Corpo pretagógico em gestação: reflexões sobre pretagogia

 

Pretagógico body in gestation: reflections on Pretagogia

 

Cuerpo pretagógico en gestación: reflexiones sobre la pretagogía

 

 

Marcilio de Souza Vieira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.

marciliov26@hotmail.com

 

Josivando Ferreira da Cruz

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.

josivando.cruz.604@ufrn.edu.br

 

Recebido em 23 de maio de 2022

Aprovado em 08 de janeiro de 2024

Publicado em 20 de janeiro de 2024

 

RESUMO

Trata-se de uma resenha crítica do livro Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral africana na formação de professoras e professores, obra escrita pela professora Drª Sandra Haydée Petit publicado pela Editora da Universidade Estadual do Ceará (EDUECE) no ano de 2015.

Palavras-chave: Pretagogia; Corpo-dança; Formação docente.

 

ABSTRACT

This is a critical review of the book Pretagogia: belonging, Afroancestral body-dance and African oral tradition in the formation of teachers and professors, a work written by Sandra Haydée Petit, Professor Dr. Published by the State University of Ceará (EDUECE) in the year of 2015.

Keywords: Pretagogia; Body-dance; Teacher training.

 

RESUMEN

Esta es una reseña crítica del libro Pretagogía: pertenencia, danza corporal afroancestral y tradición oral africana en la formación de docentes, obra escrita por la profesora Dra. Sandra Haydée Petit publicada por la Compañia de publicidad de la Universidad Estatal de Ceará (EDUECE) en el año 2015.

Palabras clave: Pretagogía; Danza corporal; Formación docente.

 

 

A obra Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral africana na formação de professoras e professores, foi escrita pela professora Drª Sandra Haydée Petit. O livro é composto por cinco capítulos antecedidos de um prefácio e de uma apresentação e precedidos de uma galeria de fotos, um glossário, referências e um anexo. A obra é composta por cinco capítulos: I – Raízes, II – Apresentando o corpo-dança afroancestral, um conceito gingado, III – Tradição oral, literatura oral e produção didática: introduzindo a Pretagogia, IV – palavreando sobre a Pretagogia debaixo do Baobá e V – O corpo-voz discente da cosmovisão africana.

Filha do haitiano Antoine Georges Petit e da cubana Rosario Maria Ester Páez, Sandra Haydée Petit expressa em sua obra os laços e afetos constituintes da sua linhagem familiar desde a mais próxima as suas raízes afroancestrais. Petit é mãe de Antonio Kanyin Petit, a quem destina os seus mais belos sentimentos maternais. No que tange aos seus percursos acadêmicos e profissionais, ela desenvolveu seus estudos universitários na Universidade Paris VIII, onde graduou-se em Línguas Estrangeiras Aplicadas seguindo com a realização do Mestrado e Doutorado em Ciências da Educação. Atualmente é professora da Universidade Federal do Ceará – UFC desenvolvendo trabalho com Educação das Relações Étnico-Raciais e Educação Popular, essencialmente com os temas Pretagogia, Cosmovisão/Cosmopercepção Africana, Filosofia Africana, Pedagogias Afrorreferenciadas, Tradição Oral Africana, Sociopoética, Educação Afrocomunitária, dentre outros.

O livro apresenta discussões acerca da apreensão das concepções e fundamentos do conceito de Pretagogia no contexto da formação docente. A perspectiva de formação docente aludida pela autora centra-se em concepções advindas das matrizes afroancestrais em consonância com a implementação da Lei nº 10.639/03[1] no contexto escolar/universitário contemporâneo. Pretagogia é conceituado por Petit (2015, p. 119) como “[...] referencial teórico-metodológico em construção há alguns anos” que “pretende se constituir numa abordagem afrocentrada para formação de professores/as e educadores/as de modo geral” (idem).

 Logo no início da obra, os elementos pré-textuais remetem à relevância dos seus valores emancipatórios no que tange aos princípios humanos, ao passo que esses elementos reafirmam a necessidade de iniciativas corroborativas no processo de sensibilização das camadas populares menos favorecidas no Sistema, as quais são majoritariamente negras.

Os processos de desconstrução de estereótipos repercutidos na sociedade no que diz respeito ao racismo estrutural, carecem de medidas que proporcionem uma formação antirracista e humanitária, o qual pode vincular uma abordagem de questionamento desta estrutura racial e pensar possibilidades no campo educativo. A partir de reverberações formativas de cunho emancipatório, pode-se dizer que as barreiras da discriminação racial serão rompidas não só no contexto objetivo, mas subjetivo, pois o racismo não é reproduzido apenas de forma explícita, mas implicitamente nas relações sociais e principalmente internamente nos próprios sujeitos, sejam eles brancos ou negros. Petit (2015) contribui significativamente com reflexões que promovem um processo de sensibilização e reconhecimento da negritude por meio da partilha de saberes e valores afroancestrais, resultando assim uma perspectiva contrária ao eurocentrismo de se pensar sobre a África e tudo que esteja ligado ao continente.

O compartilhamento de conhecimentos que fazem alusão às matrizes afroancestrais configura-se em uma das iniciativas estratégicas que podem contribuir com o sentimento de pertencimento étnico-racial para/com as africanidades. É perceptível na obra, a ênfase no resgate da memória de um passado-presente de conhecimentos tão relevantes ora negligenciados por fatores conversadores, coloniais, os quais reprimem os valores afroancestrais, suas culturas e formas em que os laços e afetos eram/são estabelecidos entre a negritude.

No capítulo inicial (Raízes) a supracitada autora faz o resgate da sua história familiar e identifica um atravessamento de conflitos em volta da sua linhagem. Tais conflitos originados na/da colonização gerou como consequência a reprodução das desigualdades sociais/raciais que refletem no estado de negação e exploração da negritude.

A partir da remição da história da linha familiar da autora, é perceptível o quanto é desumano o processo de aculturamento cristalizado em volta da classe trabalhadora, a qual tem que se apropriar do modo de vida colonial para poder sobreviver em uma sociedade gerida pelo eurocentrismo. Um dos casos refletidos pela autora diz respeito à tentativa de apagamento da língua crioula, a qual era/é marginalizada em função da ascensão da língua dominante, a Europeia.

A autora ratifica as palavras de Adrienne Rich ao dizer que esta é a língua do opressor, mas que se precisa dela para falar com o outro/você, logo línguas de dominação como acrescenta hooks (2017) enquanto um modo de falar contrário ao vernáculo negro, que segundo as ideações eurocentradas, se refere a uma fala desprivilegiada, de um povo despossuído e desalojado, argumenta Petit (2015).

Desse modo, percebe-se a pertinência dos laços ancestrais e da manumissão das matrizes africanas que corrobora no disparo do gatilho responsável pelo despertar dos sentidos e reconhecimento afroancestral, desse modo, Petit (2015) remete lembranças de sua infância, a qual associa as variações de linguagens e momentos simbólicos perpassados por um corpo-dança, tema desenvolvido no capítulo II (Apresentando o corpo-dança afroancestral, um conceito gingado). Para ela, a dança é um elo marcador nesse processo de reconhecimento de uma cosmovisão africana.

A partir das questões da infância, a autora salienta que corpo-dança afroancestral assume várias expressões, as quais se assemelham diante do gingado, o que caracteriza os conceitos de corpo-dança que permeiam as matrizes africanas. O conceito de corpo-dança emerge desde as primícias da negritude, pois dançar é sinônimo de vida e tudo que há de bom está relacionado a ela. A associação das diferentes linguagens artísticas simboliza uma dinamicidade no corpo dançante, o qual protagoniza e se relaciona com a natureza, com os seres materiais e imateriais por meio da dança e da musicalização.

No tocante à música, Petit (2015) apresenta o tambor como símbolo da negritude que traz as marcas da africanidade e uma potência no processo de contribuição e vivência afroancestral. Assim, o tambor remete à força das africanidades, faz o chamamento para a emancipação e contribui com uma formação sensível e crítica através dos sentidos, principalmente o corpóreo.

Uma das principais atribuições da Pretagogia é a promoção da alacridade (alegria) dos sujeitos que através das brincadeiras refletidas no corpo-dança afroancestral. O corpo brincante é capaz de se desmecanizar e se autodespertar crítica e criativamente possibilitando a ampliação de conhecimentos constituídos com valores sociais, o que é defendido por Freire (1987), no que tange à formação de sujeitos capazes de promover mudanças na sociedade e assim alcançar novas formas de vida, mais justas e igualitárias.

Outro fator relevante, descrito no capítulo II, é a forma em que as danças acontecem, pois elas possuem uma forte ligação com o chão, com movimentos em nível baixo. Essa ligação com a terra é justificada ao passo que compreende que os laços ancestrais permeiam o solo sagrado. O chão representa fertilidade, uma ligação entre o sujeito e a natureza e até mesmo possibilita o contato da negritude com as divindades, com as suas crenças.

Sem dúvida a resistência e a memória ancestral apresentam valores comunitários em sua relação. A circularidade é um dos princípios do corpo-dança, pois estabelece um estado de igualdade entre todos os sujeitos em um processo afrodançante.

As tradições permeiam esse ciclo que deve considerar a linhagem e os valores dos antepassados. Assim, a autora no capítulo III (Tradição oral, literatura oral e produção didática: introduzindo a Pretagogia) introduz à tradição oral e literária oral enquanto marco da cultura afro.

As relações de poder que compõem o currículo escolar nem sempre são discutidas, prevalecendo hierarquias entre as áreas de conhecimento. Para Petit (2015), a literatura oral resgata as tradições africanas, assim como os símbolos que as representam, como o Tambor, a Sankofa e outros elementos inerentes à cultura preta. Assim, para a autora, a sua grande realização é a partilha dos saberes apreendidos no decorrer do seu percurso formativo em que seu principal propósito é compartilhar uma parte de sua “[...] experiência e construção teórico-prática do jovem referencial teórico-metodológico chamado Pretagogia [...]” (idem, p. 23).

Os elementos que atravessaram as discussões até aqui, são expressões dos princípios da Pretagogia, que por sua vez, se trata de uma iniciativa que abrange a interdisciplinaridade no aspecto teórico e prático para contribuir no sentimento de pertencimento e emancipação das matrizes afroancestrais. Para a autora os princípios componentes da Pretagogia, salienta-se no reconhecimento do autorreconhecer-se afrodescendente; da apropriação da ancestralidade e da religiosidade da matriz africana; no reconhecimento da sacralidade e do corpo como fonte primeira de conhecimento e produção de saberes, além da tradição oral, do princípio da circularidade, do entendimento da noção de território e da compreensão do lugar social historicamente atribuído ao negro.

Para a autora os aspetos da Pretagogia e seus valores da cosmovisão africana [referendados no penúltimo capítulo da obra], podem conjuminar na ressignificação dos princípios atrelados à Pedagogia. Na Pedagogia tradicional prevalece os conceitos eurocentrados deixando de lado estações de aprendizagens que trabalham sobre o pertencimento afro através das conexões com a ancestralidade, o que ela discute em uma entrevista, uma conversação debaixo da árvore denominada de Baobá, acerca dos fundamentos da Pretagogia.

Nessa entrevista, descrita no capítulo IV (Palavreando sobre a Pretagogia debaixo do Baobá), a autora fala sobre o conceito de Pretagogia, oralidades africanas a partir da cosmovisão da tradição, da literatura oralizada em diferenciados textos africanos e dos elementos que estruturam essa cosmovisão de África em relação “[...] à natureza, à vida, à morte, à comunidade, à palavra, à ancestralidade, à resistência, à musicalidade, à senhoridade, à magia (como arte da manipulação das energias ou das forças)” (Petit, 2015, p. 139). Na entrevista a autora informa que é importante ceder espaço e vez para todos/as protagonizarem suas histórias de vida, considerando as gerações passadas.

Essa abordagem reflete no seu fazer pedagógico, em que a autora consolida suas experiências formativas humanitárias com seus/as estudantes. A apropriação discente para/com os princípios da Pretagogia é necessária, pois o mesmo deve sensibilizar-se internamente para poder emanar boas energias e afetos nas relações cotidianas entre seus pares, repudiando, sempre ao identificar qualquer forma de preconceito, principalmente o racismo.

Salienta-se ainda que, dos aprendizados agregados, a autora diz do quanto é gratificante contribuir com a formação do ser humano, com a formação de professores/as que podem sensibilizar suas estudantes para o alcance da promoção de criticidade, criatividade e sentimento de pertencimento afroancestral. Com base em sua experiência afrocentrada e da Pretagogia, a educação assume um papel de relevância ao comprometer-se com os seus pares, e não se submetendo estrutural e ideologicamente aos interesses do sistema capitalista, o sistema colonial.

Por fim, a obra é permeada por imagens em posturas dançantes e textos em formato de poesia, poemas e epígrafes como “[...] um entrar na roda permeada de axé, jogando, dançando, pretagogizando [...]” (Petit, 2015, p. 240). Laroiê a Exu Adé, Afoxé, Azeviche, Djembe, Djun Djun, Ehó, Itan, ljalá, Kitula. Modupé Petit que o Oxoguiã seja contaminado por sua Pretagogia.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2 ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral africana na formação de professoras e professores, 1. ed. Fortaleza: EDUECE, 2015.

Notas



[1] Promulgada em 09 de janeiro de 2003, a Lei Nº 10.639 estabelece a inclusão e obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira na Rede de Ensino do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 02 mai. 2022.

 

 

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