Habitar a profissão docente na roça
Inhabiting the teaching profession in the countryside
Habitar la profesión docente en el campo
Charles Maycon de Almeida Mota
Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, BA, Brasil
charlesmaycon22@hotmail.com
Recebido em 21 de junho de 2022
Aprovado em 24 de junho de 2022
Publicado em 05 de fevereiro de 2024
RESUMO
Com este estudo buscou-se entender como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência, bem como, produzem experiências de ser-docente numa perspectiva de afirmar uma vida autêntica que é manifestado no ente que habita espaços rurais. O estudo utiliza como método a Pesquisa Narrativa associada à abordagem qualitativa por possibilitar pensar a respeito da construção de uma concepção de ruralidade da presença que institui o ser-na-roça a partir dos estudos de Heidegger (1991, 2012, 2015) e das poesias de Manoel de Barros (2009, 2015, 2018). Este estudo ancora-se nas bases da fenomenologia e da hermenêutica por buscar compreender o ser em seu contexto de vida e os sentidos atribuídos à sua condição de existir em contextos rurais. A pesquisa foi desenvolvida nas escolas rurais do município de Várzea do Poço, BA, Brasil, tendo como dispositivos as entrevistas narrativas e etnografias da roça constituídas por registros realizados ao longo da pesquisa com narrativas sobre a experiência. Esta pesquisa contou com três professores/as colaboradores/as, sendo estes/as professores/as do Ensino Fundamental de escolas rurais e moradores/as das comunidades rurais. Concluiu-se que as experiências do ser-docente vão sendo produzidas conforme os modos que cada professor/a mobiliza e traduz os sentidos dos acontecimentos que os/as envolvem nesse processo de habitar a roça, possibilitando condições para trans-ver o rural habitado e a profissão docente na roça.
Palavras-chave: Ruralidade da presença; Experiência; Profissão docente; Pesquisa narrativa; Roça
ABSTRACT
With this study, we sought to understand how teachers who work in schools in the countryside constitute the “presentification” of being-in-the-countryside to signify their existence, as well as, produce experiences of being-teacher in a perspective of affirming an authentic life that is manifested in the entity that inhabits rural spaces. The study uses as a method the Narrative Research associated with the qualitative approach to make it possible to think about the construction of a conception of rurality of the presence that institutes the being-in-the-countryside from the studies of Heidegger (1991, 2012, 2015) and the poetry by Manoel de Barros (2009, 2015, 2018). This study is based on the foundations of phenomenology and hermeneutics as it seeks to understand the being in its life context and the meanings attributed to its condition of existing in rural contexts. The research was developed in rural schools in the municipality of Várzea do Poço, BA, Brazil, using narrative interviews and ethnographies of the countryside as devices, constituted by records made during the research with narratives about the experience. This research had three collaborating teachers, who were Elementary School teachers from rural schools and residents of rural communities. It was concluded that the experiences of being-teachers are produced according to the ways that each teacher mobilizes and translates the meanings of the events that involve them in this process of inhabiting the countryside, enabling conditions to trans-see the inhabited rural area and the teaching profession in the countryside.
Keywords: Rurality of presence; Experience; Teaching profession; Narrative research; Countryside
RESUMEN
Con este estudio buscamos comprender cómo los docentes que trabajan en escuelas rurales constituyen la presentificación del estar-en-el-campo para significar su existencia, así como, producir experiencias de ser-docente desde una perspectiva de afirmación de una vida auténtica que es manifestado en la entidad que habita los espacios rurales. El estudio utiliza la Investigación Narrativa como método asociado al enfoque cualitativo ya que permite pensar en la construcción de una concepción de ruralidad de la presencia que establece el estar-en-el-campo a partir de los estudios de Heidegger (1991, 2012, 2015) y los poemas de Manoel de Barros (2009, 2015, 2018). Este estudio se ancla en los fundamentos de la fenomenología y la hermenéutica ya que busca comprender el ser en su contexto de vida y los significados atribuidos a su condición de existir en contextos rurales. La investigación se desarrolló en escuelas rurales del municipio de Várzea do Poço, BA, Brasil, utilizando como dispositivos entrevistas narrativas y etnografías del campo, consistentes en registros realizados a lo largo de la investigación con narrativas sobre la experiencia. En esta investigación participaron tres docentes colaboradores, estos son docentes de educación básica de escuelas rurales y residentes de comunidades rurales. Se concluyó que las experiencias de ser docente se van produciendo según las formas en que cada docente moviliza y traduce los significados de los acontecimientos que lo involucran en este proceso de habitar el campo, posibilitando condiciones para transpercer lo habitado rural y la profesión docente en el campo.
Palabras clave: Ruralidad de la presencia; Experiencia; Profesión docente; Investigación narrativa; Campo
Introdução
A docência em escolas da roça[i] pode se colocar como promotora da valorização de tempos e experiências que implicarão na (re)construção de sentidos e significados importantes e necessários para a compreensão dos diversos modos de viver a roça. Entretanto, esta condição é atravessada pelos sentidos e significados produzidos por professores/as no seu contato com o mundo cultural, com o qual estabelece enlaces e constitui um modo de ver e de pensar o mundo que incide sobre seu processo formativo. Nessa direção, professores/as são constituídos/as por experiências culturais que delimitam seus fazeres no cotidiano escolar.
Compreender que o ser-na-roça[ii] vai sendo desvelado numa presencialidade desencadeada pela ruralidade da presença[iii] e disso produzimos nossos modos de habitar a roça e construir formas de também habitar a profissão docente na roça está relacionado com a maneira como cada docente se vincula à sua realidade de vida e busca, a partir da produção de experiência, maneiras diversas de realização da docência.
Com isso, busquei desenvolver uma investigação que deu centralidade a processos docentes em espaços rurais por possibilitar fazer uma retomada de processos de vida-formação-profissão que, respectivamente, desencadearam uma reflexão acerca de minha experiência como sujeito da diferença, que vive na roça e atua na docência da Educação Básica na rede municipal de ensino e na Educação Superior na rede estadual de ensino, ambas atuações se dão em instituições situadas em áreas urbanas que recebem estudantes da roça. Isso trouxe a possibilidade de repensar minha implicação com a pesquisa e definir rumos necessários ao processo de estudo, apropriações e distanciamentos com meu objeto de estudo, dando enfoque às minhas práticas docentes, perspectivas de formação e contribuição social em minha comunidade.
A investigação desenvolvida me deu a oportunidade de narrar minha trajetória de vida-formação-profissão a partir da perspectiva de um sujeito constituído de emoções, razões, sensibilidade, frustrações e realizações vivenciadas no contexto rural em que as tessituras se revelam como modos de ser e viver o espaço da roça, intercruzando minhas narrativas com as narrativas de colegas professores/as que moram e atuam na Educação Básica da rede municipal de ensino e estão lotados/as em escolas da roça.
Pensar a docência na roça, tomando a presentificação do ser-na-roça como possibilidade de valorização do lugar habitado, coloca a escola num patamar privilegiado nas comunidades rurais, assim como o ser-docente. Dessa maneira, é possível dar centralidade aos processos formativos na roça através do caminho da experiência que cada pessoa desse lugar se propõe a trilhar, considerando o demorar-se nas paradas desse caminho no qual nos lançamos e produzimos nossas trajetórias de vida-formação-profissão.
É importante ressaltar que este texto é um recorte da pesquisa desenvolvida no processo de doutoramento, tomando as seguintes questões de pesquisa: Como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência? Como professores/as de escolas da roça produzem experiências de ser-docente numa perspectiva do ser-mais que habita espaços rurais?
O presente texto tomou como objetivo geral: Compreender como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência e produzir experiências de ser-docente numa perspectiva do ser-mais que habita espaços rurais. E Como objetivos específicos busquei: Entender como professores/as da roça presentificam o ser-na-roça para significação de sua existência em contexto rural; Compreender de que modo a presentificação do ser-na-roça atravessa a docência nas escolas da roça; Analisar as experiências de ser-docente numa perspectiva do ser-mais que habita espaços rurais.
O texto está configurado em duas seções, além da introdução. Uma apresentando concepções e percursos que se constituíram como os processos metodológicos da pesquisa narrativa, a outra versa sobre uma compreensão sobre o deixar-se ser-docente para entender como professores/as da roça produzem suas experiências a partir dos modos de habitar esse lugar.
Enveredamentos e percursos metodológicos na pesquisa narrativa
Narramos a partir de uma experiência humana e constituímos tal experiência dentro de uma trama que enreda uma multiplicidade de sentidos que significam nossa existência. Assim, toda narrativa precisa ser entendida, interpretada e compreendida levando em conta o contexto, os espaços de vida, a tradição e a cultura que professores/as carregam consigo. Sendo a narrativa um modo próprio que cada pessoa utiliza para dizer de si e apresentar suas formas de engajamento e comprometimento com o outro ao assumir responsabilidade por ações, pensamentos e sentimentos, posso acrescentar que este movimento configura o processo de autobioformação[iv] convocado pela experiência que logramos. Neste sentido, busquei construir um percurso na pesquisa narrativa a partir de caminhos e veredas percorridos na roça, constituindo uma experiência convocativa do ser-na-roça por uma presencialidade evocada pela poética das matas e das coisas (in)significantes de minha vida na roça, ganhando um tom bem próprio com as poesias de Manoel de Barros (2018, p. 48), trazendo forte inspiração para narrar minha vida e as experiências narradas pelos/as professores/as narradores/as da pesquisa:
O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos
insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
[...]
No poema Aprendimentos, Manoel de Barros (2018) apresenta suas compreensões sobre o aprender com as significações científicas e não-científicas, trazendo à tona como seu ser vai se desvelando conforme as experiências que constitui com o sentir. Sendo assim, tomo essa poética para revelar como se deu meu enveredamento na construção de um movimento biográfico-narrativo através da experiência de narrar a experiência na pesquisa narrativa.
A pesquisa narrativa foi sendo construída e enredada de uma forma muito encarnada com meus modos de compreender e habitar a roça, desencadeados a partir do modo como o demorar-se (HEIDEGGER, 2012) com as coisas da roça se fazia lastro para escuta sensível e compreensão das narrativas recolhidas no percurso que me propus desenvolver. Para além das certezas científicas, fui me amparando naquilo que o campo apresentava, buscando apoio nas produções que embasam a pesquisa narrativa e nas condições que ver, ouvir, pegar, provar, cheirar representavam enquanto possibilidades para compreender o ser-na-roça e a ruralidade da presença.
É com esse entendimento que me lancei numa aventura de pensar narrativamente a roça e percursos na docência, sendo convocado a desenvolver um movimento de etnografar a roça como modo próprio de afirmar uma vida autêntica (HEIDEGGER, 1991) e encontrar possibilidade de abertura para apresentação de Narrativas de experiência na pesquisa narrativa, produzindo um processo metodológico a partir de princípios epistemo-político-sociais que se associassem à forma como habitamos poeticamente a roça.
Habitar poeticamente a roça de modo a associá-la a princípios epistemo-político-sociais se apresentou para mim como condição de potência para tensionar, distanciar e me aproximar do lugar habitado e desenvolver uma pesquisa narrativa que foi se firmando num movimento de fazer fazendo-se investigador a partir da proposição biográfico-narrativa na pesquisa, narrando de si e dos percursos realizados nos quais os sentidos dessa pesquisa iam sendo desvelados com as narrativas sobre experiência de narrar a experiência, constituindo o movimento de etnografias na roça.
É importante compreender que as bases epistemológicas que sustentam a perspectiva de posições teóricas sobre o enfoque biográfico-narrativo são decorrentes da “[...] abordagem constituída pelas histórias de vida, na fronteira da Literatura e das Ciências Humanas” (PINEAU; LE GRAND, 2012, p. 64). Disso provém o entendimento de que o (auto)biográfico e o biográfico-narrativo se comprometem com processos hermenêuticos que dão centralidade a movimentos de compreensão que possibilitam apreensão de sentidos e significados que se constituem de subjetividades que emergem das narrativas.
O enfoque de estudos que assumem o biográfico-narrativo somente despontou com maior força na Espanha e América Latina a partir da segunda metade dos anos 1990 do século XX, tendo em vista o desenvolvimento de estudos doutorais que apresentavam histórias de vida como elementos de pesquisa no âmbito de paradigmas qualitativos que tinham centralidade nos movimentos da pesquisa etnográfica com uma mirada mais focada nos processos de subjetividade experiencial, levando em conta as temporalidades de professores/as. Neste caso, as vozes dos sujeitos tinham uma valorização, eram legitimadas num primeiro plano tendo como complementações documentos pessoais, diários, (auto)biografias e entrevistas biográficas e/ou narrativas, podendo explorar com maior profundidade as centralidades de temas dentro das experiências que cada sujeito constituía considerando suas temporalidades e identidades (GONZÁLEZ-MONTEAGUDO; OCHOA-PALOMO, 2014).
Os estudos com método biográfico e histórias de vida advêm de um contexto francófono, desenvolvidos a partir das proposições que instauraram outras perspectivas para as ciências humanas na Escola de Chicago, sendo reconfigurados de acordo com as compreensões que cada autor/a fazia para realização de suas pesquisas e adaptações em relação aos elementos teórico-metodológicos de seus estudos. É importante apresentar um breve esclarecimento sobre posições conceituais, situando como cada abordagem teórico-metodológica pode ser compreendida na investigação narrativa. Sendo assim, Bertaux (2010, p. 60) reitera que com os primeiros estudos da Escola de Chicago houve definição relevante sobre narrativa de vida e autobiografias, apresentando um esclarecimento sobre a importância da significância destes dois termos no âmbito da perspectiva etnossociológica, situando que:
A abordagem etnossociológica visa compreender um objeto social “em profundidade”: se ela recorre às narrativas de vida, não é para compreender essa ou aquela pessoa em profundidade, mas para extrair das experiências daqueles que viveram uma parte de sua vida no interior desse objeto social informações ou descrições que, uma vez analisadas e reunidas, ajudem a compreender seu funcionamento e suas dinâmicas internas.
É relevante pensar num movimento de compreensão das experiências de vida das pessoas que traga centralidade para elementos que representem realidades de vida, entendimentos de mundo, processos subjetivos que evidenciem sentidos e significados colaborativos para nossos campos de estudo.
Conforme González-Monteagudo e Ochoa-Palomo (2014), há um investimento significativo nos enfoques biográficos e narrativos na Espanha e na Amárica Latina, uma vez que apresentam perspectivas mais qualitativas, hermenêuticas e narrativas, constituindo-se como possibilidades da ampliação nos campos epistemológicos como contribuição para as abordagens que fundamentam as histórias de vida e autobiografias, instaurando o contexto denominado giro narrativo, segundo o qual se configura o enfoque biográfico-narrativo propondo uma mirada biográfica em contextos sociais e de formação com maior centralidade nas experiências existenciais impulsionadas pelas narrativas de vida.
Por entender que as narrativas são espaços em que cada pessoa se autoriza a dizer de si e dos espaços que habita na roça, revelando os sentidos de habitar este lugar, desvelando, neste ato narrativo que é tão pessoal e íntimo, os sentidos de também ocuparem espaços públicos, tomo o enfoque biográfico-narrativo como possibilidade de desenvolvimento da investigação narrativa pelo lugar das potencialidades que este campo representa, elegendo como método a pesquisa narrativa.
A abordagem que compreende a pesquisa narrativa tem se colocado, nas últimas décadas, como um pressuposto potente de pesquisa na área de formação docente e, sobretudo, como um espaço dinâmico de formação de muitos/as professores/as, sejam como pesquisadores/as ou participante da pesquisa, que se envolveram em estudos cujas bases e princípios epistemológicos estiveram ancorados nas vertentes das narrativas de vida que trazem à baila a experiência como espaço potente significante e de significância da vida. Com tal perspectiva, muitas questões inerentes ao campo educacional que não tinham validade diante de uma lógica cartesiana tomada por determinados paradigmas científicos, pois estavam associadas e/ou emergiam das subjetividades dos sujeitos, ganham visibilidade e legitimidade científica.
Cabe mencionar que a Pesquisa Narrativa que estou tomando, se configurou como campo político e epistemológico, trazendo para este estudo possibilidades outras no movimento formativo das pessoas envolvidas na pesquisa. Clandinin e Conelly (2015, p. 85) apresentam uma caracterização tridimensional que baliza as concepções da pesquisa narrativa no que se refere a termos e espaços da pesquisa narrativa.
Nossos termos são pessoal e social (interação); passado, presente e futuro (continuidade); combinados à noção de lugar (situação). Este conjunto de termos cria um espaço tridimensional para a investigação narrativa, com a temporalidade ao longo da primeira dimensão, o pessoal e o social ao longo da segunda dimensão e o lugar ao longo da terceira.
Essa tridimensionalidade da interação, continuidade e situação está em consonância com os princípios que ressoam desse posicionamento epistemo-político-social que mencionei anteriormente, fortalecendo o processo de pesquisa que valoriza o sujeito nos aspectos da individuação e da coletividade a partir das temporalidades desses sujeitos e de suas comunidades.
Nesta perspectiva, as narrativas de vida têm se colocado como um elemento desencadeador de uma multiplicidade de categorias consonantes ao fazer docente num contexto da Educação Básica, por amparar e dar sustentabilidade às experiências vividas pelos/as docentes em suas trajetórias de formação-profissão, já que estas são entendidas por Souza (2006, p. 95) como “[...] experiências formadoras, as quais são perspectivadas a partir daquilo que cada um viveu e vive, das simbolizações e subjetivações construídas ao longo da vida”.
As etnografias foram produzidas como forma de narrar minhas compreensões a respeito do movimento de pesquisa que desenvolvi e, se apresentam como dispositivo que teve a pretensão de impulsionar discussões e reflexão a respeito de núcleos de sentidos que emergiram das narrativas. Este movimento se colocou como constituinte de um espaço formativo na perspectiva da autobioformação, em que os/as professores/as narradores/as tiveram oportunidade de fazer exposição de suas compreensões de mundo habitado, tomando como base suas experiências de vida e formação.
A utilização das entrevistas narrativas e etnografias da roça, como dispositivos de pesquisa, possibilitaram pensar as experiências a partir de uma proposição da autobioformação como oportunidade de descentralização das narrativas da base do escrito, dando oportunidade para outras maneiras de narrar a vida e considerar as realidades dessa vida. O desafio foi pensar a possibilidade de realizar a pesquisa narrativa em escolas da roça numa perspectiva que desencadeasse a constituição de uma etnografia da presença fundada na proposição das ruralidades da presença, em que os/as docentes narradores/as e os contextos da roça foram tomados ontologicamente.
Tomar a entrevista narrativa como dispositivo de pesquisa e, consequentemente as etnografias da roça, foi importante por compreender que a recolha e a produção das narrativas “[...] se ajusta à formação das trajetórias; ela permite identificar por meio de que mecanismos e processos os sujeitos chegaram a uma dada situação, como se esforçam para administrar essa situação e até mesmo superá-la” (BERTAUX, 2010, p. 27). As narrativas são construídas em torno das experiências vivenciadas e constituídas pelos sujeitos, já que ninguém narra algo que não viveu, pois as histórias surgem a partir da intensidade de momentos vividos, se transformam e nos formam.
Partindo dessa percepção sobre a produção e a recolha das narrativas como abertura para o ser, realizei um estudo com base hermenêutica fenomenológica (GADAMER, 2013), por considerar a necessidade de buscar elementos nos quais pudesse me apoiar num trabalho com as subjetividades de sujeitos que têm uma experiência de vida, uma concepção de mundo e um fazer docente permeados de sentidos e significados, adotando uma centralidade no processo de formação docente calcado na vertente compreensiva-interpretativa (RICOEUR, 2010).
A pesquisa foi realizada em dois momentos, a saber: mapeamento das pesquisas nos Bancos de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)[v] e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), intentando para o movimento de etnografarmos ruralidades por meio das concepções apresentas em cada estudo que compôs o Estado da arte (MOTA; SILVA; RIOS, 2021) e; realização de entrevistas narrativas e etnografias da roça com a pretensão de refletir e compreender sobre o ser-na-roça que cada professor/a constitui a partir de seu habitar a roça e desenvolver a docência em contextos rurais. Participaram da pesquisa três docentes que são professores/as que moram na roça e atuam no Ensino Fundamental em escolas da roça da rede municipal de ensino em Várzea do Poço-BA.
Apresento a seguir os/as docentes narradores/as[vi] através de excertos das narrativas de si que são reveladas nos percursos das entrevistas narrativas.
Di-Acauã[vii]:
Morar na roça para mim é um privilégio porque eu sempre morei na roça, nasci na roça. [...] Meu primeiro trabalho também foi escola da roça. Eu tinha alunos na época [...] que eram quase da minha idade [...]. Sou professora de ciências do 6º Ano até o 9º Ano [...]. Estou fazendo a especialização do ciências 10 pelo IFBA. [...] Fiz esse concurso público mesmo antes de terminar o Ensino Médio, o concurso foi em abril e eu iria terminar o Ensino Médio em dezembro, então eu não tinha o diploma de Ensino Médio, portanto eu não podia fazer o concurso para professor nível 1, tive que fazer o concurso para Regente auxiliar que me garantia direito a ensinar de primeira a quarta série (Entrevista narrativa, 2020).
Damiana-Acauã:
Tenho 55 anos de idade e sempre morei na zona rural, estudei em escola do campo. Até hoje ainda estou trabalhando na história na escola do campo. Trabalhei 20 anos como professora leiga que era chamado aqueles tempos atrás. Depois de 20 anos que eu trabalhava como professora leiga, fiz uma faculdade. Então, me tornei pedagoga, estou trabalhando ainda na sala de aula. Já fiz dois cursos de Pós-graduação (Entrevista narrativa, 2019).
Geni-Acauã:
Sou morador daqui de Nova Esperança desde quando nasci, me criei aqui e estou até hoje com 53 anos junto com minha família. [...] Quando comecei essa trajetória na Educação, [...] em 1982, mas comecei a trabalhar mesmo em 1984. [...] Fiz a faculdade de Geografia e a pós-graduação em Geografia Física e das Populações e continuo na luta. Em setembro dia 15 mais ou menos, é final de inverno início de primavera, estou chegando aos 36 anos nessa trajetória da Educação [...]. Quando entrei para trabalhar na Educação eu tinha uma certa habilidade com cortes de cabelo, [...] quando entrei na Educação não parei com esta atividade, [...] durante a semana, [...] a Educação é prioridade, no final de semana, [...] ou feriado [...] atuo aqui num pontinho, faço bico (Entrevista narrativa, 2020).
Deixar-se ser-docente na roça
Interpretar as coisas da/na roça numa perspectiva de um habitar poeticamente este espaço é evidenciar essas coisas que considero atreladas àquilo que se mostra como (sem)sentido, conforme as composições das (in)significâncias que tomo numa inspiração na poesia de Manoel de Barros (2015) para intensificar modos de compreender meu habitar poeticamente a roça. Neste momento, me sinto instigado pelos passarinhos que volta e meia vêm no terreiro de minha casa, se banham e bebem água nos recipientes dispostos pelo chão, sobrevoam próximos às janelas da cozinha, adentram a casa, procuram lugares nos varandados para fazerem ninhos. Outros pássaros como siriemas e acauãs se mantêm no interior ou nas beiradas da mata, anunciando seu viver e demarcando momentos específicos das manhãs ou dos anoiteceres.
A partir disso, sou mobilizado a narrar aqui mais uma de minhas formas de ver, sentir, ouvir e pensar a roça e elementos que demarcam condições de meu existir nesse lugar e como habito poeticamente este espaço. E sobre o cantar das siriemas, quase todas as manhãs elas fazem sua amostra quase-lírica. É uma exposição sonora em manhãs de inverno no sertão. Entendo que esta situação seja uma forma de ver ouvindo, pois em tempo chuvoso, com o mato alto, a capoeira e as matas mais verdes e fechadas, não dá para mirar as siriemas, apenas nos tempos mais secos. Em meados de outubro é que conseguimos ver os rebanhos dessas aves correndo pelos campos, fazendo seus espetáculos quase-líricos à procura de cobras e lagartos para sua alimentação. Siriemas são aves de pernas longas e finas, uma altura de mais ou menos meio metro, muito presentes nos espaços da caatinga, tendo lugar de destaque nas narrativas de criança a idosos/as pela representação que têm para nós que habitamos estes espaços.
Em arte de passarinho, tenho tendência a pensar como árvore que de um (sem)sentido se mantém num lugar acolhendo uma imensidão de coisas vivas, bem como um tempo das (in)significâncias que se fazem de acontecimentos. Ainda falando sobre passarinhos e outras aves, quero mencionar a garça que vive aqui na frente de casa, fazendo limpeza em lombos e úberes das vacas. Passam o dia catando os carrapatos e parece que cada garça se encarrega de dar conta de um animal. Sua brancura e elegância são destaques em meio ao verde dos campos. Seus grasnidos, diferentes das siriemas, são leves e delicados, parecem se harmonizar com a brancura de suas penas e o tom leve de amarelo de seus bicos.
Cada ave com seu jeito próprio de anunciar a vida, podendo significar modos singulares para cada pessoa que habita a roça e isso tem a ver com o campo de circunvisão que construímos ao vivenciar nossas realidades, estando relacionados às experiências que produzimos, dimensionando nossas formas de sentir, ouvir, ver e pensar os lugares e nossa própria existência na roça. Na poesia de Manoel de Barros (2015, p. 66) tenho oportunidade de conhecer essa garça pantaneira e, a partir disso, interpretar os meus (sem)sentidos ao narrar sobre (in)significâncias de pássaros e árvores para compreender a forma de meu habitar poeticamente a roça, produzindo maneiras que me provocam pensar narrativamente a respeito do que narram professores/as da roça para evidenciar seus modos de habitar a roça e a profissão docente na roça:
A nossa garça
Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras. São viúvas de Xaraés? Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada. Há uma sombra de dor em seus voos. Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.
Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei. É a de não ser ela uma ave canora. Pois que só grasna - como quem rasga uma palavra.
De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem esculturas no ar.
A elegância e o Branco devem muito às garças.
Chegam de onde a beleza nasceu?
Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos. Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges. E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.
Aqui seu voo adquire raízes de brejo. Sua arte de ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura.
À força de brancuras a garça se escora em versos com o lodo?
(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes - ou conciliações? - entre o puro e o impuro etc. Etc. Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!)
Esse demorar-se nas paradas significa para o ser-docente de professores/as da roça modos específicos de produzir experiências na docência em comunidades rurais através do modo como vivenciam os espaços da escola da comunidade e os outros espaços que habitam, deixando-se afetar pelas condições de suas relações com a roça. Estas se colocam como influências do ser-docente, contribuindo para a promoção de um fazer na docência em escolas da roça que considera as condições de vida e existência das pessoas em suas comunidades. Garças e siriemas são aves do (sem)sentido e das (in)significâncias de quem habita poeticamente a roça e podem ser relacionadas aqui com a docência em espaços rurais que têm relevância e representam muito para quem mora em comunidades rurais.
Produzimos experiências à medida que nos deixamos-habitar, que aqui tem relação com o movimento que realizamos no fazer da docência no sentido de um demorar-se na parada, ou seja, um dar-se, mostrar-se, deixar-se ser-docente pelo envolvimento com a ação de ser-sendo concretizada no e pelo acontecimento da docência na roça. Para Heidegger (2012, p. 139): “A essência de construir é deixar-habitar. A plenitude de essência é o edificar lugares mediante a articulação de seus espaços. Somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir”.
Deixar-habitar como possibilidade de construir modos de existencialidades na profissão docente na roça é a condição que professores/as que desenvolvem a docência em localidades rurais têm de se fazerem abertura para o ser-na-roça em que tempo e espaço se configuram como condicionantes para a construção do habitar. O tempo e o espaço se apresentam como dimensões estruturantes para a construção das formas de habitar a profissão docente na roça por se colocarem como a possibilidade que cada pessoa da roça tem para se lançar no mundo, constituindo-se abertura para o ser-docente que se revela no movimento de professorar realizado por professores/as da roça.
Ao narrar sua experiência como professor de escola da roça e também como barbeiro de muitos anos em sua localidade, Geni-Acauã evidencia a importância da docência em sua vida, trazendo à tona como sua relação com a comunidade influencia seus modos de habitar a profissão docente na roça e sua compreensão sobre educação:
Penso que se minha relação com alunos e pais fosse apenas na escola, ficaria uma coisa muito vaga. Com essa relação na escola e em outro espaço, gente é fantástico! Você pode abordar as coisas lá na escola e trazer aqui para a praça da comunidade, no jardim da comunidade, no pontinho da barbearia no final de semana. Tem um detalhe, sobre essas duas áreas profissionais que tenho, dou prioridade a Educação, de coração dou prioridade a Educação, tudo que acontece na Educação não fico fora. Se vai ter uma reunião, eu participo, só fico aqui no meu tempo livre. Procuro fazer o trabalho, tanto na escola como também na minha comunidade. Visito vários colegas aqui na roça, são pessoas chegadas mesmo, eu nem chamo de colegas, são amigos. Eles me chamam para ir lá, então vou de bicicleta, a pé ou de carro, sempre estou ali dialogando com as pessoas, em Barra Nova, Cotovelo, a comunidade que menos frequento em meu município é Itapoan, é um acesso mais difícil por não ter muita amizade, muitos conhecidos, mas essa região daqui, Barra Nova, Cotovelo, as roças aqui, tenho uma boa relação com eles. Isso fortalece a gente, anima a gente a ir até o fim (Geni-Acauã, entrevista narrativa, 2020).
Para Geni-Acauã a relação que se dá entre ele, os/as estudantes e os familiares se apresenta como possibilidade da efetivação de um fazer docente que se mostra de maneira ampliada e pelo lugar dos vínculos que são construídos em comunidades rurais em que o/a professor/a acaba desenvolvendo outras atividades laborais além da docência. Isso representa uma condição de complementariedade entre o que se faz no espaço físico da escola e se estende para outros espaços sociais da comunidade. Esse é um modo específico que configura a forma como cada professor/a constrói seu habitar a profissão docente na roça, deixando-se ser-docente pela maneira como vê e compreende o movimento da docência na roça. Isso tem a ver com quem esse/a professor/a é e como significa seus modos de ser-na-roça a partir de sua condição de existir no lugar que vive para poder constituir-se sujeito social, político e cultural. Nisso encontram-se embutidas suas formas de trans-ver a roça e sua comunidade, provocando-se como sujeito da experiência do ser-docente numa perspectiva que contribui para afirmação de uma vida autêntica, que potencializa seus modos de viver e fazer docente pelo encontro com o outro. É uma configuração do ser-em que desencadeia o ser-mais de professores/as da roça na produção de sua habitação da profissão docente na roça. Este processo fica evidente pela maneira como Geni-Acauã narra seu encanto com as possibilidades que encontra para ampliar seu fazer docente para outros espaços públicos de sua comunidade.
Tomo Heidegger (2015, p. 100) para mostrar que a significância do ser-em carrega consigo sentidos de um ser que é no mundo e por ser-no-mundo toma para si condições de familiaridade com as coisas que estão dispostas em seu espaço de vida, estabelecendo relações de afeto que dão sentido ao que faz e como faz:
O ente, ao qual pertence o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão “sou” conecta-se a “junto”; “eu sou” diz por sua vez: eu moro, detenho-me junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. Como infinitivo de “eu sou”, isto é, como existencial, ser significa morar junto a, ser familiar com. O ser-em é, pois a expressão formal e existencial da presença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo.
O ser-em aqui não é uma condição de algo simplesmente dado. É uma relação que se constitui de um ser que é junto ao espaço e às coisas do lugar habitado, que já é ou passa a se familiarizar com aquilo que tem sentido para sua existência provocada pelo ente que professores/as da roça já são. Isso propõe o entendimento de que ser-docente no contexto dessa discussão representa a condição de uma relação produzida por aquilo que sou conectado ao junto a alguma coisa que faço de um modo que é próprio e, por isso, se tornou familiar pelas circunstâncias que se dão por um processo de demorar-se junto.
A experiência de ser-docente que Geni-Acauã produz é o desvelamento do ser-na-roça que vai se dando a partir da ruralidade da presença provocada pelos acontecimentos do encontro com o outro, que aqui se apresenta como convocativo de deslocamentos realizados pelo/a professor/a de escolas da roça. Quando Geni-Acauã menciona o grau de intimidade que tem com as pessoas de sua comunidade e das outras localidades rurais próximas, é uma forma de fazer vir à tona seus modos de habitar a profissão docente na roça, que se dão pelo envolvimento, pelo afeto e pelas condições dialógicas que tem com as pessoas do lugar, sendo que tais condições são elementos motrizes para se manter bem e motivado como professor de escolas da roça.
Narrar o ser professor/a em comunidades rurais e produzir experiências que significam ser-docente se apresenta para o professor Geni-Acauã como um movimento que se institui das condições que encontra para ampliar os horizontes na docência e extrapolar seu fazer docente na sala de aula. Essa forma de extensão da docência para outros espaços que se dá a partir das discussões e diálogos na barbearia, praças, jardins e em outros lugares da região representa sentidos que este professor mobiliza para deixar-se ser-docente para habitar a profissão docente na roça.
Esta é a condição de demorar-se junto com as coisas e as pessoas do lugar que representam as existencialidades desse ente que se coloca como abertura para o ser-na-roça que envolve e se envolve com seu espaço habitado para produzir sentidos e significados de um ser-docente instituído por um ser-em que vai se dando e mobilizando sentidos de uma ruralidade da presença desencadeada desse ser-junto-a (HEIDEGGER, 2015). O/a próprio/a professor/a quando morador/a do mesmo lugar em que a escola está situada acaba contribuindo com o movimento de vida no lugar, realizando propostas que complementam a formação escolar de quem está matriculado/a, quem já passou pela escola e também de quem nunca acessou o espaço escolar.
A professora Di-Acauã mostra sua compreensão sobre ser professor/a da roça ampliando as narrativas sobre dificuldades e dilemas que as comunidades rurais sempre enfrentaram:
Ser professor da roça é um tanto difícil, não é tão fácil, justo por ser difícil o acesso, isso dificulta. Em tempo de chuva o acesso à escola é complicado, pois as estradas não são pistas, são estradas de chão, em tempo de sol tem a questão da poeira também. Às vezes a tecnologia não chega de forma 100%, sei que nada é 100% na escola da roça. Às vezes na escola da cidade chega primeiro para depois chegar na escola da roça. Se chega a carteira nova para a escola da cidade depois é que chega na escola da roça, mas isso já mudou também, era assim. Lembro que quando comecei a trabalhar no prédio a gente só recebia carteiras velhas, as carteiras velhas da sede que não prestavam mais ou que tinham algum parafuso quebrado, essas eram mandadas para a escola da roça e as novas ficavam na cidade. A gente sabe que hoje com o caixa escolar de cada escola isso mudou, mas mesmo assim a gente ainda vê algum ranço dessa questão. O novo é para sede e o velho, o usado vai para a escola da roça (Di-Acauã, entrevista narrativa, 2020).
A narrativa da professora Di-Acauã vai desvelando sobre as dificuldades de acesso que professores/as da roça encontram para se deslocarem de suas casas na roça para as escolas em que trabalham, assim, vai mencionando elementos e condições que cada período climático apresenta na travessia que realizam para chegarem à escola. Nesse sentido, a docência na roça vai sendo constituída em meio às temporalidades das comunidades rurais, implicando nas formar de ver, sentir, pensar e fazer de professores/as que lidam cotidianamente com as condições climáticas do nosso semiárido e com aquilo tudo que se convencionou para a profissão docente na roça.
Sendo assim, há uma situação que já é bem peculiar às escolas de comunidades rurais: a ausência de material didático que considere as necessidades desse contexto, falta de equipamento pedagógico e mobiliário decente para o desenvolvimento de propostas pedagógicas com inserção tecnológica, ou seja, professores/as de escolas da roça são provocados o tempo inteiro a fazerem das ausências movimentos de insurgências. Fazer das ausências movimentos de insurgências significa aqui pensar pedagogias específicas que não aprisionem as pessoas ao que tem sido imposto por um sistema capitalista que hegemonicamente se utiliza da falta para subalternizar pessoas e, com isso, reforçar ideais de exploração humana e dos espaços da natureza onde essas pessoas vivem. É com isso que são reforçados pensamentos de escassez a respeito do que pode contemplar ou não as escolas da roça. Isso por conta do histórico de negação que os espaços rurais vivenciaram ao longo dos tempos, na medida em que estas localidades eram, e ainda são, espaços daquilo que não tem mais serventia na cidade ou até mesmo serem considerados sem necessidade de ter. Isso é uma condição de ausência conforme os entendimentos de quem não vive na roça e quer fazer imposições de como devam ser os espaços rurais.
Pensar a escola da roça como lugar de escassez é contribuir com estruturas que se sustentam hegemonicamente em uma realidade marcada pela ausência de políticas públicas e oferecimento de serviços públicos de qualidade e que, verdadeiramente, cheguem às escolas das comunidades rurais. Vivenciar ao longo de uma história de vida-profissão a sentença de que “o novo é para sede e o velho, o usado vai para a escola da roça” é resistir a uma estrutura ideológica que quer acabar com sentidos que as pessoas da roça produzem para habitar seus espaços, numa tentativa incessante de eliminar as subjetividades de um povo, de uma tradição, de um lugar de vida. Fazer o movimento contrário a tudo isso que está posto para essa realidade é, sem dúvida, insurgir na precariedade, na falta e na ausência, se utilizando dos próprios sentidos de habitar a roça e não aceitar condições indignas para si e para as pessoas de seu lugar. Uma ruralidade da presença provoca as insurgências quando nós homens, mulheres, meninos/as e idosos/as da roça nos fazemos abertura para o ser-na-roça que se demora nas paradas para irromper-se.
A professora Di-Acauã narra como os processos de negação e subalternidade se constituem quando se trata da manutenção do espaço físico da escola da roça e da organização básica deste espaço para a oferta de uma educação de qualidade. Mesmo tendo algumas modificações em relação à forma de pensar as escolas da roça e a manutenção de seus espaços, ainda há um reforço da não valorização destes espaços, instaurando concepções equivocadas sobre a roça e quem habita este lugar.
Fernandes e Molina (2004, p. 37) em proposição sobre a ruptura com o paradigma da Educação Rural, evidenciam que a associação de territórios rurais a um espaço vinculado ao atraso, à escassez de recursos foi sendo sustentado historicamente por uma “base do pensamento latifundista empresarial, do assistencialismo, do controle político sobre a terra e as pessoas que nela vivem”.
Entendo que com os processos de negação e subalternidade da escola da roça em relação à escola da cidade, é deixada de lado a dignidade humana das pessoas que vivem em espaços rurais, instaurando um movimento de deslegitimação desses seres como sujeitos de direito e, também, de seus saberes e tradições que são elementares para as produções de sentidos do habitar a roça.
Esse movimento de deslegitimação que acontece com as pessoas da roça e o negligenciamento de direitos que possibilitam melhores condições de acesso a políticas públicas que respeitam os contextos de vida das pessoas da roça tem descaracterizado a escola da roça como espaço em que as políticas públicas e a gestão da localidade se fazem presentes e, muitas vezes, acabam representando a concepção de escola e educação que a gestão tem. Isso está evidenciado na narrativa que a professora Damiana-Acauã apresenta:
[...] estou trabalhando ainda na sala de aula. Já fiz dois cursos de Pós-graduação. Venho trabalhando aqui na sala de aula, mas ultimamente venho assim um pouco chateada com a escola do campo, porque pela atenção dos pais que não valorizam, estou sentindo que eles não valorizam a escola do campo. Eles querem que tenha televisão, essas coisas assim, lugar para brincadeira e a escola do campo não está tendo. Por mais que o professor busque fazer um trabalho adequado, mas está faltando a valorização dos pais. Eu vejo que há uma necessidade dos pais e mães valorizarem mais, porque a gente busca fazer um bom trabalho, mas eles não querem ver isso (Damiana-Acauã, entrevista narrativa, 2019).
Buscar formação para atuar na docência é uma realidade que se dá paralela ao exercício da profissão, principalmente para professoras da roça, como é o caso de Damiana-Acauã, que enfatiza seu empenho e dedicação como professora de turmas multisseriadas na escola da roça. Em sua narrativa a professora faz menção à não valorização da escola na comunidade pelo lugar da exigência da família por um espaço que se assemelhe às escolas urbanas. Entendo que quando há uma comparação da escola da roça com a escola da rua, sem considerar as especificidades e o contexto de cada comunidade e região, se torna um processo perverso de sobreposição do urbano com o rural, na perspectiva de que o melhor e mais estruturado se encontra em espaços urbanos. Infelizmente essa concepção ganha ênfase quando há o reforço do binarismo urbano/rural. Neste caso, habitar a profissão docente na roça é lidar com essas questões que estão presentes nas localidades rurais, onde se faz importante repensar o lugar da escola e da profissão docente na roça tomando as formas de habitar a roça como possibilidade de valorização da potência que a escola da roça tem para cada comunidade rural.
Como superação de situações como estas, muitas pessoas da roça têm buscado construir outros sentidos para existirem em meio às condições impostas, constituindo movimentos que afirmam as condições de vida e existência por um lugar outro que possibilita a superação dos processos de negação e subalternidade, considerando aquilo que as comunidades podem produzir com as relações de subjetividade e intersubjetividade que emergem do e no envolvimento com as coisas do lugar, gerando disso mobilizações políticas e sociais que se contrapõem às estruturas hegemônicas que geram a não-condição. Cabe destacar que, a luta e a resistência das pessoas da roça se estruturam como movimento político que contesta as concepções de exploração dos espaços rurais e dos grupos que habitam esse lugar. Isso se apresenta como “um novo paradigma que vem sendo construído por esses grupos sociais” (FERNANDES; MOLINA, 2004, p. 37).
É neste sentido que sou provocado a compreender minhas formas de habitar a roça na profissão docente a partir dos modos de ser-docente que professores/as da roça produzem e narram como o faz, revelando o ser-na-roça numa ruralidade da presença que nos convoca pelos acontecimentos na roça. Com isso, busco refletir sobre as (in)significâncias que tomo como condição de desver a roça, pensando minhas formas de habitar poeticamente a roça como possibilidade de compreender o ser-na-roça que se revela com minha existência neste lugar. Busco compreender como esses/as professores/as significam suas vidas na comunidade em que vivem, assim como produzem seus modos de habitar esse lugar e a profissão docente com aquilo que fazem e consideram importante para sua escola e comunidade.
Considerações finais
A pesquisa narrativa se fez movimento de insurgência por evidenciar, neste estudo, formas do fazer e narrar como possibilidade de desvelamento do ser-docente de professores/as da roça presentificados a partir das relações que são produzidas no interior das escolas da roça, significando suas experiências para habitar a roça e a profissão docente nos espaços rurais. As narrativas se fizeram processos de abertura para a compreensão de como professores/as da roça afirmam uma vida autêntica por ser possibilidade de existir como ser de experiência provocado a pensar sobre os percursos de vida-formação-profissão constituídos numa presencialidade do ser-na-roça.
Percebi que a relação com a docência na roça toma dimensões que acolhem o ser-docente na roça que vai sendo revelado com o envolvimento que professores/as da roça constroem com o lugar e com sua comunidade, conforme seus modos de compreensão do espaço habitado e sentidos que mobilizam para produzir suas existencialidades na roça. A experiência do ser-docente de professores/as da roça vai sendo constituída em paralelo aos movimentos de luta, labuta e resistência que desenvolvem como forma de defender a permanência da escola nas comunidades rurais por entenderem a potência que este espaço representa para essas comunidades, sendo que sua existência é a legitimação de respeito aos direitos dos povos do campo e representa possibilidade de ser-mais numa condição fundada pela ruralidade da presença.
Essas experiências do ser-docente também vão sendo produzidas conforme os modos que cada professor/a mobiliza e traduz os sentidos dos acontecimentos que os/as envolvem nesse processo de habitar a roça. Isso possibilita condições para trans-ver o território habitado e a profissão docente na roça, revelando o ser-na-roça a partir do ser-aí constitutivo dos entes desses/as professores/as. É desse movimento que a presentificação do ser-na-roça vai se fazendo numa constância dos acontecimentos em espaços rurais e propõe-se atravessamento da docência nas escolas da roça, instituindo pedagogias insurgentes produzidas no envolvimento com o outro a partir de compreensões que cada professor/a constrói com a experiência de habitar a roça e a docência na roça.
As pedagogias insurgentes que são produzidas pelos atravessamentos da docência nas escolas da roça, se instituem aqui como movimento dialógico que se dá no seio das comunidades e, são produções realizadas a partir de uma ruralidade da presença que permeia as relações de mulheres, homens, meninos/as e idosos/as em seus processos de abertura conforme como instituem o ser-na-roça que convonca-os/as a se fazerem abertura pelo lugar das ausências, que em muitos momentos, significaram possibilidade de reinvenção do lugar habitado e dos modos de desenvolver a docência na roça.
Referências
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Notas
[i] O vocábulo “roça” é tomado ao longo deste texto como uma ruralidade específica no âmbito das ruralidades contemporâneas, por ser defendida como termo ainda presente nos contextos linguísticos das pessoas de algumas regiões do Nordeste, principalmente das localidades rurais situadas no interior dos estados, com sentidos e significados produzidos pelos povos que habitam os espaços rurais em que a pesquisa foi desenvolvida.
[ii] Este termo é apresentado a partir dos modos de ser-viver-na-roça, se colocando aqui como um constructo que tem inspiração na proposta de ser-sendo (HEIDEGGER, 2015).
[iii] Esse termo está construído a partir das discussões que realizei com base nos escritos de Heidegger a partir da primeira tradução para o português feita por Marcia Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2015), para pensar como as existencialidades do ente constitui o ser-na-roça, conforme o que vai se dando na vida dos sujeitos que habitam os territórios rurais instituídos nos modos de ser-viver-na-roça.
[iv] O termo autobioformação é reorganizado por Pineau (2016), que desmembra a palavra (auto)biográfica, tendo gráfica substituída por formação e a retirada dos parênteses de (auto) com o intuito de emancipar as narrativas da base do gráfico para pensar possibilidades de superação de um grande desafio: pensar a formação docente parametrizada na “[...] formação da vida e de sua própria vida por si mesmo” (PINEAU, 2016, p. 11).
[v] Esse banco de dados integra os sistemas de informação de teses e de dissertações que existem em muitas instituições de ensino e de pesquisa no país, estimulando a publicação e o registro dessas produções por meio eletrônico. Atualmente, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) tem 15 anos de existência e abriga 348.116 dissertações e 169.522 teses de 119 instituições.
[vi] Os nomes dos/as docentes narradores/as na pesquisa são fictícios, atendendo às orientações do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com Parecer Consubstanciado do CEP de nº 3.520.118.
[vii] Os codinomes surgem a partir da inspiração na poesia de Manoel de Barros (2009) e faz referência a um pássaro de tamanho médio, sendo do grupo dos falcões. Seu canto é tomado como inspiração para muitas lendas folclóricas de nossa região e de outros lugares do país.