Concepção de alfabetização e letramento dos leitores do Letra A – o jornal do alfabetizador
Concepción de alfabetización y letramiento de los lectores del
Letra A – o jornal do alfabetizador
Conception of alphabetization and literacy of the readers of
Letra A – o jornal do alfabetizador
Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.
dayane.mezuram@gmail.com
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas
Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.
mangelicaofl@gmail.com
Recebido em 15 de maio de 2022
Aprovado em 06 de fevereiro de 2023
Publicado em 31 de janeiro de 2024
RESUMO
O presente artigo objetiva compreender as concepções de alfabetização e letramento das professoras alfabetizadoras leitoras do Letra A – o jornal do alfabetizador. Este periódico – está vinculado ao Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – tem a finalidade de divulgar resultados de estudos e pesquisas realizadas no campo do ensino da linguagem escrita, envolvendo sobretudo os conceitos de alfabetização e letramento, a fim de contribuir para a formação continuada de professores alfabetizadores. Ao considerar essa peculiaridade, optou-se por apreender como os seus leitores concebem os conceitos de alfabetização e letramento, vislumbrando a aprendizagem da linguagem escrita pelas crianças. Para compreender o processo de ensino e aprendizagem da língua escrita, bem como a relação existente entre os processos de alfabetização e letramento recorreu-se tanto aos pressupostos da Teoria Histórico-Cultura , quanto aos resultados de estudos e pesquisas realizados por Soares. De outra parte, também foi necessário, efetuar um levantamento dos leitores do Letra A, recorrendo ao próprio jornal e às redes sociais para encontrar os leitores. Esta atividade propiciou o encontro de dez leitoras, professoras alfabetizadoras, com as quais foram realizadas entrevistas semiestruturadas. A partir dos estudos e desses relatos, constatou-se que essas profissionais têm sólida formação teórica, e que ao lerem as matérias do referido periódico puderam apropriar-se e ressignificar seu conteúdo, por meio de suas práticas pedagógicas. Isto atesta a relevância do Letra A para o fortalecimento da ação docente e a expressiva formação dessas professoras que definiram com precisão os conceitos mencionados.
Palavras-chave: Linguagem escrita; Alfabetização e letramento; Formação de professores.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo comprender las concepciones de alfabetización y letramiento de las profesoras alfabetizadoras lectoras del Letra A – o jornal do alfabetizador. Este periódico, vinculado al Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) de la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG), tiene como finalidad divulgar los resultados de estudios e investigaciones realizadas en el campo de la enseñanza del lenguaje escrita, involucrando principalmente los conceptos de alfabetización y letramiento, con el fin de contribuir a la formación continua de profesores alfabetizadores. Considerando esta peculiaridad, se optó por comprender cómo sus lectores conciben los conceptos de alfabetización y letramiento, vislumbrando el aprendizaje del lenguaje escrita por parte de los niños. Para comprender el proceso de enseñanza y aprendizaje del lenguaje escrita, así como la relación existente entre los procesos de alfabetización y letramiento, se recurrió tanto a los presupuestos de la Teoría Histórico-Cultural como a los resultados de estudios e investigaciones realizados por Soares. Por otro lado, también fue necesario llevar a cabo un levantamiento de los lectores del Letra A, utilizando tanto el propio periódico como las redes sociales para encontrar a los lectores. Esta actividad propició el encuentro con diez lectoras, profesoras alfabetizadoras, con las cuales se realizaron entrevistas semiestructuradas. A partir de los estudios y estos relatos, se constató que estas profesionales tienen una sólida formación teórica y que al leer los artículos del mencionado periódico pudieron apropiarse y resignificar su contenido mediante sus prácticas pedagógicas. Esto demuestra la relevancia del Letra A para el fortalecimiento de la acción docente y la significativa formación de estas profesoras que definieron con precisión los conceptos mencionados.
Palabras clave: Lenguaje escrita; Alfabetización y letramiento; Formación de profesores.
ABSTRACT
The present article intends to comprehend the concepts of alphabetization and literacy of the teachers readers of Letra A – o jornal do alfabetizador. This journal - organized by the Center of Alphabetization, Reading and Writing (Ceale) of the Federal University of Minas Gerais (UFMG) - aims to disseminate studies and research results developed in the field of teaching of the written language, especially involving the concepts of alphabetization and literacy, to contribute to the continued training teachers. When considering this peculiarity, it was chosen to apprehend how its readers conceive the concepts of alphabetization and literacy, envisioning the learning of written language by children. To understand the process of teaching and learning the written language, as well as the relationship between the processes of the alphabetization and literacy it was applied the Historical-Cultural Theory conjectures and the studies and research results published by Soares. It was also necessary, beforehand, to develop a survey with the readers of Letra A, using the periodical itself and social media to find the readers. This activity resulted in finding a total of ten readers, all of them are school teachers, with whom semi-structured interviews were carried out. From the reports of these teachers, it was verified that these professionals have expressive theoretical training, and that after reading the periodical articles, they were able to appropriate and resignify its contents throughout their pedagogical practices. This attests to the relevance of Letra A to the strengthening of teaching action and the expressive training of these teachers who precisely defined the mentioned concepts.
Keywords: Written language; Alphabetization and literacy; Teacher training.
Introdução
O presente artigo objetiva compreender as concepções de alfabetização e letramento de professoras alfabetizadoras leitoras do Letra A – o jornal do alfabetizador. Este periódico tem por finalidade divulgar resultados de estudos e pesquisas desenvolvidos por membros e colaboradores do Centro de Alfabetização Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É um recurso informativo cujo intuito é disponibilizar, inicialmente de forma impressa e, mais recentemente, de forma digitalizada, em âmbito nacional, importantes informações acerca do processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita, sobretudo relacionadas aos processos de alfabetização e letramento, almejando propiciar o fortalecimento da identidade e da formação continuada de professores alfabetizadores.
Mediante a esta peculiaridade do Letra A e por considerar que suas matérias, permeadas de conhecimentos teóricos e práticos, apresentam papel de relevo para a educação de seus leitores. Acredita-se que este público possa apropriar-se do conteúdo divulgado em suas matérias, ressignificando-o em suas práticas pedagógicas, propiciando, assim, um efetivo processo de ensinar e aprender a linguagem escrita no interior das escolas – o que contribui de forma significativa para a melhoria da educação das crianças em sala de aula. A partir disso, faz-se a seguinte indagação: como os professores alfabetizadores, leitores desse periódico, concebem alfabetização e letramento, tendo em vista a aprendizagem da linguagem escrita pelas crianças?
A justificativa para buscar respostas a esta questão encontra-se nos resultados de avaliações internas e externas referentes ao efetivo cumprimento da principal função da escola - propiciar a aprendizagem do ler, do escrever e do contar nos anos iniciais da escolarização a todas as crianças.
Esses resultados têm demonstrado elevado índice de estudantes que ficam à margem do processo de ensino e aprendizagem. É o que pode ser observado na Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) (BRASIL, 2016) que tornou público o percentual de 54,73% de estudantes acima de 8 anos de idade que apresentam insuficientes níveis de leitura. Além disso, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) (BRASIL, 2018) indicou que dentre os estudantes na faixa etária de 15 anos, 68,1% não apresentam domínio básico de Matemática, 55% de Ciências e 50% de Leitura. Esses percentuais, agravados com o ensino remoto no período correspondente a pandemia decorrente do COVID-19 – doença do coronavírus, confirmam o reincidente fracasso da instituição escolar em ensinar a leitura e a escrita às crianças.
Diante deste cenário, considerando a relevância do Letra A para a formação continuada de professores alfabetizadores, almeja-se compreender as concepções de alfabetização e letramento de professores alfabetizadores leitores do Letra A – o jornal do alfabetizador. Neste sentido, a fim de alcançar o objetivo anunciado tornou-se necessário reportar-se tanto a pressupostos da Teoria Histórico-Cultural (THC) referentes a relação entre aprendizagem e desenvolvimento (VIGOTSKI, 2001) e ao desenvolvimento da capacidade de simbolizar na criança (LURIA, 2010), quanto a resultados de estudos e pesquisas realizados, principalmente, por Soares (2004, 2017, 2020) e por outros estudiosos da área como Mortatti (2000, 2019), Ferreiro e Teberosky (1991), Colello (2012), Gontijo (2008) e Geraldi (2011) a respeito do processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita, envolvendo a alfabetização e o letramento.
Compreende-se, portanto, que é preciso realizar pesquisas no campo do ensino e da aprendizagem da linguagem escrita, a fim de refletir a respeito da formação de professores alfabetizadores, tendo em vista o encaminhamento de práticas pedagógicas que envolvam os processos de alfabetização e letramento. No caso, em específico, com os professores alfabetizadores leitores do Letra A - o jornal do alfabetizador, pois “[...] a materialidade desses objetos [periódicos] passa a ser o suporte dos questionamentos que orientam o investigador no estudo das práticas que se formalizam nos seus usos escolares” (RODRIGUES; BICAS, 2015, p. 153).
Com o intuito de conhecer e compreender a concepção de alfabetização e letramento desse público leitor, primeiramente, realizou-se um levantamento de professores alfabetizadores leitores do Letra A. Para tanto, foi preciso recorrer ao próprio jornal que em seu Editorial, principalmente nos publicados entre os anos 2005 e 2011, tornava pública as mensagens recebidas de seus leitores. Em seguida, houve a necessidade de realizar buscas desses sujeitos na página no Ceale, em redes sociais, especialmente em comunidades e grupos particulares de professores alfabetizadores.
Ao realizar tais buscas foram encontradas dez professoras, leitoras do Letra A – o jornal do alfabetizador, as quais, por meio de entrevistas semiestruturadas via whatsapp, manifestaram suas concepções acerca dos conceitos assinalados. Para preservar suas identidades, os nomes das professoras alfabetizadoras, sujeitos desta pesquisa, foram substituídos por nomes de pedras preciosas, quais sejam: Ágata, Alexandrita, Ametista, Blenda, Cristal, Esmeralda, Greta, Jade, Rubi e Safira.
É importante esclarecer que o presente artigo contempla quatro partes: diálogos sobre o conceito de alfabetização; diálogos sobre o conceito de letramento; diálogos sobre a relação entre alfabetização e letramento; alfabetização e letramento: concepções de professoras alfabetizadoras. Cada uma delas será desdobrada, a seguir.
Diálogos sobre o conceito de alfabetização
Antes de iniciar este diálogo é importante esclarecer que em seu conteúdo há a explicitação do processo histórico da alfabetização no Brasil. Compreensão necessária, para posterior apreensão da maneira como as leitoras do Letra A pensam e definem tal conceito, uma das intenções deste trabalho. A história da alfabetização foi demarcada por rupturas, continuidades e pela não neutralidade, tendo em vista que as disputas que a permearam sempre carregaram propósitos políticos e educacionais, que vislumbravam conferir um novo jeito de pensar e realizar o ensino da linguagem escrita, em uma tentativa de superar o fracasso da aprendizagem das crianças de camadas sociais e econômicas menos favorecidas no início do processo de escolarização (MORTATTI, 2019).
No período imperial, conforme aponta a referida autora, nas denominadas “aulas régias” – que aconteciam no interior de algumas escolas em condições precárias e reuniam alunos de distintas séries – a tradição era usar métodos sintéticos (alfabético, fônico e da silabação) para o ensino da leitura e da escrita, os quais, partiam das partes para o todo, seguindo uma ordem crescente de complexidade da língua (letras, famílias silábicas, palavras, frases). Já os métodos analíticos começaram a compor a história da escolarização brasileira nos anos de 1880, a partir da difusão do método João de Deus, por meio de Silva Jardim1. Tais métodos partem do todo para as partes (frases – palavras – sílabas – letras), podendo ser esse todo uma palavra, ou uma sentença, ou ainda, um texto. Neste contexto, dos anos de 1890, ocorreram disputas entre os defensores dos métodos sintéticos e dos analíticos, culminando na fundação de uma nova tradição – a institucionalização do método analítico de alfabetização no Brasil.
Segundo Mortatti (2000), a obrigatoriedade do uso do método analítico vigorou até 1920, quando houve a aprovação da Reforma Sampaio Dória (Lei n° 1750), que concedeu aos professores autonomia didática, ou seja, liberdade para a escolha da metodologia de ensino a ser utilizada em sala de aula. Essa condição possibilitou alternância entre o uso dos métodos sintéticos e analíticos, havendo, até mesmo, mesclagens entre tais metodologias – configurando-se em métodos mistos. Entretanto, o fracasso no processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita entre as crianças persistiu ao longo dos tempos. Mediante a este impasse, buscou-se por novas soluções, o que resultou na institucionalização de um novo paradigma de ensino – os “Testes ABC”. Apresentados por Lourenço Filho2, esses testes tinham o objetivo de avaliar a maturidade da criança para a aprendizagem da leitura e da escrita, secundarizando a discussão acerca das metodologias de ensino, bem como seus usos. Esse paradigma perdurou no sistema de ensino até os anos de 1970, período que ficou conhecido como “Alfabetização sob medida”.
Na década de 1980, foi institucionalizado em nível nacional – o construtivismo3, disseminado no campo do ensino da língua escrita por meio dos resultados dos estudos de Emília Ferreiro, Ana Teberosky (1991) e seus colaboradores. Tais pesquisadores intentaram explicar a aprendizagem da língua escrita pela criança, processo por elas denominado “psicogênese da escrita”. Iniciou-se, assim, uma nova forma de conceber a alfabetização que reconhece a criança como sujeito ativo na aprendizagem, capaz de apropriar-se por si mesma do sistema de escrita alfabético – desde que em interação com o objeto de estudo, a escrita. O entendimento de que essa concepção refuta o uso de métodos de alfabetização, os quais passaram a ser classificados como tradicionais, transformou-a em um novo paradigma.
É neste cenário que, no campo acadêmico começam a ser discutidos alguns pressupostos da THC. Segundo Vigotski (1995), para apropriar-se da linguagem escrita é preciso desenvolver na criança a capacidade de representar simbolicamente. Para ele, o desenvolvimento da função simbólica começa muito cedo, antes mesmo da entrada da criança na escola, por meio do uso de gestos representativos. O jogo e o desenho são os dois pontos que perpassam este desenvolvimento, ligando os gestos à língua escrita. Luria (2010) afirma que para apropriar-se desse sistema simbólico complexo (não contínuo, nem linear) que representa a linguagem escrita, a criança carece passar por estágios de desenvolvimento da capacidade de simbolizar.
Esta concepção teórica permaneceu no interior do campo universitário e não se configurou como paradigma. Influenciados pelo construtivismo, os professores alfabetizadores da maioria das escolas brasileiras rejeitaram as metodologias tradicionais de alfabetização, mas, consequentemente, não souberam como proceder para que o processo de aprendizagem da linguagem escrita fosse efetivado entre as crianças. Nesse contexto, o conteúdo inerente ao processo de alfabetização foi secundarizado no encaminhamento da prática pedagógica.
Não obstante as contribuições da perspectiva construtivista de alfabetização para compreender a aprendizagem da língua escrita, ao longo do processo de escolarização as crianças continuaram sem aprender a ler e a escrever, condição que favoreceu a manutenção do fracasso escolar, sobretudo entre os alunos das escolas públicas. É neste cenário que ganhou destaque o conceito de letramento, o qual será discutido a seguir.
Diálogos sobre o conceito de letramento
Apreender o conceito de letramento é fundamental para a compreensão da prática pedagógica das professoras alfabetizadoras leitoras do Letra A, especialmente no que tange ao ensino da linguagem escrita. O conceito de letramento surgiu no Brasil no final da década de 1980, dado o contexto histórico, social e político do qual derivou a necessidade de formar sujeitos com novas habilidades, capazes além de saber ler e escrever de fazerem uso da linguagem escrita nas mais variadas práticas sociais (SOARES, 2017).
Portanto, considera-se que letramento é o estado ou a condição que o sujeito adquire ao apropriar-se da linguagem escrita, tornando-a “[...] “própria”, ou seja, é assumi-la como sua “propriedade”, como afirma Soares (2017, p. 39). Nesta linha de discussão, Mortatti (2004, p. 98) explica que letramento, de forma direta, está “[...] relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas funções e seus usos nas sociedades letradas ou, mais especificamente, grafocêntricas, isto é, organizadas em torno de um sistema de escrita” – as quais intentam inserir os sujeitos no mundo letrado, pois valorizam a leitura e a escrita. Dessa maneira, a apropriação e o uso de tais bens culturais são necessários para que haja nos sujeitos mudanças em suas condições culturais, sociais, linguísticas, políticas e psíquicas.
Colello (2012, p. 56) explicita os diferentes modelos de letramento que foram assinalados por Street (1984), a começar pelo modelo autônomo, que “[...] desconsidera a dimensão sociocultural da linguagem e a pluralidade das suas manifestações [...]”, denunciando a autonomia da escrita, que, nesta perspectiva, passa a ser compreendida apenas pelo modo interpretativo de seu registro, sem levar em conta o contexto em que foi produzida.
De forma contrária, o modelo ideológico considera o emprego da língua escrita nas mais variadas práticas sociais, colocando em destaque seu uso e significado mediante as condições e estruturas de poder que regem a sociedade. Diante disso, Colello (2012, p. 56) destaca o fato de que à luz desta definição possa haver determinadas interpretações relacionadas aos saberes escolares. Assim, acrescenta, que não basta saber ler e escrever, “[...] é preciso garantir o efetivo emprego e significado da representação gráfica como sistema linguístico situado no tempo e no espaço”. Em outras palavras, para além de ser alfabetizado, é preciso que o sujeito faça uso efetivo do ler e do escrever em ações cotidianas – o que configura as práticas de letramento.
Para Kleiman (1995), a instituição escolar, cuja função é inserir o sujeito no mundo letrado, preocupa-se com o processo de alfabetização e não com a prática social da leitura e da escrita – o letramento. Neste contexto, Soares (2017) sublinha que no campo escolar é preciso haver a apreensão de que não basta alfabetizar as crianças, mas é preciso, de forma simultânea, criar possibilidades de uso da linguagem escrita, de modo que elas possam envolver-se em práticas sociais de leitura e escrita. Somente assim, a aprendizagem da língua escrita passa a ter sentido e significado, por isso, defende que é preciso alfabetizar letrando.
Vale ainda sublinhar que em conformidade com o sentido atribuído por Soares (2017) ao fenômeno letramento, uma criança que ainda não sabe ler e escrever pode ser considerada, de certa maneira, letrada, se estiver inserida em um mundo letrado. Assim, a criança que não é alfabetizada, mas que interage com diversos escritos, paulatinamente compreende o uso e a função social da escrita.
Este exemplo também auxilia a compreender o que é uma pessoa letrada de acordo com esta perspectiva do letramento, a qual, segundo Soares (2017) não é a mesma de quando ainda não sabia ler e escrever (ou iletrada), sua condição social e cultural é modificada – não se trata de uma alteração em sua classe social ou cultural – ocorre uma mudança em seu lugar social. A autora ainda elucida que o sujeito alfabetizado e letrado se expressa diferente daquele que ainda não aprendeu a ler e a escrever. Estudos revelam que, especialmente entre adultos, a linguagem oral sofre alterações depois de serem alfabetizados. Com isso, pode-se afirmar que após a aprendizagem da leitura e da escrita esses sujeitos passaram a expressar a linguagem oral de forma diferenciada, revelando que a convivência com a linguagem escrita realmente lhes propicia mudanças na oralidade, tanto no que concerne ao uso das estruturas linguísticas quanto no vocabulário (SOARES, 2017). De posse dessa compreensão, infere-se que o processo de letramento é essencial para que haja aprendizagem e desenvolvimento do sujeito, pois ao dominar o uso da língua escrita, suas condições de vida são alteradas.
Diálogos sobre a relação entre alfabetização e letramento
Diante do exposto acerca dos conceitos de alfabetização e letramento, pode-se dizer que na perspectiva dos métodos tradicionais de ensino da leitura e da escrita empregados nos anos iniciais da escolarização, denominados sintéticos, analíticos e mistos, tais processos eram concebidos de forma independente, um precedendo o outro – primeiramente aprendia-se a ler e a escrever para, depois, desenvolver habilidades de uso da leitura e da escrita. Com a disseminação do paradigma construtivista no país, a partir da década de 1980, ocorreram mudanças tanto na compreensão do conceito de alfabetização, quanto no encaminhamento da prática pedagógica no interior da sala de aula. Se anteriormente, a criança, sujeito passivo no processo de ensino, carecia apresentar-se “madura” ou “pronta” para a aprendizagem da leitura e da escrita por meio dos métodos de ensino acima mencionados, com o construtivismo em voga, passou a ser considerada como sujeito ativo, capaz de, a partir da interação com materiais escritos, apropriar-se do sistema alfabético (SOARES, 2004).
Os estudos de Ferreiro e Teberosky (1991) contribuíram de forma significativa para o campo de estudos da alfabetização por explicarem os estágios de desenvolvimento da escrita na criança, que perpassam pelas fases pré-silábica, silábica e alfabética. Entretanto, conforme reportado por Soares (2004, p. 11), este paradigma “[...] conduziu a alguns equívocos e a falsas inferências, que podem explicar a desinvenção da alfabetização ou a perda de sua especificidade”. Primeiro, porque ao priorizar a faceta psicológica da alfabetização, acabou secundarizando a faceta linguística, que contempla aspectos fonêmicos. Segundo, porque reconheceu que o fracasso das crianças para a aprendizagem da linguagem escrita estava relacionado ao uso das metodologias tradicionais do ensino – o que resultou na refutação de tais métodos para ensinar a leitura e a escrita. E por último, porque considerou que a criança em interação com registros escritos, que circulam nas práticas sociais, se tornaria alfabetizada. Ao considerar estas questões e as ocorrências referentes ao surgimento do letramento, Soares (2004) constatou que houve no campo escolar uma intensificação das práticas envolvendo este processo, em detrimento do conteúdo inerente à alfabetização – o que culminou na perda de sua especificidade.
É importante clarificar que o reconhecimento da especificidade da alfabetização não está, necessariamente, atrelado à retomada do uso das metodologias tradicionais do ensino. Nesta direção, Colello (2012) sublinha que ao reduzir a alfabetização a si mesma têm-se o risco de perder o letramento como parte integrante do processo de ensinar e aprender, e em consequência abre-se mão de trabalhar a escrita como instrumento para se relacionar e interpretar o mundo.
Vale, aqui, elucidar a especificidade do processo de alfabetização sem que esteja dissociado do processo de letramento. Isto se faz relevante porque no campo escolar, por vezes, observa-se que as crianças não estão sendo letradas, e tão pouco alfabetizadas.
Soares (2004) descreve cada um desses processos. O letramento, que são muitas as facetas, é quando ocorre a imersão das crianças na cultura do escrito, por meio de diversas experiências participativas envolvendo a leitura e a escrita, conhecendo e interagindo com os variados gêneros textuais. A alfabetização, também contempla muitas facetas como “[...] consciência fonológica e fonêmica, identificação das relações fonema-grafema, habilidades de codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita” (SOARES, 2004, p.15). A autora ainda esclarece que o processo de alfabetização só acontece no contexto de uso da leitura e da escrita, assim como o processo de letramento só se desenvolve no contexto da aprendizagem da leitura e da escrita. Portanto, é preciso “alfabetizar letrando” – a fim de que a criança aprenda a língua escrita de forma efetiva.
Colello (2012) sublinha que alfabetizar letrando significa trabalhar para o desenvolvimento da capacidade de aprender a escrever o próprio nome, as letras, realizar cópias de palavras e decodificar os registros presentes no papel. É ser capaz de fazer uso da escrita como instrumento para se comunicar e expressar, atuar com criticidade na sociedade e compreender o mundo.
Dessa maneira, apreende-se que, para que a criança realmente seja alfabetizada e letrada faz-se necessário considerar tanto as possibilidades de uso de uma variedade de métodos, almejando o ensino das facetas de ambos os processos, quanto às particularidades de aprendizagem de cada uma das crianças, de modo que o professor, em sua ação de ensinar, possa criar condições efetivas para a apropriação da linguagem escrita por elas.
Neste sentido, pensar em possibilidades de ensino, de acordo com as palavras de Geraldi (2011), requer compreender que o ingresso da criança ao mundo letrado acontece por meio de dois caminhos: pelo aprendizado da correspondência fonema-grafema – apreendendo os símbolos escritos; e pela compreensão e interpretação das ideias – favorecendo a apreensão do significado daquilo que é lido e registrado. Mesmo que esta assertiva represente uma crítica, ela dá robustez ao argumento de Soares (2020) sobre a relação de indissociabilidade entre a alfabetização e o letramento, que são processos cognitivos e linguísticos diferentes – assim, o processo de ensinar e aprender cada um deles também se distingue e por serem interdependentes, é preciso trabalhá-los simultaneamente.
Nesta linha de discussão, Gontijo (2008) e Mortatti (2007) fazem uma crítica entre a distinção dos dois conceitos realizada e disseminada pelos escritos de Soares (2004). A primeira, considera que a ampliação do conceito de letramento, concebendo-o como uma condição que os sujeitos adquirem ao se apropriarem e fazerem uso da língua escrita nas mais diversas práticas sociais, colaborou para a restrição do conceito de alfabetização – como se seu significado se restringisse a apropriação do código escrito, contemplando apenas sua faceta linguística (aspectos fonético e fonológico). Diante disso, Gontijo (2008) alerta: a não compreensão da complexa relação entre os processos de alfabetização e letramento pode obscurecer fatores escolares, sociais, econômicos e históricos que tendem a dificultar a igualdade de acesso à cultura da escrita, especialmente, em sociedades desiguais, como a brasileira.
Segundo Mortatti (2007, p. 165), podemos pensar “[...] em sentidos relativamente coincidentes para alfabetização e letramento”. Esta crítica está fundamentada na concepção de texto como concretização da língua – materialidade do discurso. Assim, define alfabetização como a ação de ensinar a leitura e a produção de textos, propiciando a constituição de um sujeito capaz de inserir-se e atuar em uma sociedade letrada.
No que tange ao letramento, Mortatti (2007) pontua que tal conceito, na atualidade, está disseminado entre pesquisadores e educadores. Contudo, não há entre eles uma definição conceitual homogênea que disserte sobre o encaminhamento da prática de ensino, bem como não existem esclarecimentos suficientes acerca das complexas relações existentes entre alfabetização e letramento.
A partir das reflexões até aqui expostas acerca dos conceitos de alfabetização, de letramento e das relações entre ambos, apreende-se que há variados estudos e discussões entre os estudiosos que intentam explicar cada qual a sua maneira, como deve ocorrer a aprendizagem da linguagem escrita entre as crianças. Contudo, ainda hoje, há um percentual significativo de sujeitos que ficam à margem desse processo. Por isso, sublinha-se que o Letra A por ser considerado um instrumento de relevo para o fortalecimento da formação de professores alfabetizadores, provoca a curiosidade e a necessidade de compreender a prática educativa de seus leitores, com a intenção de certificação de seu desempenho formativo. Assim, outro passo, imprescindível, é conhecer como as professoras alfabetizadoras leitoras do Letra A - o jornal do alfabetizador concebem tais conceitos e definem sua relação.
Alfabetização e letramento: concepções de professoras alfabetizadoras
Este subitem contempla, inicialmente, as concepções de alfabetização manifestadas pelas professoras entrevistadas; em seguida, as de letramento; e, por fim, a forma como elas concebem a relação entre esses processos, o que irá explicitar suas compreensões acerca da aprendizagem da linguagem escrita pelas crianças. A respeito do conceito de alfabetização, cinco das professoras entrevistadas apresentaram semelhanças em suas definições, sublinhando a apropriação do sistema de escrita. Repare:
É a aquisição da tecnologia da escrita, a compreensão do princípio alfabético (Ágata, informação redigida).
É a aquisição do código da escrita alfabética (Blenda, informação verbal).
É aquisição da tecnologia da escrita (Esmeralda, informação verbal).
Apropriação do sistema de escrita alfabética (Greta e Jade, informações verbais).
Duas professoras destacaram a figura do aluno nesse processo, conceituando alfabetização do seguinte modo:
Processo de aprendizagem da leitura e da escrita que precisa ser construído junto com o aluno (Cristal, informação verbal).
Processo de aquisição da leitura e da escrita que envolve os alunos (Safira, informação verbal).
Diante do supracitado, observa-se que essas respostas apresentam proximidade com a definição de alfabetização feita por Soares (2020, p. 27) que explica a apropriação da “tecnologia da escrita” como um processo de aquisição do sistema de escrita alfabética, ou seja, um “[...] conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita [...]”. Assim, ao considerar as concepções de Cristal e Safira, torna-se notório a compreensão de que o aprendizado do ler e do escrever acontece de forma colaborativa e sistematizada, de modo que a ação mediadora do alfabetizador crie condições de aprendizagem para que a criança possa apropriar-se de conteúdos inerentes ao processo de alfabetização, a fim de que nela ocorra o desenvolvimento de suas funções psíquicas, como a percepção, a atenção, a memória e o pensamento (VIGOTSKI, 2009).
Nas concepções de alfabetização apresentadas por duas outras professoras – Alexandrita e Ametista, pode-se averiguar que além de reconhecê-la como apropriação do “código da escrita” ou da “tecnologia da escrita”, houve a exposição de outros aspectos referentes a este conceito. Observe a definição elaborada pela professora Alexandrita (informação verbal): “[...] alfabetização é a aquisição do código da escrita, do sistema de escrita. Então se escreve da direita para a esquerda, se escreve com letras, que tem sons. E que é preciso compreender esses sons. Isso é parte do processo de alfabetização”. Há nessa definição menção a duas habilidades inerentes ao processo de alfabetização. A primeira, diz respeito à aprendizagem das convenções da escrita, conforme esclarece Soares (2020, p. 203): “[...] a direção correta da escrita na página (de cima para baixo, da esquerda para a direita); a organização espacial do texto na página; a manipulação correta e adequada dos suportes em que se escreve e nos quais se lê – livro, revista, jornal, papel etc”. A segunda, relaciona-se com o modo progressivo do aprendizado da criança, que: “[...] compreende que a escrita representa os sons da fala e, paralelamente, a aprendizagem do sistema em que os sons da fala, reduzidos a menor unidade, os fonemas, são representados por grafemas: o sistema de escrita alfabética” (SOARES, 2020, p. 203).
A professora Ametista (informação verbal) explicou que a alfabetização é processual, requerendo o ensino da relação fonema-grafema:
É a aprendizagem da tecnologia do ler e do escrever. [...] É quando a gente sabe ler, escrever, traduzir em palavras escritas ou na oralidade aquilo que se pensa. Quando se consegue a partir de alguma coisa que leu, contar para o outro. É conseguir juntar as letrinhas, formar as palavras, é o processo inicial da decodificação mesmo. É entender o ritmo da leitura. É passar de fases da leitura escandida, para leitura mais corrente, mais rápida.
A professora Rubi (informação verbal) pontuou que a alfabetização é a “[...] aprendizagem da decodificação da língua, aquisição e consolidação de todas as habilidades do sistema de escrita alfabética”. Portanto, é importante conhecer quais são essas habilidades que a criança deve ter domínio para que possa apropriar-se da “tecnologia da escrita”, como:
[...] domínio do sistema de representação que é a escrita alfabética e das normas ortográficas; habilidades motoras de uso de instrumentos de escrita (lápis, caneta, borracha...); aquisição de modos de escrever e de modos de ler – aprendizagem de uma certa postura corporal adequada para escrever ou para ler, seguindo convenções da escrita [...] (SOARES, 2020, p. 27).
Nota-se que para que a criança possa compreender e apropriar-se da língua escrita, é necessário que o professor implemente diversificadas ações pedagógicas, tendo em vista o desenvolvimento de determinadas habilidades. Diante disso, é oportuno destacar a relevância da organização e da intencionalidade do ensino da linguagem escrita, condição sine qua non para a promoção da aprendizagem e do desenvolvimento humano, favorecendo a formação de crianças leitoras e escritoras.
O diálogo com as professoras, sujeitos desta pesquisa, possibilitou também compreender a forma como elas concebem o letramento. As professoras Ágata e Greta, por exemplo, conceituaram letramento com precisão, conforme acepção de Soares (2017), sublinhando que é preciso domínio da leitura e da escrita para fazer pleno uso das habilidades de ler e escrever na vida cotidiana. Atente-se às suas considerações:
É a competência do uso da linguagem escrita nas práticas sociais. São os diferentes usos e funções da escrita, vivenciar diferentes práticas de leitura e escrita (Ágata, informação redigida).
Uso efetivo e competente da tecnologia da escrita, do sistema de escrita alfabética, em situações reais de leitura e de produção de textos (Greta, informação verbal).
Duas outras professoras, pontuaram a relevância de o alfabetizador conhecer e saber fazer uso de diversificados gêneros textuais utilizados no dia a dia da criança. Observe suas definições relacionadas ao conceito de letramento:
Práticas diversificadas de uso de leitura e escrita, trabalho com diversos gêneros textuais que possam estar voltados para o dia a dia das crianças, para a prática delas (Safira, informação verbal).
Meio que eu ofereço ao meu aluno de ampliar o seu conhecimento no que se refere ao uso da leitura e da escrita. Não só ligado a livros literários ou a livros didáticos, mas ligado à circulação de gêneros textuais diversos (Cristal, informação verbal).
Outras três professoras expuseram a definição do conceito de letramento de forma mais direta e sucinta:
Uso do código escrito nos mais diversos contextos sociais que o estudante vivencia (Blenda, informação verbal).
Saber fazer uso da leitura e da escrita, utilizar no dia a dia a função social da leitura e da escrita (Jade, informação verbal).
Saber fazer uso social da linguagem escrita (Rubi, informação verbal).
Ao examinar as respostas das professoras alfabetizadoras supracitadas verificou-se que suas concepções de letramento apresentam semelhanças com o posicionamento de Soares (2017, p. 20) que discorre acerca da necessidade de saber fazer uso da “tecnologia da escrita” ou do ato de ler e de escrever e “[...] responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente”. Em seus dizeres também há conformidade com os pressupostos da THC, a qual assinala a importância de o processo de aprendizado da língua escrita abarcar a realização de atividades que envolvam o uso da leitura e da escrita, como a expressão de uma ideia, o registro de uma carta, receita, convite ou bilhete, de modo a fazer sentido e significado para a criança.
Outras professoras manifestaram explicações mais complexas sobre o conceito de letramento. A professora Alexandrita (informação verbal) definiu letramento da seguinte maneira:
É o uso social que a criança faz da escrita. É a condição que ela adquire, a partir de ter se apropriado da escrita. Para lidar com o mundo social através da comunicação escrita, exige-se certos conhecimentos em termos de leitura e de escrita. Então, essa escrita existe e tem uma função. Ela serve para comunicar. Letramento é toda a relação que a criança tem de compreensão dessa escrita no mundo, desse uso que ela faz da leitura e da escrita em situações sociais.
Repare que Alexandrita, em sua explicação, contemplou outros aspectos do conceito de letramento ao expor a lembrança de que é a condição que a criança adquire a partir do aprendizado da linguagem escrita – o que a possibilita fazer uso da leitura e da escrita nas mais diversas práticas sociais, de acordo com os ensinamentos de Soares (2017, p. 44): “[...] letramento é o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita”.
Já Ametista apresentou uma definição mais ampla do conceito de letramento, definindo-o como a ação de ler e interpretar o mundo. Apreende-se que isto é possível quando os sujeitos têm domínio do ato de ler e escrever e fazem uso dessas habilidades nas mais variadas práticas sociais, o que eleva os sujeitos “[...] a um outro estado ou condição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo, linguístico, entre outros” (SOARES, 2017, p. 38). Observe:
Letramento é como eu lido com o mundo! Como eu leio e interpreto o mundo! Como eu duvido do mundo! É um discernimento de interpretação da sociedade. Não é só eu saber pegar um ônibus, mesmo não sendo alfabetizada. Não é somente saber me movimentar, mas aprender a ser crítica também e interpretar o que esse mundo nos apresenta. O letramento é constituído a partir do diálogo, de leituras, observações, referências. (Ametista, informação verbal).
A professora Esmeralda (informação verbal) apresentou uma definição que atrela o conceito de letramento à apropriação da tecnologia da escrita, sublinhando a diferença existente entre a criança letrada e a alfabetizada:
Ao adquirir a tecnologia da escrita, se adquire também a compreensão do uso da linguagem. Você pode inclusive ter a compreensão do mundo. Tem criança que é letrada, mas ainda não é alfabetizada. E tem criança que já é alfabetizada, mas que ainda está sendo letrada. O ideal é a gente alfabetizar letrando.
Em sua exposição, Esmeralda revela conhecimento de que alfabetização e letramento são processos distintos, e por isso, reconhece a necessidade de trabalhá-los de forma simultânea no interior da sala de aula, de modo que se alfabetize letrando as crianças, conforme apontado por Soares (2017; 2020).
A partir do conteúdo implícito nas respostas das professoras alfabetizadoras, constata-se que elas apresentam domínio do conhecimento teórico especializado, referente ao processo de letramento, que também se faz presente nas publicações do Letra A – o jornal do alfabetizador – o que possibilita, aos leitores, a apropriação e ressignificação do teor implícito nas matérias do periódico.
A respeito da relação entre alfabetização e letramento, entre as professoras entrevistadas, duas – Ágata e Cristal – explicaram com poucas palavras que tratam-se de processos indissociáveis e que devem ser implementados simultaneamente:
Alfabetização e letramento são processos indissociáveis e simultâneos (Ágata, informação redigida).
Eu não consigo desassociar o processo de alfabetização do processo de letramento. Então, a alfabetização deve estar totalmente atrelada ao letramento (Cristal, informação verbal).
Também a professora Blenda considerou-os processos diferentes, mas destacou a necessidade de serem trabalhados concomitantemente: “Alfabetização e letramento são processos distintos, que devem ser trabalhados de forma mútua” (Blenda, informação verbal). Na mesma direção, Alexandrita, Ametista e Rubi reconheceram que a implementação dos processos de alfabetização e de letramento devem ocorrer de forma concomitante:
“Alfabetização e letramento devem caminhar juntos” (Alexandrita, informação verbal).
“Alfabetização e letramento caminham juntos” (Ametista, informação verbal).
“Alfabetização e letramento são desenvolvidos conjuntamente. Andam de mãos dadas” (Rubi, informação verbal).
Em sua exposição, a professora Jade (informação verbal) assinalou porque tais processos devem ocorrer de forma conjunta: “O letramento precisa caminhar junto com a alfabetização, porque ao mesmo tempo em que a criança aprende a ler e a escrever, ela também precisa fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano”. Três outras professoras – Esmeralda, Greta e Safira – anunciaram que é preciso alfabetizar letrando, possibilitando inferir que, provavelmente, elas compreendam que alfabetização e letramento são processos distintos, indissociáveis e simultâneos. Veja:
“A gente deve alfabetizar letrando” (Esmeralda, informação verbal).
“A gente trabalha com a perspectiva de alfabetizar letrando” (Greta, informação verbal).
“Como a gente diz: deve-se alfabetizar letrando” (Safira, informação verbal).
Diante dos relatos supracitados, deduz-se que cada uma das professoras entrevistadas têm o discernimento de que alfabetização e letramento são processos distintos, indissociáveis e simultâneos, de modo que se possa alfabetizar letrando, conforme explicações de Soares (2017, p. 47, grifos da autora): “[...] ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se torne, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado”. Aqui é necessário salientar que também Luria (1979) destaca a necessidade de o aprendizado da linguagem escrita, ter sentido e significado para a criança, a fim de que ela faça uso em sua vida deste instrumento cultural complexo.
O aspecto da mediação inerente ao processo de ensino e de aprendizagem da linguagem escrita foi apontado pela professora Ametista (informação verbal) ao destacar a figura do professor como mediador dos processos de alfabetização e letramento, enfatizando-o como “[...] fundamental neste contexto do aprendizado, porque o professor deve ter esse brilho para poder mobilizar a criança para essa aprendizagem, nessa nova etapa da vida, ele deve fazer isso com prazer e satisfação”, a fim de a criança atribuir sentido e significado à esse aprendizado. A ação mediadora do professor é primorosa para a criação de condições significativas para apropriação dos conceitos científicos pertinentes ao domínio da língua escrita, propiciando aprendizagem e agindo diretamente no nível de desenvolvimento potencial da criança.
Aqui é oportuno esclarecer que Vigotski (2001) explicita a existência de dois níveis de desenvolvimento da criança: o efetivo, referente ao desenvolvimento real, e o potencial, que se caracteriza pela maneira dependente da criança em realizar determinadas atividades, carecendo, para tanto, do auxílio de um sujeito mais experiente. No âmbito escolar esse sujeito é o professor, cuja relação com o aluno pode ser representada da seguinte forma: “sujeito-conhecimento-sujeito” (SFORNI, 2008, p.2).
Nesta direção, Ametista (informação verbal) completa sua explicação enfatizando a relevância dessa mediação para o aprendizado do letramento: “[...] o letramento requer um mediador, é preciso ter um mediador, não só da leitura literária, mas de outras leituras. E o professor é esse grande mediador, quem coloca dúvidas”, quem desafia e auxilia o aprendizado do aluno. Em complemento, a referida professora explicou que os processos de alfabetização e letramento podem ser desenvolvidos por meio da seleção de gêneros textuais, a partir das:
[...] escolhas que eu faço na sala de aula, das parlendas que eu levo para as crianças, dos livros que eu leio para elas, daquilo que eu coloco na sala de aula para estimular a leitura, a escrita, o reconhecimento das letras, o desenvolvimento individual de cada criança [...] (Ametista, informação verbal).
Na mesma direção, Ágata (informação redigida) manifestou a necessidade de a criança conviver com diversos portadores de textos, condição tanto para o processo de alfabetização quanto para o de letramento:
Se faz necessário combinar a alfabetização e o letramento, assegurando aos alunos tanto a apropriação do sistema de escrita, como o domínio dos usos sociais da leitura e da escrita. O ideal é possibilitar que a alfabetização se desenvolva em um ambiente onde a criança conviva com variados portadores de textos ao mesmo tempo em que constrói a base alfabética.
A professora Cristal (informação verbal) pontuou importantes atributos que devem estar presentes na rotina escolar do professor para que os processos de alfabetização e letramento sejam efetivados. Atente-se à sua resposta:
As histórias, os textos de circulação social precisam fazer parte da nossa rotina. Nós precisamos construir momentos de leituras coletivas, de leitura do professor, de análise de palavras, interpretações orais, produções orais e produções escritas. Nós precisamos ter acesso a materiais impressos, colocar os alunos para ler, escrever e analisar as palavras. No meu mundo de alfabetizadora, a contação de história é presente, a leitura é presente diariamente [...]
A partir dos depoimentos aqui expostos, pode-se afirmar que as alfabetizadoras – sujeitos desta pesquisa – ao explicarem a relação entre os processos de alfabetização e letramento, pontuaram a relevância da ação pedagógica para que a aprendizagem da leitura e da escrita, bem como os usos sociais dessas habilidades, sejam alcançadas pelas crianças. Ainda pode-se afirmar que, dado o teor dos relatos dessas profissionais do ensino, verifica-se que o conhecimento teórico voltado para a compreensão do processo de ensino e aprendizagem da língua escrita, envolvendo os conceitos de alfabetização e letramento corresponde ao conteúdo das matérias publicadas no Letra A – o jornal do alfabetizador, que se configura como um instrumento de formação continuada dessas professoras, auxiliando-as no fortalecimento de suas compreensões sobre os conceitos mencionados.
Considerações finais
Em cada momento histórico há necessidade de formar sujeitos com determinada identidade, o que se traduz em um novo jeito de pensar o processo de ensino e aprendizagem da linguagem escrita, ora recorrendo aos chamados métodos tradicionais de alfabetização, ora colocando em práticas novos paradigmas de ensino que redefinem a relação professor-aluno, mas que intentam romper com o contínuo cenário de fracasso escolar entre as crianças de camadas sociais menos favorecidas.
O surgimento do fenômeno do letramento, associado aos preceitos do construtivismo para a alfabetização, provocou mudanças no início do processo de escolarização das crianças. Pode-se dizer que elas passaram a ser letradas e não alfabetizadas. Este quadro apontou para a necessidade de reinventar a alfabetização, como apontado por Soares (2004), de modo que as especificidades desse processo fossem resgatadas para que, ao mesmo tempo em que as crianças aprendessem a ler e a escrever, pudessem aprender a fazer uso dessas habilidades nas mais variadas práticas sociais. Trata-se de, relembrando a expressão mais representativa dessas reflexões, alfabetizar letrando.
Essas reflexões corroboram orientações teórico-metodológicas advindas da THC, as quais consideram que para a consolidação do processo de alfabetização é preciso que o aprendizado do ler e do escrever contemple o exercício de atividades que requeiram o uso da linguagem escrita nas mais diversas circunstâncias de vida das crianças; só assim esse aprendizado tem sentido e significado, motivo pelo qual elas sentem necessidade de aprender a ler e a escrever, razão pela qual a humanidade, no conjunto de suas experiências, definiu a leitura e a escrita como habilidades necessárias à condução da vida.
Torna-se notório que tanto o conceito de alfabetização, quanto o de letramento são complexos, não havendo entre estudiosos e pesquisadores uma explicação homogênea para a relação entre ambos os processos. Entretanto, é preciso assinalar que os sujeitos desta pesquisa apresentam sólida formação, pois demonstram satisfatório domínio do conteúdo teórico especializado voltado para o processo de ensino e aprendizado da linguagem escrita, principalmente dos estudos realizados por Soares (2004, 2017, 2020).
Elas compreendem as especificidades dos processos de alfabetização e letramento, bem como tais conceitos devem ser implementados em sala de aula, uma vez que os reconhecem como processos distintos, interdependentes e indissociáveis e que há necessidade de se alfabetizar letrando – com a intencionalidade de formar crianças leitoras e escritoras. Essas questões possibilitam a compreensão de que o periódico Letra A – o jornal do alfabetizador contempla matérias permeadas de conhecimentos que fortalecem a formação e a identidade de professores alfabetizadores.
Portanto, a realização desta pesquisa, possibilitou constatar que as professoras alfabetizadoras leitoras do Letra A, apresentam significativo domínio da concepção dos conceitos de alfabetização e letramento, o que admite afirmar que suas práticas pedagógicas tendem a ocorrer de forma exitosa. Ainda pode-se dizer que este periódico, realmente configura-se como instrumento formativo, ao potencializar a ação mediadora dessas profissionais do ensino – propiciando, entre as crianças, melhores condições de apropriação dos conteúdos inerentes a aprendizagem da linguagem escrita.
É necessário ainda sublinhar que, por vezes, a lacuna e a precarização da formação de alfabetizadores são fatores que implicam na não efetivação da aprendizagem da linguagem escrita entre as crianças – o que favorece à manutenção dos elevados índices de fracasso escolar entre os estudantes, como demonstrado nos dados estatísticos da ANA (2016) e do Pisa (2018). Contudo, ao compreender as concepções de alfabetização e letramento das professoras leitoras do Letra A, pode-se verificar a qualidade da formação teórica dessas profissionais – o que é imprescindível para a ocorrência de uma efetiva ação de ensinar e aprender. Isto, é exemplo da significância da realização desta pesquisa, que demonstra o quão primoroso é o investimento na formação docente, no uso de instrumentos formativos, como o Letra A, que potencializam a ação docente, para que mais crianças possam tornar-se leitoras e escritoras.
Mediante a isto, é possível pensar que por meio de um trabalho colaborativo, envolvendo instituições de ensino, professores, alunos, conhecimentos teórico e prático possa-se alcançar melhoria na formação de professores e nos índices de sujeitos considerados alfabetizados e letrados. Compreende-se, assim, a importância de continuar a realizar estudos e pesquisas que intentem compreender os desafios que envolvem a aprendizagem da linguagem escrita entre os sujeitos.
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Notas
1 Silva Jardim, de acordo com Mortatti (2000), era militante, positivista e professor da Escola Normal de São Paulo. Na década de 1880, no Brasil, divulgou o “método João de Deus”, o qual, havia sido publicado, em Portugal, na revista “Cartilha Maternal ou Arte da leitura”, que foi redigida pelo poeta português João de Deus.
2 Lourenço Filho, intelectual brasileiro reformista e escolanovista de renome na história da educação do Brasil
3 Perspectiva teórica que defende a ideia de que a criança em interação com o sistema simbólico complexo, que é a linguagem escrita, torna-se capaz de apropriar-se e reconstruir esse sistema de representação (SOARES, 2004).
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