Entrelaçando fios de saberes socioambientais e indígenas na formação inicial de professores da Amazônia

 

Interweaving strands of socio-environmental and indigenous knowledge in the teachers’ initial training in the Amazon

 

Entrelazando hilos de conocimientos socioambientales e indígenas en la formación inicial de profesores en la Amazonia

 

Janelene Freire Diniz

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia, Guajará-Mirim, RO, Brasil.

janelene.diniz@ifro.edu.br         

 

Clarides Henrich de Barba

Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, RO, Brasil.

clarides@unir.br

 

Recebido em 16 de julho de 2022

Aprovado em 14 de maio de 2023

Publicado em 17 de fevereiro de 2024

 

 

RESUMO

Este artigo resulta de uma dissertação de mestrado, cujo objetivo foi investigar de que forma os saberes indígenas tradicionais podem contribuir na construção de saberes socioambientais junto aos estudantes dos cursos de Licenciatura em Biologia e em Química do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia - Campus Guajará-Mirim. Como base teórica para discutir a racionalidade e o saber ambiental, foram adotados estudos de Leff (2006, 2009, 2012), Gonçalves (2006, 2020) e Carvalho (2012) e, no que concerne ao universo dos saberes indígenas tradicionais e suas relações com o meio ambiente, autores como Munduruku (2009), Baniwa (2006), Krenak (2020) entre outros. A metodologia usada foi a pesquisa-ação, na perspectiva de Thiollent (2011). Buscou-se promover aproximações de saberes, verificando-se de que forma a troca de vivências e experiências entre dois mundos (indígena e não indígena) pode colaborar para o desenvolvimento de uma educação ambiental crítica e efetiva, participativa e mobilizadora. Para tanto, foram realizadas diversas atividades, tais como oficina de trançados de cestarias Wari’ e rodas de conversas com lideranças indígenas e educadores ambientais. Os resultados revelaram que essas aproximações podem contribuir significativamente para a construção de saberes socioambientais e para a superação de paradigmas socioambientais, potencializando reflexões, estimulando a formação de sujeitos mais ecológicos e conscientes, capacitando futuros educadores ambientais desde a formação inicial.

Palavras-chave: Saberes indígenas tradicionais; Saberes socioambientais; Formação inicial de professores.

 

ABSTRACT

This article results from a Master's dissertation, whose objective was to investigate how traditional indigenous knowledge can contribute to the construction of socio-environmental knowledge among students of the Degree courses in Biology and Chemistry of the Federal Institute of Education, Science and Technology of Rondônia - Guajará-Mirim Campus. As a theoretical basis for discussing rationality and environmental knowledge, studies by Leff (2006, 2009, 2012), Gonçalves (2006, 2020) and Carvalho (2012) were adopted and, regarding the universe of traditional indigenous knowledge and its relations with the environment, authors such as Mundurunku (2009), Baniwa (2006), Krenak (2020) among others. The methodology used was the action research, from Thiollent’s (2011) perspective. It was sought to promote approximation of knowledge, verifying how experiences and experiences exchange between two worlds (indigenous and non-indigenous) can contribute to the development of a critical and effective, participatory and mobilizer environmental education. To this end, various activities were carried out, such as the Wari' basket weaving workshop and rounds of talks with indigenous leaders and environmental educators. The results revealed that these approaches can significantly contribute to the construction of socio-environmental knowledge and to the overcoming of socio-environmental paradigms, enhancing reflections, stimulating the formation of more ecological and conscious subjects, training future environmental educators since the initial formation. 

Keywords: Traditional indigenous knowledge; Socio-environmental knowledge; Initial teachers training.

 

RESUMEN

Este artículo es resultado de una tesis de maestría, cuyo objetivo fue investigar cómo el conocimiento tradicional indígena puede contribuir a la construcción del conocimiento socioambiental entre los alumnos de las carreras de Biología y Química del Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Rondônia - Campus Guajará-Mirim. Como base teórica para discutir la racionalidad y el conocimiento ambiental, se adoptaron los estudios de Leff (2006, 2009, 2012), Gonçalves (2006, 2020) y Carvalho (2012) y, con respecto al universo del conocimiento tradicional indígena y su relación con el medio ambiente, autores como Munduruku (2009), Baniwa (2006), Krenak (2020) y otros. Como metodología, se utilizó la investigación-acción, desde la perspectiva de Thiollent (2011). En este sentido, se buscó acercar los conocimientos para ver como el intercambio de experiencias entre dos mundos (indígena y no indígena) puede contribuir al desarrollo de una educación ambiental crítica y eficaz, participativa y movilizadora. Para ello, se realizaron diversas actividades, como un taller de cestería Wari' y mesas redondas con líderes indígenas y educadores ambientales. Los resultados revelaron que estos enfoques pueden contribuir significativamente a la construcción de conocimientos socioambientales y a la superación de paradigmas socioambientales, estimulando reflexiones, incentivando la formación de sujetos más ecológicos y conscientes, capacitando a futuros educadores ambientales desde la formación inicial.

Palabras clave: Conocimiento tradicional indígena; Conocimiento socioambiental; Formación inicial de profesores.

 

Narrativas introdutórias

Este artigo reflete o caminho percorrido na articulação e aproximações entre dois mundos (indígena e não indígena), visando descobrir novos sentidos, significados e saberes em relação ao meio ambiente e à vida. Para tanto, investigamos de que forma os saberes indígenas tradicionais poderiam contribuir na construção de saberes socioambientais, junto aos estudantes das licenciaturas em Química e Biologia, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), Campus Guajará-Mirim.

Compreendendo a emergência da construção de uma nova racionalidade, orientada por princípios e valores ambientais, que se concretiza por meio do saber ambiental, buscamos em Leff (2006; 2009; 2012), Gonçalves (2006; 2020) e Carvalho (2012) o aporte teórico para embasar esta discussão; procuramos nos aproximar do universo dos saberes indígenas tradicionais e suas relações com o meio ambiente, para nos despertar as sensibilidades e saberes necessários para o enfrentamento e superação da visão utilitarista, mecanicista, reducionista e insustentável que orienta os posicionamentos e comportamentos da humanidade diante da natureza desde a Modernidade.

Nesse cenário de crise, marcado pelo caos, pela degradação ambiental, miséria, intolerância e tantas outras problemáticas, voltando nossos olhares para os povos indígenas e seus saberes tradicionais, encontramos uma fonte de esperança para redescobrir novos sentidos e ressignificar paradigmas socioambientais, que


podem colaborar para a formação de profissionais com um olhar mais ecológico, sensíveis, conscientes e comprometidos com o cuidado do meio ambiente.

Munduruku (2009, p. 29) comenta que “os povos indígenas têm uma coisa em comum: uma mensagem de amor pela Mãe Terra; de apego às raízes ancestrais transmitidas pelos rituais; um profundo respeito pela natureza [...]”. Assim, é relevante a troca de saberes e vivências com os povos originários, para a construção de um novo posicionamento na relação sociedade-natureza.

No Brasil, as condições ecológicas favoráveis permitiram o desenvolvimento dos povos indígenas durante milhares de anos.  No atual território brasileiro, habitavam cerca de cinco milhões de indígenas por ocasião da chegada de Pedro Álvares Cabral, no ano de 1500 (Baniwa, 2006). Vítimas de inúmeras violações desde a violenta colonização europeia, esses povos se têm revelado como potência de saberes ambientais e ecológicos; suas vozes ecoam em defesa da floresta e dos seus modos integrados de vida, despertando-nos para outras possibilidades de existência verdadeiramente sustentáveis, que transcendam visões socioculturais hegemônicas e nos possibilitem vislumbrar novos caminhos para a construção de uma nova racionalidade, que nos oriente na constituição de outro modelo de sociedade, fundamentado no respeito, na solidariedade, nos coletivos e nos diálogos.

Conforme Baniwa (2006), a mentalidade ecológico-cultural dos povos indígenas tradicionais se desenvolveu no processo de sua atividade vital, na relação equilibrada entre cultura tradicional e ecossistemas naturais. Do mesmo modo, Pataxó (2020, p. 71) afirma que “[...] nosso sistema de vida indígena se contrapõe ao sistema capitalista que tanto provoca desigualdades e injustiças”. Por contrariar os interesses dos dominadores, esses povos tiveram seus modos de viver classificados como atrasados. Contudo, diante do atual cenário de degradação ambiental, é necessário repensarmos práticas, costumes e valores da nossa sociedade na relação com o meio ambiente.

Este texto está organizado, além destas notas introdutórias, em mais quatro seções, nas quais tratamos, respectivamente: racionalidade, saber ambiental e saberes indígenas; os enredos metodológicos; as vivências da pesquisa; as narrativas finais.

 

Racionalidade, saber ambiental e saberes indígenas tradicionais: uma nova coexistência humanidade/natureza

O caminho da racionalidade econômica, traçado para progresso e enriquecimento do homem, nitidamente fracassou. Leff (2009, p. 149) afirma que “essa racionalidade econômica é, contudo, a causa predominante da crise ambiental, assim como de uma série de problemas sociais e ambientais que lhe estão associados”. A racionalidade econômica - como núcleo inflexível da racionalidade da Modernidade - se revela em um modo de produção/consumo destrutivo, que degrada o ordenamento ecológico do planeta Terra e mina suas condições de sustentabilidade.

Segundo Carvalho (2012), a visão socioambiental é orientada por uma racionalidade complexa e interdisciplinar, reconhecendo o meio ambiente como um campo de interações entre a cultura; a sociedade é a base física e biológica dos processos vitais, em que todos os termos dessa relação se modificam de forma dinâmica e mútua. Conforme Gonçalves (2006, p. 14), “há que se buscar outras racionalidades!”. Necessitamos desenvolver uma nova racionalidade, para além da econômica, que permita superar a visão equivocada de enxergar e pensar a realidade isoladamente, como algo de que não fazemos parte. Essa nova forma de racionalidade é proposta por Leff (2009) e Gonçalves (2006): razão e emoção coexistem e dialogam com as diversidades culturais e autonomias dos povos; não menospreza ou exclui as subjetividades humanas; o ser e o saber se completam.

Nós, não indígenas, nascemos imersos em um modelo de sociedade alicerçada no capital. Nossa existência se reduz a produzir e consumir; somos individualistas, alheios às nossas próprias realidades e às que nos cercam. Na concepção de Gonçalves (2020, p. 34), “a ideia de uma natureza objetiva e exterior ao homem, o que pressupõe uma ideia de homem não natural e fora da natureza, cristaliza-se com a civilização industrial inaugurada pelo capitalismo”. Esse embate entre humanidade e natureza consolidou um sistema econômico insustentável de apropriação indevida dos recursos naturais, que está nos conduzindo à destruição. É indispensável a superação desse paradigma por outras formas de desenvolvimento econômico que transcendam o capital e a força de trabalho.

A Modernidade marcou o desenvolvimento de um novo modelo de conhecimento, moldando as formas de compreensão da vida. O saber prático, oriundo das vivências, vem sendo substituído pelo saber técnico, instrumental e objetivo. Objetivando dominar a natureza, os saberes passaram a ser sistematizados por meio de leis e equações, fundamentadas em uma série de procedimentos. Segundo Gonçalves (2006, p. 65), “[...] a ideia de desenvolvimento está associada à Modernidade. Por isso, modernizar é, sempre, expandir uma determinada ideia de progresso e, com ela, de colonização dos povos e regiões que são diferentes”. Desse modo, adquirimos uma perspectiva tecnicista e mecanicista de pensar e gerir os recursos naturais e materiais, vendo a natureza como fonte inesgotável e infinita de recursos e bens. Essa superexploração dos recursos naturais gerou diversos impactos ambientais, sociais e culturais.

Silva (2016) compreende que a racionalidade ambiental demanda um saber diverso, arraigado na cultura e na identidade, novos saberes/fazeres científicos, dialógicos entre si, reconhecendo também saberes ligados à tradição dos saberes sociais. Leff (2009, p. 18) afirma que “a Educação Ambiental emerge e se funda em um novo saber que ultrapassa o conhecimento objetivo das ciências”. Esse novo saber, o saber ambiental, surge e se constitui do lado de dentro da vida:

O saber ambiental integra o conhecimento racional e o conhecimento sensível, os saberes e os sabores da vida. O saber ambiental prova a realidade com saberes sábios que são saboreados, no sentido da locução italiana asaggiare, que põe à prova a realidade degustando-a, pois se prova para saber o que se pensa, e, se a prova da vida comprova o que se pensa, aquele que prova se torna sábio (Leff, 2009, p. 18).

 

O saber ambiental é um saber que faz sentido e faz sentir; enlaça racionalidade e sensibilidade humanas; propõe-nos superar o pensar a realidade apenas com olhar teórico e distante; convida-nos a experienciar; revela-nos as grandes verdades esquecidas com a Modernidade; tira-nos de uma postura mecânica de controle e dominação, para construir uma nova maneira de saber, estar e ser no mundo, reestabelecendo a intrínseca ligação entre os saberes, os prazeres e a vida.

O saber ambiental possibilita a superação da objetividade absoluta dos saberes científicos, recoloca o ser dentro do universo dos saberes, rompendo com paradigmas que nos impedem de nos reconhecer enquanto humanos, dotados de emoções e subjetividades, conforme diz Leff (2009, p. 18):

O saber ambiental reafirma o ser no tempo e o conhecer na história; estabelece-se em novas identidades e territórios de vida; reconhece o poder do saber e da vontade de poder como um querer saber. O saber ambiental faz renascer o pensamento utópico e a vontade de liberdade em uma nova racionalidade na qual se fundem o rigor da razão e os excessos do desejo, a ética e o conhecimento, o pensamento racional e a sensualidade da vida.

O saber ambiental questiona a fragmentação do conhecimento científico em disciplinas e a administração setorial do desenvolvimento, para criar um espaço articulado de conhecimentos teóricos e práticos que reorientam as relações sociedade-natureza. O saber ambiental é interdisciplinar e se constitui entre as disciplinas ou à margem delas; sempre será profundamente indisciplinado, transgressor dos limites das disciplinas, instaurando fronteiras e caminhos de fuga (Carvalho, 2012).

O saber ambiental surge e se desvela em um campo heterogêneo, disperso de formações ideológicas constituídas por múltiplos interesses e práticas sociais, nas estratégias de poder inscritas no discurso teórico das ciências, no saber camponês e das comunidades indígenas, interligados a seus sistemas gnosiológicos, valores culturais e práticas tradicionais de utilização da natureza; no saber ambiental firmado nas políticas de desenvolvimento sustentável, em suas estratégias, suas práticas discursivas e em seus instrumentos normativos e jurídicos (Leff, 2006).

Nessa perspectiva, é necessário considerarmos outras possibilidades de compreender a vida e formas alternativas de desenvolvimento, a fim de construir um mundo mais ecológico, sustentável e altruísta, como aponta Leff (2009, p. 149):

O saber ambiental busca a recuperação do sentido; mas esta não aparece como uma fuga da ordem simbólica para fora do campo do interesse social e da produção, como uma emancipação do simbólico-cultural para fora da ordem sócio-histórica. O saber ambiental não se esgota na finalização (aplicação) do conhecimento existente para resolver problemas complexos; não é a retotalização e o acabamento do conhecimento fracionado por uma aproximação holística, num método interdisciplinar e numa teoria de sistema. Emerge da falta insaciável de conhecimento que impele o saber para a busca de novos sentidos de civilização, novas compreensões teóricas e novas formas práticas de apropriação do mundo.

 

O saber ambiental defronta as bases que fundamentam e sustentam a racionalidade científica da Modernidade, fornecendo atributos para a construção de um novo modelo de apropriação do meio ambiente, que transcenda concepções cristalizadas, rompendo a ordem constituída de mundo; não despreza a natureza inconclusiva do ser, permeia e mobiliza a relação com os outros, criando a categorização para compreensão da realidade a partir do princípio da existência humana, do entendimento e respeito às diferenças e às outridades: “[...] dessa maneira, cria mundos de vida, constrói novas realidades e abre o curso da história para um futuro sustentável” (Leff, 2009, p. 18).

Sorrentino et al. (2005) compreendem que a Educação Ambiental (EA) emerge como um processo educativo condutor do saber ambiental, que se materializa nos valores éticos, nas normas políticas de convívio social e de mercado, nos benefícios e prejuízos da apropriação e uso da natureza. A EA precisa ser direcionada para a cidadania ativa, considerando pertencimento e corresponsabilidade; por meio da ação coletiva e organizada, busca compreender e superar as causas estruturais e conjunturais dos problemas ambientais.

Para Leff (2009), o saber ambiental se apresenta como um plano de reconstrução do conhecimento, restauração da identidade dos povos, nova adequação da condição humana e do mundo em diversas esferas. O saber ambiental compreende o ser no tempo e na história e valoriza o poder transformador do saber e do querer saber por meio da educação. O autor reconhece, ainda, o saber interdisciplinar no conhecimento dos processos da vida e de diferentes modos de vida.

Assim, é essencial desconstruir o modelo unitário e generalizado pela globalização, aliar a produtividade econômica à criatividade cultural, reconhecer que há formas de vida diferenciadas, aprender a conviver com uma política das diferenças e outridades, desprender-se de individualismos, construir uma nova forma de existência, em que haja diálogos e trocas de saberes entre seres culturais e diversificados, cooperando para o bem-estar de todos.

Carvalho (2012, p. 156) alerta que “a Modernidade ocidental, da qual somos filhos, apostou todas as suas fichas em uma razão científica objetificadora e no otimismo tecnológico correspondente”. Por sua vez, Gonçalves (2006, p. 60) ressalta que: “ser desenvolvido é ser urbano, é ser industrializado, é ser tudo aquilo que nos afaste da natureza e nos coloque diante de constructos humanos, como cidades e indústrias”.

É imprescindível construir uma nova razão, uma nova compreensão da vida, norteada por uma perspectiva ambientalista, estabelecendo novas maneiras de nos relacionarmos com a natureza, respeitando as demais formas de vida. 

Pensando para além da racionalidade econômica e tentando trazer pistas para uma nova racionalidade, encontramos nos povos indígenas de Rondônia uma valiosa sociodiversidade para nos ensinar sobre outros modos de existir e se relacionar com o mundo. Como nas demais regiões do Brasil, esses indígenas vivenciam a expropriação de seus territórios, bem como a ausência do Estado para assegurar o cumprimento de seus direitos, em meio a conflitos socioambientais e tensões instauradas pelas atividades econômicas no entorno de suas terras e invasões que ameaçam o território, a biodiversidade e a existência desses povos.

Enquanto em outros países da América do Sul as políticas de proteção ambiental parecem avançar, o Brasil vivencia um cenário de retrocesso, enfraquecimento das leis de proteção ambiental, impunidade aos crimes ambientais e legitimação da degradação ambiental.

Os povos indígenas brasileiros resistem, lutando contra a política anti-indígena dos governantes atuais que, insistentemente, buscam aprovar medidas que desrespeitam nossos povos originários, como a tese do Marco Temporal, o PL 490, posteriormente chamado de PL 2903, defendido por ruralistas e por interessados na exploração dos recursos naturais existentes nos territórios; um projeto de lei que ameaça direitos constitucionais fundamentais, inviabiliza a demarcação de terras indígenas, põe em risco os povos isolados, permite a anulação de terras indígenas e a degradação ambiental nos territórios; promove, ainda, a abertura de áreas protegidas ao agronegócio, à mineração e às hidrelétricas. Entretanto, os indígenas não se intimidam e denunciam crimes ambientais como garimpo ilegal, grilagem de terras, desmatamento, extração ilegal de madeira da floresta.

Os povos indígenas tradicionais desenvolveram a compreensão do que há de mais sublime na experiência humana de estar vivo: uma existência de profunda contemplação e conexão, como nos diz Krenak (2020, p. 9), “[...] eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”. Esses povos nos inspiram a repensar, a resistir, a redescobrir novos sentidos, despertam-nos o desejo uma existência conectada com o meio, convidam-nos a unir forças na luta pela terra, que é também uma luta pela vida.

Então, através do resgate e (re)conhecimento de saberes e vivências ambientais nas sociedades indígenas, intentamos promover a compreensão, sensibilidades e conhecimentos necessários para despertar a consciência de que é possível construirmos um novo modelo de sociedade, uma nova forma de existência, que dialoga e compreende a natureza, fundamentada em valores éticos, democráticos e humanistas, sustentada no respeito ao meio ambiente, às diversidades e pluralidades étnicas e culturais.

Conforme Baggio (2013, p. 21), “nesta Terra que hoje se chama Brasil, antes da chegada dos europeus, viveram milhões de nativos de diferentes etnias”. A chegada dos europeus marcou o início da instituição de uma cultura exploratória dos recursos naturais e humanos existentes no Brasil, que transformou os modos de vida dessas populações. Com relação à chegada dos europeus à Amazônia, Souza (2001, p. 23) relata que:

Quando os europeus chegaram, no século XVI, a Amazônia era habitada por um conjunto de sociedades hierarquizadas, de alta densidade demográfica, que ocupavam o solo com povoações em escala urbana, possuíam sistema intensivo de produção de ferramentas, cerâmica, agricultura diversificada, uma cultura de rituais e ideologias vinculadas a um sistema político centralizado e uma sociedade fortemente estratificada. Essas sociedades foram dizimadas pelos conquistadores e seus remanescentes foram obrigados a buscar o isolamento ou a aceitar a subserviência. O que havia sido construído em pouco menos de dez mil anos foi aniquilado em menos de cem anos, soterrado em pouco mais de 250 anos e negado em quase meio milênio de terror e morte.

 

O autor discute a complexidade da organização social dos indígenas e práticas culturais, que foram violentamente reprimidas pelos colonizadores e até hoje são depreciadas e negadas pelo Ocidente. O projeto colonizador, integrador e brutal, foi impulsionado pela lógica mercantilista, apoiado pela Igreja Católica, sob a égide de civilizar e catequizar os povos indígenas. Nesse processo, foram implantadas as primeiras escolas no Brasil.

Assim, deu-se a imposição de uma cultura sobre a outra, na tentativa de exterminar os modos de vida dos povos indígenas tradicionais, bem como de silenciá-los. Essa ofensiva racional, conduzida pelo processo civilizador, buscava impossibilitar a continuidade das sociedades indígenas; os nativos foram proibidos de usar suas línguas, saberes tradicionais e processos educativos; sua oralidade repleta de conhecimentos foi subjugada e ocultada pelas histórias escritas dos povos europeus; suas consciências, cosmovisões e tradições foram fortemente reprimidas e negadas.

Os modos de vida dominantes, fundamentados na apropriação da natureza, na racionalidade econômica, científica e tecnológica, alheios à ética ambiental e humana, resultam nas crises socioambiental e civilizatória que vivenciamos. Felizmente, os saberes tradicionais vêm ganhando o espaço e o reconhecimento antes negados; nos últimos anos, a identidade indígena vem se fortalecendo, culturas e tradições vêm sendo resgatadas e valorizadas (Baniwa, 2006). Diversos estudos apontam contribuições dadas por esses povos, conforme aponta Brandão (2005, p. 89):

Ora, algumas pessoas pensam que todo o conhecimento válido e útil sobre os sistemas vivos e sobre as interações entre eles e o ambiente, provém da ecologia e de outras ciências afins. No entanto, anos, séculos, milênios antes do surgimento da ‘ecologia cientifica’, muitos outros povos, criadores de outras diferentes culturas, já geraram e aperfeiçoaram outras formas de pesquisas e de compreensão da vida, dos sistemas vivos (inclusive nós, seres humanos) e de suas relações com o ambiente, como a natureza.

 

Esses povos formaram sociedades organizadas e complexas, possuíam vastos conhecimentos milenares acerca da natureza; tinham forte senso de ligação e pertencimento ao seu território, uma visão de mundo integrada, reconhecendo uma unidade entre natureza, sociedade e espiritualidade. Os pajés conheciam substâncias extraídas das plantas da floresta, que curavam doenças.

Os povos nativos possuíam grandes conhecimentos sobre o que chamamos de astronomia. Observando o céu e os corpos celestes, reconheciam os ciclos da natureza, épocas de plantar, caçar, pescar, períodos de chuva, seca, frio e calor, momentos de festas e rituais. Esses conhecimentos possibilitaram a construção de calendários próprios, orientaram longas viagens terrestres e marítimas, colaborando para o deslocamento e localização nos diversos espaços. Segundo Baggio (2013), vários povos indígenas relacionam a astronomia à vida espiritual, rituais e organização social, pois tudo se encontra interligado e inter-relacionando.

Quanto à agricultura, esses povos desenvolveram a diversificação de cultivo de espécies vegetais e a elevação da produtividade; dominavam técnicas de manejo da floresta e dos recursos naturais, numa relação de comunhão com a terra, no respeito profundo a todas as formas de vida, sociedades fundamentadas nos coletivos, cosmologias, igualdade e solidariedade. Possuíam uma compreensão conexa da natureza, ocupando os espaços dentro da floresta de forma equilibrada, sem comprometê-la; tinham profunda reverência por todos os seres vivos: caçavam o suficiente para se alimentar, retiravam das árvores o necessário para consumir, zelavam pelas memórias e conhecimentos ancestrais.

Para os povos indígenas tradicionais, a construção de saberes se dá nas vivências, no cotidiano, nos rituais, nos mitos contados pelos mais velhos, no fazer diário; aprendem cantando, dançando, brincando, imaginando, sendo livres, experimentando, sentindo, sonhando. Os mais velhos ensinam as crianças pelo exemplo e esses conhecimentos são repassados de geração a geração. O aprendizado acontece de maneira informal e significativa, no dia a dia, de forma simples e natural. Segundo Baniwa (2012, p. 130),

Os pais e os avós são os responsáveis por transmitir aos seus filhos ou netos, desde a mais tenra idade, a sabedoria aprendida de seus ancestrais. Assim, as crianças desde cedo vão aprendendo a assumir desafios e responsabilidades que lhes permitam inserir-se na vida social e o fazem, principalmente, por meio da observação, da experiência empírica e da autorreflexão proporcionadas por mitos, histórias, festas, cerimônias e rituais realizados para tal fim. Os bons exemplos dos pais, dos irmãos mais velhos e dos líderes comunitários são fundamentais para o desenvolvimento do caráter, das atitudes, dos comportamentos, das virtudes e das habilidades técnicas de uma pessoa, indispensáveis para a vida individual e a boa convivência social.

 

Reconhecer os saberes indígenas tradicionais, seus modos de vida, conhecer a verdadeira história do Brasil, é fundamental para que possamos realizar releituras de mundo, compreender a história do nosso país e a nossa própria história enquanto brasileiros. A partir de sua existência e resistência e de seus saberes ancestrais, os povos indígenas tradicionais nos ensinam a reconhecer modos diversos de viver, ser, sentir, estar e existir no mundo, firmados no respeito e no envolvimento para o bem comum.

 

Enredos metodológicos da pesquisa

Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa-ação (Thiollent, 2011), com abordagem qualitativa. A pesquisa-ação se volta para a ideia de transformação da sociedade ou de algo, objetiva gerar soluções, verdades e interesses, constituindo-se como uma rica possibilidade de pesquisa para a área da educacional. Nessa perspectiva, esta pesquisa-ação foi desenvolvida no IFRO - Campus Guajará-Mirim, visto que constatamos a necessidade de desenvolver práticas humanísticas em educação socioambiental e, em consonância com Botelho (2000), entendemos que a EA deve promover a formação de professores para uma resistência futura.

 A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Rondônia e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia, envolveu oito estudantes do segundo, terceiro e oitavo períodos dos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas e Licenciatura em Química, visando estimular o aprendizado, o pensamento crítico, o envolvimento e a sensibilização dos futuros docentes para as temáticas ambientais. Devido à pandemia da Covid -19, todas as atividades realizadas ocorreram de forma remota.

Inicialmente enviamos aos participantes (via e-mail, pelo Google Formulários) um questionário, objetivando conhecer suas percepções sobre educação socioambiental, seus conhecimentos prévios, problemáticas que vivenciam e os inquietam, para pensar estratégias e ações socioambientais que fizessem parte da realidade dos discentes.

Posteriormente, exibimos um vídeo experimental, apresentando vários registros de problemáticas socioambientais da cidade. Esse momento teve a intenção de impactar os estudantes, despertar a consciência sobre problemas ambientais enfrentados pela comunidade local, para pensar em caminhos e estratégias de superação e enfrentamento.

Em seguida, foram contextualizadas problemáticas socioambientais do munícipio, do Brasil e do mundo. Os estudantes foram convidados a participar de rodas de conversa, diálogos com professores que incorporam a dimensão socioambiental em suas práticas pedagógicas e também aproximações e trocas de saberes com indígenas convidados. Compartilhamos filmes, vídeos, documentários, músicas e poemas indígenas, para promover a imersão dos estudantes no universo de saberes indígenas voltados para o meio ambiente.

Realizamos, via Google Meet, uma oficina de produção artística de trançados de cestarias indígenas Wari', ministrada por uma artesã indígena, objetivando aliar saberes indígenas tradicionais e sustentabilidade. Fizemos a mediação de todos os momentos; os estudantes foram participativos, protagonizando reflexões acerca da inserção dos saberes indígenas no contexto escolar da educação socioambiental no IFRO - Campus Guajará-Mirim, colaborando para a construção de saberes e vivências socioambientais que possibilitaram a construção coletiva de um produto educacional, em forma de vídeo, a partir das vivências desta pesquisa.

Além dos estudantes, tivemos como colaboradores um professor e parlamentar indígena e uma artesã, pertencentes à etnia Wari', subgrupo Oro Waram. Contamos, ainda, com a participação de uma liderança indígena do povo Tupari e uma professora e liderança indígena da etnia Wari', subgrupo Oro Mon, que participaram de uma roda de conversa, para troca de experiências, saberes e vivências. Também colaboraram servidores do IFRO interessados na temática.

Na análise das atividades, os sujeitos estão assim identificados: Estudante (E); Servidor Colaborador (SC); Professor(a) Convidado(a) (PC); Lideranças Indígenas (LI). A essas siglas, acrescentamos números para diferenciar cada pessoa. Na seção a seguir, trazemos os resultados e vivências da pesquisa.

 

As vivências da pesquisa

Nesta seção, tratamos das ações e temáticas envolvidas na investigação, em especial a oficina de cestaria e as rodas de conversa. Essas atividades constituíram um fértil campo de conhecimentos socioambientais, sensibilidades e mobilização do pensamento crítico-reflexivo, colaborando para que todos os participantes, de algum modo, se percebessem como parte de um todo, potencializador de saberes e práticas socioambientais.

 Promovendo, ainda, o desenvolvimento de valores humanísticos, éticos e ambientais, bem como o necessário senso de responsabilidade individual e coletiva, mediante a urgência de adotarmos atitudes de consumo e desenvolvimento sustentáveis   voltadas para melhoria e preservação da qualidade de vida no planeta, refletindo a importância de sermos sujeitos ecológicos, conhecedores das nossas realidades e do meio onde estamos inseridos.

 

A oficina de trançados de cestarias Wari'

Para esse momento de intervenção, propusemos aos estudantes conhecer como se dá a confecção de uma cestaria tradicional Wari’, que possui um grande valor simbólico e concreto para esse povo. A proposta visava aliar saberes indígenas tradicionais e sustentabilidade.

A oficina foi ministrada por uma artesã indígena. Os produtos confeccionados são sustentáveis e podem substituir materiais plásticos, derivados do petróleo. A utilização indiscriminada do plástico causa problemas ambientais desde a produção até o descarte. Nossas práticas de vida impactam diretamente o meio ambiente. Krenak (2020, p. 55) considera “[...] gravíssimo as escolas continuarem ensinando a reproduzir esse sistema desigual e injusto”. A escola necessita se abrir para o mundo, articular-se à comunidade local, transformando-se em espaço para efetivação de práticas socioambientais e socioculturais mobilizadoras.

Krenak (2020, p.10) alerta, ainda, que “estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra”. Um modo imediatista e predatório de existir foi sendo naturalizado e, muitas vezes, reproduzido pela escola; é preciso trazer a EA para a realidade das instituições, bem como para a nossa vida.

Quando planejamos a oficina, idealizamos algo bem interativo, em que os estudantes poderiam ter contato direto com o material, a palha de babaçu, e participar ativamente da confecção. Infelizmente, devido à pandemia da Covid-19, não foi possível executá-la presencialmente. Então, realizamos a gravação com a artesã, seguindo todos os protocolos de segurança da Organização Mundial de Saúde (OMS) e transmitimos aos participantes via Google Meet.

Inicialmente foram apresentados aos estudantes os diversos impactos socioambientais gerados pelo uso excessivo do plástico, em seguida foi apresentada a nossa proposta de construção da cestaria Wari’ produzida com palha de babaçu, uma peça ecológica e sustentável que pode se constituir como rica possibilidade para substituir algumas peças plásticas. Os estudantes acompanharam todas as etapas desde a separação da palha até a finalização das peças. Em seguida foi realizado um momento de troca de vivências acerca da atividade desenvolvida.

Refletir problemas socioambientais como a poluição e o acúmulo de lixo, repensar o uso indiscriminado do plástico através da oficina da produção da cestaria Wari’, se constituiu como uma prática educativa potencializadora de sensibilidades e saberes, como podemos observar nas falas dos participantes que acompanharam a exibição da oficina:

Esse trabalho, além de ecológico, é simplesmente maravilhoso! (SC2)

 

A proposta é muito interessante, nos mostrou o quanto é possível aprendermos com nossos irmãos indígenas, pois eles têm muito a contribuir em nossos conhecimentos [...]. (E4)

 

Eu gostaria de agradecer por essa oportunidade de pensar nas questões ambientais que são de suma importância para todos nós, principalmente para nós que seremos futuros docentes. (E8)

 

Ter a oportunidade de vivenciar a construção de uma cestaria Wari' é vivenciar uma relação carregada de sentidos, significados, um saber tradicional que se mantém vivo, atravessando gerações, apesar das interferências dos não indígenas.

A construção das cestarias Wari' foi uma experiência enriquecedora. Muitos estudantes não conheciam o trabalho. Isso demonstra que, mesmo em uma região onde a presença indígena é facilmente percebida, impera o desconhecimento da cultura indígena. Precisamos romper com esse modelo de educação tecnicista, fragmentadora, que não se articula às realidades dos estudantes e da comunidade. Carvalho (2012, p.159-160) afirma que “a EA também tem sido uma força potencializadora para construir pontes e aproximar a educação formal da não formal.”

A EA não se limita aos processos formais de ensino; é necessário o desenvolvimento de práticas integradoras, que promovam diálogo e articulação escola-comunidade, que rompam as barreiras dos espaços escolares e se materializem no cotidiano, nos modos de vida dos sujeitos envolvidos. Como nos dizem Barba e Pereira (2015, p. 25), “o processo da Educação Ambiental é caracterizado pela dinâmica que envolve a aprendizagem na escola e fora dela”. Nesse sentido, conhecer as relações que os povos indígenas tradicionais estabelecem com a natureza pode contribuir para que desenvolvamos uma compreensão do todo.

O saber ambiental problematiza a construção do conhecimento. Não se limita a uma disciplina específica; dialoga com os diversos saberes, permitindo a construção de um conhecimento integrado, que possibilita compreender a complexidade que envolve a EA e seus múltiplos aspectos. Como aponta Guimarães (2020, p. 116), “na constituição de um ambiente educativo de caráter crítico, a construção do conhecimento busca superar a visão disciplinar, elaborando uma interpretação ampliada da realidade, que alcance uma melhor visão do todo”.

O universo dos saberes indígenas tradicionais é riquíssimo: mãos habilidosas, olhares sensíveis e saberes ambientais potentes! Acompanhar esse processo presencialmente com certeza faria toda diferença; mas, apesar das limitações do ensino remoto, essa atividade proporcionou aprendizados acerca da sustentabilidade,

levando-nos a vivenciar outras formas de pensar, agir e sentir a EA, como demonstram algumas falas dos estudantes:

A proposta foi muito interessante e inspiradora, o fato de divulgar esse lindo trabalho foi de grande aprendizado para todos. Além do conhecimento dessa cultura que todos deveriam ter conhecimento (E3).

 

Fiquei admirada com este trabalho e acredito que seja uma ótima proposta ecológica para o mundo, no entanto, pena que poucos conheçam e é raramente visto à venda esta obra-prima nas lojas. Mas, acredito eu que mesmo estando nas lojas talvez seria pouco vendido, aliás, já é desvalorizado, já que o ser humano hoje em dia não parece ter senso para cuidar do meio ambiente. Não generalizando, mas estamos acabando com o mundo. Em síntese, adorei e gostaria de ter participado da oficina presencialmente! Pois a experiência teria sido maravilhosa! (E2).

 

Para dar mais visibilidade a esse trabalho maravilhoso e ecológico, fotografamos outras cestarias Wari' e apresentamos as imagens aos estudantes, o resultado foi a admiração e o encanto de todos que tiveram a oportunidade de presenciar esse momento, a Figura 1 ilustra um desses registros:

 

Figura 1 Cestarias tradicionais Wari'

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2021.

 

Segundo Leff (2000), urge ampliarmos a discussão sobre a questão ambiental, reconhecendo que a solução dessa problemática requer mudanças na organização do conhecimento, dos formatos de pesquisa e ensino, fundamentados por uma visão sistêmica da realidade e com base em métodos interdisciplinares que questionem as formas históricas do conhecimento, enquanto raiz e causa de exploração dos recursos naturais e sujeição das culturas.

As aproximações com os saberes tradicionais podem nos proporcionar saberes e sensibilidades socioambientais, considerando que o mundo contemporâneo apresenta a vida em uma perspectiva utilitarista, desconexa da natureza, convencendo-nos de que precisamos de aparatos que não fizeram falta alguma para nossos pais e avós; esquecemos o que realmente é importante, a ponto de não refletir sobre os impactos desses aparatos ao meio ambiente.

Saberes indígenas tradicionais e sustentabilidade: construção de novos saberes

Para o último momento de trocas e compartilhamentos, realizamos uma roda de conversa, aberta à comunidade escolar, contando com a presença de três lideranças indígenas, um professor e parlamentar indígena da etnia Wari', subgrupo Oro Waram, uma liderança indígena do povo Tupari e uma professora e liderança indígena da etnia Wari', subgrupo Oro Mon.

As lideranças indígenas compartilharam saberes tradicionais acerca da natureza, dos territórios e da vida, conforme registram as seguintes falas:

[...] quando a gente é criança a gente começa a conhecer as nossas histórias através dos nossos pais, dos nossos avós e sua história estão passadas de pais para filhos. Histórias de como surgiu o nosso povo. Cada povo eu acredito que tem sua história da criação, então a gente começa aí. Eu aprendi muito com a minha mãe, porque a cada momento que a gente sentava com ela para ouvir suas histórias como era antes do contato e o pós contato, esses foram momentos muito importantes para mim como mulher estar com minha mãe e conhecer a minha história, a história do meu povo a história da nossa origem da criação, do surgimento da nossa medicina do surgimento da nossa da nossa alimentação, das sementes, do surgimento de tudo que há no planeta. [...] cresci escutando as histórias passadas de geração para hoje e sabemos que com isso a gente também aprende (LI1).

 

Antes do contato os povos originários viviam tranquilamente, uma convivência tão diferente, tão linda, porque a gente tem uma conexão com a natureza, sem desmatamentos, sem agronegócio (LI3).

 

Olhar para os povos indígenas e seus saberes tradicionais nos desperta para a necessidade de rever nosso modo ocidental de viver, em que impera a fragmentação de saberes da Modernidade, a separação do homem e da natureza, a segregação e a negação das emoções e subjetividades humanas, o racionalismo, a arrogância, o imediatismo e o egoísmo. Como diz Krenak (2020, p. 8), “se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.

Os povos tradicionais buscam compreender e estar em sintonia com a natureza. Suas práticas não degradam o meio ambiente, o território é um espaço sagrado, que constitui a identidade do povo que ali habitou, habita no presente e habitará no futuro, como revelam as seguintes falas:

A sustentabilidade foi uma coisa que nós povos indígenas sempre vivemos no passado e que foi sendo deixada de lado, mas hoje eu acredito que muitas comunidades, muitos territórios tem resgatado essas práticas, trabalhando a sustentabilidade dentro dos seus territórios, a gente procura usar os recursos da floresta sem destruir (LI1).

 

Esse tema, saberes indígenas tradicionais e sustentabilidade vai nos levar ao elemento hoje chamado de território. [...] para os povos indígenas ele tem um significado e muitos não-indígenas não conseguem compreender essa questão da territorialidade para o povo indígena. Porque um povo sem território é um povo que não existe. E territorialidade está baseada na identidade, na língua, na religiosidade, na escola, na saúde e em todos os elementos que podem existir hoje (LI2).

 

A aproximação com os povos indígenas e seus saberes tradicionais nos desperta para a construção do saber ambiental, considerando a sustentabilidade. Urruth e Calixto (2018, p. 588) concebem que “entendemos a Educação Ambiental como nos relacionamos com a natureza e o ambiente construído e, sobretudo entre nós mesmos. Essas relações com o lugar, o território e a natureza são aprendidas no cotidiano de nossas vidas”.

Para esses povos, a fragmentação do mundo não faz sentido, pois eles possuem uma visão integrada da realidade, enxergam a vida como um todo, uma trama em que o ser humano é apenas um fio. Essa forma de pensar é revelada nos seus modos de vida, na sua luta em defesa da floresta, nas suas vozes, que ecoam ainda mais alto e forte diante da crise socioambiental que vivenciamos.

Não somos ensinados a refletir sobre as consequências do nosso modo insustentável de viver. Somos colocados na roda capitalística do consumo e não vemos que, enquanto consumimos, estamos sendo consumidos. A esse respeito, vejamos algumas falas de participantes:

A Modernidade conseguiu nos separar da natureza. Talvez seja a hora de reativar essa relação (SC1).

 

Na sociedade não indígena se vê muito o lado do dinheiro, é muito o lado financeiro, e o indígena não. Apesar que hoje há uma necessidade de termos recurso financeiro, para sustentar a família, mas tradicionalmente, no passado, pra fazer a roça tinha todo um ritual a ser seguido. O milho que era o alimento da base alimentar do povo, eles escolhiam o lugar, os indígenas tinham o conhecimento do período para derrubar a roça, o período de plantar, o período da colheita, era uma forma de viver que se desenvolveu no passado sem a necessidade do conhecimento escolar que nós temos hoje (LI2).

 

 

[...] a cultura de cada um, de cada povo, de cada comunidade é diferente, porque para os indígenas não é uma cultura da ambição de chegar lá no rio e destruir tudo, pescar o máximo pensando em dinheiro, é pensar no bem-estar do hoje no presente sem agredir a natureza, sem destruir. Coisa que a gente só tem pensado no consumo, que pra ser feliz, a gente tem que consumir (PC4).

 

Os povos indígenas tradicionais nos fazem compreender que estamos no caminho errado; o chamado progresso/desenvolvimento tem deixado um rastro de infelicidade, doenças e destruição. Observemos as falas a seguir:

[...] esse processo que estamos conversando hoje é importante porque só conhecendo para você desconstruir aquilo que vem sendo construído de forma colonizadora, de modo que você consiga ter a compreensão de perceber que existe a diversidade (PC4).

 

[...] essa relação dos povos indígenas com a terra é muito rica para nos fazer pensar, ou melhor, nos estimular a deixar de pensar a terra como recurso (SC1).

 

[...] nós povos indígenas temos uma conexão muito grande com o planeta terra. [...] Tudo é sagrado, até o dormir e acordar. E esse sagrado foi desrespeitado a partir do momento que o homem não indígena pisou nesse país hoje chamado de Brasil. E esse sagrado hoje continua sendo desrespeitado, não é compreendido conforme o indígena compreende (LI1).

 

O modo de vida das sociedades indígenas se contrapõe às práticas capitalistas. Nas palavras de Pataxó (2020, p. 71),

[...] o nosso Bem Viver fornece elementos fundamentais para a construção de um mundo melhor e mais diverso, pois é urgente a necessidade de viabilizar, no Brasil, uma sociedade que seja ecologicamente correta, socialmente justa, culturalmente diversificada e humanamente solidária.

 

Pensar no bem comum, defender o território com a própria vida, resistir à mercantilização da natureza, à objetificação da existência, reconhecer e respeitar o diverso, cultivar um mundo melhor para todos! Quantas lições importantes tivemos a oportunidade de aprender, como exemplificam os fragmentos abaixo:

[...] os conhecimentos tradicionais e científicos devem caminhar lado a lado. Para podermos então pelo menos tentar mudar o quadro na questão ambiental, porque nós estamos vivenciando não apenas os povos indígenas, mas todos, estamos em uma briga intensa em relação ao ambiente de um modo geral, nós brigamos pelo coletivo, porque não há apenas os povos indígenas no planeta, o planeta abrange todas as formas de vida, de todos os seres vivos e nós precisamos pensar e repensar e juntos contribuir para amenizar os impactos existentes (LI2).

 

Eu acredito que nós precisamos juntos, tanto nós povos indígenas, organizações indígenas, agora o professor e Vereador indígena, as Universidades, os Institutos Federais, trabalhar em conjunto para melhoria não só dos povos indígenas, mas também das pessoas que vivem também aos arredores nos territórios indígenas e nos arredores de nós todos (LI1).

 

Aproximar os mundos de indígenas e não indígenas se mostrou uma fonte de conhecimentos socioambientais sensíveis e significativos, como podemos verificar nos depoimentos dos participantes:

A gente está iniciando com esse trabalho algo muito importante, estamos abrindo uma porta para a conexão e construção de novos saberes. Nós temos que traçar esses dois conhecimentos para não deixar para trás (LI3).

 

Que esse momento sirva de referência para outros e eu acredito que o IFRO ele precisa não só aí em Guajará-Mirim, mas em todos os outros Campus, precisa se abrir mais para esses diálogos, conversas com os povos indígenas. Porque nós temos muito a contribuir trocando ideias e saberes e superando esses preconceitos que ainda existem (LI1).

 

As lideranças indígenas potencializaram a reflexão de que nós somos todos humanos; podemos resistir à mercantilização da vida, repensar nossa forma de interagir e agir nos lugares em que vivemos. Urruth e Calixto (2018) consideram que a cultura indígena precisa ser olhada com muito respeito, como uma inspiração para a vivência em sociedade.

Enquanto educadores e cidadãos, precisamos dar visibilidade a essas questões, combater preconceitos, defender o meio ambiente, respeitar outros modos e formas de vida, compreender e articular conhecimentos, a fim de desenvolver um saber dialógico, que perpasse as diversas áreas do conhecimento, entrelaçado às realidades socioambientais e socioculturais dos espaços em que vivemos. 

 

Narrativas finais

Neste estudo, buscamos contribuir para a formação dos futuros docentes, mediante o desenvolvimento de práticas educativas socioambientais. Reconhecemos a urgência de estabelecer relações com o meio que nos cerca, promover o desenvolvimento de valores e uma conduta ética e sustentável, despertando para a consciência de que todos temos a responsabilidade de cuidar do planeta. 

Diante do cenário de degradação ambiental e desmonte da política de proteção ambiental brasileira, mobilização de reflexões, ações e práticas socioambientais que contribuam para a construção de uma consciência ecológica e política é ainda mais urgente. É essencial ampliar a discussão acerca das problemáticas socioambientais que atemorizam as diversas realidades da Amazônia. Precisamos, de fato, desenvolver uma EA capaz de provocar contestação e criticidade a respeito dos problemas socioambientais locais, regionais e mundiais, promovendo a formação integral dos sujeitos.

As experiências vivenciadas reforçaram nosso pensamento de que é possível fazer a diferença na sala de aula, mobilizando os sujeitos na perspectiva do saber ambiental. Oportunizar aos futuros educadores vivências socioambientais, de diferentes representações de mundo, novos sentidos e reflexões sobre outras formas de se fazer EA pode contribuir significativamente para melhorias na qualidade da formação inicial dos professores das Ciências Naturais.

 

Referências

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MUNDURUKU, Daniel. O banquete dos deuses: conversa sobre a origem e a cultura brasileira. São Paulo: Global, 2009.

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NOTAS

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1 As abordagens e os instrumentos metodológicos utilizados obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica em Ciências Humanas, tendo sido aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas da Universidade Federal de Rondônia (PARECER CAEE: 36948420.3.0000.5300) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (PARECER CAEE: 36948420.3.3001.5653).

2 Asaggiare: locução italiana que se relaciona a provar, degustar, saborear. Nesse sentido, o saber ambiental rompe com a mecanização e objetificação dos saberes científicos e nos convida a desenvolver uma nova forma de construção de saber.


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