Relações de poder na inserção profissional de professores na carreira docente
Relaciones de poder en la inserción profesional de los docentes en la carrera docente
Power relationships in the professional insertion of teachers in the teaching career
Universidade do Estado da Bahia, Caetité, BA, Brasil.
garaujo@uneb.br
Recebido em 31 de maio de 2022
Aprovado em 24 de fevereiro de 2023
Publicado em 22 de fevereiro de 2024
RESUMO
Este artigo elege como foco central das discussões as relações de poder que atravessam a inserção de professores iniciantes na carreira docente. Objetiva analisar as táticas de poder que são postas em ação para governar a condução das condutas desses docentes, visando à sua constituição profissional. Para tanto, este artigo toma como inspiração o referencial teórico-analítico de Michel Foucault. Para a produção de dados e informações sobre o objeto, o estudo fez uso de grupos de discussão com professores iniciantes e experientes que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental de escolas públicas municipais de Caetité, no Estado da Bahia. Os achados da pesquisa evidenciaram que as relações de poder, no começo da profissão docente, mobilizam as táticas de desestabilização e de recomposição do corpo dos professores iniciantes. Em ação, essas táticas de poder buscam constituir profissionais da docência flexíveis e habilidosos para o desempenho de múltiplas práticas de aprendizagem, de cunho neoliberal, na escola contemporânea.
Palavras-chave: Relações de poder; Professores iniciantes; Governo das condutas.
RESUMEN
Este artículo escoge como foco central de las discusiones las relaciones de poder que permean la inserción de profesores principiantes en la carrera docente. Objetiva analizar las tácticas de poder que se ponen en acción para gobernar la conducta de estos docentes, visando su constitución profesional. Para eso, este artículo toma como inspiración el marco teórico-analítico de Michel Foucault. Para producción de datos e informaciones sobre el objeto, el estudio utilizó grupos de discusión con profesores principiantes y experimentados que actúan en los últimos años de la Educación Primaria en escuelas públicas municipales de Caetité, en el Estado de Bahía. Los resultados de la investigación mostraron que las relaciones de poder, en el inicio de la profesión docente, movilizan tácticas de desestabilización y recomposición del cuerpo de profesores principiantes. En acción, estas tácticas de poder buscan crear profesionales docentes flexibles y capacitados para realizar múltiples prácticas de aprendizaje, de naturaleza neoliberal, en la escuela contemporánea.
Palabras clave: Relaciones de poder; Profesores principiantes; Gobernanza de la conducta.
ABSTRACT
This article chooses as the central focus of the discussions the relations of power that cross the insertion of beginning teachers in the teaching career. It aims to analyze the tactics of power that are put into action to govern the conduct of these professors, aiming at their professional constitution. For that, this article takes as inspiration the theoretical-analytical framework of Michel Foucault. For the production of data and information about the object, the study made use of discussion groups with beginning and experienced teachers who work in the final years of Elementary School in municipal public schools in Caetité, in the State of Bahia. The research findings showed that power relationships, at the beginning of the teaching profession, mobilize tactics of destabilization and recomposition of the body of beginning teachers. In action, these power tactics seek to create flexible and skilled teaching professionals for the performance of multiple neoliberal learning practices in contemporary schools.
Keywords: Power relationships; Beginning teachers; Government of conduct.
Introdução
Este artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado[1] que tomou como objeto de estudo a inserção profissional de professores na carreira docente. O eixo central das discussões aqui apresentadas são as relações de poder que atravessam e constituem os professores iniciantes na carreira. Inspirado nas teorizações do filósofo francês Michel Foucault, intenciono argumentar que as relações de poder mobilizam uma feixe de táticas para fazer funcionar a condução da conduta dos professores nos seus primeiros anos de exercício da profissão docente, visando à sua constituição profissional para o desempenho de práticas docentes múltiplas na escola contemporânea.
Nos últimos anos, os estudos sobre o desenvolvimento profissional docente abriram espaço para a investigação de questões mais específicas da profissão docente, como a inserção profissional de professores na carreira. Os estudiosos que têm se debruçado acerca desse tema evidenciam que a inserção de professores na carreira é uma etapa significativa para a constituição profissional do docente. É no começo da profissão que eles “experimentam os problemas com maiores doses de incertezas e estresse, devido ao fato de que eles têm menores referências e mecanismos para enfrentar essas situações” (VAILLANT; MARCELO GARCÍA, 2012, p. 123). Nas palavras de Cruz, Farias e Hobold (2020, p. 3), a inserção na carreira é um período “decisivo na história profissional do professor e com repercussões determinantes no seu futuro e na sua relação com o trabalho”.
A literatura especializada da área de Educação costuma caracterizar os primeiros anos na profissão docente com a expressão choque de realidade para designar as condições a partir das quais os professores iniciantes constatam as divergências ou contradições entre as representações da docência adquiridas no percurso da formação inicial e a realidade que experimentam no início da profissão. Veenman (1988), por exemplo, ressalta que esse hiato reflete a complexa e permanente realidade da vida escolar que se coloca para os professores iniciantes, dia após dia.
Do mesmo modo, Silva (1997, p. 54) afirma que a expressão choque com a realidade, aplicada aos docentes em início de carreira, “traduz todo o impacto por eles sofrido quando iniciam a profissão e que poderá perdurar por um período de tempo mais ou menos longo”. Já nos dizeres de Cavaco (1995, p. 179), “trata-se de um período de tensões, de desequilíbrios e de reorganizações frequentes, de ajustamentos progressivos das expectativas e aspirações ocupacionais ao universo profissional”. Tardif (2014), por seu turno, faz uso dos termos choque com a realidade, choque de transição ou choque cultural para nomear o “confronto inicial com a dura e complexa realidade do exercício da profissão, à desilusão e ao desencanto dos primeiros tempos de profissão” (TARDIF, 2014, p. 82). De modo geral, os primeiros anos da carreira docente são marcados “por tensões decorrentes da necessidade de atuar e de se afirmar em um ambiente de trabalho desconhecido, interferindo diretamente no seu processo de socialização profissional” (CRUZ; FARIAS; HOBOLD, 2020, p. 4).
Na visão desses autores, o jovem professor, ao iniciar a carreira, depara-se com realidades bem complexas e com a necessidade de questionar muitas referências da docência que foram construídas durante o percurso formativo no curso de licenciatura. Porém, de um ponto de vista foucaultiano, mais do que uma questão de hiato, de complexidade ou de choque cultural, os obstáculos enfrentados pelos professores iniciantes têm a ver, na verdade, com as relações de poder vindas tanto do Estado quanto das relações institucionais e profissionais, as quais incidem sobre esses corpos; relações de poder que operam diferenciações entre os sujeitos, separando-os em grupo, em coletividades, atribuindo-lhes características específicas mediante as quais se tornarão “visíveis, dizíveis e escrevíveis” (ROSE, 1998, p. 38). Dessa maneira, os sentimentos de insegurança, contradições e euforia, etc. vividos na entrada na profissão revelam a maneira como os iniciantes são vistos e ditos.
Esses docentes não são desde sempre assim, como se isso fosse uma natureza própria do iniciante; eles são resultado de forças estatais, institucionais e de relações de poder que assim os criam. Inventa-se, então, no espaço educacional, um grupo de docentes em início de carreira com uma identificação própria, com características e sentimentos comuns, que pode “ser visto sem cessar” (FOUCAULT, 2014a, p. 183). Logo, sendo um grupo específico e diferenciado de docentes, fica mais fácil observá-lo, conhecê-lo e estudá-lo, pois se cria, assim, uma realidade pensável para, sobre ela, poder intervir, governar, conduzindo-a de acordo com as ingerências políticas de um determinado momento histórico.
Diante das considerações apresentadas, o presente artigo pretende analisar as táticas que as relações de poder colocam em ação, na inserção de professores iniciantes na carreira, para conduzir o governo das condutas desses docentes e constituí-los profissionalmente. Para o desenvolvimento da argumentação, o texto está organizado em quatro partes além desta introdução. Na primeira parte, apresento os procedimentos metodológicos utilizados na realização da investigação; na segunda, procuro tecer algumas considerações sobre a noção de relações de poder e governo das condutas sob o olhar foucaultiano; na terceira parte, analiso os dados da pesquisa, destacando as táticas utilizadas pelas relações de poder para operar a constituição profissional dos professores iniciantes na carreira; e, por fim, na quarta parte, são apresentadas as considerações finais deste estudo.
Sobre os procedimentos metodológicos da pesquisa
O processo metodológico deste estudo buscou inspiração nos estudos foucaultianos, especialmente em sua analítica das relações de poder. Nesse sentido, procurei organizar procedimentos no percurso da pesquisa visando identificar mecanismos das relações de poder em ação na inserção de professores iniciantes na carreira. A ideia era verificar “processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos” (FOUCAULT, 2018, p. 283), pois o “exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra” (FOUCAULT, 2010, p. 292). O poder, assim, movimenta-se por meio de elementos que podem ser elaborados, transformados, enfim, organizados e ajustados para dar condições de funcionamento às relações de poder.
Nessa perspectiva, para produzir a materialidade empírica da pesquisa, foram realizados, no total, seis grupos de discussão, sendo três com professores iniciantes e três com professores experientes que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental, no município de Caetité[2], Estado da Bahia. Neste estudo, nomeio de professores iniciantes os sujeitos aqui investigados que, à época dos grupos de discussão (o ano 2018), estavam em sua primeira experiência docente, após a conclusão do curso de licenciatura, e com até cinco anos de trabalho; e de professores experientes aqueles com mais de seis anos de exercício da profissão docente. De acordo com Weller (2006, p. 246), os grupos de discussão “constituem uma ferramenta importante para a reconstrução dos contextos sociais e dos modelos que orientam as ações dos sujeitos”. Segundo a autora, o interesse do pesquisador, com os grupos de discussão, não é apenas para conhecer as opiniões dos sujeitos, mas suas experiências ou suas posições sobre um determinado tema.
Os grupos de discussão aconteceram na Secretaria Municipal de Educação de Caetité, em dias previamente agendados com os sujeitos. Fiz anotações sobre o contexto das falas dos participantes em meu Caderno de Anotações do Pesquisador (CAP) e o registro por meio de gravação em áudio. Participaram desse movimento da pesquisa onze professores iniciantes e doze professores experientes de diferentes áreas do conhecimento que atuam em turmas de 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. As discussões foram encaminhadas, em cada encontro, a partir de um roteiro previamente organizado, pelo qual o primeiro momento era dedicado à apresentação de cada um; no segundo momento, a discussão a partir de algumas questões norteadoras elaboradas pelo pesquisador; e, por fim, ficava um espaço aberto para manifestações espontâneas dos sujeitos ou algum esclarecimento. Toda a pesquisa de campo só aconteceu após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa[3] (CEP).
Após a produção e a organização das informações/dados da pesquisa, a análise dessa materialidade evidenciou que a inserção profissional de professores na carreira, no contexto investigado, é um campo minado de relações de poder.
As relações de poder sob o olhar foucaultiano
No senso comum, a noção de poder geralmente aparece associada a uma relação hierárquica de força que alguém ou algo a exerce sobre o outro. Nessa percepção, no contexto escolar, por exemplo, leis e documentos da Educação exercem poder sobre os gestores e toda a comunidade escolar; diretores e coordenadores exercem poder sobre professores, funcionários, pais e alunos; professores, por sua vez, exercem poder sobre os alunos. Em outras palavras, é uma força unilateral que vem de uma esfera superior e atinge uma camada inferior. Entretanto, neste artigo, busco problematizar as relações de poder em outra direção, seguindo as teorizações do filósofo francês Michel Foucault.
Na trilha do pensamento de Foucault (1988, p. 89), “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados”, por isso não deve ser entendido como uma propriedade que se possui ou não, como algo que se dá ou se troca, mas como exercício, como relação, como ato, como estratégia, como uma prática que se enraíza no conjunto da rede social e que está em toda parte; “não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p. 89). Desse modo, não existe, de um lado, os que detêm o poder e, de outro, os que se encontram fora dele. Os indivíduos estão sempre em posição de exercer poder e de sofrer sua ação; não são o alvo inerte ou consentido do poder, mas centros de transmissão, por isso “o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles” (FOUCAULT, 2018, p. 284).
Logo, é pelo seu caráter relacional que o poder se alastra por toda a esfera social, compondo uma rede que circula por intermédio de uma multiplicidade de relações de força que estão sempre em correlação, em luta, em constante disputa, em permanente tensão, em um jogo dinâmico e contínuo. Nessa perspectiva, Foucault estudou o poder a partir do nível micro, buscando observar as relações locais de força, mediante a análise das interações dos indivíduos, e não no nível macro das hegemonias e dos estados. Assim, todos os sujeitos estão envolvidos nessa correlação de forças e não podem ser considerados independentes ou alheios a elas. No movimento das relações de poder, pode ser que, em determinados momentos, algumas forças se imponham a outras, disciplinando e controlando os indivíduos.
Sendo exercício, o poder “não é simplesmente uma relação entre parceiros individuais ou coletivos; é um modo de ação de uns sobre outros” (FOUCAULT, 2010, p. 287), que não se manifesta por violência, restrições ou por coação. Quando o poder age sobre um corpo ou sobre as coisas por meio da violência, ele fecha todas as possibilidades, restando ao outro polo a condição de passividade e, se encontrar uma resistência, a única alternativa é tentar reduzi-la. Foucault (2010) nos mostra, ainda, que uma relação de poder se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis: que aquele sobre o qual se exerce o poder seja reconhecido e mantido até o fim como o sujeito da ação e que, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações e invenções possíveis seja aberto. Assim, as relações de poder permitem a construção de múltiplas possibilidades e condições de sermos sujeitos, pois o poder “incita, suscita, produz; ele não é simplesmente orelha e olho; ele faz agir e falar” (FOUCAULT, 2006, p. 220).
Ao conceber o poder em sua dimensão relacional, como um “modo de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir” (FOUCAULT, 2010, p. 288), o filósofo coloca em discussão o poder a partir de relações entre indivíduos livres. Essas relações passaram a ser compreendidas em seus estudos como relações de governo a partir de uma dada racionalidade. Nessa perspectiva,
[...] o governo dos homens pelos homens – quer eles formem grupos modestos ou importantes, quer se trate do poder dos homens sobre as mulheres, dos adultos sobre as crianças, de uma classe sobre a outra, ou de uma burocracia sobre uma população – supõe uma certa forma de racionalidade, e não uma violência instrumental (FOUCAULT, 2006, p. 385).
No seu empreendimento genealógico, Foucault (2010) procurou demonstrar que a ação de governar não diz respeito às estruturas políticas e burocráticas ou à gestão dos Estados, mas à “maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes” por meio de “modos de ação mais ou menos refletidos e calculados”, com vistas a “estruturar o eventual campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 2010, p. 288). Trata-se, pois, de organizar maneiras de atuar sobre a conduta dos outros, atendendo a determinadas finalidades. Disso decorre a multiplicidade de práticas de governo como um problema político que Foucault (2008a) chama de governamentalização da sociedade.
Em Segurança, território e população, Foucault (2008a) afirma que a conduta é a atividade que consiste em conduzir, podendo ser também “a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se deixa conduzir, a maneira como, afinal de contas, ela se comporta sob o efeito de uma conduta que seria ato de conduta ou de condução” (FOUCAULT, 2008a, p. 255). Mas o filósofo nos alerta que a condução da conduta só é possível com a aceitação de ambas as partes. A condução da conduta envolve relações de poder, mas não de violência. Isso significa dizer que se, por um lado, as práticas de governo atuam na produção de sujeitos governáveis, por outro, elas podem produzir, também, sujeitos capazes de se autogovernarem. A condução de conduta corresponde, pois, a uma ação que se exerce sobre os outros, da mesma forma que pode ser uma ação de governo sobre si mesmo. Logo, parece certo dizer que o governo das condutas dos sujeitos não se dá pela ação exclusiva de poder do Estado, mas, particularmente, pela racionalidade constituidora da verdade que orienta as ações individuais e coletivas dos sujeitos na esfera social.
Com base em tal perspectiva, posso, então, especular que as relações de poder na inserção profissional na docência buscam governar a conduta dos professores iniciantes mediante as manifestações da verdade da prática docente na escola. Trata-se, pois, de um modo concreto e organizado de uma governamentalidade específica, uma vez que a inserção profissional na docência constitui um domínio de relações estratégicas de poder. Por governamentalidade, Foucault (2018) entende o conjunto de instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que tornaram possível o exercício de um tipo específico de poder que tem como alvo principal a população. Ao operar com o conceito de governamentalidade, Foucault buscou problematizar as táticas e técnicas de poder implicadas nos modos de condução da conduta que transformam indivíduos em sujeitos governáveis. São as táticas e técnicas que as relações de poder põem em ação na inserção de professores na carreira, no contexto investigado, que constituem o eixo central da análise deste artigo como veremos na sequência.
Táticas de condução das condutas de professores iniciantes na carreira
Nesta parte do artigo, busco descrever o conjunto de táticas com suas técnicas e procedimentos que as relações de poder acionam no governo das condutas dos professores iniciantes na carreira, visando à constituição de um corpo docente flexível e adaptável, imprescindível à produção de uma prática profissional para a sociedade da aprendizagem de nossos tempos. Foucault (1988, p. 91) defende que a lógica das relações de poder é a das táticas que, “encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto”. Dito isso, as táticas de governo são aqui compreendidas como uma aglomeração de técnicas e procedimentos específicos e calculados, investidos de uma racionalidade própria, que movimentam uma série de operações com vistas ao alcance de um objetivo estratégico. As táticas são, portanto, os meios a serviço de um objetivo estratégico. Uma técnica é aqui compreendida como um modo, como uma ação empregada em uma dada operação para o alcance de um determinado fim. No caso deste estudo, as técnicas visam ao governo das condutas dos professores no início (e ao longo) da carreira e à produção de verdades sobre a prática docente contemporânea.
Na análise da materialidade empírica deste estudo, verifiquei que as táticas de governo dos professores no começo da carreira atuam em duas frentes principais: a primeira diz respeito à tática de desestabilização, que tem como alvo central o corpo do professor iniciante na carreira; e a segunda frente contempla a tática de recomposição do corpo, que aciona a técnica de acompanhamento, que incide sobre o professor iniciante para qualificá-lo profissionalmente, e a técnica de responsabilização, que atua para que o professor se comprometa e se responsabilize com a sua própria aprendizagem e com a de seus estudantes. Vale dizer que essas táticas são multiformes, permeadas pela heterogeneidade de técnicas e procedimentos; não são táticas fechadas em si mesmas, pelo contrário, interconectam-se, apoiando umas às outras e proliferam pelos diferentes espaços de atuação dos professores, como veremos a seguir.
“A escola massacra os novatos”: a tática de desestabilização
A fala que compõe o título deste tópico foi dita por uma professora experiente em um grupo de discussão, no qual o ponto em pauta abordava as condições de trabalho dos professores que estão ingressando na profissão em escolas da Rede Municipal de Educação de Caetité. Ao proferi-la, a professora experiente procurou resumir as falas de colegas que a antecederam nas discussões desse ponto, as quais evidenciavam que, nos últimos anos, o ingresso dos jovens professores na profissão, nas escolas da Rede Municipal, acontece por meio de contratos temporários, uma vez que há muito tempo não é realizado concurso público no Município. Além disso, os professores experientes relataram que, nas escolas em que atuam, os professores iniciantes enfrentam condições bastante adversas no começo da carreira. As falas abaixo, retiradas dos grupos de discussão, exemplificam algumas dessas adversidades:
Os novatos sofrem porque têm que assumir horários pingados e muitos programas para trabalhar. É uma mala de livros que carregam por conta do número grande de disciplinas que ministram. Nos planejamentos, ficam correndo para dividir o tempo e contemplar todos os planos que precisam fazer (Relato de uma professora experiente, 2018);
Eles são cobrados como se já fossem experientes. [...] Com receio de fazer errado, eles preenchem a caderneta a lápis (Relato de um professor experiente, 2018);
As turmas que ficam sem professor no começo do ano, na escola, são aquelas conhecidas pelos problemas de disciplina e dificuldades de aprendizagem. São essas turmas que são destinadas aos novatos (Relato de uma professora experiente, 2018).
As situações expostas pelos professores experientes nos ajudam a entender o sentido da expressão “a escola massacra os novatos”. Massacrar, no referido contexto, significa abalar profissionalmente, cansar, constranger. Em outras palavras, significa submeter o corpo do professor iniciante, nos primeiros momentos da carreira, a uma condição de instabilidade, de desequilíbrio. O corpo do professor iniciante torna-se, assim, objeto e alvo das relações de poder que incidem sobre ele, manejando-o, desmontando-o, recompondo-o e conduzindo-o, para constituí-lo como um corpo habilidoso, capaz de potencializar práticas docentes múltiplas na escola atual.
Trata-se, pois, da tática de desestabilização que objetiva desestabilizar o corpo do iniciante para torná-lo flexível e adaptável ao processo de qualificação profissional que será operacionalizado no percurso da inserção na carreira. Foucault afirma que “o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo” (FOUCAULT, 2018, p. 144). Ao destacar a relação poder-corpo, ele é mais enfático e afirma que “nada é mais físico, mais corporal que o exercício do poder” (FOUCAULT, 2018, p. 237). Como se pode ver, Foucault não se preocupa em apresentar um estatuto para o corpo, mas em analisar as práticas ou técnicas do poder que incidem e atuam sobre ele para constituí-lo de um modo específico.
No contexto investigado, as relações de poder investem sobre os corpos dos sujeitos, definem a dinâmica de trabalho, alteram comportamentos, atitudes e interações entre eles e determinam a posição de cada um na ordem da inserção profissional na docência. De acordo com Foucault (2014a), o corpo dos indivíduos, para além dos aspectos biológicos e fisiológicos, está diretamente mergulhado em um campo político e as relações de poder “o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais” (FOUCAULT, 2014a, p. 29). Para realizar esse movimento no corpo do professor iniciante na carreira, a tática de desestabilização coloca em ação duas técnicas: a técnica de alocação do professor iniciante na escola e a técnica de suspeição de sua prática docente.
A técnica de alocação do iniciante na escola opera de forma meticulosa e coordenada, envolvendo procedimentos que levam em conta a forma de ingresso na carreira, a localização da escola e o perfil da turma para a distribuição do tempo e da carga horária de trabalho dos docentes que chegam à profissão. Para iniciar a desestabilização do corpo do professor iniciante, ela considera, em primeiro lugar, o vínculo profissional dele, ou seja, a sua forma de ingresso na carreira. No caso desta investigação, todos os professores iniciantes inseriram na profissão mediante contratos temporários pelo regime jurídico especial[4], pois o último concurso público realizado no Município de Caetité para cargos da educação ocorreu no ano de 2010.
Os professores iniciantes relataram nos grupos de discussão que o fato de estarem começando a carreira como contratados reforça e amplia o tratamento diferenciado que recebem da Secretaria de Educação, de diretores e de professores experientes nas escolas. Eles disseram que, além da distinção salarial, a condição de trabalho também é diferenciada em relação à de docentes experientes. Os iniciantes destacaram que não podem participar de determinados projetos promovidos pela Secretaria de Educação do Município, como o concurso de experiências docentes exitosas; no entanto, todos os eventos e projetos realizados pelas escolas que exigem mais tempo e esforço são destinados para eles executarem. “Tudo de projeto na escola é para o novato”, destacou uma professora iniciante em dos grupos de discussão. Os iniciantes também pontuaram que, no deslocamento para as escolas da zona rural, os assentos no transporte escolar são marcados e reservados para os experientes, ficando para eles a opção de viajarem em pé ou fazerem uso do transporte escolar dos estudantes. Em outras palavras, o corpo do iniciante é tido como um objeto que pode ser massacrado, desarticulado, logo no começo do exercício docente, inclusive com o amparo do aparato institucional e legal do Estado.
Em segundo lugar, a técnica de alocação verifica a localização da escola para fazer o encaminhamento do docente ao lugar de trabalho. Disse uma professora iniciante no grupo de discussão:
As vagas para os [professores] que estão começando estão sempre nas escolas da periferia ou nas escolas da zona rural das localidades mais distantes. As vagas [das escolas] do centro são reservadas para as transferências de professores experientes (Relato de uma professora iniciante, 2018).
Prova disso é que dos onze professores iniciantes que participaram desta pesquisa, três atuam em um colégio de um bairro periférico de Caetité e os demais atuam em escolas dos distritos rurais do Município. Os professores comentaram que as escolas localizadas na periferia da cidade e nos distritos rurais, além de distantes do centro, apresentam maiores problemas de gestão, por isso não são as mais bem vistas para o exercício da profissão, sendo “reservadas”, portanto, para os docentes que estão iniciando na carreira.
Em terceiro lugar, a técnica de alocação leva em conta o perfil das turmas para fazer a organização da carga horária dos professores iniciantes. Segundo eles, o que os espera nas escolas são as turmas mais difíceis, as disciplinas e os horários que os professores experientes rejeitaram. Muitas vezes, eles assumem disciplinas que não têm nenhuma relação com a sua área de formação e, além disso, recebem uma grade de horários fragmentada, de modo que precisam ficar mais tempo na instituição. As falas abaixo ilustram a técnica de alocação do professor iniciante em ação na escola:
No meu primeiro ano de trabalho, com 20 horas semanais, eu assumi cinco disciplinas diferentes; praticamente eu dava aulas da maioria dos componentes curriculares (Relato de um professor iniciante, 2018);
Enquanto o professor experiente com 20 horas semanais organiza suas aulas em três dias da semana, com as mesmas 20 horas, eu tinha que ir à escola de segunda à sexta, pela manhã, e um dia à tarde para o planejamento. Na sexta-feira, eu tinha somente a primeira e as duas últimas aulas. [...] Nos horários vagos eu aproveitava para estudar ou preparar minhas aulas (Relato de uma professora iniciante, 2018);
A maioria de nós aqui assume disciplinas que não são de nossa área de formação (Relato de um professor iniciante, 2018).
Corpos distribuídos de forma específica, coordenada e precarizada. Eis como a técnica de alocação opera na organização das atribuições docentes dos iniciantes e a utiliza como mecanismo para desestabilizar os seus corpos. A distribuição das atividades desses professores é feita para que cada movimento tenha uma direção, um objetivo, ou seja, prescreve-se a ordem das ações e, assim, “o tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (FOUCAULT, 2014a, p. 149). Nota-se, assim, que a inserção na carreira dos professores investigados revela-se marcada pela precariedade, conforme suas falas. Precariedade, aqui, é entendida como uma condição politicamente construída, na qual os corpos de determinados indivíduos ou grupos de indivíduos são, assimetricamente, expostos às contingências do mundo social (BUTLER, 2015). No caso desta investigação, a precariedade na inserção docente é uma condição fabricada pelas relações de poder, com utilização, por exemplo, da técnica de alocação do professor iniciante na escola para desmontar e precarizar o corpo desse professor no seu primeiro ano de trabalho na escola.
Para completar a desestabilização do corpo do professor iniciante, as relações de poder na inserção profissional na docência põe em ação a técnica de suspeição. Trata-se de colocar saberes, estratégias didáticas, atitudes e comportamentos dos docentes iniciantes em suspeição, ou seja, colocar em suspeição a prática do docente nos seus anos iniciais na carreira. Os iniciantes revelaram que os professores experientes são os maiores críticos de suas práticas docentes, referindo-se a elas como “trabalhosas”, “superficiais”, as que “não aprofundam nos conteúdos das matérias” e “permitem que os alunos fiquem à vontade na aula, conversando e fazendo barulho” (Relatos de professores iniciantes, 2018). Ainda de acordo com os professores iniciantes, isso se dá porque muitos experientes resistem à inovação na sala de aula, por isso criticam suas metodologias de ensino nas reuniões de planejamento com dizeres do tipo: “isto não é possível, não vai dar certo!”; “Você está começando agora, não viu nada ainda!” (Relatos de professores iniciantes, 2018).
Na técnica de suspeição, a vigilância é um procedimento colocado em ação. Vigiar o trabalho do iniciante é uma forma de ter o controle do que o corpo faz e como faz na sala de aula. Segundo os professores iniciantes, são os diretores das escolas e os professores experientes que criam uma rede de olhares para acompanhar seus passos no trabalho, uma rede de olhares que começa a funcionar no deslocamento para a escola e continua durante toda a permanência deles na instituição. Vejamos como os iniciantes detalham a vigilância a seu trabalho:
Quando a gente entra no ônibus, eles [os experientes] lançam um olhar curioso sobre nós; querem ver se estamos levando algum recurso ou material diferente para a escola (Relato de uma professora iniciante, 2018);
Nos primeiros dias, a diretora sempre entrava na minha sala e perguntava se estava tudo bem, [...] mas, na verdade, ela estava observando se eu estava dando conta da turma (Relato de uma professora iniciante, 2018);
Já deparei com uma colega [experiente] ao lado da porta da sala, fiscalizando minha aula para ver o que eu estava fazendo (Relato de um professor iniciante, 2018).
Como diz Foucault (2014a, p. 168), “cada olhar seria uma peça no funcionamento do poder”. Assim, as informações captadas pelas lentes da rede de olhares dos diretores e professores experientes compõem a trama das relações de poder no começo da carreira, constituindo os elementos da prática do iniciante que os experientes buscam desqualificar, seja na sala de professores, seja nas reuniões pedagógicas ou em outros espaços. Mirabolantes, superficiais, trabalhosas são alguns dos adjetivos utilizados pelos experientes para colocar em suspeição as estratégias didáticas dos jovens professores na escola. Os docentes iniciantes relataram que parece haver certo ciúme dos experientes em relação à sua atuação na escola, principalmente no que diz respeito à aproximação e à interação que eles estabelecem com os estudantes.
Cabe ressaltar que a desestabilização do corpo do iniciante não acontece de modo tranquilo nos anos iniciais da profissão; ocorrem conflitos e focos de resistência. De um lado, os professores iniciantes, mesmo sob o fogo cruzado das relações de poder advindas das instituições, do aparato legal e dos professores experientes, buscam suas saídas, rearticulando suas forças. Eles firmam, por exemplo, uma espécie de aliança com os estudantes, interagindo mais com eles na sala de aula, nos projetos da escola, no horário da merenda e nas redes sociais.
Os iniciantes, em uma demonstração de força, apostam na utilização de procedimentos de ensino diversificados na escola para envolver os alunos nas suas aulas, estabelecendo com eles uma relação de parceria e amizade. De outro lado, os professores experientes parecem resistir a certos saberes dos iniciantes que gozam de prestígio nos discursos pedagógicos da contemporaneidade, como a inovação pedagógica e o protagonismo do estudante no processo ensino-aprendizagem. Os experientes parecem não demonstrar muita disposição para grandes alterações no currículo e nas rotinas da escola. Daí, talvez, a razão para os rótulos de “trabalhosas” e “mirabolantes” que eles atribuem às estratégias didático-metodológicas dos iniciantes e o enfrentamento que fazem a elas.
Ao proceder a desestabilização do corpo do professor iniciante, as relações de poder apontam as demandas para a sua recomposição profissional. Institui, portanto, um conjunto de procedimentos de verdade sobre a prática docente, que serão acionados no processo de recomposição do corpo do iniciante, incitando-o a aceitá-los como manifestação do verdadeiro na constituição de sua prática profissional, como veremos no tópico seguinte.
“A escola é uma segunda faculdade”: a tática de recomposição do corpo
Com o corpo do iniciante desestabilizado, desarticulado, entra em cena a tática de recomposição do corpo, visando constituí-lo profissionalmente. Como ponto de partida para analisar o funcionamento dessa tática, tomo como ilustração a fala de uma professora iniciante, em dos grupos de discussão: “a escola é uma segunda faculdade”. A referida professora estava, em 2018, no seu terceiro ano de exercício docente em um colégio de um distrito rural do Município de Caetité. Ela explicou que considera a escola como uma segunda faculdade porque “o professor, a cada dia, vai se modelando na dinâmica da sala de aula, das reuniões na escola, dos cursos e dos encontros na Secretaria de Educação” (Relato de uma professora iniciante, 2018). Modelar, na perspectiva dessa professora, significa constituir/ser constituído profissional a partir dos desdobramentos do exercício docente na escola.
A modelagem a que a professora iniciante se refere está associada ao objetivo da tática de recomposição do corpo dos professores iniciantes na carreira. Recompor significa reorganizar, reconstituir, rearticular e, no caso desta pesquisa, significa governar, conduzir o corpo docente para uma nova constituição profissional a partir de um conjunto de saberes, normas e táticas específicas, vinculadas à prática e às condições políticas deste tempo. Tais saberes, normas e táticas, por sua vez, produzem manifestações da verdade acerca da prática docente, que serão tomadas como referência no governo das condutas dos professores em sua inserção na carreira.
Dessa maneira, a tática de recomposição do corpo coloca em funcionamento a técnica de acompanhamento, que incide sobre os corpos dos professores iniciantes na carreira no sentido de acompanhá-los e qualificá-los, constituindo-os profissionalmente. Aciona, também, a técnica de responsabilização, que busca difundir um corpo docente comprometido e engajado com múltiplas práticas educativas na escola como condição necessária para a garantia das aprendizagens dos estudantes. Observemos, então, como funcionam as técnicas de recomposição do corpo na inserção na carreira docente.
A técnica de acompanhamento constitui uma linha de força no governo dos professores em início de carreira na medida em que, utilizando-se de diversos procedimentos, coloca esses docentes em contato com um conjunto de princípios acerca da prática docente, que são ditos e vistos como manifestações de uma verdade que os conduzirá a um novo modo de ser e agir como profissionais da docência. No contexto desta investigação, o acompanhamento aos professores iniciantes na carreira tem como elemento principal a figura do coordenador pedagógico. Nesse sentido, mediante a análise das falas dos professores iniciantes, nos grupos de discussão, constatei que a coordenação pedagógica é o único ponto de suporte que os iniciantes dizem ter no começo de suas carreiras.
De acordo com esses docentes, “a coordenadora é dinâmica e consegue nos auxiliar diante das necessidades”; “todas as vezes que eu busquei a coordenação tive o retorno”; “quando sentimos dificuldades ou alguma necessidade na escola é a pessoa com quem podemos contar”; “acho necessário esse apoio da coordenação; a presença do coordenador é muito importante na escola, principalmente, para nós que estamos começando” (Relatos de professores iniciantes, 2018). A adesão dos iniciantes ao trabalho da coordenação pedagógica é condição essencial para o êxito da técnica de acompanhamento. De acordo com Foucault (2010, p. 289), o governo das condutas só se torna realizável quando há aceitação entre as partes envolvidas, ou seja, só é possível sobre “sujeitos livres, enquanto livres”. Dessa maneira, a constituição profissional implica, pois, em o professor iniciante aceitar e desejar o modo de ser governado ou de se governar operacionalizado nos primeiros anos da carreira.
A técnica de acompanhamento visa, sobretudo, a qualificação profissional dos iniciantes conforme as verdades das políticas educacionais. Nesse caso, segundo o que disseram os professores iniciantes, os coordenadores pedagógicos possuem “um saber caracterizado como tékhne, know-how, [...] conhecimentos que tomam corpo numa prática e que implicam, para seu aprendizado, não apenas um conhecimento teórico, mas todo um exercício” (FOUCAULT, 2014b, p. 23). Ao professarem esse saber como verdadeiro, os coordenadores pedagógicos apontam modos de exercício da docência aderidos a essa verdade. Tal argumento parece ser o elemento que conecta a adesão do docente às ações de qualificação profissional em uma perspectiva da aprendizagem da docência no contexto da prática. Sobre os encontros de planejamento, ponderam os professores iniciantes:
Eu vejo como produtivo os encontros de planejamento pelo fato que nos direciona para aquilo que é nossa dificuldade na sala de aula; [...] A coordenadora leva muitas coisas novas sobre o ensino, como métodos novos, e isso nos ajuda muito a planejar as aulas (Relato de uma professora iniciante, 2018).
Para mim, o mais interessante nas reuniões com a coordenação para o planejamento é a orientação sobre os conteúdos a serem mediados em sala de aula e como deve ser essa mediação (Relato de uma professora iniciante, 2018).
O procedimento da qualificação profissional, apoiado na e para a prática docente, torna-se, como visto, um instrumento poderoso de governo das condutas dos professores iniciantes. De acordo com Imbernón (2016), quando a qualificação docente se pauta em uma concepção na qual os professores sentem necessidade de dar resposta a determinados problemas de seu trabalho, eles “têm uma melhor compreensão do que se quer para melhorá-lo” (IMBERNÓN, 2016, p. 152).
Não se trata mais do supliciamento do corpo e da ocupação extensiva do tempo docente, mas da qualificação; da recomposição desse corpo de maneira que ele adquira múltiplas habilidades e competências, legitimadas como verdadeiras para o exercício da prática docente na escola contemporânea. Trata-se, pois, de uma recomposição que constitua um corpo predisposto a aprender permanentemente; um corpo flexível, capaz de ajustar-se e reajustar-se aos condicionantes da escola atual; um corpo com diversos saberes que o permitam produzir práticas de ensino múltiplas na escola.
Para garantir a positividade desse corpo, a tática de recomposição mobiliza também a técnica de responsabilização. Busca-se com essa técnica, comprometer os corpos desses docentes com a sociedade da aprendizagem, mediante dois procedimentos. O primeiro é o comprometimento com a reconfiguração da prática docente pela necessidade do desenvolvimento da aprendizagem dos estudantes e o segundo é o comprometimento com a sua própria aprendizagem, visando à sua qualificação ao longo de toda a vida. Portanto, a técnica de responsabilização é uma técnica política das relações de poder na inserção na carreira docente que visa responsabilizar o corpo docente (individual e coletivo) pelo seu desenvolvimento social e o de seus estudantes, pela via da aprendizagem. É a ênfase na necessidade de uma formação permanente para ser e agir em um mundo que opera mudanças constantes (NOGUERA-RAMÍREZ; MARÍN-DÍAZ, 2012).
Estudar, refletir, discutir, confrontar, experimentar, assumir a responsabilidade com o aprimoramento da prática! Eis um roteiro de ações para o docente se manter comprometido com a constituição de um corpo habilidoso e potente para lidar com as complexas demandas da escola de hoje; um roteiro de governo das condutas em que os mecanismos de disciplinamento e controle se transferem para o próprio docente. Tal roteiro, que antes era previamente definido e cronometrado, agora se mostra de forma contínua, permanente, ou seja, não há mais término, nada se conclui; como diz Deleuze (1992, p. 221), “nas sociedades do controle nunca se termina nada”.
Nessa direção, pode-se dizer que a tática de recomposição do corpo, por meio das técnicas de acompanhamento e responsabilização, opera como um instrumento normalizador dos professores iniciantes, a partir das configurações do neoliberalismo que, pela ótica de Foucault (2008b, p. 369), produz o homo economicus, isto é, “aquele que aceita a realidade ou que responde sistematicamente às modificações nas variáveis do meio”; portanto, manejável e governável (FOUCAULT, 2008b). Para o filósofo, na governamentalidade neoliberal, o indivíduo é projetado e ensinado sob a égide do aumento da produtividade. O neoliberalismo, principalmente o modelo americano, entende que a economia se organiza e se desenvolve como se fosse um jogo entre parceiros. As regras desse jogo são pensadas para possibilitar que um maior número de indivíduos possa participar e a concorrência é a condição essencial para o jogo acontecer. Dessa forma, os indivíduos são incentivados a administrarem suas vidas, buscarem eles próprios a sua formação e qualificação para se tornarem produtivos e competitivos, capitalizando-se para atuar no jogo em benefício de toda a sociedade.
Dessa maneira, o governo das condutas dos professores iniciantes no começo da profissão caracteriza-se pelo entrelaçamento de táticas de poder que visam atingir propósitos políticos, conduzindo a conduta de todos e de cada um. Busca-se, assim, a produção de um corpo docente habilidoso, flexível e competente para o desempenho de práticas docentes em sintonia com as demandas de aprendizagem, de cunho neoliberal, na sociedade contemporânea.
Considerações finais
Neste artigo, empreendi esforços para mostrar os modos pelos quais as relações de poder operam para governar os professores no início da carreira. Por intermédio de um conjunto de táticas que elegem o corpo do iniciante como alvo central, o poder aciona variadas técnicas e procedimentos que visam constituí-lo como um corpo habilidoso para empreender práticas de aprendizagem na escola. Da desestabilização do corpo do iniciante, mediante a sua submissão à precariedade das condições de trabalho e a suspeição de sua prática, à recomposição profissional por meio das técnicas de acompanhamento e de responsabilização, as relações de poder na inserção de professores na carreira produz contingências, constrói novos modos de pensar, ser e agir do profissional da docência no exercício de seu ofício.
As relações de poder na inserção profissional de professores na carreira delineiam e lapidam os contornos dos corpos, instrumentalizando-os a partir de saberes da e sobre a prática docente, tornando-os capazes, flexíveis e habilidosos para a docência do século XXI. Elas normalizam princípios e regras para uma prática docente verdadeira, suscitando, no corpo do iniciante, o desejo de tornar-se diferente do que se é ou, como disse a professora iniciante em dos grupos de discussão desta pesquisa: “aí a gente precisa correr atrás; participar de tudo na escola: planejamento, palestras, reuniões [...] para se tornar uma boa professora”.
Desejoso por mudança e transformação, o corpo do iniciante agirá e se comportará de acordo com as orientações neoliberais que sustentam a política da verdade da docência contemporânea. A partir dessa verdade, o professor iniciante é constituído/se constitui nos modos de um profissional competente, criativo, comprometido consigo mesmo, e com seu estudante; um profissional que estuda e se aperfeiçoa por toda a vida! Para constituir um corpo docente dessa maneira, talvez seja mais fácil começar esse processo pelos corpos dos jovens professores iniciantes na carreira, pois como afirma Marcelo García (2009. p. 20) “os primeiros anos de docência são fundamentais para assegurar um professorado motivado, implicado e comprometido com a sua profissão”.
Por fim, cabe ressaltar que este artigo não pretendeu apontar o certo e o errado, o bom e o ruim da inserção profissional de professores iniciantes na carreira. Ao se perspectivar como uma analítica inspirada nas proposições teórico-metodológicas de Michel Foucault, este estudo se propôs a analisar como funcionam as relações de poder nos primeiros anos da profissão docente e suas implicações na constituição de professores iniciantes na carreira.
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Notas
[1] Tese Dispositivo de inserção docente: a prática como política de verdade na formação e atuação de professores/as iniciantes na carreira, defendida em 2021, na Faculdade de Educação (FAE), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
[2] É um município situado no sertão do Estado da Bahia.
[3] Parecer consubstanciando emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 06 de agosto de 2018.
[4] Essa modalidade de contratação está prevista na Constituição Federal de 1988. O inciso IX do art. 37 da Carta Magna prevê a contratação por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público. O regime especial procura abarcar o vínculo funcional de natureza contratual, com normas que se aproximam do regime estatutário em função das atribuições que os servidores temporários desempenham, em caráter provisório.
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