Contradições históricas em torno da educação básica no Brasil: a escola como assunto de governo

Historic contradictions regarding Brazil basic education: school as a government subject

Contradicciones históricas en torno a la educación básica en Brasil: la escuela como asunto de gobierno

 

Luane Tomé

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

luanesampaioo@gmail.com

Émina Santos

Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil

emina@ufpa.br

 

Recebido em 01 de junho de 2022

Aprovado em 17 de junho de 2022

Publicado em 06 de fevereiro de 2025

 

RESUMO

O presente artigo consiste em um estudo a respeito de contradições políticas e sociais que envolveram a educação básica brasileira em sua história recente. Nosso objetivo principal é analisar as concepções de educação presentes na construção histórica da política educacional nacional, identificando os paradigmas educacionais que influenciaram de forma mais significativa essas políticas ao longo do tempo. A realização deste estudo demandou uma abordagem de natureza qualitativa, com pesquisa do tipo documental, em que analisamos todo o material específico referente à educação nas sete Constituições brasileiras por meio da técnica de análise de conteúdo. O repertório teórico que embasa essa pesquisa advém principalmente de Apple (2003), Cunha (2017) e Cury (2010). O estudo revelou a presença recorrente de três contradições estruturais na essência da política educacional nacional: relação conflituosa entre público-privado, centralização-descentralização e laicidade-ensino confessional como expressões da alternância histórica de poder entre essas duas concepções de educação no país.

Palavras-chave: Política educacional; Concepções de educação; Constituições Federais.


 

ABSTRACT

This paper consists of a study on political and social contradictions regarding the Brazilian Basic Education in its recent history. Our main objective is to analyze ideas of education historically built into the national education policy, as we also identify educational paradigms which meaningfully impacted such policies over time. Carrying out the study required a qualitative approach, with document analysis, in which we dealt with all materials related to the topic of education within the seven Brazilian Federal Constitutions, through the lens of content analysis. The theoretical framework is based on Apple (2003), Cunha (2017) e Cury (2010). The study revealed a recurring presence of three contradictionsessential to the national education policy: a conflictive relationship between the public and the private, centralization and decentralization, and secularity and confessional education as expressions of power alternation between such concepts on education in Brazil. 

Keywords: Educational policy; Concepts on education; Federal constitutions.

 

RESUMEN

El presente artículo consiste en un estudio sobre las contradicciones políticas y sociales que han involucrado la educación básica brasileña en su historia reciente. Nuestro objetivo principal es analizar las concepciones de educación presentes en la construcción histórica de la política educativa nacional, identificando los paradigmas educativos que han influenciado de manera más significativa dichas políticas a lo largo del tiempo. La realización de este estudio requirió un enfoque de naturaleza cualitativa, con una investigación de tipo documental, en la que analizamos todo el material específico referente a la educación en las siete Constituciones brasileñas mediante la técnica de análisis de contenido. El marco teórico que sustenta esta investigación proviene principalmente de Apple (2003), Cunha (2017) y Cury (2010). El estudio reveló la presencia recurrente de tres contradicciones estructurales en la esencia de la política educativa nacional: la relación conflictiva entre lo público y lo privado, la centralización y la descentralización, y la laicidad y la enseñanza confesional, como expresiones de la alternancia histórica de poder entre estas dos concepciones de educación en el país.

Palabras clave: Política educativa; Concepciones de educación; Constituciones Federales.


 

Introdução

A importância deste artigo decorre da necessidade de abordar alguns elementos da política brasileira que influenciaram e influenciam a elaboração das políticas sociais no país. Buscamos analisar as concepções de educação presentes na construção histórica da política educacional nacional, identificando os paradigmas educacionais que influenciaram de forma mais significativa essas políticas ao longo do tempo. Defini-los é algo que permite apurar as contradições históricas em torno da educação básica nacional o que se revela não apenas essencial para a organização da nossa análise teórica, mas também crucial para orientar a condução metodológica desse estudo.

Para tanto, fizemos uma busca documental para elencarmos os componentes do pensamento educacional brasileiro que fossem mais significativos para a elaboração das políticas educacionais. Iniciamos a investigação por documentos estruturantes da educação nacional, mas optamos pelas sete Cartas Magnas devido sua abrangência histórica.

Todo o conteúdo referente à educação presente nas Constituições foi analisado com cautela e criticidade, levando-nos a três elementos do pensamento educacional brasileiro que se destacavam em contradições e disputas, sendo eles: preceitos cristãos, econômicos e de gestão, presentes na construção histórica e normativa da política educacional nacional. Através desses componentes, pudemos problematizar as concepções educacionais que compuseram a construção histórica da garantia do direito à educação no Brasil.

Interrogar essa questão nos remete ao ponto de partida em que os fenômenos humanos traduzem ações diversas e complexas, cujas entrelinhas estão permeadas por complexidades valorativas, políticas, culturais e ideológicas, nas quais a necessidade de desvelamento das aparências torna-se cada vez mais imprescindível para que alcancemos um entendimento contextual e verossímil das conjunturas que se apresentam.

A relevância deste estudo também se conecta aos desafios contemporâneos enfrentados pela educação no Brasil, evidenciando como as tensões históricas entre diferentes concepções de educação ainda moldam as políticas públicas atuais. Ao explorar a relação entre público e privado, centralização e descentralização, e educação laica versus confessional, é possível identificar raízes estruturais que influenciam as práticas e decisões educacionais na contemporânea.

Para a realização deste estudo investigamos as Constituições brasileiras a luz da técnica de análise de conteúdo de Bardin (2011) que nos referencia para um estudo teórico factível e viável. As categorias foram definidas após a etapa de leitura flutuante do material e os resultados foram obtidos a partir delas. A análise de conteúdo foi conduzida de maneira sistemática, priorizando categorias como preceitos religiosos, econômicos e administrativos presentes nos textos constitucionais. Esse recorte permitiu mapear, com criticidade, as interseções entre os contextos históricos e as disputas em torno da política educacional no Brasil.

Como aporte teórico utilizamos principalmente textos de três pensadores da educação que, desde o século passado, têm colaborado imensamente para a discussão do direito à educação a partir de uma perspectiva legal, histórica e filosófica. Elegemos: a obra de Luiz Antônio Cunha (2017), denominada A Educação Brasileira na Primeira Onda Laica: do Império à República, que constitui uma pesquisa de bastante fôlego sobre a estruturação de movimentos da educação laica na história da educação brasileira; a obra de Carlos Roberto Jamil Cury (2010), denominada Carlos Roberto Jamil Cury: intelectual e educador, organizada por Cyntia Greive Veiga, que é composta de texto referenciais do seu pensamento em torno do direito à educação no Brasil; e o livro de Michael W. Apple (2003), intitulado Educando à direita, que nos traz um apanhado de ligações entre mercado, religião e gestão educacional.

 

Contradições históricas em torno da educação básica

A partir de nossas reflexões pautadas nos autores acima citados, somado às leituras das Cartas Magnas, identificamos a existência, dentre muitas, de três concepções educacionais que têm assumido protagonismo recorrente ao longo da história das políticas educacionais do Brasil. São contradições que apresentam aspectos de maior ou menor força ao longo do percurso de garantia e efetivação do direito à educação no Brasil. Utilizamos essa tríade de contradições dialéticas para identificar as matrizes epistemológicas do pensamento educacional brasileiro presentes em documentos nacionais, as quais perduram até os dias atuais. São elas: a do público e do privado; a da centralização e descentralização; e da educação laica e a educação confessional.

Tarefa difícil também é separar esses três elementos devido à relação dialética que estabelecem entre si ao longo da história da educação nacional. Epistemologicamente, optamos por focalizar uma contradição por vez, para que o desenrolar do pensamento argumentativo seja construído da forma mais didática possível, sem perdermos de vista que não são processos desmembrados, mas que, seguindo a lógica dialética, pertencem ao mesmo fenômeno, por serem organicamente interdependentes.

 

Preceitos cristãos como ideologia da política educacional

Os preceitos cristãos influem na estrutura da educação nacional desde o período colonial. Nesse período, os nativos que habitavam essas terras antes da chegada dos portugueses já possuíam crenças religiosas, de diversos matizes, inclusive, politeístas. Nesse cenário, a religião cristã invade o ambiente político e ideológico da Colônia a partir de costumes dos portugueses, que trazem seus dogmas consigo e o utilizam como instrumento de dominação.

A relação orgânica da religião de matriz cristã com a educação estatal se consolida quando, a fim de estabelecer maior contato e assim utilizar a mão de obra indígena, os jesuítas utilizam métodos para desenvolver uma linguagem que permitisse comunicação verbal e o ensino de preceitos religiosos, para que tal relação acontecesse com maior cooperação dos nativos. A religião católica foi então inserida como uma espécie de objeto de estudo, que reinterpretava os elementos já existentes nas crenças nativas pelo viés e premissas do cristianismo:

 

Os jesuítas, em especial, empregaram ardilosos procedimentos pedagógicos (no sentido lato do termo), que consistiam na redefinição de elementos culturais indígenas, de modo a aproximá-los do Catolicismo, a exemplo da associação de Tupã ao deus judaico-cristão (Cunha, 2017, p. 81).

 

A catequese, portanto, representou um procedimento educacional metódico, intencional e sistemático nesse período, de modo que pretendia reformular o pensamento religioso nativo e fortalecer nele um ideal de mundo judaico-cristão1. No entanto, os indígenas demonstraram uma “forma peculiar de resistência cultural à catequese” (Cunha, 2017, p. 82), sobre a qual Padre Vieira descreve que a descrença em outros lugares ou existe ou não existe, mas no Brasil, com a catequese, eles creem e depois não mais, creem sem acreditar e, mesmo depois de crer, são incrédulos.

O poder da religião no Brasil colônia era representado pela Igreja Católica e foi pilar da escravidão (Cunha, 2017) e, mesmo com o fim do regime, manteve-se durante a Monarquia, uma vez que exercia papel de propagadora ideológica do novo regime.

No momento em que o Estado português rompe com os jesuítas, em 17592, configurou-se um enfraquecimento na relação entre essas duas instituições. Os estabelecimentos escolares que sucederam dessa separação estavam sujeitos a disputas entre o ensino laico e o confessional.

Em outro momento histórico, de 1822, no contexto de independência do Brasil, deixando de ser colônia de Portugal, identificamos a educação confessional como grande marca desse período. Sendo assim,

 

[…] quando o Brasil se tornou independente de Portugal, a educação pública era toda de caráter religioso católico. Longa foi a luta contra a prevalência religiosa nele – primeiramente, para que o conteúdo protestante pudesse ser alternativo ao católico, depois, que o Ensino Religioso fosse facultativo e, por fim, sua retirada das escolas públicas. Foi uma longa luta, entremeada de muitas negociações e não poucos recuos. A religião foi suprimida do ensino público com a queda da Monarquia, mas logo depois voltou a ele. Daí́ que falar de luta pela autonomização da educação diante da religião no Brasil do século XIX adquire hoje pleno sentido (Cunha, 2017, p. 9).

 

Utilizamos o trecho acima como forma de ilustrar amplamente o que diz respeito ao ensino confessional desde a Colônia. O movimento de acordos, disputas e negociações entre Estado e Igreja é antigo e sempre revelou uma dinâmica de ganha e perda do poder entre os envolvidos, influenciando diretamente o modo de garantir e efetivar o direito à educação.

Tempos depois, destaca-se uma outra vertente cristã que vem ganhando força em tempos mais recentes: a da religião evangélica. Ao tratar da polarização social, Apple (2003) nos apresenta esse modo de interferência religiosa na educação. De acordo com ele,

 

[…] uma fração significativa deles[evangélicos] tende a acreditar que as escolas públicas devem instruir as crianças com valores claramente cristãos. Mas é importante compreender que, para os evangélicos, essa não é uma tentativa de dominar os outros. É, isso sim, uma crença sólida e profundamente arraigada de que o mundo seria um lugar muito melhor se todos seguissem ‘os caminhos de Deus’ (Apple, 2003, p. 163).

 

Trata-se de um projeto que extrapola a prerrogativa do sujeito de escolher seu culto e praticar seus dogmas. Por isso, pensar a política educacional, as rotinas da escola e os valores reproduzidos nesse ambiente é tão importante e constitui, de forma cada vez mais robusta, assunto de governo.

A partir do debate sobre a presença do Estado como centralizador da política escolar, vemos que será reproduzido sempre com a presença – ora mais à mostra, ora mais às cegas – da religião, especialmente representada pelas religiões de cunho cristão. Para consolidar essas disputas, a administração escolar, posteriormente chamada de gestão, passa também por instabilidades.

 

O público e o privado como projetos tensionados de gestão das políticas educacionais: Deus e o Diabo?

Com o desenvolvimento da sociedade capitalista mais complexa, a educação passou a ser tratada para além do âmbito exclusivo da religião, tornando-se também um relevante indicador de capital, passando a fazer parte da agenda política dos debates sobre educação, na perspectiva da matriz de financiamento público e/ou privado. Outros fatores, como o mercado e interesses políticos da sociedade e de governantes, tiveram peso significativos na gestão da educação nacional. Com isso, a tensão constante entre esses elementos representou instabilidade na administração.

Além disso, a união de ideais capitalistas com a religião não é uma novidade; ao contrário, é um fenômeno que se apresenta com novas roupagens ao longo dos tempos. Apple (2003) destaca que os movimentos que procuram unir mercados capitalistas, passado romântico e Deus não são novos. Sendo assim, cristianismo e capitalismo mantém uma longa ligação histórica.

Com a onda laica da educação pública3, a educação de cunho privado passa a ser uma alternativa para a prática do ensino religioso que, por vezes, não teve que seguir as mesmas regras do ensino público. Para além da religião, o sistema privado, ao se tratar do âmbito educativo, encontra ali um ambiente fértil para o seu crescimento no mercado.

Sendo assim, é impossível problematizar sobre a educação privada sem mencionar a influência do ensino religioso na sua estrutura, mas também não podemos utilizá-lo como único argumento em torno da política educacional que passa a ser tratada como produto, pois a forma de consumo capitalista teve também seus efeitos nessa relação. Apple (2003) denomina essa questão como “relação simbiótica”, em que capitalismo e religião dão forma um ao outro.

Peroni e Caetano (2015), grandes nomes na pesquisa da relação entre o público e o privado na educação brasileira, alertam-nos para o que suas pesquisas vêm apontando. Nas palavras das autoras: “verificamos que o privado define o conteúdo do público, tanto nos aspectos de gestão quanto nos aspectos pedagógicos” (Peroni, Caetano, 2015, p. 338). Além disso, a elaboração de um currículo nacional, segundo as próprias autoras, pode significar uma possibilidade de aumentar o teor democrático se definido coletivamente e respeitando as coletividades e diversidade social do país (Peroni, Caetano, 2015). No entanto, outra possibilidade seria a da impregnação das escolhas do setor privado no ensino público, no qual

 

o privado, pela grande influência que tem no atual processo de correlação de forças, pode influenciar muito na definição do currículo nacional, o que trará consequências ainda maiores para a democratização no País, com o aumento do processo de mercadificação já em curso (Peroni, Caetano, 2015, p. 338).

 

Dessa forma, a partir dessas referências, a principal questão, quando se trata da contradição entre o público e o privado na educação, está em como o setor privado passa a controlar as escolhas para o setor público, de tal modo que interfira na garantia do direito à educação de qualidade como principal foco do ensino público, em detrimento da visão privatista que trata o ensino como mercadoria.

 

Centralização e descentralização

A partir das análises das duas contradições tratadas anteriormente – do ensino laico e o confessional, e do público e do privado –, deriva uma terceira condição contraditória por nós identificada: a da centralização e da descentralização da gestão educacional. Isso ocorre porque a competitividade entre essas instituições requer disputas entre as instituições privadas e o setor público, especialmente sobre a tomada de decisões a respeito de financiamento e gestão dessas instituições. A esse respeito, vemos como Apple (2003) sinaliza que:

 

[…] a competição feroz entre as instituições é patrocinada de tal modo que as instituições públicas são constantemente comparadas com outras privadas, supostamente mais eficientes. Por isso, mesmo que as escolas e outras instituições públicas ainda disponham de fundos suficientes fornecidos pelo Estado, seus procedimentos internos espelham, cada vez mais, aqueles do setor privado, com o argumento de que o governo não pode mais se dar ao luxo de gastar com esses serviços (Apple, 2003, p. 35).

 

Cria-se, a partir disso, uma tensão, que passa a ser estruturante entre o setor público e o privado, entre uma gestão centralizada ou descentralizada e entre o ensino confessional e o laico. Essas três contradições, que fazem parte da história do país desde o período colonial, permeiam simbioticamente a educação nacional, tornando-se, para além de uma longa tensão, assunto de governo, uma vez que envolvem toda a esfera educacional e representam uma disputa ainda maior: a de concepções de educação. Vieira (2011) trata dessa questão relacionada às políticas educacionais:

 

Revestindo-se do rótulo centralização e descentralização, as dinâmicas e embates entre poder central e poder local marcam, com efeito, a história da política educacional no Brasil, inscrevendo-se como tema chave de sua trajetória. No século XX foi tema de debate permanente entre educadores dos mais diversos matizes, tanto conservadores quanto liberais, polarizando discussões nas assembleias nacionais constituintes, particularmente no contexto da redemocratização, após o fim do Estado Novo.(p. 128).

 

Podemos identificar, portanto, a polarização ocasionada pelo processo tenso e conflituoso que permeia os embates entre centralização e descentralização quando se trata da educação nacional.

Vieira (2000) apresenta ainda que essa polarização surge da questão de divisão de responsabilidades, ou seja, da identificação para sinalizar a qual setor competem certas responsabilidades. No caso específico da educação, esse embate, de cunho político, administrativo e jurídico, se dá pela divisão dos papéis dos municípios, estados e do Distrito Federal nas funções de execução e avaliação das políticas educacionais. Essa divisão é reconhecida legalmente como Regime de colaboração e o Pacto Federativo.

Com isso, a descentralização, como o nome sugere, tende a retirar do centro, ou seja, não concentra as responsabilidades da educação somente em uma esfera da sociedade, mas a divide para que, de forma conjunta e orgânica, sejam tomadas as decisões referentes à educação. A centralização, por outro lado, tende a concentrar as decisões e tarefas referentes à educação nacional somente em uma esfera social, normalmente a do Distrito Federal.

 

Reflexões das contradições nos assuntos de governo: um enfoque a partir das Constituições brasileiras

A partir do referencial teórico até aqui constituído, selecionamos as sete Constituições Federais brasileiras como alicerce documental para que se proceda a investigação das três contradições ao longo da história do Brasil. A escolha desses documentos em específico ocorreu por serem as Cartas Magnas da sociedade e, portanto, as maiores representações sociais ao longo dos anos:

 

[…] as cartas magnas são documentos escritos para serem divulgados e incorporados à vida pública; configuram-se, portanto, como instrumentos formais de prescrição de regras que contribuíram para a formação de um aparato jurídico no País. Como elementos da administração pública, definem estratégias e registram políticas. Por isso mesmo é importante conhecê-las e analisá-las (Vieira, 2007, p. 306).

 

A relação das Constituições e sua articulação com a política educacional ocorre em razão de selecionarmos todos os trechos referentes à educação nas Cartas Magnas, trechos esses que nortearam a construção das políticas educacionais delas decorrentes, pois é das Constituições que emanam as diretrizes educacionais e princípios regentes que são esmiuçados nos documentos específicos da educação4.

Em seu texto A educação nas Constituições Brasileiras, Cury (2010) explora o acordo entre os seres sociais que, para fugir do caos e da guerra, estabelecem um contrato de base que determina regras para a convivência. A Constituição no Brasil atualmente representa esse acordo. Pela condição de Estado Democrático de Direito, fica instituída a soberania da lei e do regime de representação. Sendo assim, as Constituições são as Cartas Magnas da sociedade em questão.

Para uma perspectiva global e maior possibilidade comparativa entre os diferentes momentos históricos em que cada Constituição foi instituída, elaboramos o seguinte quadro:

 

QUADRO 1 - Características das Constituições

CONSTITUIÇÃO

 

PERÍODO DE VIGÊNCIA

FORMA DE GOVERNO

ORIGEM

QUANTIDADE DE ARTIGOS

QUANTIDADE DE ARTIGOS QUE TRATEM DA EDUCAÇÃO

1824

65 anos

Monarquia

Outorgada

174 artigos

1 artigo

1891

39 anos

República

Promulgada

91 artigos

3 artigos

1934

03 anos

República

Promulgada

187 artigos

14 artigos

1937

08 anos

República

Outorgada

187 artigos

10 artigos

1946

20 anos

República

Promulgada

222 artigos

13 artigos

1967

02 anos

República

Promulgada

189 artigos

5 artigos

1988

30 anos

República

Promulgada

114 artigos

16 artigos

Fonte: Elaborado a partir dos dados disponibilizados pelo Senado Federal.

 

A primeira Constituição a compor nosso referencial documental é a de 1824, chamada de “Constituição Política do Império do Brazil” (Brasil, 2001a [1824]), datada de março do mesmo ano. Esse documento foi elaborado por um Conselho de Estado e outorgada pelo imperador Dom Pedro I. Todo o texto Constitucional desse documento, que representa a primeira Carta Magna do país, é incialmente descrito “em nome da Santíssima Trindade”, evidenciando a forte ligação entre religião e o governo monárquico.

O documento possui 179 artigos e teve 65 anos de vigência na história do Brasil. Dentre todas as Constituições, essa é a que possui menor texto referente à educação, que à época era tratada como Instrucção Pública. Somente dois parágrafos do último artigo são direcionados a esse conteúdo. Através dele, fica declarada “a instrucção primária, e gratuita a todos os cidadãos” como direito civil e político inviolável (Brasil, 2001a [1824]).

A instrução pública é, desde o início desse recorte temporal, considerada um direito. Naquele período histórico, os cidadãos de direito eram todos aqueles nascidos no Brasil, fossem ingênuos ou libertos; os filhos de pai brasileiro, nascidos em país estrangeiro, que viriam ou não a residir no país; filhos ilegítimos de mães brasileiras que residissem no Império; todos os nascidos em Portugal que residiam e continuaram no Brasil após Proclamação da Independência das províncias; além dos estrangeiros naturalizados.

A Constituição de 1891, da República dos Estados Unidos do Brasil foi promulgada no dia 24 de fevereiro de 1891, com 91 artigos e é apresentada com o seguinte texto:

 

Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (Brasil, 2001b [1891]).

 

Destacamos esse trecho, pois nos chamou atenção o fato de que, entre todos os documentos selecionados, essa foi a única Carta Magna que não mencionou Deus em sua apresentação – e em nenhuma parte de seu corpo textual –, contrariando o que identificamos na referência anterior. Além disso, todas as que a sucedem são indicadas “sob proteção de Deus” logo em sua apresentação.

A terceira Constituição, que data de 16 de julho de 1934 (Brasil, 2001c [1934]), e a quarta, de 10 de novembro de 1937 (Brasil, 2001d [1937]), possuem a mesma quantidade de artigos: 187, mas diferem na quantidade de artigos relacionados à educação; sobre esses, há 14 e 10 artigos, respectivamente. Mais diferenças permeiam essas duas Cartas Magnas, que pouco têm em comum; a primeira foi promulgada e a segunda, outorgada. O curto período entre elas, de apenas três anos, revela as instabilidades governamentais da época. Isso ocorreu devido ao golpe de Estado, ocorrido em 1937, que implantou nossa primeira ditadura e fez com que a Constituição de 1937 invalidasse a de 1934.

No dia 18 de setembro de 1946, foi promulgada quinta Constituição dos Estados Unidos do Brasil (Brasil, 2001e [1946]). Com 222 artigos, é a mais longa Constituição de todas, além de ter sido elaborada em um período de tentativa da redemocratização do Brasil e conter 13 artigos relacionados à educação. Seguido disso, em 24 de janeiro de 1967, o “Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a [...] Constituição do Brasil” (Brasil, 2001f [1967]). A principal característica dessa Carta Magna é seu contexto, que era o de Ditadura Militar no Brasil. Com 189 artigos ao total, observamos uma queda drástica no número de artigos relacionados à educação, que passaram a ser somente cinco.

Por último, trazemos a Carta Magna que rege o Brasil até aos dias atuais. Sendo posterior a um período de golpe militar, tem a intenção de mais uma vez redemocratizar a sociedade e é conhecida como “Constituição Cidadã” (Brasil, 2003 [1988]). Promulgada em 5 de outubro de 1988, com 114 artigos, 16 deles se relacionam com a educação.

No texto A educação e a Nova ordem Constitucional, Cury (2010) realiza um levantamento de mudanças no âmbito educacional, as quais foram demarcadas a partir da Constituição de 1988. É nesse momento que o direito à educação é instituído pela primeira vez como um direito público e subjetivo. Além disso, é o primeiro momento em que a gratuidade do ensino é definida por um documento constitucional.

Tendo então caracterizado preliminarmente o espírito de Estado-nação de cada Constituição, vamos identificar, nos textos que tratam da educação em cada uma delas, as três contradições que nos propusemos a trabalhar: a do ensino confessional e o laico; da educação pública e a privada; e da centralização e descentralização da gestão educacional.


 

Educação laica e educação confessional

Quando se menciona a laicidade na educação em tensão com o ensino religioso, remontamos à história do Brasil desde a chegada dos jesuítas. No que refere à presença dessa questão nos textos das constituições, salta aos olhos que essas tensões são mais nítidas. Quando trata da primeira onda laica no país, proposta por Cunha (2017), o referido autor aponta o curioso fato de que, após conseguir determinar oficialmente a laicidade da educação, por meio da Constituição de 1891, em um país que havia sido colonizado e influenciado durante vários séculos pela Igreja Católica, observa-se posteriormente o recuo dessa medida nas Cartas Magnas seguintes. A exemplo de:

 

Art 153 - O ensino religioso será de freqüência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais (Brasil, 2001c [1934]).

 

O trecho acima foi retirado da Constituição de 1934, que volta atrás quanto à mudança anterior de manter a laicidade da educação. As Cartas que a sucedem também perdem o caráter inovador do ensino leigo, que foi estabelecido somente pela Constituição de 1891.

A Constituição de 1824 não demonstra nenhum indicativo a respeito da questão do ensino religioso. Já a Constituição de 1891 declara que "será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (Brasil, 2001b [1891]). Portanto, o ensino leigo, conhecido atualmente como ensino laico, é previsto para os estabelecimentos de ensino, sem a menção de como isso será previsto para a iniciativa privada.

O documento constitucional de 1934 já expõe mais detalhes sobre essa contradição: “o ensino religioso será de freqüência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais” (Brasil, 2001c [1934]).

Na década de 1930, o ensino religioso, mesmo que com frequência facultativa, ocupava carga obrigatória em diversas organizações escolares. Em 1937, esse ensino baseado em premissas religiosas passa a ser contemplado pelos cursos ordinários, mas sem demandar a obrigatoriedade dos mestres, nem a frequência dos alunos

A Constituição de 1946 apresenta o ensino religioso como disciplina das escolas oficiais, sendo ministrada de acordo com a confissão religiosa do aluno, desde que seja aceito pelo seu representante legal (Brasil, 2001e [1946]). Em 1967, a Carta garante como princípio e norma que: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio” (Brasil, 2001f [1967]). O texto constitucional de 1988 nos traz a mesma afirmativa, mas, em vez de “grau primário”, o texto foi adaptado para “ensino fundamental”, e “escolas oficiais” foram substituídas por “escolas públicas” (Brasil, 2003 [1988]).

A partir dos estudos de Cunha (2017) identificamos que a religião pode ser ilustrada como um elemento estruturante da história da política educacional brasileira, no que tange essa contradição nesse estudo, compreendemos que os documentos constitucionais conseguem expressar a trajetória de avanços e retrocessos no que diz respeito a tentativa de laicidade da Educação, uma vez que esse processo não foi linear.

 

A relação entre o público e o privado

A educação pública, por princípio e materialidade, existe em tensão com a educação privada, uma vez que o ensino privativo, enquanto movimento, passa a exigir mais espaço nos assuntos de governo e a demandar mais autonomia. Para Apple (2003), existe uma grande comoção de várias instituições, como a mídia, as igrejas, partidos políticos e intelectuais, para discutir e tentar resolver o que há de disfuncional com a educação, principalmente com a educação pública.

A questão da educação como um produto a ser comercializado atinge também a sociedade, pois “para muitíssimos dos eruditos, políticos, dirigentes de grandes empresas e outros, a educação é um negócio e não deve ser tratado de forma diferente de nenhum outro negócio” (Apple, 2003, p. 1).

Quanto ao histórico legal da relação entre o público e o privado na educação nacional, vamos percorrer essa trajetória por meio das Constituições do Brasil. A Constituição de 1824, ainda no período imperial, não demonstra tal relação; ao contrário, o pouco texto que remete ao campo educacional indica uma educação gratuita a todos: “XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos” (Brasil, 2001a [1824]).

A Constituição de 1891 não indica nem a educação como pública e gratuita nem a privatização do ensino. Já o documento constitucional de 1934, datado na Segunda República, garante a educação como direito de todos, a ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos. No artigo 50 do referido documento, é garantido que o Plano Nacional de Educação a ser elaborado deve obedecer às seguintes normas:

 

a) ensino primário integral gratuito e de freqüência obrigatória extensivo aos adultos;

b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível;

c) liberdade de ensino em todos os graus e ramos, observadas as prescrições da legislação federal e da estadual;

d) ensino, nos estabelecimentos particulares, ministrado no idioma pátrio, salvo o de línguas estrangeiras;

e) limitação da matrícula à capacidade didática do estabelecimento e seleção por meio de provas de inteligência e aproveitamento, ou por processos objetivos apropriados à finalidade do curso;

f) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente quando assegurarem. A seus professores a estabilidade, enquanto bem servirem, e uma remuneração condigna (Brasil, 2001c [1934]).

 

Sendo assim, indicam a tendência à gratuidade do ensino, a fim de torná-lo mais acessível. Em simultâneo, também reconhecem as instituições particulares e indicam normas para seu funcionamento, como o ensino ministrado no idioma pátrio e o estabelecimento, pela instituição, de estabilidade aos professores com remuneração digna. Essa relação entre o público e o privado, nesse documento, pode ser demonstrada como ainda mais próxima a partir do exemplo do artigo 154, que, ao garantir a isenção de tributos aos estabelecimentos escolares, abrange “estabelecimentos particulares de educação, gratuita primária ou profissional, oficialmente considerados idôneos” (Brasil, 2001b [1891]).

A Constituição de 1937 nos apresenta uma outra forma de relação entre o público e o privado. Há importante destaque para a função do Estado em proteger a infância e a juventude. Para isso, no artigo 127, é destacado que “aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência e educação da sua prole” (Brasil, 2001d [1937]).

A indicação do Estado como um auxiliador nos faz questionar a existência de outra forma de pensar a educação, se não a educação gratuita. No decorrer do documento, podemos identificar que:

 

Art 128 - A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares.

É dever do Estado contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro, favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e de ensino (Brasil, 2001d [1937]).

 

Com isso, podemos perceber que, mesmo com o ensino livre à iniciativa pública e à privada, além da individual, a atuação do Estado é primordial para a organização do ensino, pois:

 

Art 129 - A infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais (Brasil, 2001d [1937]).

 

Outro achado importante no documento é que, mesmo com a afirmação do Estado em fundar instituições de ensino e atuar no auxílio e proteção da infância e da juventude, a educação nacional, à época, evidencia o enfraquecimento da atuação na promoção do ensino, não só por meio das instituições particulares, mas também pelo que é caracterizado como solidariedade dos menos para com os mais necessitados. Isso ocorreria por meio da contribuição mensal para a caixa escolar, como se observa a seguir:

 

Art 130 -– O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar (Brasil, 2001d [1937]).

 

Na Constituição seguinte, de 1946, a educação é concebida como direito de todos e que poderá ser ministrada no lar e na escola. Nesse documento, a relação entre o público e privado é bem mais evidenciada: “Art 167 - O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem” (Brasil, 2001e [1946]).

Já a Carta de 1967, fruto de um contexto de Regime Militar, apresenta-nos a iniciativa privada ganhando mais espaço no setor educacional. Desde que respeitando as normais legais estipuladas pelo Estado, o ensino é tido como livre à iniciativa privada. O ponto diferencial dessa relação em comparação com os documentos anteriores é o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos à iniciativa privada, previsto por meio do artigo 168 do mesmo documento (Brasil, 2001e [1967]).

Na Constituição Cidadã de 1988, ainda vigente, a educação passa a ser considerada direito de todos, mas sob responsabilidade do Estado e da família, com colaboração da sociedade para desenvolver pessoas para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.

Quanto ao fato de a iniciativa privada ganhar espaço no âmbito educacional, um dos princípios do artigo 206, que discorre a respeito das bases para o ensino, é: “o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (Brasil, 2003 [1988]). Além disso, no artigo 209, está presente o ensino livre à iniciativa privada, desde que seguindo as normas gerais da educação e sob autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Ao passo que a Constituição busca garantir uma educação pública e gratuita, ela também abre espaço para a atuação da iniciativa privada. Em relação ao repasse de recursos públicos para a educação, mais uma vez conseguimos analisar a presença dessa dinâmica entre público e privado. De acordo com o documento:

 

Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:

I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;

II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.

§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade (Brasil, 2003 [1988]).

 

Com essa abertura legislativa o cenário educacional abriu espaço para que os recursos públicos fossem destinados a escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, ampliando a influência do setor privado. Nessa relação conseguimos identificar a “relação simbiótica” que é destacada por Apple (2003) uma vez que esse processo de privatização não é fruto somente de dinâmicas de mercado, mas também de políticas neoliberais que passam a tratar a Educação como um serviço a ser oferecido ao invés de um direito universal.

Diante disso, a contradição entre o público e o privado perpassa por muitos documentos constitucionais. Essa relação vem sendo marcada pela intencionalidade de atuação do Estado nessa esfera, na maioria das circunstâncias apoiando mais a iniciativa privada.

 

Centralização e descentralização na educação

A relação de contradição entre centralização e descentralização no que se refere à educação no Brasil remete diretamente aos Regimes de governo que se faziam presentes em cada momento. Tendo um olhar a partir das Constituições, isso fica mais inteligível. As próprias datas em que as Cartas foram promulgadas ou outorgadas conseguem expressar essa instabilidade.

O curto período de vigência de algumas Constituições, como as de 1934 e 1967, chamam atenção. Suas origens nos revelam alternância entre tentativas de instalação de regimes ditatoriais e regimes democráticos, que se intercalaram pela História do Brasil.

Esses regimes apresentam características diferentes, pois os regimes ditatoriais tendem a serem mais rígidos, centralizadores e autoritários, ao passo que o regime democrático tende a ter maior participação social e descentralização. Essas divergências foram nitidamente incorporadas por seus regimes nas Cartas Magnas, destacando então interferências do Governo em Políticas e documentos de Estado – no presente caso, trata-se do documento mais importante da nação. No que se refere à educação, o Estado ora assumia um perfil centralizador, ora descentralizador das responsabilidades educacionais.

No que diz respeito à situação contraditória da centralização e descentralização nos textos constitucionais, a Constituição de 1824 não faz menção a esse processo, uma vez que o texto referente à educação possui somente dois artigos. Já no documento de 1891, fica instituída a responsabilidade do congresso em prover a instrução secundária no Distrito Federal, além de criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados.

Naquele momento, a educação era concebida como uma responsabilidade centralizada no poder do Estado. No documento de 1934, o processo é descentralizado, e União, Estados, o Distrito Federal, Municípios e o Conselho Nacional de Educação passam a ter uma função própria. Nesse caso, a União passa a traçar as diretrizes educacionais e a fixar o Plano Nacional de Educação e a organização dos sistemas de ensino. Aos estados e Distrito Federal, fica delegada a organização dos sistemas educativos a partir do que for estabelecido pela União. Os municípios não têm função específica no documento, e o Conselho Nacional de Educação tem a função de elaborar o Plano Nacional de Educação para ser aprovado posteriormente, além de ter a possibilidade de realizar sugestões no que concerne a melhorias na educação.

Na Constituição de 1937, voltamos a observar elementos da centralização do poder relativo à educação. Nessa referência, não observamos a divisão de tarefas que contribuem para a descentralização da gestão educacional em âmbito nacional. Conseguimos identificar a função somente da União, que era: “fixar as bases e determinar os quadros da educação nacional, traçando as diretrizes a que deve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e da juventude” (Brasil, 2001d [1937]).

No documento constitucional de 1946, a União continua possuindo a função de fixar diretrizes e bases nacionais para a educação e, mais uma vez, podemos ver traços de uma descentralização da gestão educacional nacional. Dessa vez, o texto que trata das funções de cada um é mais curto e não especifica essa atuação. Enquanto a União fica responsável por organizar o sistema federal de ensino e dos territórios, os estados e Distrito Federal organizam seus próprios sistemas de ensino.

No contexto da Constituição de 1967, o texto é ainda mais direto e percebemos outra vez o aumento da centralização do poder referente à educação:

 

Art 169 - Os Estados e o Distrito Federal organizarão os seus sistemas de ensino, e, a União, os dos Territórios, assim como o sistema federal, o qual terá caráter supletivo e se estenderá a todo o País, nos estritos limites das deficiências locais (Brasil, 2001f [1967]).

 

Na Constituição de 1988, identificamos um dos maiores avanços legais relacionados à descentralização. Nesse momento, é definido que a União deve legislar sobre as diretrizes e bases educacionais. A atuação de Estados, Distrito Federal e Municípios é destacada, e pela primeira vez os Municípios têm suas finalidades expressas:

 

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

Art. 30. Compete aos Municípios:

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental (Brasil, 2003 [1988]).

 

Na identificação da contradição entre centralização e descentralização, percebemos uma inconstância significativa. Textos constitucionais que sinalizavam um processo importante de descentralização da gestão educacional nacional eram seguidos por outros com características contrárias. Isso reflete a influência da estrutura social que permeava tais contextos. Portanto, identificamos movimento de idas e vindas nesse processo que sempre esteve em disputa.

Vieira (2011) nos apresenta que essas disputas são os principais motivadores para a disputa sobre a gestão de responsabilidades da Educação.  Isso é perceptível uma vez que o modo de gerir a educação nacional se transformou ao longo das Constituições. Atualmente a Constituição de 1988 trouxe inovações ao instituir o Regime de Colaboração entre União, estados, Distrito Federal e municípios promovendo uma gestão compartilhada das responsabilidades educacionais.

 

Considerações finais

Realizamos uma breve retrospectiva a respeito das tensões em disputa na educação nacional. Para isso, utilizamos os textos referentes à educação das Constituições brasileiras, a partir da análise de três categorias contraditórias como roteiro investigativo, quais sejam: econômicas, religiosas e de educação.

A contradição entre a educação laica e a educação confessional é encontrada ao longo dos anos e dos documentos constitucionais, com exceção do texto de 1824, que não dedica muito espaço para abordar questões educacionais. Essa relação está presente em todos os documentos seguintes, nos quais encontramos algum elemento referente ao ensino religioso.

Sua presença nos textos sofreu muitas variações; por isso, encontramos a obrigatoriedade do ensino religioso e, em seguida, a disciplina de modo facultativo nas escolas públicas. O debate do ensino laico pode ser concebido a partir dos avanços em relação à não obrigatoriedade do ensino religioso como uma disciplina.

No entanto, o ensino religioso é livre à iniciativa privada por ser uma opção de quem a utiliza. Isso revela mais uma vez o maior espaço conquistado pela iniciativa privada na educação nacional. Identificamos, portanto, que essas três dicotomias selecionadas para análise se entremearam nos documentos Constitucionais brasileiros e são representativas para o estudo das disputas de poder instaladas no campo educacional.

No que diz respeito à relação entre o público e o privado na educação nacional, foi evidente o maior destaque dado ao setor privado na lógica das políticas educacionais ao longo do tempo. A educação, primeiramente representada somente como gratuita, passa a incorporar a iniciativa privada nos documentos constitucionais.

O próprio conceito de educação pública, como é conhecido atualmente, passou por um processo de amadurecimento ao longo das Cartas Magnas analisadas. Essa evolução inicialmente se dá pela garantia da gratuidade do ensino e, em seguida, o amparo governamental passa a ser concebido quase como “caridade”, visto que necessitava de um auxílio como uma “mesada” das pessoas com mais recursos financeiros para suprir as necessidades dos que não poderiam arcar com esses custos; o Estado, nesse processo, era o intermediador dessa medida, que à época se constituía como uma maneira de proteção das crianças e jovens.

Em seguida, o Estado passa a assumir um protagonismo mais importante no que diz respeito à garantia da educação pública. Assim, a Constituição de 1988 é, até o momento, o documento que melhor representa a efetivação da educação pública como direito subjetivo e dever do Estado. No entanto, em paralelo a isso, as instituições comunitárias, de cunho filantrópico e confessionais passam a receber recursos financeiros estatais, que são destinados para além da educação pública.

Por fim, a dicotomia da centralização e descentralização é a que mais sofre alterações ao longo da história. Essas mudanças não acontecem de forma linear e se constata que essa dicotomia é a que melhor representa como os diferentes interesses políticos e educacionais são incorporados nos textos referentes à educação nas Constituições.

A divisão das responsabilidades é ora concentrada no Congresso Nacional, ora dividida com os entes federados. Além disso, cada vez que identificamos maior centralização educacional, podemos relacioná-la com períodos de maior autoritarismo, a exemplo do regime militar, que remove o caráter descentralizador da gestão da educação nacional.

Em suma, o estudo permitiu identificar e discutir as principais dicotomias históricas que moldam a política educacional brasileira. Por se tratar de um estudo com documentos, não podemos concluir toda a realidade da época por meio deles, mas obtivemos uma amostra da situação política de cada época. As contribuições dessa investigação residem na sistematização da evolução histórica das políticas educacionais no Brasil ao destacar a persistência e a transformação das dicotomias estudadas.


 

Referências

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BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

 

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BRASIL. Constituições Brasileiras: 1934. vol. III. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001c.

 

BRASIL. Constituições Brasileiras: 1937. vol. IV. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001d.

 

BRASIL. Constituições Brasileiras: 1946. vol. V. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001e.

 

BRASIL. Constituições Brasileiras: 1967. vol. VI. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001f.

 

BRASIL. Constituições Brasileiras: 1988. vol. VII. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2003.

 

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação, PNE e dá outras providencias. Brasília: Presidência da República, [2014a].

 

CUNHA, Luis Antônio. A educação brasileira na primeira onda laica: do Império à República. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2017.

 

CUNHA, Luis Antônio. A entronização do ensino religioso na base nacional curricular comum. Educação & Sociedade, Campinas, v. 37, p. 266-284, 2016.

 

CURY, Carlos Roberto Jamil Carlos Roberto Jamil Cury. Intelectual e educador. Belo Horizonte, Autêntica, 2010.

 

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: M. Fontes, 1999.

 

LIMA, Rita de Lourdes. O imaginário judaico-cristão e a submissão das mulheres. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 9., 2010, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2010.

 

PERONI, Vera Maria Vidal; CAETANO, Maria Raquel. O público e o privado na educação-Projetos em disputa? Retratos da Escola, Brasília, v. 9, n. 17, 2015.

 

VIEIRA, Sofia Lerche. Política Educacional em Tempos de Transição (1985-1995). Brasília: Plano, 2000.

 

VIEIRA, Sofia. Lerche. Poder local e educação no Brasil: dimensões e tensões. RBPAE, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 123-133, jan./abr. 2011.

 

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Notas

1 De existência de um Deus-Criador, que, associado à uma figura masculina e europeia (LIMA, 2010), não proporciona reconhecimento de si dos indígenas pelo pensamento religioso formulado, colocando-os em posição de subalternos.

2 Período da Reforma Pombalina.

3 Cunha (2017), no livro intitulado O Brasil na primeira onda laica, explica como o processo de secularização ganhou força no país e foi coroado com a Constituição de 1891, tornando a educação pública leiga. No entanto, enquanto um processo de disputa entre Estado laico e Estado em simbiose com Igreja Católica, a laicidade perde influência. Esse movimento é chamado pelo autor de “onda laica” devido a sua ascensão e declínio.

4 Em termos de base teórica para a escolha das Constituições como elementos norteadores deste capítulo, seguimos a teoria da pirâmide de Kelsen (1999), que estabelece a hierarquia das leis e considera uma Constituição um subsídio central para outros documentos normativos de diferentes áreas. No caso dessa pesquisa, demos enfoque ao material educacional, a partir do qual foi possibilitada a elaboração de leis, como a Lei de Diretrizes e Bases, e documentos normativos, como a Base Nacional Comum Curricular.