A pesquisa com/sobre/para crianças - descolonizando o olhar e a escuta: uma conversa com Ana Lúcia Goulart de Faria
The research with/about/for children – descolonizing the look and the listening: a conversation with Ana Lúcia Goulart de Faria
Ana Lúcia Goulart de Faria
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
cripeq@unicamp.br - https://orcid.org/0000-0002-1886-3790
Sueli Salva
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maira, Rio Grande do Sul, Brasil
susalva@gmail.com – https://orcid.org/0000-0002-6760-770X
Leandro Rogério Pinheiro
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
leandropinheiro75@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-5041-4939
Lucas Alexandre Pires
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil
lucasalexandrep@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-9112-4487
Recebido em 06 de maio de 2022
Aprovado em 19 de maio de 2022
Publicado em 05 de julho de 2022
RESUMO
O texto apresenta a fala da Professora Drª Ana Lúcia Goulart de Faria realizada no Seminário Especial: Reflexividade(s) e ação social: ponderações à pesquisa sobre socialização e individuação, promovido pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS) e Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM). O encontro realizado em 21 de outubro de 2021 teve como tema: A pesquisa com crianças descolonizando o olhar e a escuta e foi transmitido via redes sociais da UFRGS. O diálogo partiu do questionamento em que momento e como o conceito de descolonização se tornou uma questão para as pesquisas. A pesquisadora Ana Lúcia Goulart de Faria coordena a linha Culturas Infantis do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sóciocultural (GEPEDISC) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A partir da questão e através de outras que serão apresentadas, a Professora desenvolveu seus argumentos expressando como a noção de descolonização (seu doutorado em 1994 então focado na Pedagogia Macunaímica) desde as condições para sua constituição como conceito e como processo, contribuiu e contribui na pesquisa com criança.
Palavras-chave: pesquisa com/sobre/para crianças, descolonização do pensamento, infâncias, educação infantil, culturas infantis.
ABSTRACT
The text presents the speech of the PhD Professor Ana Lúcia Goulart de Faria performed in the Special Seminary: Reflexividade(s) e ação social: ponderações à pesquisa sobre socialização e individuação [Reflexibility(ies) and social action: ponderations to research about socialization and individualization], promoved by the Federal University of Rio Grande do Sul Post-Graduation Program (PPGEDU/UFRGS) and the Federal University of Santa Maria Post-Graduation program (PPGE/UFSM).The meeting performed in october, 21st, 2021 had as theme: “The research with children descolonizing the look and the listening” and it was broadcasted by social medias from UFRGS. The dialogue begun from the debrief: in which moment and how the concept of descolonization has turned a question for the researches. The researcher Ana Lúcia Goulart de Faria coordinates the segment Peer Culture from Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sóciocultural (GEPEDISC culturas infantis) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). From the question and throught others that will be presented the Professor developed her arguments expressing how the notion of descolonization (her doctorate degree in 1994 so focused in the Macunaímica Pedagogy) since the conditions for it construction as concept and as process, contributed and contributes in the research with children.
Keywords: research with/about/for children; decolonization of thought; childhoods; early childhood education; peer culture
Introdução
O texto apresenta a fala da Professora Ana Lúcia Goulart de Faria, que desenvolve o tema: “A pesquisa com crianças descolonizando o olhar e a escuta”. O encontro é parte do Seminário Especial “Reflexividade(s) e ação social: ponderações à pesquisa sobre socialização e individuação”, promovido pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEDU/UFRGS) e Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM) ocorrido no período de 26 de agosto a 04 de setembro, tendo durante esse período a participação de outros/as convidados/as e, no dia 21 de outubro recebemos a Professora e Pesquisadora da Unicamp Drª Ana Lúcia Goulart de Faria.
A professora Ana Lúcia é uma referência importante no campo da Educação Infantil, em especial quando o tema é pesquisa com crianças; coordena a Linha de Pesquisa “Culturas Infantis” do GEPEDISC, trabalhando temas contemporâneos relacionados com a pequena infância e educação infantil. Além disso, a Professora se destaca pela militância e, atualmente, é membro da gestão no Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI).
Para este encontro foram enviadas com antecedência seis questões à professora Ana Lúcia. De antemão alertamos que a fala não seguirá as perguntas de forma linear, mas de algum modo, nos levam aos temas discutidos por Ana Lúcia em suas pesquisas e reflexões e nos possibilitam compreender a dimensão de sua obra.
Sueli Salva: 1. Professora Ana Lúcia, você é uma é uma referência quando o tema é a pesquisa com crianças pequenas; conhece profundamente o campo, é participante e militante em vários grupos que discutem e defendem uma pesquisa que enfrente dilemas que envolvem a pesquisa com crianças. Como você avalia o campo da pesquisa com crianças neste momento? Quais os desafios que ainda precisam ser enfrentados para que avance o campo epistemológico da pesquisa com crianças?
2. Considerando a noção de pedagogias descolonizadoras, como esse se articula com o campo da política, voltada hoje no Brasil à agenda conservadora, que visa controlar ações no campo da educação, delimitando temáticas ou abordando outras, visivelmente ancoradas em um viés ideológico e de poder. Como a pesquisa com crianças, em especial a noção de pedagogias descolonizadoras, pode impactar na construção e reafirmação da criança como sujeita de direito e do direito a viver a infância de forma digna?
3. Sabe-se que o conceito de interseccionalidade tem sido trabalhado entre as feministas, a partir das feministas negras. Nas pesquisas que têm as crianças como sujeitas, o conceito ainda aparece de modo muito tímido embora o seu grupo trabalhe com a interseccionalidade de gênero, raça, classe e idade. Sabe-se que a pesquisa social, e em especial a pesquisa com crianças, envolve assimetrias de poder, ideologias, crenças. Como pensar as diferentes infâncias, sem sobrepor uma em detrimento de outras e/ou sobrepor-se no processo de pesquisa com crianças?
4. Que obstáculos você considera que se interpuseram não só diante da suspensão de encontros presenciais em decorrência da pandemia, mas também no campo das políticas educacionais em curso no momento atual e que estratégias podem nos ajudar a fortalecer o campo da Educação Infantil, com vistas à “redução de danos” às crianças e a Educação Infantil?
5. No livro organizado por você, Zeila de Brito Fabri Demartini e Patrícia Dias Prado, “Por uma cultura da Infância – metodologias de pesquisa com crianças”, vocês apontam algumas inquietações que as pesquisas com crianças possibilitaram em relação às crianças, advertindo que elas ainda estão centradas no adulto. Que estratégias você considera que são necessárias ainda para redimensionar a pesquisa com crianças em todas as suas dimensões?
6. Ana, você tem uma larga produção com o seu grupo de pesquisa Culturas Infantis do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sóciocultural (GEPEDISC) poderia nos falar das obras e quais você considera pode nos ajudar a pensar a pesquisa com crianças.
Doravante apresentamos a transcrição do encontro, com a fala da Professora Drª Ana Lúcia Goulart de Faria e as intervenções feitas por participantes do encontro.
Leandro R. Pinheiro
Boa tarde. Agora oficialmente, boa tarde a todos e todas. Vamos dar início ao encontro de hoje em nosso Seminário Especial, com a presença da professora Ana Lúcia Goulart de Faria, que gentilmente aceitou o nosso convite e vai contribuir conosco com um tema que para nós é caríssimo. Como de costume, a gente vai começar com a apresentação da convidada, depois passa à fala dela e, por fim, teremos um debate. Podemos até fazer um intervalinho rápido de 5 minutos para esticar as pernas, tomar uma água, antes do debate, mas é bom lembrar também que a professora Ana Lúcia avisou que pode ficar até às 15h 30min. Vamos tentar usar o tempo de uma maneira bastante organizada, disciplinada para poder aproveitar esse momento com ela. Então, Sueli, a palavra é sua para a apresentação de nossa convidada. Professora Ana, muito obrigado já de antemão!
Sueli Salva
Boa tarde a todos, todas e todes, eu agradeço a disponibilidade da Professora Ana Lúcia para estar aqui conosco. A temática do dia de hoje é a pesquisa com crianças, descolonizando olhar e a escuta. Vou ler o currículo da professora Ana Lúcia e depois fazer uma relação com um excerto de Paulo Freire, que eu não poderia deixar de mencionar, pelo menos nesse momento, um pouquinho da obra do Paulo Freire por considerar que tem relação com a convidada. A Professora Ana Lúcia se identifica como criancista (quem milita em favor da infância) e criançóloga (quem pesquisa o tema da infância)[1], antifascista, marxista, feminista, paulistana, pedagoga, professora permanente colaboradora aposentada da Faculdade de Educação da Unicamp, coordenadora da Linha Culturas Infantis do Gepedisc, membro do grupo gestor do Fórum Paulista de Educação Infantil, ex-membro do Conselho Municipal de Educação de Campinas. Atua nas áreas da pedagogia, formação docente, quase que exclusivamente na primeira etapa da educação básica na educação infantil em creches e pré-escolas, na pedagogia da infância com abordagem na Ciências Sociais, destaque para a pequena infância, relações de gênero, classe, social e relações étnico-raciais, parques infantis, sociologia da infância, culturas infantis. Foi membro do colegiado docente do doutorado da Universidade de Estudos de Milão-Bicocca de 2010 a 2018. Desenvolve três projetos de pesquisa sempre na intersecção de idade, classe, gênero, relações étnicos raciais no Brasil, na Itália com a Universidade de Estudos de Milão-Bicocca e na Suécia (em creche da rede pública) (http://lattes.cnpq.br/4159105582085681).
Além do currículo, eu separei os livros nos quais a Ana Lúcia tem produção. São livros que ela faz o prefácio, organiza, ou tem artigo. São 15 livros que eu tenho em minha biblioteca e devem ter outros por aí. Neste semestre um dos livros que nós vamos fazer a leitura no seminário de pós-graduação é a obra ““Isso aí é rachismo!”- Feminismo em estado de alerta na educação das crianças pequenas: transformações emancipatórias para pedagogias descolonizadoras”, publicado pela Pedro & João, em que a Ana Lúcia (uma das organizadoras da coletânea) vai explicar do que se trata.
Trago ainda um excerto do Paulo Freire para homenagear a Ana Lúcia. O excerto é do livro “A casa e o mundo lá fora” de autoria de Nathercia Lacerda, prima de Paulo Freire, no qual estão publicadas as cartas que ele escreveu do Chile para a menina Nathércia. Antes do exílio Paulo Freire se hospedou em sua casa e depois desapareceu e para a menina ficou essa incógnita, depois foi informada que ele estava no Chile e passa a se corresponder com ele. Em uma das cartas Paulo Freire escreve:
É coisa boa, Natercinha, que a gente nunca deixe de ser menino. Os homens atrapalham as coisas, complicam tudo, cresça, mas nunca deixe morrer em você a Natercinha de hoje que começa a descobrir o mundo cheia de curiosidade. Se os homens não deixassem morrer dentro deles o menino que eles foram, se compreenderiam melhor. Mas eu não quero fazer carta complicada para você, carta de gente grande, mas é possível também conversar com menino conversa como essa (FREIRE, 2016, p. 67).
Nessa época Paulo Freire ainda não havia incluído na sua escrita a linguagem não sexista, mas ainda assim eu trouxe esse excerto para dizer que a Ana Lúcia, ela nunca deixou de ser menina, no sentido de que ela está sempre criando, buscando inquietações e desafios necessários a uma pesquisadora da infância que não aceita formas colonizadoras de pensamentos. Ana Lúcia nos provoca, ela é inquieta, ela nos faz inventar o tempo todo. Eu tenho uma imagem da Ana Lúcia em um evento na Unicamp em que ela carregava um túnel e nesse túnel estavam produções das crianças em que ela convidava os/as participantes do evento para olhar a exposição. Essa é uma imagem marcante que eu trago da Ana Lúcia, nos chamando para olhar as crianças que, de algum modo, ‘entravam’ na Unicamp.
Penso que uma universidade que atua na formação docente, sem crianças, é uma universidade vazia, uma pesquisadora da infância sem manter essa criança viva, é uma pesquisadora vazia. Ana Lúcia é essa pesquisadora que nunca deixou de ser essa menina. Ana Lúcia, essa é uma homenagem para você e para desencadear a sua fala eu parto de uma das perguntas pensadas para esse momento: Quando a ideia da descolonização começou? E, em que momento esse processo se tornou uma questão para as pesquisas com crianças?
Ana Lúcia Goulart de Faria: Boa tarde, pessoal. Em primeiro lugar, Sueli, eu tinha preparado uma fala de agradecimento, mas eu já vou até fazer espontaneamente outra em função do que você falou. Afinal de contas é o Paulo Freire que faria 100 anos e eu que estou sendo ‘femenageada’... que mais que eu quero? Muito obrigada, seja pelas questões enviadas, seja pela organização do evento. Eu vi toda a programação, está terminando. Então parabéns Leandro, Sueli, pessoal, tem mais uma terceira pessoa que está na organização, professora Célia Caregnato.
Então parabéns, muito obrigada. E essa sua fala, Sueli, também me faz lembrar quando você se sentou do meu lado lá na Anped e a gente se viu ao vivo. Naquele tempo a gente se encontrava ao vivo e mesmo morando longe, eu em Campinas e você aí no Sul. E você me convidou para escrever na revista da qual passava a ser a editora, Revista da sua Universidade Federal de Santa Maria, que aliás, está de parabéns: uma revista super importante, sou muito contente de fazer parte do conselho, de estar junto com vocês. Então, obrigada pelas questões que você me mandou, não sei se você divulgou para as pessoas que estão inscritas no curso. As questões são muito bem elaboradas, mostrando inclusive que você conhece, não sei se tudo, mas grande parte do que eu escrevi. Eu acho que valeria a pena que o pessoal daí tivesse acesso às questões.
Sueli fez um resumo agora da primeira questão, na verdade é quase um parágrafo, em que ela faz várias reflexões inclusive me orientando sobre o que eu devo trazer para vocês no âmbito do curso. O Paulo Freire foi do meu departamento e eu convivi com ele um período, eu trabalhava em Piracicaba (SP) e eu o convidei para ir lá e conhecer uma experiência educacional inédita no Brasil de então: o CEPEC - Centro Polivalente de Educação e Cultura - para crianças de zero-12 anos em Secretaria Municipal de Educação. Quando eu fui contratada, não era comum ser contratada em tempo parcial, mas naquele tempo eu era mestre, não era doutora ainda, e foi possível. Piracicaba é uma cidade do interior de São Paulo, na época tinha só 200 mil habitantes, era considerada inclusive cidade média; hoje é uma cidade com 600, 700 mil habitantes, uma cidade grande. Foi a primeira experiência brasileira em Secretaria de Educação com creches para as crianças de zero-três anos. Eu sou muito orgulhosa dessa experiência de Piracicaba, que durou de 1978 a 1982, muitos de vocês nem tinham nascido (risos). Depois, na hora do debate, se vocês quiserem eu posso fazer relações entre esta experiência e as questões que são mais contemporâneas, como a metodologia com que a gente trabalha hoje, por exemplo.
Mas eu sou muito orgulhosa porque não tínhamos ainda a Constituição: não tinha a LDB, que é de 1996 e vai estabelecer a educação de zero a seis anos como primeira etapa da educação básica e nem a Constituição [de 1988], que amplia o direito à educação para todes mesmo, isso é, para além/aquém dos sete anos da escola obrigatória. A educação passa a ser direito desde o nascimento, mesmo não sendo obrigatória. E mesmo assim a gente criou o CEPEC, que tinha creche, pré-escola e educação complementar do ensino fundamental. E o Paulo Freire foi conversar lá com as professoras e ele já tinha essa ideia da educadora como um adjetivo, um qualificativo - não como nome de uma profissão. Faço sempre questão de dizer isso, de a gente usar o termo educadora como ele usava, como uma professora engajada. Quando se fala “meninas”, viu Sueli, tem até hoje as mineiras - não sei se aí no Sul, mas São Paulo não faz isso -, mas em Minas Gerais chamam as crianças de “meninos”. Assim como a palavra “criança” é sobrecomum como a palavra “pessoa”, não tem masculino e nem feminino, embora seja uma palavra feminina, os mineiros, não sei se no nordeste, não sei, mas a gente lê inclusive no Graciliano [Ramos], o uso de ‘meninos’ para dizer criança. Não é que usem o masculino genérico, é como se fosse um sinônimo de criança, é muito engraçado isso. E quanto a esse elogio que você me fez, que você conheceu essa exposição, nós fizemos muitas e depois muita gente passou a copiar a gente. Isso também envolve o Gepedisc - Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Diferenciação Sociocultural, na linha Culturas Infantis, que eu coordeno. São várias outras linhas de pesquisa no Gepedisc, tais como movimento social, trabalho, ensino superior. E nós tomamos a iniciativa de pedir para as professoras trazerem as obras das crianças. Passamos a chamar, inclusive, de obras. Não é uma coisinha qualquer que vinha sempre nomeada com aqueles diminutivos depreciativos, é uma obra feita por criança. Então, fico muito orgulhosa de você se lembrar disso, de fato fomos pioneiras nesse tipo de ação. Daí, no COPEDI do mesmo ano, o Congresso Paulista de Educação Infantil, eu me lembro quando a Márcia Gobbi coordenava o FPEI (Fórum Paulista de Educação Infantil) e ela organizou o COPEDI com a exposição das obras das crianças.
Estou aposentada, morando na Suécia onde, desde bem antes da pandemia, eu já trabalhava aqui, na tela plana (como diz o Cesar Leite, da Unesp de Rio Claro). Tanto é que quando vocês, aí no Brail, começaram a sofrer com dor de ouvido e não-sei-o-quê com as novas condições de trabalho durante a pandemia, eu já estava acostumada. Desenvolvendo essa pesquisa aqui nas creches suecas, eu vou poder dar vários exemplos em relação às suas perguntas, sobre a gente confrontar e problematizar diferentes estruturas sociais e repensar as formas de vida, já que aqui é monarquia e temos uma espécie de capitalismo de Estado. Não é socialismo, é um capitalismo de Estado, que o neoliberalismo está tendo muita dificuldade de encampar. Durante essa fala, então, eu vou acabar dando alguns exemplos e contando para vocês, justamente para poder discutir a questão metodológica, a interseccionalidade, o pós-colonialismo. Serão alguns exemplos bem importantes, com uma outra divisão sexual do trabalho, com as diversas maneiras como se dá a educação das crianças pequenas na pré-escola e na creche.
Então, já meio respondendo algumas das questões ou aspectos, eu quero dizer novamente que agradeço o convite e vou tentar responder meio rápido. Com o pessoal vendo as questões no chat (que já estão colocadas acima) eu posso falar mais livremente sobre aquilo que vocês estão querendo ouvir. Sabemos ainda que vai ficar depois gravado, para quem quiser ouvir. Agradeço, também, que a Priscila Basilio, que é doutoranda da UFRJ e professora da creche da UFRJ esteja também aqui, hoje, nesta aula, com autorização da Sueli.
Então vamos lá, deixa eu abrir aqui o chat: gostaria que você falasse sobre o processo de descolonização e como esse processo se tornou uma das questões da sua pesquisa? O que eu queria chamar atenção é que vocês conheciam algumas coisas que eu vim escrevendo, inclusive meu mestrado, que agora recentemente até saiu a 17ª edição. Eu estou super orgulhosa deste meu mestrado. Quando eu estudei o marxismo era ditadura militar ainda, sou da primeira turma de mestrado da Federal de São Carlos. Eu, estudando marxismo, refleti sobre o conceito de trabalho nos livros didáticos. Foi um livro muito bem vendido, foi uma experiência muito ampla. E eu faço questão de dizer o seguinte: no dia do lançamento da primeira edição, a Cortez estava lançando A Consciência Crítica do Demerval Saviani, que tem hoje mais de 100 edições. Estávamos ambos no lançamento usando bottons de Diretas Já. Eu, modestamente, cheguei na 17ª edição, ele com toda a reflexão com que ele nos contempla, inclusive trazendo Gramsci para educação, criou e coordenava o mestrado na Ufscar.
Eu não sei se todo mundo sabia disso, em pleno 1976 foi a primeira turma de mestrado desta universidade. Eu vinha do marxismo e, quando eu fui fazer o doutorado, eu justamente tinha como base as categorias de classe social e fui estudar os parques infantis que o Mário de Andrade, poeta, como um dos criadores do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo em 1936. Na época, ele criava os parques infantis nos bairros operários e propunha uma educação, embora não escolar. Quem fez pedagogia no meu tempo e, inclusive, foi por isso que eu fui fazer o meu estágio sanduíche do CNPQ em 1992, lá na Università Statale di Milano (agora Università degli Studi di Milano-Bicocca, onde você também estudou, né, Sueli/). Eu fui estudar com a Susanna Mantovani em busca de pesquisas sobre educação, embora não escolar nas creches e pré-escolas. Nessa época no Brasil não se estudava criança fora da escola, não se estudavam parques infantis nos cursos de Pedagogia porque eram vistos como ações de assistência, pelo fato de eles não serem escolas. Então, havia um antagonismo, era pior do que assistência versus educação na minha opinião, porque era uma fala das/os pedagogas/os dizendo que o parque infantil não era área de interesse da Educação, pertencia ao campo de interesses da Assistência, portanto não se estuda em curso de Pedagogia. Então, na verdade eu, no meu doutorado, fui questionar, colocando isso de ponta-cabeça, para dizer que não. Por isso eu fui estudar como é que a Itália fazia suas pesquisas. A Susanna Mantovani e o Enzo Catarse eram as únicas pessoas na universidade que pesquisavam crianças em creches, crianças pequenininhas, de zero a três anos.
Na Itália, a pré-escola tradicional era gerida no âmbito da Igreja, foi a queda de um governo em 1968 que permitiu que ela passasse a ser pública, gratuita e estatal. Chamava-se num primeiro momento “escola materna” e depois, vai se chamar “escola da infância”. Na Itália, várias pesquisas mostram que o que se fazia na creche, assim como na pré-escola, deve ser tomado como fora do âmbito escolar. Aliás, no mundo todo a história da escola é diferente da história da pré-escola, é diferente da história da creche, mas lá é explícito. Por quê? Porque não é para gente que a gente fala em não alfabetizar no pré, que o pré é pré, que a escola é escola. Lá não era normal essa confusão, escola é escola, onde se alfabetiza, e pré-escola é pré-escola. Tanto é que não tem nem esse nome de pré-escola. E a creche, que é dos anos 60, produto da luta feminista e de esquerda. Ou seja, é uma educação que não é escolar, que não antecipa escolaridade, mas que tem a especificidade de educar uma faixa etária de uma forma diferente do que se educa outras faixas etárias, seja na pré, seja na [creche]. No meu doutorado já estava trabalhando com os conceitos que eu não chamava na época de pós-coloniais, mas na medida em que eu problematizava o modelo escolar e mostrava o que o Mário de Andrade fez mais ou menos no mesmo período...
Aliás, ano que vem faz 100 anos da Semana da Arte Moderna e em 1928 o Oswald de Andrade escrevia o Manifesto Antropófago, fazendo toda uma problematização sobre o dualismo do pensamento, inaugurando outras formas de pensar. O Oswald de Andrade tem uma tese, que ele nunca conseguiu defender na USP, de que a filosofia messiânica é o quê? É o positivismo. Nela, ele vai criticar o pensamento cartesiano e o positivismo, embora não seja um marxista, mas assim como nesse período em que cria o Manifesto Antropófago, ao mesmo tempo na Europa estavam escrevendo o Manifesto Surrealista. São formas de pensar que passam a povoar o mundo.
Então, quando eu fiz o meu doutorado, eu fui orientada pela Tizuko Kishimoto, que me deu toda abertura, eu fui lá para Itália para ver como eram feitas as pesquisas, tinha muita coisa na área da História. Eu não sei se você chegou a conhecer o pessoal do Cirse, Sueli? Eram as pessoas da cidade de Ferrara, onde criaram o Centro Italiano de Pesquisa Histórica. Elas conseguiam, por exemplo, fazer uma leitura da Montessori como socialista embora ela não fosse socialista, mas sim uma mulher médica positivista. Eu mesmo estive presente em um dos congressos sobre Pedagogia Socialista e incluíram a Montessori justamente porque ela não concebe um pensamento idealista. Ela traz um pensamento materialista, o positivismo que vem na contramão, não necessariamente marxista, mas um positivismo que vem na contramão do pensamento idealista, principalmente na área da educação.
O Moysés Kulhmann Jr, que fez o prefácio do livro Educação Pré-escola e Cultura, resultado da minha pesquisa de doutorado, diz que eu estou trabalhando com a metodologia da História. Isso ocorre por conta da minha formação. Nele, eu não estou falando de interseccionalidade, não estou falando de pós-colonialismo, mas estou mostrando uma coisa de ponta-cabeça. Eu estou mostrando uma forma de educar a classe operária no seu contexto. Então, eu diria que vejo esse processo de descolonização, talvez, justamente como marxista e como crítica. Havia muitas pessoas, marxistas, por exemplo, o Carlos Nelson Coutinho, ele que vem das Ciências Sociais e traduziu o Gramsci. Eram autores/as que a gente lia porque estava no Partidão. Eu entrei no Partido Comunista no período em que eu estava em Piracicaba. Estávamos na ditadura militar, no “processo de abertura gradual”, durante o meu mestrado e eu tive um professor que tinha sido preso e tudo mais, o Claudio Barrighelli, que foi meu orientador. Ele oferecia as disciplinas do marxismo, de maneira que estudar o método fazia parte delas. Então, foi no marxismo que eu passei a ter um pensamento crítico e, com isso, quando eu fui fazer o doutorado, eu fiz uma leitura de ponta-cabeça da educação das crianças pequenas.
Vejam o mapa do Peters, veem a África que está no centro e a Europa bem esmagadinha lá embaixo? Na hora que o mundo gira e na hora que você para de girar e vê o mapa desse jeito, é um outro jeito, diferente do mapa que a gente tem hoje, ainda hoje mostrando a forma colonizadora do então dito Norte em relação ao dito Sul. Eu gosto de dar exemplos. Agora mesmo, produto de estudos recentes, o M'Bembe tem falado da necropolítica e quando o apresentaram como ele sendo de Camarões, ele falou “não, eu sou um pensador africano. ‘Camarões’ foram os colonizadores que chamaram o lugar onde eu morava na África. Lá não se chamava Camarões, foram eles que deram esse nome.” Ah, então você foi influenciado pelo Foucault, pois é o Foucault que tematiza o biopoder. E ele respondeu: “Não, o Foucault fala do biopoder do ponto de vista ocidental, europeu e branco. Ele faz uma análise brilhante mostrando como é que o biopoder acontece na Europa e como acontece no hemisfério norte. Eu falo da necropolítica, que é diferente do que o Foucault conceitua, do jeito daqui, do hemisfério sul.” Eu acho isso bem importante, inclusive se você quiser, Sueli, passar para sua moçada uma live com o Silvio Gallo, meu colega da Unicamp, não sei se vocês já assistiram. Ele tem uma tese, acho até que foi o seu doutorado, em que ele estuda a tese do Oswald, do pensador modernista Oswald de Andrade, tese sobre o pensamento messiânico da filosofia ocidental. E o mesmo Silvio Gallo, também, é quem faz essa reflexão sobre o Foucault e o Mbembe. Segundo ele, no Brasil não temos apenas o biopoder e não é apenas a necropolítica. O que nós estamos vivendo hoje, essa forma completamente... (não vou falar, minha mãe diz que falar palavrão assim em aula a gente não deve, então eu não vou usar nenhum adjetivo para o que está acontecendo hoje no Brasil), mas para o Silvio Gallo, ele vai falar que no Brasil nós estamos vivendo uma “bio necro política”. Ele inclusive mostra na tela o Foucault e o Mbembe e ele comenta que são três carecas falando desse assunto. Ele trata disso em uma live organizada por Vanessa Lima, minha ex-orientanda de TCC que coordena colegiadamente um grupo lá de Campinas, o Flor do Barranco, e pediu que ele desse uma aula mesmo, no nível da graduação, para explicar esse conceito. Fica a dica, está gravada a aula. Excelente!!!
Então, eu estou somando isso à primeira pergunta porque esse fio vem lá do Mário de Andrade, do Oswald, da semana de 1922 (celebraremos seu centenário no ano que vem!!!) e da gente ver a educação da classe operária no ambiente com natureza, num ambiente aberto, num lugar sem sala de aula. Isso tudo está lá no meu doutorado, está lá no meu livro, que vocês podem ler. Não é aula, não é sala de aula, as crianças brincavam e tinham acesso às manifestações populares brasileiras pesquisadas pelo Mário, que fazia a formação das educadoras. Então eu destaco o pioneirismo dos Parques Infantis com uma educação não escolar, antecipando as Diretrizes Nacionais da Educação Infantil super legais que nós temos hoje, e os eixos com as brincadeiras e interações, mas era isso que rolava lá.
Então, eu acho que eu posso parar por aqui, porque eu já acabei invadindo um pouco as outras questões, mas pelo menos eu abro essa discussão para mostrar para vocês que esses meus estudos de hoje, que às vezes parece que é como se fosse uma coisa nova, que não tem nada a ver, eles vêm lá do doutorado que eu defendi em 1994.
Leandro: Bem, muito obrigado Ana Lúcia.
Sueli Salva: Ana eu gostaria que você falasse um pouco sobre o novo livro, não sei se você quer deixar para o final, mas eu estou super curiosa. A obra é “Sociologia da infância II”. Quem sabe você fala um pouco sobre o livro.
Ana Lúcia Goulart de Faria: Eu falei de necropolítica porque a gente está falando de necroinfância no minicurso que eu dei na Anped, junto com Eduardo [Pereira Batista]. Sobre necroinfância, infanticídio, que foi uma disciplina que eu ofereci na pós no segundo semestre do ano de 2020 e se tornou um livro que foi lançado ontem na Anped. Esse livro nem está pronto fisicamente, vocês vão poder fazer gratuitamente o download no portal da Biblioteca da Faculdade de Educação da Unicamp daqui a algumas semanas, já que ele ficou pronto aos 45 minutos do segundo tempo, como falou o Pedro Amaro, da Pedro & João Editores, aquela editora de São Carlos.
Nesse livro contamos com a presença da Maria Renata Alonso Mota, que faz o prefácio. O livro Sociologia da Infância I não tinha “um”, era apenas Sociologia da Infância no Brasil, eu organizei com a Daniela Finco, faz 10 anos. Esse livro inclusive esgotou, o maior orgulho que a gente tem é que não se encontra nem na Estante Virtual, não tem em lugar nenhum. Então, conclusão: A Autores Associados fez e-book. A pena é que na versão e-book ele não tem os 30% de desconto que a autora sempre tem e eu repasso para venda. Porque a venda em e-book está sendo feita pela Amazon, essa que é a questão (risos amarelos). Maria Renata festeja isso, que nós estamos festejando 25 anos do Gepedisc. Este ano, o Gepedisc faz 25 anos.
Então publicamos esse livro, Sociologia da Infância no Brasil II: tempos de pandemia e necropolítica. Pedagogias descolonizadoras reinventando novas formas de vida. Nós teremos um artigo da Márcia Gobbi, que está falando da ocupação do centro de São Paulo, não são ocupações rurais, mas do centro de São Paulo, de hotéis e de fábricas; a pesquisa que a Marcia desenvolve com o Clériston [Izidro dos Anjos], que fez o pós-doc com ela, também está ali. Tem um artigo da Valdete Tristão sobre essa escritora que eu não sei pronunciar o nome dela, Oyewùmi Yèrónké, que é aquela que mostra que na sociedade iorubá não tem essa diferença de homem de mulher, as questões de gênero são ocidentais, são características inclusive do colonialismo. Acabou de sair o livro dessa africana, A Invenção da Mulher. Eu recomendo a vocês o artigo da Valdete, está muito bom, mas este livro, A Invenção da Mulher, quem está trabalhando com o gênero precisa ler, porque a gente parte da ideia de que tudo é universal e ela defende que a noção de diferença de homem e de mulher é ocidental. Não sei se vocês conhecem o feminismo comunitário das indígenas brasileiras, não só brasileiras, acontece no Amazonas e ali perto, no Peru, Bolívia. Vocês podem entrar no YouTube que vão achar a Julieta Paredes falando do feminismo comunitário, que não é europeu, branco, ocidental. É bem legal.
O Wenceslao [Oliveira Júnior], meu colega da Unicamp, vai escrever sobre o Deligny, que é um autor que algumas pessoas têm estudado. Ele vai tematizar o cinema e produção das crianças e trabalha com esse autor que estudou a especificidade da linguagem entre autistas. Nós vamos ter a Suzy [Rodrigues], que é uma brasileira que mora na Alemanha e é professora de creche, que vai escrever com o marxista Raymond Williams, também um autor que contribui na sociologia da infância. Na Pedagogia a gente não costuma estudá-lo, no entanto ele tem pesquisas sobre crianças refugiadas e é o que ela vai trazer.
O que que aconteceu, eu convidei para as aulas vários/as, todes este/as convidados/as aqui do livro, esses autores e autoras. Foram convidados/as que trabalharam, no segundo semestre do ano passado de 2020, e que trabalhavam com o conceito de necropolítica.
A Rosali Rauta Siller, da UFES, tem um capítulo superinteressante sobre as crianças pomeranas e a interseccionalidade. A questão do bilinguismo, que foi o doutorado dela, só que ela traz justamente o por quê, o que acontece, porque parece que só agora que a gente está falando de pós-colonialismo, só que agora estou falando também de interseccionalidade. Tanto é que o marxismo tem essa coisa de dizer que a classe social define tudo e na verdade o que nós vamos ver é que, quanto ao feminismo negro, elas vão mostrar que não, que quando você fala de classe social, você tem que estar especificando se é de negros, se é de brancos, se é de indígenas. Você tem que distinguir se é homem ou se é mulher. É isso que a interseccionalidade é: uma ferramenta teórico-metodológica para análise da realidade. A referida Rosali, no doutorado, falou sobre bilinguismo das crianças pomeranos lá no Espírito Santo e eu acho que aí no sul vocês têm também um lugar que tem crianças pomeranas. E agora ela vai refletir sobre isso no contexto do feminismo negro, neste contexto da interseccionalidade, trabalhando ao mesmo tempo com diversidade linguística, classe, gênero, raça e idade.
Tem um artigo bem antigo da Fúlvia Rosemberg que está até na revista Proposições, que ela chamou de ensaio porque ele não vinha com os cânones todos do trabalho científico. Então ela chamou de ensaio, viajou, só que ela, como branca, ela vai dizer que acontece uma coisa por vez, você vê se é homem ou mulher, depois (ou antes) se você é negra, branca e indígena; se é criança ou adulto; se é pobre ou rica. Ela faz essa discussão enquanto as feministas negras talvez até na mesma época, ou um pouco depois, definiriam a interseccionalidade como uma ferramenta para análise das coisas como elas são. Então é isso, também, Sueli, que eu não tinha lá, eu defendi minha tese em fevereiro de 94, eu fiz meu sanduíche em 92, lá na Itália, quando eu fui ver as metodologias.
Nós temos, também, o artigo da Maria Tereza Goudart Tavares, da UERJ, que vai falar de criança e cidade; a Leila [Oliveira Costa] e o Eduardo [Pereira Batista] ela e ele vão falar de corpo e cuidado e aí mergulham direto na questão do infanticídio. Vocês já ouviram falar do holocausto à brasileira? A coisa vai meio por aí, quando fechou o hospital de Oliveiras, lá em Minas, hospital que era de crianças, fechou por causa disso: as crianças iam para morrer. 150 crianças foram para esse outro hospital, de Barbacena, que a jornalista [Daniela Arbex] que pesquisou o tema, autora do livro, vai dar o título de Holocausto à brasileira. Vocês podem encontrar no YouTube, documentário importantíssimo falando do holocausto à brasileira, lugar a que as pessoas iam para morrer. A Leila fez uma pesquisa em um lugar perto de Campinas, onde havia crianças que estavam lá para morrer. Apesar de mostrar as obras das crianças como no congresso em que falamos, Campinas tem várias coisas complicadas. Foi um lugar em que a escravidão foi bem perversa. É famosa a ameaça de um dono de fazenda de uma cidade próxima falando para o escravo: “se você não se comportar bem eu te vendo para Campinas”. E o pior é que, na divisa entre Campinas e Jaguariúna, tem uma fazenda de alface que tem um lugar a que as crianças vão para morrer. São hospitais que não são hospitais, a Leila e o Eduardo vão compor o livro com esse artigo. A gente é muito orgulhosa do educar e cuidar indissociável e, no entanto, tem também esse cuidar problematizado, em relação justamente à necroinfância.
O grupo de pesquisadores do Edson Teles, que é o coordenador do centro de pesquisas em arqueologia lá da Federal de São Paulo, a UNIFESP, está estudando todos os ossos que estão enterrados ali naquelas valas de Perus e das 40 pessoas desaparecidas eles já acharam duas, ali. Mas eles estão estudando, não sei se vocês sabiam que os ossos da gente são só nossos, eles se encaixam direitinho, se achar um osso aqui e outro ali e colocar juntos, se for a mesma pessoa há o encaixe. Conforme vão achando, vão compondo esse quebra-cabeça e, com isso, compondo as ossadas das 40 pessoas que foram considerados desaparecidos ali em Perus. Sabem onde é Perus? Ali perto de São Paulo, esse lugar dessas valas. E aí o Edson justamente na aula foi falar das lutas sociais e políticas públicas. (Gente vocês não acreditam no que eu estou olhando aqui na janela daqui! São 19h 54min e tem uma lua cheia que eu achei até que era a lâmpada que estava refletindo, é uma lua cheia inteirinha na minha janela!) E o Edson, ele foi da comissão da verdade também e escreveu esse livro junto com Renan Quinalha, Espectros da ditadura da comissão da verdade ao bolsonarismo. No ano passado, quando ele veio dar aula para nós, o livro tinha acabado de sair, foi uma discussão bem bacana.
Três alunas do curso fizeram um capítulo com as ideias que o Rui Braga desenvolveu na aula. Rui Braga, professor da USP que trabalha com a crise reprodutiva. Ele é das Ciências Sociais e a pesquisa dele é sobre o precariado. A pesquisa mostra que os trabalhos mais precarizados são das mulheres negras, e a gente trouxe essa discussão também, na disciplina. A Roberta [de Paula] escreveu sobre as danças dramáticas do Mário de Andrade, que foi o mestrado dela no Gepedisc- Culturas Infantis. Ela fez a pesquisa de doutorado com a Patrícia Prado, da USP, sobre a escola de samba que tinha como tema naquele ano o Mário de Andrade e ela pesquisa as crianças na ala das crianças. A Sara York, (referência e ativista trans) trouxe o texto “Transgressão, gênero e educação” que ela escreve junto com duas alunas, a Elen [Alves de Souza] e a Eleonora [das Neves Simões]. E esse é o livro, eu fiquei muito contente com o resultado. A capa do livro é aquela estátua do Borba Gato de São Paulo que o [Paulo] Galo, pôs fogo e por isso foi preso. Então, se a ideia da gente é superar o pensamento desses colonizadores, então fazemos isso já na capa do livro. O fotógrafo [Gabriel Schlickmann] autorizou que a gente usasse a foto.
O que vou fazer, Sueli, eu vou te mandar o link e vocês podem então observar o livro e entrar em contato com a editora para fazer a pré-venda. Para vocês verem, eu nem sei como é que vai ser, porque ele ficou pronto para o lançamento.
Sueli Salva: Ele vai ser vendido em e-book e depois impresso.
Ana Lúcia Goulart de Faria: Não, na verdade ia ser vendido impresso somente em uma leva de 100 exemplares. As pessoas já estão se acostumando, Sueli, a gente tem que proteger a floresta, tem que proteger os bolsos. Mas resolvemos, sem vender, colocar para download gratuito na Biblioteca da FE da Unicamp.
Agora, na disciplina Sociologia da infância que está sendo oferecida neste 2º semestre de 2021 já está sendo combinado com o pessoal convidado que até fevereiro eles/as vão entregar os seus capítulos e a ideia é que até junho de 2022 a gente tenha o Sociologia da Infância III. Até convidamos outras pessoas porque isso precisa ser registrado, Sueli, o que nós estamos vivendo precisa ser contado porque de que é que nós estamos em busca? Você vai até escutar isso mais adiante, nós estamos em busca de novas formas de organização da vida, temos que inventar, normalidade nunca mais. Olhe aonde “a normalidade” nos levou. Pensando em normalidade nunca mais, a gente está achando que é bom que a gente faça esses dois livros, esse segundo agora 10 anos depois e um ano depois deste fazer o terceiro, com essas temáticas que as infâncias vem vivendo, não estava no nosso horizonte fazer pesquisa sobre isso.
Sueli Salva: Essa é uma forma de resistência, é uma forma de ultrapassar esse momento deixando rastros. Quando fica materializado na escrita, não tem como desfazer. Então penso que é muito importante e é também um chamado para todos nós que outras formas de resistência possam existir. Uma dessas formas é estar aqui conversando entre pares e a outra é deixar escrito, deixar marcas desse momento histórico que a gente está vivendo e que vai deixar marcas profundas nessa geração de crianças e jovens. Então, Ana, tem uma pergunta aqui da Paulina Gonçalves e têm todas aquelas outras questões que você já foi respondendo, que foram atravessando sua fala, depois a gente pode retomar alguma. A Paulina sugere que você comente sobre as convergências da sociologia das infâncias e da sociologia da juventude a partir da pesquisa de jovens em situação de rua.
Ana Lúcia Goulart de Faria: Em função disso a juventude em situação de rua é muito boa essa pergunta. Quer fazer mais umas duas, três? Alguém mais quer fazer pergunta, tem mais alguma? A gente podia juntar eu vou escrever aqui. O Lucas parece que estava escrevendo.
Lucas Alexandre Pires: Eu estava escrevendo, mas eu acho que é mais fácil falar. Ana, adorei você, cara, de verdade queria poder te conhecer um dia. Eu amei um termo noção/conceito que você falou agora, nem sei se é um conceito, mas enfim, sobre novas formas de organização da vida eu até cheguei a procurar aqui, mas de onde que ela tirou, porque faz muito sentido para pensar esse momento em que nós estamos agora e faz muito sentido pensar as novas formas de organização da vida em todos os momentos do percurso da vida, incluindo a infância, a juventude, a adultez, cada um em suas múltiplas formas; comentar um pouco sobre isso é muito interessante a gente está em um grupo heterogêneo, mas eu achei sensacional. Vale um artigo só sobre o termo, mas, enfim, é só um comentário.
Ana Lúcia Goulart de Faria: Obrigada eu tenho que falar sobre isso sim, inclusive a origem do termo você está me pedindo. Tem mais alguém senão eu já respondo essas duas, que elas se encaixam.
Leandro Pinheiro: Ana, neste seminário, nossas discussões têm tensionado duas noções: socialização e reflexibilidade. São duas categorias importantes para nossas pesquisas e gostaria de te escutar a respeito, especialmente sobre a importância da primeira delas, se a gente pensa em termos de sociologia das infâncias. Eu pergunto porque, na sociologia das juventudes, a gente já está há algum tempo trabalhando com a discussão sobre a participação dos jovens no processo de socialização, numa espécie de co-socialização. Isso a partir de François Dubet, por exemplo, ou de Juarez Dayrell, no Brasil. Este se apropria desta noção e discute a partir do que os/as jovens fazem em práticas entre pares. Então, talvez me aproximando aqui do que Paulina [dos Santos Gonçalves] perguntou, que elementos em comum a gente perceberia nessas duas formas de recortar a realidade, ora pautando as infâncias, ora as juventudes?
Ana Lúcia Goulart de Faria: Eu só pediria que se você... eu tinha pensado na pergunta da Paulina falando sociologia da infância e da juventude, eu tinha pensado aqui, anotei alguns itens para responder e agora eu não saberia qual especificidade você está me cobrando, o que que você gostaria que eu falasse mais Leandro?
Leandro Pinheiro: Por outras palavras, que papel tem a criança no processo de socialização? Creio que se trata de uma pergunta que nos lembra a sociologia clássica, que, de alguma maneira, traz em suas abordagens um vetor muito forte da sociedade para o indivíduo. Uma das críticas de François Dubet vai nesse sentido, ao argumentar que a escola, embora exercendo um papel socializador, sofreria uma mudança em seu efeito quando os/as estudantes chegam na juventude e ingressam no ensino médio. Aqui no Brasil, há uma entrada em cena de elementos da cultura juvenil dentro da escola, mas também uma relação diferenciada do estudante com a instituição, porque o/a jovem começa a operar por lógicas diversas. Nos argumentos do Dubet, a escola consegue socializar, mas ela não subjetiva o/a estudante como a sociologia clássica pressupunha. Então, de alguma maneira, o que Dubet está dizendo é: esse/a jovem constrói uma experiência da escola; ele/a, então, interfere no processo de socialização. A minha pergunta é: quando a gente pensa sobre a criança hoje, na sociedade contemporânea, que papel ela exerce na socialização e que tomadas de posição ela pode ter?
Ana Lúcia Goulart de Faria: Beleza. Já que estou fazendo marketing aqui do livro, então eu vou começar com o Lucas que eu chego aqui nas infâncias e na juventude. Espero dar conta da complexidade da pergunta da Paulina e do Leandro. Lucas, o título do livro é Sociologia da Infância no Brasil II em tempos de pandemia e necropolítica pedagogias descolonizadoras reinventando novas formas de vida. Não só as feministas, mas o próprio marxismo. O marxismo, vocês sabem, é marxismos, no plural. Mas eu estou me referindo a Renata Gonçalves e estou me referindo ao Ricardo Antunes, eles têm obras e tem falas na Editora Boitempo, então vocês entrem lá que vocês vão encontrar. O Ricardo vem falando que estamos vivendo uma revolução feminista, temos uma revolução feminista em curso e com todas essas mudanças, a área dele é sociologia do trabalho, aliás ele mesmo chama assim, mas ele reflete sobre as relações de trabalho na sociedade capitalista e vem usando esse termo: “reinventar novas formas de vidas”, feministas vêm usando também este termo e nós nos apropriamos dele. Então eu proponho que você faça um artigo. Uma das perguntas da Sueli é justamente sobre ela, olha lá, a Sueli gostou da proposta (Sueli – gostei da provocação) a Sueli, em uma das questões, ela pergunta que sugestões que eu dou. Então é isso: se você pensar que não dá para separar raça, gênero, classe e nós acrescentamos também a idade e a Collins concordou. Ela esteve na Anped em 2019, eu conversei com ela, falei: “escuta, e se a gente colocar idade junto na interseccionalidade de gênero, raça e classe? Afinal de contas, as crianças não falam, não andam, mas não quer dizer que elas não se movimentam, que elas não pensam, não se comunicam”. Collins respondeu: “lógico!”, e eu: “na verdade quando se fala de uma forma tão interessante sobre gênero, raça e classe, na verdade não se está falando nem de velho e nem de crianças”. Aí eu já puxo o gancho aí para Paulina e para o Leandro: será que a gente pode dizer que os/as jovens são iguaizinhos aos velhos e velhas? E as crianças e as pessoas adultas? Então essa pergunta fica, tanto é que ela concordou que a gente possa fazer.
Então, no grupo que eu coordeno a gente está colocando a idade. Então, por exemplo, o Flávio Santiago estudou o racismo numa creche no interior de São Paulo entre as crianças pequenininhas e as professoras e as famílias e aí ele está trabalhando com gênero, raça, classe, idade. E nós temos várias pesquisas, agora mesmo a Vivian [Cotella Esteves] apresentou seu mestrado recém defendido na Anped “o corpo e as crianças na interseccionalidade numa creche litorânea”. A gente tem trabalhado dessa forma. Paulina, eu te diria o seguinte: o Florestan Fernandes, que foi quem fez o seu TCC lá na primeira turma da USP, fez 100 anos ano passado, e ele fez a pesquisa das trocinhas do Bom Retiro. Ele descobre, observando os grupos infantis, isto é, as crianças entre elas, que elas produzem saberes, que elas entre elas produzem as culturas infantis.
Essa pesquisa do Florestan Fernandes está no livro Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, ele era contra esse negócio de sociologia disso, sociologia daquilo, só que é ele que vai pesquisar indígenas pela primeira vez. Precisamos lembrar disso, gente: nós estamos falando em abordagem sociológica, que estuda o coletivo; não estamos falando em abordagem psicológica, não estamos falando em outras abordagens, estamos falando em abordagem sociológica, que vê o coletivo e, no nosso caso, o coletivo de crianças em creches. Não estou falando da criança em casa, estou falando da criança na creche. Não é à toa que as Diretrizes definem os dois eixos: interações e brincadeiras. Para quem não é da área de educação infantil, a primeira etapa da educação básica acontece em creches e pré-escolas, e assim nós estamos falando do convívio de crianças entre elas.
O papel da professora e do professor de creche e de pré-escola não é dar aula. A professora e o professor organizam o tempo e o espaço e os materiais para as crianças produzirem as culturas infantis. E a gente aprendeu isso com o Florestan. É muito legal vocês pegarem esse livro, ele inclusive analisa as cantigas de ninar. Muito bacana. E ele vai ser o primeiro sociólogo que não estudava os/as brancos/as. O Roger Bastide, o pesquisador francês que veio ajudar a criar a USP, foi orientador dele. E aí ele pesquisou indígenas, negros e crianças. Você vai falar “ah mas não pesquisou mulher”. O problema é o seguinte: ele nunca deixou de olhar as mulheres e os homens, embora ainda nesse [paradigma] binário de homens e mulheres. Eu espero que dessa forma eu esteja respondendo, porque aí é que está, eu não conheço. Mas existe inclusive um livro organizado pela Neusa Gusmão, que é antropóloga, que ela coloca junto criança e juventude. A Fúlvia Rosenberg tem um também. Vocês podem ir atrás disso, para perceber que tem especificidade. Aquele movimento, hoje em dia eu não sei como é que anda, mas eu acompanhei em uma época. Inclusive o Léo [Antonio Donizete Leal] fez o mestrado sobre as crianças grandes de rua de Campinas e aquele movimento MM movimento de menino de rua MMDC alguma coisa assim, não é? Não, MMDC é outra coisa.
Eu chamaria a atenção de vocês. O Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, legal, beleza, obrigada. Então o que eu quero dizer a vocês, Paulina, é que eu não sou uma estudiosa disso, mas eu sei que a especificidade de idade é um desafio para nós. Quem trabalha com educação e com escola não pode deixar de olhar para as idades. Lamentavelmente, tem esse negócio escolar de pôr todo mundo da mesma idade na mesma sala e vão fazer também com as crianças pequenas, mas isso é conversa para outro dia.
Voltando à interseccionalidade, lembre-se da nossa saudosa Heleieth Saffioti, da Unesp de Araraquara, no livro sobre o patriarcado ela introduz essa questão. Um caso de mulheres adultas, ela vai chamar de nó, que é justamente o patriarcado inserido na questão da mulher. É gênero, raça e classe, ela não separa. Ela é uma marxista, foi orientada por Florestan Fernandes e o livro sobre o patriarcado foi reeditado agora pela Expressão Popular, aquela editora do MST. Então, aí eu não saberia sugerir para você pesquisas de juventude, mas existem e deve ter tantas críticas como as não críticas. Eu conheço esses dois livros, como eu falei para vocês: a Fulvia organizou um sobre infância e juventude e a Neusa Gusmão, que é antropóloga, também. Deixa eu ver aqui no chat.
Sueli Salva: Gostaria que você falasse um pouco, pensando na infância e nesse momento contemporâneo, que desafios ainda precisam ser enfrentados tanto no campo epistemológico, sociológico, da pesquisa com as crianças, o que é que neste momento seria um tema urgente necessário na pesquisa com as crianças?
Ana Lúcia Goulart de Faria: Olha, ontem mesmo na assembleia do GT de educação infantil da Anped a gente chegou a levantar um pouco isso. Tem no GT de questões étnico-raciais uma ou outra pesquisa sobre criança, seja de negro/a, seja indígena e nas nossas, sobre as infâncias, também uma ou outra sobre negros/as e uma ou outra sobre indígenas. Por que essa branquitude? Inclusive, fizemos uma moção, era isso que eu queria. Dá uma olhada aqui na nossa tela plana. Vocês não acham que está branca demais? Dá uma olhada, não está branca demais? A Priscila, estou vendo aqui que é negra, mas ela é a tal que a Djamila inventou, infelizmente, de fazer a diferença entre preto retinto e clarinha de turbante, como ela chamou uma que ficou super ofendida. Então, a Priscila seria uma clarinha de turbante, talvez aqui outras sejam clarinhas de turbante, justamente. A minha proposta ontem na Anped foi dizer assim: quem é clarinha de turbante faz favor de vir de turbante da próxima vez. Avisa a gente, deixa o cabelo solto para a gente ver vocês. Aí no Sul são mais brancas mesmo, não tem tantos/as negros/as. Só que no Brasil os/as negros/as… isso eu queria saber: o percentual é igual no resto do Brasil todo, que é mais de 50% de negros? Aí no Sul também, é?
Sueli Salva: Não o percentual, mas as nossas universidades são hegemonicamente brancas. Na semana passada estive em banca de concurso tinha uma pessoa negra entre 12 candidatos e candidatas
Ana Lúcia Goulart de Faria: É isso aí, a gente tirou uma moção ontem para o enegrecimento da Anped, nós tiramos uma moção como sugestão de uma política antirracista, porque justamente a Anped é um encontro de pós-graduação, é onde o funil se estreita. Hoje em dia, com as cotas e tal, pode ser até que daqui a alguns anos não seja tão branca. Mas não podemos ficar esperando, temos que ter critérios que abram. Eu diria que uma primeira coisa, sobre essa urgência que você está me pedindo. Por exemplo, eu tenho um orgulho: além do marxismo, no meu livro Ideologia no Livro Didático eu falava um pouco, não tinha muita coisa para ler e eu o escrevi em 1980. Eu analiso a imagem do negro no livro didático, como ele é tratado no livro didático, como a mulher é tratada. E eu fiz esse livrinho aqui em 2002, Infância e educação: as meninas. É um Caderno Cedes, você tem ele aí? Ah, menos mal, eu tenho o maior orgulho desse Caderno. Eu reuni pesquisas das minhas colegas, pesquisas importantíssimas em que elas não informavam quem eram os/as sujeitos/as que elas estavam pesquisando, tudo era dito no masculino genérico e tudo como se fosse da mesma idade. Aí eu pedi para Dulce [Whitaker], também da Unesp de Araraquara, para ela falar das meninas, na pesquisa sobre o corte de cana de açúcar. Eu disse: “separa as meninas, seja pela idade, seja pelo sexo”; o Maurício Roberto [da Silva], que pesquisou também o trabalho e as brincadeiras das crianças na zona da mata de Pernambuco, eu também pedi para ele esse foco; na ocasião ele inventou essa categoria “meninas-mulheres”; o Paulo (Porto Borges) tratou das crianças indígenas e a Maria Isabel [Pereira Leite], do Rio de janeiro, que também tinha estudado as brincadeiras na zona rural do Rio de Janeiro, eu pedi para que se detivesse nas meninas e, por fim, a Renata Sierro, que trouxe as memórias das meninas.
Uma coisa desse tipo pode continuar saindo. Peguem as suas pesquisas, juntem aí as pesquisas bacanas que vocês têm e mostrem como acontece entre meninas e entre meninos. Como é que é isso, então, só para a gente ver como vai mudando. Eu acho que é uma coisa e, para isso, Sueli, é preciso rever a nossa metodologia. Olha, Telma, tem uma alemã chamada Frigga Haug, que está falando em humanizar o marxismo e na verdade ela escreveu 13 teses para peitar o Marx nas suas onze teses [sobre Feuerbach]. Ela escreveu 13 teses que ela chama de humanizar isso, que é tirar esse neutro, esse masculino genérico, esse sem idade. Olha que o “Capital” trata o trabalho das crianças e tal...
Eu acho que essa ferramenta, ela precisa se abrasileirar. Lembrem-se inclusive do que a Angela Davis falou: “vocês ficam me chamando para falar aí no Brasil e eu aprendi as coisas daí com a Lélia González”. Então vamos pegar o nosso pessoal, a Sueli Carneiro, a Lélia González que já morreu, a Heleieth Saffioti que já morreu, vamos pegar o que as nossas pesquisadoras vinham pensando. No caso da Heleieth Saffioti diretamente, ela não tratava da interseccionalidade, mas das questões de classe e de gênero. Então, eu acho que devemos buscar isso aí para nossa formação, descolonizar o nosso pensamento e começar a fazer essas perguntas como as que vocês acabaram de me fazer. Cadê os/as jovens? Eu diria também: cadê os velhos e as velhas? A minha área de pesquisa é a das crianças pequenas, mas e os/as velhos/as? A gente tem uns estudos importantíssimos, como a Eclea Bosi e aquele famoso...
Por fim, eu diria, sobre o que você está me cobrando: não sou eu que estou dizendo da urgência, eu fico pensando isso, onde cada um e cada uma de nós pesquisa? Aquilo que estamos pesquisando, estamos vendo em todas as suas dimensões ou de novo estamos na mesma perspectiva linear? Eu falo “descolonizar o olhar e o pensamento”, você falou “descolonizar o olhar e a escuta”.
Sueli Salva: O olhar e a escuta porque às vezes escutamos o que queremos.
Ana Lúcia Goulart de Faria: É isso mesmo, então, na verdade, descolonizar é por uma interrogação naquilo que a gente aprendeu como a verdade. Lembra do Mbembe falando que ele não é de Camarões, ele é um pensador africano, deram esse nome de Camarões para o lugar onde ele morava sem pedir autorização para ninguém!!! Então, eu diria que é isso tudo que a gente está afirmando. Olha, eu vou dar um exemplo bem chocante para vocês de quando não tinham nascido. Eu estou lá, bela e formosa, em 1976. Bela e formosa eu não sei, mas mais ou menos. Estava lá, em 76, fazendo meu mestrado na 1ª turma da Federal de São Carlos junto com a Fundação Carlos Chagas e tal, Demerval Saviani, quando foi traduzido o livro do Ariès, a origem como chamava como chamava a...?
Sueli Salva: “A história social da família e da criança”.
Ana Lúcia Goulart de Faria: Isso, foi traduzido um livro que já tinha saído em 1967, uns 10 anos antes, e no Brasil estávamos na ditadura nesse período, e sai o livro. Gente, olha a produção de teses de 1976, 77, 78 pesquisando crianças brasileiras e dizendo da criação do conceito de infância, mas nem na burguesia brasileira a história é igual à passagem da idade média para a idade moderna europeias, tratadas no livro. Todo mundo falando disso e a pergunta: escuta, e as crianças indígenas que já moravam no Brasil era a idade média, era idade moderna, o que que era? Vocês estão falando do quê? E essas crianças que vieram para ser escravas, que vieram da África? Eu só estou dando um exemplo, cá entre nós, as carapuças são transparentes então não se preocupem que eu não vou ver. Estão enfiando as carapuças? Com quantos autores e autoras nós estamos trabalhando que a gente não fez essa interrogação?
Sueli Salva: E ele continua sendo citado ainda nos dias de hoje, mas hoje temos muitos referenciais contemporâneos, muitos outras pesquisas que falam das nossas crianças.
Ana Lúcia Goulart de Faria: O que é bacana naquele livro do Ariès é que ele estudou a realidade de lá. Lembra como ele fez a pesquisa? Ele começou a perceber que a partir de determinado momento nos epitáfios dos cemitérios tinha gente de um ano que tinha morrido, gente de dois anos que tinha morrido e, antes, não. Ele vai pesquisar isso. Por isso que ele vai chamar de “sentimento de infância”, porque antes se jogava fora uma criança que morria... as pessoas dormiam todas juntas naquele frio, não tinha rico, pobre todo mundo dormia junto apertado. Os nenéns morriam asfixiados ali e aí, de manhã, eles jogavam no mar aquela criança morta. Uma das coisas que ele conta é isso. Como é que funcionava. E aí, vai lá o branco positivista dizer, chamar de infanticídio, época do infanticídio, quando na verdade não se pode dizer que é infanticídio, era assim que funcionava: era frio, dormiam todos apertados naquela mesma cama, as pessoas eram baixinhas, a gente vê nos museus aquelas camas pequenas. Então, a pesquisa se apresenta, é muito legal aquela apresentação em que ele dizia que é sociólogo, historiador, mas os historiadores xingam ele de sociólogo e os sociólogos xingam ele de historiador. É bem bacana isso.
Para nós Ariès chegou como um referencial teórico importante, para a gente pegar esses indícios, do mesmo jeito como ele foi perceber no cemitério que tinha criança morrendo com um ano, dois anos e que estavam enterradas a partir de determinada data e antes dessa data não tem crianças enterradas. Isso gera uma curiosidade a ele. Então vamos nós, vamos fazer as nossas pesquisas e perguntar: qual metodologia é necessária? Conclusão: no caso do Brasil a gente também está fazendo pesquisa e vamos ter que pensar em como fazer pesquisa.
Uma coisa esquisita que a gente fez é que as questões étnico-raciais foram entendidas como só as das pessoas afro-descendentes. Vocês acham que o Krenak começou a escrever sobre CapEtalismo agora, quando ele apareceu no Roda Viva? Por que ele não foi chamado antes? Está cheio de escritores/as indígenas que ninguém chamava. Então, eu queria dizer isso sobre as questões étnico-raciais, inclusive essa alemã, Frigga Hang (Azzurra,2019), que eu estou falando para vocês que está humanizando o marxismo, ela fala isso: as questões étnico-raciais, diferente de classe, diferente de gênero, elas acontecem na sociedade ocidental de formas muito diferentes. A questão étnico-racial tem que ser estudada a cada caso, cada localidade. No caso do Brasil, a gente tem as pessoas brancas, negras e indígenas, no mínimo, fora tantos e tantas outros/as migrantes. E aí que eu volto para a primeira pergunta sobre as origens das minhas pesquisas sobre infância, descolonizando o pensamento e termino aqui minha fala, a não ser que vocês tenham mais perguntas. O Manifesto Antropófago do Oswald de 1928 pode ser considerado a primeira manifestação pós-colonialista no hemisfério sul. Nele inspirado, meu doutorado sobre Mário de Andrade e os Parques Infantis paulistanos idealizados por ele, de ponta-cabeça, problematiza “a cultura minúscula dos grupos escolares” e eu os analiso como uma experiência educacional embora não escolar, forjando uma Pedagogia Macunaímica. É uma coisa o Macunaíma, que é obra de Mário de Andrade, é também o personagem Macunaíma que é o herói sem nenhum caráter. Sem nenhum caráter e com todos os caráteres: é o/a branco/a, o/a negro/a e o/a indígena.
Sueli Salva: Alguém gostaria de comentar alguma coisa? De qualquer forma, o Ariès nos provoca e nos ajuda a pensar na infância, tem um papel importante.
Ana Lúcia Goulart de Faria: A infância no capitalismo. Tanto é que ele diz isso: a infância foi inventada na sociedade moderna, com a separação das pessoas adultas, porque na verdade, entre os nossos povos originários a infância é outra coisa, não tem nada a ver com isso. Não tem nada a ver com isso: a criança ali é o centro das relações; não tem um pai, não tem uma mãe, as crianças são da comunidade, não importa quem gerou... Isso também varia também de povo para povo, tem essa também. É o doutorado da Vanderlete [Pereira da Silva] que vocês podem ler, sobre as manauaras e a criação de filhos e filhas. A Vanderlete é professora da UEA – Universidde do Estado do Amazonas e agora, em plena pandemia, terminou o doutorado, vale a pena vocês darem uma olhada na tese também. Eu respondi o que vocês perguntaram?
Leandro Pinheiro: A minha parte sim, Ana.
Sueli Salva: Mais uma vez agradeço a professora Ana Lúcia e vou colocar um poema para finalizar este momento.
Leandro Pinheiro: Muito obrigado professora Ana! Foi um prazer conhecê-la, escutá-la e conhecer também a sua simpatia nesse diálogo conosco hoje. Uma boa noite!
Ana Lúcia Goulart de Faria: Quando a gente começar a voltar a viajar e eu sair daqui, eu estou achando que vai ser meio tipo em junho, não vou aguentar ir direto com calor, mas acho que no primeiro semestre. Espero que até lá acabe a pandemia. Desse jeito, esse homem aí, que dia que ele vai sair? Só na eleição de 2022? Será o Benedito? Se eu for viajar em julho a gente combina, viu, Sueli, a gente inventa umas coisas para fazer pelo menos um encontro no sul com algumas pessoas, um encontro no norte. Não vou dizer que eu vou poder ir em todos os lugares, mas com certeza esse convite aqui hoje foi muito especial e eu agradeço e eu gostaria, sim, ainda mais me chamando de “simpática”.
Sueli Salva: Para ir finalizando leio a poesia que é parte de uma música do Oswaldo Montenegro, “Sem Mandamento” que é um convite para estar junto.
“Hoje eu quero a rua cheia de sorrisos francos
de rosto sereno, de palavras soltas
quero a rua toda parecendo louca
com gente gritando e se abraçando ao sol
hoje eu quero ver a bola da criança livre
quero ver os sonhos todos na janela
quero ver vocês andando por aí...”
(Oswaldo Montenegro)
Muito obrigada por este momento, Ana, mais uma vez agradecer a tua participação, foi uma alegria, um prazer, foi uma tarde festiva e de muitos aprendizados.
Ana Lúcia Goulart de Faria: Foooooooooora Bolsonaro!
Obrigada de novo aí por me ouvirem, por perguntarem. A Paulina e outros. E, super obrigada e a gente fica mesmo é muito emocionada assim, que eu gosto muito da tela plana, não vou reclamar não. Porque a Suécia aqui é longe para caramba não tem nem voo direto, tem que trocar de voo e eu estou com uma preguiça de viajar, ainda tem essa. Então, eu estou achando ótimo estar aqui com vocês, se sintam abraçadas. Eu acho que precisava bolar um jeito de autografar livros, tem que bolar algum jeito de alguma forma de comprar os livros e inventar como por assinatura eletrônica.
Super obrigada. Priscila, que bom que veio, acolhida aí pela Sueli. Está bom gente, então ciao, gostei muito de ter vindo e desculpa eu ficar falando muito tempo, mas velhinha é velhinha. Tem que aceitar a idade.
Sueli Salva: Muito obrigada a todos e todas.
Referências
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed.. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
ARRUZA,Cinzia;BHATTACHARYA, Tithi;.FRASER,Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto.SP: Boitempo,2019.
FARIA, Ana Lúcia Goulart; DEMARTINI, Zelia de Brito Fabri; PRADO, Patrícia Dias. (orgs.). Por uma cultura da infância – metodologia de pesquisa com crianças. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2009.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Educação Pré-escolar e cultura. SP: Cortez e Editora da Unicamp, 2002, 2ª edição.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de. Ideologia no livro didático.SP: Cortez,2018, 17ªedição.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de (org) Infância e educação: as meninas. Caderno Cedes,Campinas:n.56,103 p.,2002.
FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. Petrópolis:Vozes, 1979.
LACERDA, Nathercia. A Casa e o Mundo Lá Fora – Cartas de Paulo Freire para Nathercinha. Rio de Janeiro: Zit editora, 2016.
MONTENEGRO, Oswaldo. Sem Mandamento. In. MONTENEGRO, Oswaldo. Entre uma balada e um Blues, 2011. Disponível em: https://immub.org/album/entre-uma-balada-e-um-blues. Acesso em 06 de dezembro de 2021.
SILVA, Adriana Alves; FARIA , Ana Lúcia Goulart de ; FINCO, Daniela.””Isso aí é rachismo!” Feminismo em estado de alerta na educação das crianças pequenas: transformações emancipatórias para pedagogias descolonizadoras”, São Carlos:Pedro e João Editores,2019.
SILVA, Adriana Alves;FARIA , Ana Lúcia Goulart de.Sociologia da infância no Brasil II: tempos de pandemia e necropolítica. Pedagogias descolonizadoras reinventando novas formas de vida.São Carlos (SP) Pedro e João Editores, 2021.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
[1] A Professora Ana Lúcia Goulart de Faria traduz os termos “bambinista” e “bambinóloga” da língua italiana de acordo com o sentido atribuído na referida língua.