educação, o que dizer da manutenção da classificação “retardo mental”?
Por fim, apesar de todos os questionamentos e críticas acerca do processo de medicalização e patologização da Educação Especial, destacamos que (n=9) 43% dos estudantes da pesquisa tinham diagnóstico de deficiência física. Tal dado permite refletir sobre a importância da presença, permanência e garantia do direito à plena aprendizagem dos alunos com deficiência no ambiente escolar, uma vez que paradigmas de exclusão e institucionalização marcaram a história desses estudantes, que, por muito tempo, viveram negligenciados e excluídos do contexto das escolas regulares.
Outro importante dado obtido durante a análise dos laudos dos alunos pesquisados refere-se aos que faziam uso de medicamentos. Do total de 21 estudantes, 6 utilizavam medicamentos psiquiátricos, totalizando 29%. Os medicamentos que tiveram maior predominância foram Neozine e Risperidona, utilizados pelos alunos diagnosticados com Retardo Mental.
Estudos recentes indicam que vivenciamos a explosão do uso de medicamentos psiquiátricos por estudantes em todos os níveis de educação no Brasil. É importante aqui assinalar que a indústria farmacêutica está ligada a uma lógica biomédica a qual oportuniza a medicação da vida alegando ser a solução para questões de âmbito político, social, educacional, afetivo e outros. Fica a seguinte questão: a sociedade deve ser medicada para ser “curada” ou para ser dominada, silenciada?
Consideramos importante ressaltar que precisamos problematizar a prescrição de medicamentos psiquiátricos como principal recurso utilizado para “tratar” questões pedagógicas. A partir dessa racionalidade o saber médico passa a se sobrepor ao saber pedagógico e, com isso, não colocamos em análise os graves problemas pelos quais passa a educação brasileira.
Considerações Finais
A partir dos dados obtidos com esta pesquisa, podemos considerar que o preconceito historicamente constituído nas escolas públicas brasileiras ainda vem se perpetuando a fim de manter a ordem hegemônica. Observa-se que ainda há um processo de naturalização e biologização do desenvolvimento humano, que acaba por definir a classificação de muitos estudantes.
Nesse sentido, os resultados desta pesquisa desvelam quem são os mais atingidos por essa lógica perversa: meninos, negros e pobres, conforme apresentado neste e em outros estudos. Além disso, com base nos frequentes diagnósticos de Retardo Mental e Deficiência Intelectual/Cognitiva obtidos, pode-se perceber que continuamos reduzindo problemas relacionados ao processo de ensino-aprendizagem a fatores biológicos e individuais. Nessa perspectiva, essas conjunturas têm contribuído com a reprodução de uma “noção estática e retificadora da condição psíquica destas pessoas” (NUEMBERG, 2008, p. 309), o que faz com que sejam vistos e rotulados como incapazes de aprender.
O ambiente escolar vem sendo formado por meio de uma história marcada pelo preconceito e pela homogeneização. Cada vez mais tem sido possível vislumbrar o apagamento do aluno e o aparecimento de diagnósticos que o nomeiam. Essa racionalidade atinge principalmente as classes mais pobres, gerando uma padronização pautada em preconceitos de gênero, raça e condição social.
As classificações diagnósticas encontradas nesta pesquisa são preocupantes, pois podem demonstrar que a ideia de indivíduos com inteligência inferior ainda predomina atualmente. Essas concepções tiram o sujeito de cena, segregam-no e os fazem acreditar que realmente são incapazes. Como afirmam Moysés e Collares (2014, p. 51-52),
A biologização, embasada em concepção determinista, em que todos os aspectos da vida seriam determinados por estruturas biológicas que não interagiriam com o ambiente, retira do cenário todos os processos e fenômenos característicos da vida em sociedade, como a historicidade, a cultura, a organização social com suas desigualdades de inserção e de acesso, valores, afetos, etc.
Em decorrência disso, um círculo vicioso se cria na medida em que, ao não se acreditar na capacidade de aprender das pessoas com deficiência, não lhes são ofertadas condições para superarem suas dificuldades. Os dados da presente pesquisa nos convocam com urgência para a construção de uma educação que transcenda os muros e grades invisíveis dos diagnósticos médicos.
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