Meninas no recreio escolar: dos conflitos ao aprender a negociar e a construir consensos para participar socialmente

 

Girls in school playground: from conflicts to learning to negotiate and to build consensus to participate socially

 

Niñas en el recreo escolar: de los conflictos al aprender a negociar y a construir consensos para participar socialmente

 

Elsa Alves

Universidade do Porto (Portugal) 

Doutoranda do Programa Doutoral em Ciências da Educação da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) e Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) 

elsa.m.alves@gmail.com - https://orcid.org/0009-0001-9482-4494

 

Manuela Ferreira

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal (FPCEUP) e Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE)

manuela@fpce.up.pt - https://orcid.org/0000-0003-4512-1669

 

Recebido em 30 de abril de 2022

Aprovado em 06 de maio de 2022

Publicado em 13 de dezembro de 2022

 

 

RESUMO

A visão adultocêntrica dos conflitos infantis nos recreios escolares, pautada pela negatividade, tem negligenciado a sua análise a partir das crianças, desconsiderando a sua processualidade e o facto de, frequentemente, terminarem sem recurso à intervenção adulta. Recorrendo aos contributos dos Estudos Sociais da Infância e das Ciências da Educação, este artigo aborda as crianças como atores sociais, produtoras de culturas infantis e organizadas como grupo social, propondo-se repensar os conflitos como inerentes às relações e sociabilidades infantis, atravessados por poderes e emoções, e em cujos processos também aprendem a negociar e construir consensos essenciais à participação social. A análise socioeducativa de conflitos entre meninas de 10 anos de idade, observados durante o recreio de uma escola do 1º ciclo, urbana e privada, procura dar conta i) da ocupação genderizada dos espaços formais do recreio; ii) da conflitualidade como processo e da compreensão das condições sociais da sua génese, desdobramentos e desfechos; iii) da sua interpretação no âmbito das relações de sociabilidade e seus poderes, atravessados por estatutos, prestígio e afinidades eletivas; iv) da aprendizagem de competências sociais relevantes para a participação social. Os conflitos femininos habitualmente surgidos quando iniciavam brincadeiras mostraram no seu desenvolvimento, geralmente em escalada verbal e emotiva, práticas em que estatutos, prestígio e afinidades eletivas eram usados para (re)construir e/ou reforçar alianças com fins de fechamento/exclusão, afirmar lideranças, confirmar princípios e valores. A sua resolução, decorrente de mediações, negociações e construção de consensos mostra-se relevante para o desenvolvimento da participação social e de competências políticas.

Palavras-chave:

Conflitos entre meninas, Recreio escolar, Participação social.

 

ABSTRACT

The adult-centric view of children's conflicts during school recess, guided by negativity, has neglected its analysis from children, disregarding its process and the fact that they often end up without recourse to adult intervention. Using the contributions of Childhood Social Studies and Education Sciences, this article approaches children as social actors, producers of children cultures and organized as a social group, proposing to rethink conflicts as inherent to children's relationships and sociability, traversed by powers and emotions, and in which processes they also learn to negotiate and build essential consensus to social participation. The socio-educational analysis of conflicts between 10-year-old girls, observed during the recess of a 1st cycle school, private and urban, seeks to account for i) the gendered occupation of formal recreational spaces; ii) the conflict as a process and the understanding of the social conditions of its genesis, developments and outcomes; iii) its interpretation within the context of social relationships and its powers, traversed by statutes, prestige and elective affinities; iv) learning social skills relevant to social participation. Feminine conflicts that usually arose when they started playing showed in their development, usually in verbal and emotional escalation, practices in which statutes, prestige and elective affinities were used to (re)construct and/or reinforce alliances for the purpose of shutting/exclusion, affirming leadership, confirming principles and values. Its resolution, resulting from mediations, negotiations and construction of consensus is relevant for the development of social participation and political competences.

Keywords:

Conflicts among girls, School recess, Social participation.

 

RESUMEN

En este artículo se aborda la perspectiva adultocéntrica de los conflictos infantiles en los patios escolares, que se basa en la negatividad y ha descuidado su análisis desde el punto de vista de los niños, ignorando su proceso y el hecho de que a menudo se resuelven sin intervención adulta. Utilizando los aportes de los Estudios Sociales de la Infancia y las Ciencias de la Educación, se considera a los niños como actores sociales, productores de culturas infantiles y organizados como grupo social, proponiendo una reevaluación de los conflictos como inherentes a las relaciones y sociabilidades infantiles, atravesados por el poder y las emociones, y en cuyos procesos también aprenden a negociar y construir consensos esenciales para la participación social. El análisis socioeducativo de los conflictos entre niñas de 10 años de edad, observados durante el recreo en una escuela primaria urbana y privada, busca abordar i) la ocupación genderizada de los espacios formales del recreo; ii) la conflictividad como proceso y la comprensión de las condiciones sociales de su génesis, despliegue y desenlace; iii) su interpretación en el ámbito de las relaciones de sociabilidad y sus poderes, atravesados por estatus, prestigio y afinidades electivas; iv) el aprendizaje de habilidades sociales relevantes para la participación social. Los conflictos femeninos surgidos habitualmente al comenzar los juegos mostraron, en su desarrollo, prácticas en las que se utilizaban estatus, prestigio y afinidades electivas para (re)construir y/o reforzar alianzas con el fin de cerrar/excluir, afirmar liderazgos, confirmar principios y valores. Su resolución, resultado de mediaciones, negociaciones y construcción de consensos, resulta relevante para el desarrollo de la participación social y habilidades políticas.

Palabras clave: Conflictos entre niñas, Patio escolar, Participación social.

 

Introdução

Nos últimos 20 anos, a escola tem sido frequentemente identificada e definida, como um palco de conflitos e de violências entre crianças (CHRISPINO, 2007; ABRAMOWAY, 2003), tanto por parte da comunidade educativa como das comunidades administrativa, política, jurídica, científica e dos media. A grande inquietação com a temática dos conflitos escolares nas relações interpessoais infantis deve-se, em grande medida, à sua ressignificação em termos de violência entre pares, e à sua mediatização, geradora de pânico moral - as informações divulgadas nos media, pouco informadas cientificamente, mas muito controversas, seja por excesso de dramatização ou negação do problema (CHARLOT, 2002; DEBARBIEUX, 2007; VIENNE, 2008), têm contribuído para, em numerosos países do mundo, construir um olhar sobre a escola contemporânea como um ambiente social que deixou de ser considerado seguro.

Neste panorama, a centralidade atribuída aos conflitos escolares construiu-os como um problema social específico da categoria aluno (PONTE, 2005) e tornou a escola um contexto onde o tema tem sido sobejamente pesquisado. No entanto, prevalece uma análise, quase exclusivamente, sob a ótica dos adultos e pautada pela negatividade: são nefastos ao desenvolvimento infantil, prejudiciais para as relações entre pares e uma ameaça à harmonia social presente e futura. Em causa tem estado uma visão dos conflitos escolares procedente de uma ideologia tecnocrático-conservadora que relaciona este conceito a algo de negativo, de indesejável e como sinónimo de violência (LEWICKI, SAUNDER & BARRY, 2006; MAYER, 2000; MEKSENAS, 2009).

Procurando adversar a visão adultocêntrica que pesa sobre este fenómeno social na escola, torna-se necessário conhecê-lo de um modo situado e isso significa aprofundar o conhecimento das relações sociais entre pares a partir das crianças. O seu entendimento como atores sociais capazes de expressarem as suas vozes, possibilita interpelar as suas interações no quotidiano escolar a partir dos pontos de vista infantis para compreender os sentidos que os conflitos assumem nas suas vidas. Isto é, a descrição, análise e compreensão de conflitos ocorridos na rede de relações e sociabilidades infantis, quando situadas no âmbito da (re)produção das rotinas das culturas de pares (CORSARO, 1997; FERREIRA, 2004; SARMENTO, 2004) e da sua organização como grupo social (FERREIRA, 2004), permite relê-las enquanto processos intersubjetivos essenciais à construção do auto e heteroconhecimento, ao fortalecimento de laços interpessoais mais empáticos e a práticas consentâneas com a tolerância à diferença e mais inclusivas. Implicando confrontos, disputas e competições físicas, concetuais, psicoafectivas, socioculturais que, por vezes, assumem mesmo formas de agressão e de violência, os conflitos são expressão de lutas, usos, direções e sentidos dos saberes e poderes de determinado(s) indivíduo(s) ou grupo(s) para imporem, fazerem valer e/ou dominarem os outros (CUNHA, 2001; BOLDÚ, CARRASCO ET AL., 2003). São, portanto, parte integrante da vida social, das relações e dos processos de socialização e de participação social.

Com efeito, um olhar mais atento aos processos interativos que assistem à génese, desenvolvimento e final de um dado conflito permite desvelar outros aspetos menos percetíveis ou que podem ser valorizados positivamente, por serem igualmente relevantes nas experiências de participação social das crianças em coletivos infantis - esse é o caso das competências verbais de argumentação e de justificação, de aprendizagem da escuta do outro, da afirmação de valores, princípios e regras coletivas, e negociação e mediação de interesses divergentes em prol dos consensos mínimos e das reconciliações possíveis para que uma dada ação conjunta prossiga. (THORNE, 1993; BOLDÚ, CARRASCO ET AL., 2003; FERREIRA, 2006; SINGER, 2006; FILHO, 2009). Neste sentido, a experiência infantil de lidar com conflitos entre pares pode ser considerada como relevante para a sua formação pessoal e social e para desenvolverem as suas culturas de pares e a construção das ordens sociais infantis, uma vez que as interações conflituais facultam a compreensão de outros pontos de vista, a afirmação e relativização de posicionamentos e, consequentemente, a aprendizagem da vida e convivência em grupo(s).

Assim sendo, o presente texto, apoiado nos contributos teóricos dos Estudos Sociais da Infância e das Ciências da Educação, aborda as crianças como atores sociais, produtores de culturas infantis e organizados como grupo social, propondo-se tornar mais visível a complexidade das suas relações e analisar criticamente o fenómeno social dos conflitos em contexto escolar – trata-se de repensar os conflitos como inerentes às relações e sociabilidades infantis, sendo atravessados por poderes e emoções, e em cujos processos também aprendem a negociar e construir consensos sociais essenciais à participação social. A análise socioeducativa de conflitos entre meninas de 10 anos de idade, observados durante o espaço-tempo do recreio de uma escola do 1º ciclo, privada e urbana durante três meses consecutivos, procura dar conta: i) da ocupação genderizada dos espaços formais dos recreios; ii) da conflitualidade como processo e da compreensão das condições sociais da sua génese, desdobramentos e desfechos; iii) da sua interpretação no âmbito das relações de sociabilidade e seus poderes, atravessados por estatutos, prestígio e afinidades eletivas; iv) da aprendizagem de competências sociais relevante para a participação social.

Ao procurar elucidar outras facetas inerentes aos conflitos - das discussões ao confronto de ideias, ao espírito crítico ou não conformismo, às negociações e consensos -, como potenciadoras de aprendizagens/competências socioemocionais, sociomorais e políticas para participarem socialmente na vida coletiva, ambiciona-se questionar algumas perseveranças presentes nas atuais pesquisas e, assim, contribuir para a ampliação dos modelos teórico-analíticos vigentes acerca deste conceito.

Infância, conflitos e participação social- coordenadas teóricas

A escola contemporânea, um contexto socioeducativo que visa salvaguardar os direitos de proteção, provisão e de participação da criança, e preceitua a inclusão social, a cidadania, o respeito e aceitação da diferença, alcançou um alongamento da escolaridade obrigatória sem precedentes, que reflete, simultaneamente, os processos da sua democratização e da sua massificação. As comunidades educativas da atualidade passaram então a caracterizar-se, essencial e marcadamente, pela heterogeneidade e diversidade (MORGADO, 2004, p. 9) sociocultural, tornando-se a escola um palco de intensas trocas e disputas culturais. Ou seja, os atores sociais afetam e são afetados pelas relações interpessoais que estabelecem, as quais são atravessadas pela diferenciação no que se refere às suas histórias de vida, modos de pensar, interesses, convicções e anseios, e isso faculta, por vezes, o espoletar de divergências e/ou de conflitos no decurso das interações.

Sendo consensual que os conflitos são parte integrante da “natureza humana” e estão presentes em cada um dos âmbitos da nossa vida e do mundo social, ocorrendo desde os primeiros dias da nossa existência até ao seu fim, múltiplas são as abordagens que, no campo das Ciências Sociais, particularmente na Psicologia e nas Ciências da Educação, se dedicam à sua concetualização. Assim, de acordo com Neves e Malafaia (2012), os conflitos estão muito associados a problemas de comunicação, designadamente no que se refere à incapacidade de os atores expressarem de modo oportuno os próprios interesses, ou mesmo, dificuldades em saberem escutar os interesses manifestados pelos outros, estando as situações de conflito relacionadas com momentos de crise e, por vezes, à violência material ou simbólica. Nascendo na divergência de opiniões, ou num modo diferente de interpretar acontecimentos, ou da dificuldade de assertividade (CHRISPINO, 2007), os conflitos expressam a diferença de interesses, de aspirações, de posições e de poderes.

Desde que nascem, as crianças são seres ativos dotados de capacidades físicas, cognitivas, emotivas e reflexivas que lhes permitem interagir com o que as rodeia e com os que a rodeiam, adultos e outras crianças. Por essa razão, elas não apenas são seletivas nas apropriações que fazem da realidade social e material como nas ressignificações que lhe atribuem para a tornarem significativa para si. A heterogeneidade de conceções e práticas, afirmada e debatida no decurso das múltiplas relações em que as crianças se envolvem gera, inevitavelmente, diferenciações e distinções intra e intergeracionais, colocando a conflitualidade no seu cerne.

Acresce a esta conflitualidade o ser interseccionada por dimensões estruturais de classe social, género, idades, etnia, etc. que possam existir, sendo que, nos grupos sociais das crianças intervêm, ainda, dimensões do mundo das sociabilidades infantis como as afinidades eletivas, as amizades ou a popularidade que, a seu modo ou combinadas entre si, interferem na sua participação. É no seio destes grupos de pares que cada uma delas põe em prática tudo o que aprende(u) com outros agentes socializadores relativamente ao modo como manter intercomunicações e interações com os outros; é também aqui que disputam, confrontam, negoceiam, desafiam, estipulam, impõem e/ou influenciam quais as formas de agir e quais os valores e normas e adequados, que os aprendem e que os fazem cumprir.

Os grupos de pares e as suas culturas são assim e, igualmente, mais outras tantas agências de socialização, porque “dão origem à troca de ideias, de perspetivas, de papéis e à partilha de atividades em conjunto que, por sua vez, criam contextos para a negociação interpessoal, para a discussão e resolução de conflitos entre pares” (ALMEIDA, 2000, p.18). Por conseguinte, as interações das crianças em contexto escolar, permeadas pela construção e quebras de amizade (ADLER ET AL., 1992; BERNDT, 1989; DAVIES, 1982; RENOLD, 2002; THORNE, 1993; THORNE E LURIA, 1986), usam conceitos interiorizados de amizade, incluindo a lealdade, honestidade, reciprocidade, compromisso e intimidade (DEEGAN, 1996; RIZZO E CORSARO, 1988), cuja expressão com risos e alegria, amuos e choros, disputas, conflitos e lutas de poder, inclusões e exclusões (CORSARO, 1997; FERREIRA, 2004), revelam um mundo social cheio de turbulência. Afinal, os conflitos e as diferenças sociais são elementos centrais nos grupos de pares (idem; idem).

Por estas razões, a problematização dos conflitos infantis implica tomar em consideração a importância que aí têm as culturas de pares infantis, com as suas rotinas, regras e valores próprios (idem; idem), as sociabilidades infantis, e a posição e estatuto social de cada criança ocupa no grupo de pares - apesar de serem crianças entre crianças, nem sempre elas partilham interesses ou códigos comuns, pelo que a(s) cultura(s) e as relações de pares nem sempre correspondem à representação idealizada da paz, da alegria e do espírito de comunhão e de comunidade.

Regressando ao contexto escolar, poder-se-á então dizer que a escola é uma das instituições que gera quotidianamente uma dinâmica conflitual de ordem e de desordem, de mudança e de resistência à mudança (SPÓSITO, 2002). É também na escola, particularmente nos espaços recreativos, enquanto mundos de relativa ausência dos adultos, que as crianças, tendo maior liberdade para tomarem decisões e escolherem livremente brincadeiras e parceiros/as, constroem relações de género (THORNE, 1993), instaurando, frequentemente, separações intergénero: “As crianças agrupam-se por afinidades que são, primeiramente, afinidades de género” (DELALANDE, 2001, p. 117), tendo grupo(s) de amigos constituído(s) por elementos do mesmo sexo (THORNE, 1993; GAITÁN, 2006). Esta presença de grupos genderizados no grupo de pares, resultante, pelo menos em parte, de uma educação sexuada, não aponta para um desinteresse de um género pelo outro” (DELALANDE, 2001, p. 152), nem é isenta de diversos tipos de conflitos tanto nas relações heterossociais como nas homossociais.

Alguns estudos sobre a dicotomia de género apontam que as meninas, por oposição aos meninos, tendem a ter grupos de amigos mais pequenos e, comparativamente, esperam e recebem mais compromisso, lealdade e compreensão empática por parte das suas melhores amigas; que nos espaços formais dos recreios dos jardins-de-infância e escolas ocupam espaços mais reduzidos, próximos dos edifícios (DELALANDE, 2001; THORNE, 1993), sendo menos invasivas espacialmente (PAECHTER, 2009); que usam formas de agressão mais moderadas, tais como a mudança de assunto, procurando compromissos ou simplesmente saindo da interação (SINGER, 2006). Neste alinhamento, Saramago (1994) considera que as meninas se enquadram mais nas características do grupo silencioso do que o sexo oposto e exprimem com mais frequência determinadas necessidades particulares de apropriação e ação sobre os espaços físicos e/ou sociais que as rodeiam.

Porém, as formas de exclusão social presentes nos grupos de meninas levam a questionar a noção de que elas estão fundamentalmente interessadas na interação cooperativa e numa moralidade baseada em princípios de relacionamento, cuidado e equidade, uma vez que estudos qualitativos sobre a linguagem e o género (GOODWIN, 2002) o contradizem claramente. No estudo da autora, meninas de idades entre os 10 e os 12 anos utilizavam recursos linguísticos e não-verbais para gerirem as suas relações sociais, delinearem os limites do seu grupo e praticarem formas de exclusão social: os modos como constroem sequências de oposição prolongadas mostravam que estavam ativamente à procura de conflitos e de pretextos para ridicularizarem os seus pares nas suas brincadeiras; há processos contínuos de formação de alianças que servem para competirem entre si sobre quem é amigo de quem, e quem foi excluído de acordos de amizade; conversas longas sobre outras meninas que não estão presentes na interação; sancionamento das que agem diferentemente (Ibidem). Este outro lado das relações entre meninas e suas brincadeiras contraria a sua romantização e vê o recreio como lugar onde são significativas as relações sociais baseadas no poder e status (ADLER & ADLER, 1998; THORNE, 1993; PAECHTER, 2009). As relações intragénero feminino também são construídas por discussões e conflitos prolongados, particularmente visíveis durante as suas brincadeiras, e isso possibilita a construção de posições dentro do grupo feminino, assertivas e seguras, poderosas (FERREIRA, 2004). Contudo, importa ter em mente que para as crianças brigar é uma atividade encenada. “Jogar é uma definição frágil. Os participantes têm de estar constantemente a analisar a fronteira que distingue o jogo do não-jogo. Esta ambiguidade cria tensão, desde que alguém não tenha a certeza da direção que o jogo vai tomar” (THORNE, 1993, p. 79).

Se esta incerteza sobre o fluxo das interações nas brincadeiras pode ser geradora de conflitos vários, ela pode também abrir caminho a outras possibilidades e imprevistos desafiadores que requerem ser esclarecidos, renegociados, consensualizados, mesmo que não verbalmente, para que a ação comum prossiga e prolongue (FERREIRA, 2004). Isso requer ser capaz de escutar os outros e colocar-se do seu ponto de vista, conhecer e defender os valores das culturas infantis – desenvolver atividades com outros (CORSARO, 1997), conhecer bem a personalidade e a posição de cada um dos membros do grupo para usar de argumentos mais persuasivos, estabelecer prioridades e fazer propostas exequíveis “num dado tempo e espaço e em determinados cenários, isto é, num contexto situacional” (Idem, p. 88). Tais mediações dos interesses particulares em prol dos interesses comuns relevam, portanto que, quando tratados de forma política os conflitos podem converter-se em aprendizagens (CARBONARI, 2006) significativas, participando dos processos de humanização do ser humano na infância e das práticas de exercerem a sua cidadania infantil (DEBARBIEUX, 2007; AIKENHEAD, 2009; ESTRELA & FERREIRA, 2002; THOMPSON, ARORA & SHARP, 2002).

Conflitos entre meninas no recreio escolar – metodologia

Dada a centralidade de aprofundar o conhecimento das relações sociais entre pares de modo a apreender e a compreender a importância que os conflitos ocupam no seu seio e, sobretudo, qual a sua relevância e sentidos, a opção pelo contexto de pesquisa recaiu na escola e, dentro desta, no recreio. Sendo aqui que as crianças passam uma parte do seu dia-a-dia escolar, os recreios são contextos em que as suas experiências tendem a ser menos policiadas pelos adultos, o que lhes permite constituir “uma unidade social e cultural vivida e marcada pela sua situação de idade” (DELALANDE, 2001, p. 263) e desenvolver a sua cultura de pares sem a interferência direta de outros agentes socializadores.

A observação participante das ações sociais de um grupo de 23 crianças, 11 meninos e 12 meninas, de idades entre os 9 e os 10 anos, que frequentavam o 4º ano de escolaridade numa escola privada situada na área metropolitana do Porto, ocorreu diariamente, durante o tempo de recreio relativo ao intervalo do almoço, entre as 12h30m e as 13h30m ou as 13h e as 14 h, por um período de aproximadamente três meses, entre setembro e novembro de 2012.

Com o propósito de apurar um corpus de análise específico que permitisse descortinar a relevância e os sentidos dos conflitos nas interações entre pares, procedeu-se à análise de conteúdo qualitativa e quantitativa dos registos recolhidos e à organização dos episódios interativos, num total de 383, segundo três eixos centrais: “interações intergénero”, “interações intragénero feminino” e “interações intragénero masculino” e três grandes categorias pré-definidas como “interações não conflituais”, “interações com a presença de conflito” e “interações mistas, que apresentaram momentos de conflito e de não conflito”, conforme se sistematiza no Quadro 1:

Quadro 1 – Total de interações observadas no recreio: género e tipo de interação: não conflitual, conflituais e mistas – síntese

INTERAÇÕES

MENINOS

MENINAS

MENINOS e MENINAS

TOTAIS

Não conflituais

133

130

56

319

Conflituais

26

17

8

51

Mistas

7

6

-

13

Totais

166

153

64

383

Fonte: elaborado pelas autoras

As primeiras ilações a retirar acerca das interações infantis no recreio escolar são que, contrariamente à visão do senso comum, i) a presença de conflitos não é dominante; ii) as interações conflituais por género masculino e género feminino não apresentam diferenças significativas; iii) há mais conflitos intragénero do que entre géneros (cf. Quadro 1).

Face a estas constatações, num segundo momento aprofundou-se a análise das interações conflituais de género, aí se incluindo também as “interações que apresentaram momentos de conflito e de não conflito”, num total de 64 (17%), considerando as suas i) dimensões contextuais - a organização espacial do recreio e atividades preferenciais das crianças; ii) dinâmicas processuais - as condições sociais da génese, desenvolvimento e terminus dos conflitos e iii) dinâmicas relacionais - interpretação dos conflitos no âmbito das relações de estatuto e de poder no grupo de pares e das culturas infantis genderizadas que lhes dão significado e sentidos. Tal permite refletir que as interações sociais ocorridas nos grupos de pares genderizados possibilitaram às crianças experiências em torno das suas feminilidades e masculinidades, e a expressão de interesses e pontos de vista comuns e diferentes, por vezes enfrentando conflitos.

A análise que se segue neste texto refere-se apenas às 23 interações conflituais identificadas entre/dentro do grupo das meninas.

Os procedimentos éticos relativos à obtenção do consentimento informado junto da direção da escola, pais e crianças foram assegurados bem garantido o seu anonimato neste texto.

 

Conflitos entre meninas no recreio

Nas instituições escolares, dado que os adultos tendem a interferir menos nas interações das crianças nos recreios, estes espaços-tempos constituem oportunidades para que elas encontrem diferentes modos de agir e de brincar coletivamente, ao mesmo tempo que constroem, negociam e consolidam as suas identidades e performances de género (THORNE, 1993) e o seu posicionamento na organização social do grupo de pares (FERREIRA, 2004).

Dimensões contextuais dos conflitos - a ocupação genderizada do recreio

        É no recreio escolar que se presenciam as maiores separações intergénero: as crianças tendem a escolher grupos de pares do mesmo género, utilizando, por vezes, o género como pretexto para se juntarem e associando-o a determinadas atividades. Isso reforça a ideia de que as crianças são seres genderizados, isto é, integram-se em grupos separados numa “dicotomia, a das meninas e a dos meninos, como lados opostos” (THORNE, 1993, p. 65). Com efeito, durante a observação realizada, foi possível aferir a presença de grupos genderizados, formando díades e tríades de crianças do mesmo género. Assim, “apesar das meninas e dos meninos estarem juntos nas salas de aula, nos recreios estes contactos poucas vezes se convertem em amizades ou alianças estáveis (idem, p. 47).

        Em seguida, ao analisar distintamente as interações observadas entre meninas, a constatação que num total de 153, a maioria decorreu de modo não conflitual (130, cf. Quadro 1), corrobora, de algum modo, a ideia de que elas se evidenciam como sendo, sobretudo, “apaziguadoras e boazinhas” (THORNE, 1993; BAILEY, 1993), bem de acordo com o protótipo das meninas “maduras, bem-comportadas e sensíveis” (FRANCIS, 1998, p. 39). No entanto, nas restantes 23 interações em que sobrevieram conflitos mais ou menos visíveis (cf. Quadro 1), o reduzido número não significa menor significado social: em 17 interações, os conflitos ocupam um lugar central, i.e.: aconteceram em torno da irrupção e/ou desenvolvimento e/ou resolução da interação e, em 6 interações, os conflitos foram pontuais e entremeados com interações de grande reciprocidade e cooperação. Pode então dizer-se que, durante o intervalo do almoço, as meninas parecem tentar aproveitar da melhor maneira possível este curto tempo para se dedicarem ao desenvolvimento de atividades comuns, seja em pequenos grupos, em grandes grupos ou na sua totalidade, mas que, apesar de “tenta[re]m evitar a aparência da hierarquia e do conflito aberto, muito disso (…), vem à superfície” (THORNE, 1993, p 106).

      Os locais do recreio escolar em que se identificou uma maior presença de conflitos nas interações entre meninas foram a entrada da sala da turma do 4º ano e junto ao tanque. Parece, assim, existir, em relação aos locais de “entrada/saída”, enquanto áreas fronteiriças e, de algum modo, limitadas na sua largura para circulação, uma dada ocupação com o propósito de “restringir física e simbolicamente a admissão ao grupo e [ao] (…) espaço” (PAECHTER, 2009, p. 119). Relativamente às ações em que se observaram conflitos entre meninas, eles aconteceram sobretudo em conversas e em atividades de movimento relacionadas com o dançar, o que reforça a tese de que elas tendem a ser mais controladas na expressão da atividade motora, preferem estar perto dos edifícios, confinando-se a lugares mais reduzidos, ocupando apenas um décimo do espaço controlado pelos meninos (THORNE, 1993).

Os poucos conflitos mistos observados entre meninos e meninas ocorreram, de novo, na entrada da sala do 4º ano e também dentro dessa mesma sala, igualmente durante conversas e, ainda, em jogos de movimentos com regras.

Não sendo a ocupação do recreio neutra, mas sim genderizada, também “as interações no subgrupo das meninas não são neutras, mas atravessadas por relações sociais de poder e de estatuto desiguais [e] conflituais” (FERREIRA, 2004, p. 219). Observemos então as dinâmicas processuais dos conflitos entre meninas: quais são as suas causas, de que modos se desenvolvem e se instalam, ou não, e como terminam?

Dinâmicas processuais dos conflitos entre meninas - condições sociais da sua génese, seu desenvolvimento e terminus

A análise das interações conflituais entre meninas, considerando a sua génese, permitiu identificar 6 grandes causas possíveis, ainda que o grau de ocorrências e, portanto, de importância relativa, possa ser muito variável. Sobressaíram como causas mais significativas as que têm como denominador comum objetivos de controlo da interação (categorias 1., 2., e 3. perfazendo 19 interações num total de 23) (cf. Quadro 2)

Quadro 2. Génese e desenvolvimento de relações conflituais intragénero feminino - Síntese das categorias e subcategorias emergentes¹

Categorias

Génese

Desenvolvimento

Totais

ST

T

1. Tentativas de controlo da interação

1.1. Na definição de papéis, regras e posições no jogo

(G, H, I)

3

7

1.2. De interditar a entrada de determinado ator na interação (J)

1

1.3. Pelo isolamento de um determinado ator vs manutenção de alianças (amizades) (K)

+ confronto verbal (L)

3

+ confirmação (M)

2. Controlo direto e indireto da interação

2.1. Na definição de papéis, regras e posições no jogo (A, B, C)

+ confronto verbal (D)

4

6

2.2. De primazia no acesso ao espaço (E)

1

2.3. Sobre a imobilidade física de um determinado ator (F)

1

3. Ações e/ou estratégias de fechamento/exclusão a um determinado ator/atores (N, O, P, Q, R, S)

6

6

4. Situações interpretadas como sendo de ajuste de contas (T, U)

2

2

5. Investida física com sentido de provocação (V)

1

1

6. Disputa entre meninas pela proximidade física de um menino (W)

1

1

TOTAL

23

    Fonte: elaborado pelas autoras

  As ações visando o controlo da interação manifestaram-se sob diversas formas, como i) várias tentativas de controlo (7), ii) conjugação de formas diretas e indiretas para controlar a ação (6) e iii) recurso a estratégias que visam o fechamento do grupo em interação pela exclusão de outras meninas, vistas como indesejáveis (6) (Quadro 2).

As tentativas de controlo ou o controlo da ação que caraterizam os conflitos mais frequentes entre as meninas tendem a gerar-se aquando da definição de papéis, regras e posições no jogo (4 e 3 referências, respetivamente, cf. Quadro 2), e a sua análise permite sublinhar que estes tendem a expressar-se mais através de formas verbais – 21 episódios interativos - do que através de formas físicas – 2 episódios interativos (V e W) – em que a afirmação de força e poder se exerce através do “empurrar”.

Outras causas para eclosão e desenvolvimento de conflitos, mas menos frequentes e significativas, deveram-se a interações mais circunscritas e pessoalizadas, geralmente envolvendo duas meninas ou um pequeno grupo (4 elementos), e expressaram-se sob a forma de conflitos verbais (2) - um ajuste de contas face a “acusações de espionagem” (episódio interativo T) e uma interpelação intimidatória sobre a localização de um objeto (episódio interativo U) -; e uma investida física em que uma menina empurra outra que integrava um grupo de meninas fazendo acusações e ameaças com o sentido de a provocar (episódio interativo V). Finalmente, uma outra causa tem o género oposto no horizonte, quando um pequeno grupo de meninas disputa a proximidade física de um rapaz (episódio interativo W).

Nas interações sociais entre meninas analisadas como conflituais, o seu terminus apresenta como traço comum o não ter sido necessário recorrer a terceiros, designadamente à intervenção adulta, para mediar os conflitos. Assim, dos 23 conflitos observados, 13 terminaram com a saída da interação de uma das partes conflituantes, geralmente associada às tentativas de controlo, isto é, sai da interação a menina que pretende liderar a ação comum ou a menina que não concorda com a liderança imposta, tendo o restante grupo prosseguido a ação comum. A manutenção da interação, presenciada em 8 episódios conflituais interativos, deveu-se à continuidade da posição de líder com controlo na ação comum pela definição de papéis, regras e posições no jogo (5 interações). Em outras 3 situações conflituais, a interação prosseguiu com a reconciliação das partes conflituantes. Nestas situações, a mediação do conflito efetivou-se com a sugestão de nova atividade. Finalmente, em 2 conflitos, o seu fecho caracterizou-se pelo Fechamento/Exclusão do grupo perante a menina geradora do conflito que, no entanto, continuou a impor a sua presença, mantendo-se por perto.

Conflitos femininos - dinâmicas relacionais no âmbito da cultura de pares e da organização social do grupo

Avança-se agora na análise dos conflitos entre as meninas, focando as suas dinâmicas relacionais, compreendidas no âmbito da cultura de pares e organização social do grupo. Retomemos então os conflitos interativos mais frequentes, em cujas causas e desenvolvimento que se observaram i) 1. Tentativas de controlo da interação; ii) 2. Controlo direto e indireto da interação; iii) 3. Ações e/ou estratégias de fechamento/exclusão a um determinado ator/atores (cf. Quadro 2).

A maioria destes conflitos femininos apresenta um conjunto de caraterísticas.

Do ponto de vista da temporalidade, as ações de controlo geradoras dos conflitos começaram a ocorrer já no decurso da interação de um pequeno grupo pelo que a iniciativa de tentar ou de começar a controlar as outras meninas tende a ser individual, partindo de alguém que participa no seio do próprio grupo. O âmbito do controlo que se quer exercer, ou é mesmo exercido, pode ser dirigido a atores individuais ou a pequenos grupos de atores participantes na ação comum. Estas ações controlo manifestam-se sob a forma de tentativas e controlo, direto ou indireto, para dirigir e gerir outrem e/ou assumir poderes de liderança e/ou chefia para definir papéis, regras e posições no jogo (episódios A, B, C, G, H, I); para desencadear estratégias de fechamento/exclusão a um determinado ator/atores (episódios N, O, P, Q, R, S); para interditar a entrada de determinado ator na interação (episódio J); para isolar determinado ator visando manter alianças com base na amizade (episódio K); para exercer primazia no acesso ao espaço (episódio E); para controlar a mobilidade física (episódio F) (cf. Quadro 2).

Boa parte dos conflitos cuja origem recai no exercício do controlo parece ficar a dever-se à determinação da sua autora em se autoatribuir a função de passar a gerir e a regular o jogo, definindo os papéis, as regras e as posições das outras, impondo, com maior ou menor subtileza, o cumprimento de decisões definidas unilateralmente:

“[A Luísa e a Iris estão a jogar à “Verdade ou Consequência”]. Luísa escolhe quem vai jogar.

A Íris, contrariada, diz-lhe: - Tu mandas em tudo!

Luísa sorri para ela, fala-lhe com uma voz meiga e continua a orientar o jogo. Íris não aceita a decisão, levanta-se, mas mantém a proximidade física, iniciando uma ação individual” (28 Out. / Episódio Interativo 1.1. C)

 

“As gémeas Cátia e Clara, e a Carla, brincam ao faz-de-conta de um casamento e, a dada altura, a Carla insiste em pôr na cabeça de Cátia um casaco “para ser o véu”. (…)

A Cátia, a choramingar: - Eu não quero ir!

Carla, mais firme: - Mas vais!

Neste momento, a Clara tenta fazer a mediação do conflito com a sugestão de nova atividade, mas a Carla insiste em continuar com esta: - Mas eu quero brincar a esta brincadeira! Após tentativas de reafirmação da atividade, Clara sai da interação e Cátia segue-a. Como a Carla não a seguiu, Clara pede a Cátia que vá chamar a Carla. Cátia obedece e as duas irmãs vão ter com a Carla (20 Out. / Episódio Interativo 1.1. D)

 

Em qualquer um dos excertos evidencia-se o controlo direto e explícito dirigido a atores individuais específicos, quando determinadas meninas “procura(m) afirmar o seu poder de controlo e sanção (…) [por terem] um estatuto considerável no grupo de crianças” (FERREIRA, 2004, p. 219). Esse é o caso da Luísa, mesmo adotando um tom conciliário para melhor convencer a Iris; esse é o caso Carla, mais impositiva e inflexível em relação à Cátia. No primeiro caso, o sucesso da Luísa e a continuação da interação devem-se ao afastamento da Íris, mas no segundo caso entram em jogo outros aspetos: por um lado, a fratria entre as gémeas Clara e Cátia, cuja aliança as faz abandonar a interação com a Carla e, por outro, os laços de amizades que unem o trio já que a visada no conflito – a Cátia - solicita a mediação da irmã para se reaproximar/em, apesar de tudo, da Carla.

A expressão de uma hierarquia vertical de poder e de controlo também se evidencia em outras interações conflituais, quando está em causa ter primazia no acesso aos espaços (cf. Quadro 3, ponto 1.2.), querendo ser a primeira:

 

“[O trio Carla, Cátia e Clara ficam no recreio a brincar e são as últimas a entrar na cantina…]. A Cátia tenta dirigir-se para lá e a Clara segue-a, mas a Carla puxa-as para trás para ficarem a brincar no recreio durante algum tempo, mas também para as impedir de entrar para ser ela a primeira a fazê-lo. [Mais tarde, as três acabam por entrar na cantina]” (6 Out. /Episódio Interativo 1.2. E)

 

Estas tentativas de querer ser a primeira, sinónimo de outros atributos sociais superlativos semelhantes, como o ser a melhor, a maior… configuram aquele que é um dos valores das culturas de pares infantis, o valor da primazia (CORSARO, 1997; FERREIRA, 2004), e um modo de assinalar que os “processos de construção social das posições de liderança nos grupos das crianças, em particular, no subgrupo das meninas, [são] dependentes de relações sociais e de estatuto hierárquico, bem como de sociabilidades complexas e altamente mutáveis que se inscrevem na história das relações quotidianas entre pares” (FERREIRA, 2004, p. 261). De novo, o mesmo trio de amigas, as gémeas Clara e Cátia, e Carla, reitera as suas ações comuns, e de novo a Carla procura posicionar-se numa relação de poder, seja de um modo mais subtil, para prosseguirem a brincadeira, seja de um modo mais físico – puxar para trás - para assegurar a sua primazia no acesso à cantina, controlando a entrada. Contudo, esta tentativa de controlo, talvez atenuada pela mudança de atividade - retomar mais um pouco do brincar - parece ter atenuado eventuais tensões conflituais, acabando por entrar as três meninas na cantina, sem disputas ou competições entre si.

Nos exemplos apresentados, se o exercício do controlo acaba por ser geralmente bem-sucedido em função das intenções visadas, outras situações há em que isso pode não acontecer tão facilmente, mas sem que isso signifique a sua desistência face aos conflitos que isso desencadeia. Pelo contrário, o que se destaca são as várias tentativas para controlar a definição de papéis, regras e/ou posições no jogo. Na maioria destas tentativas de controlo, i) a iniciativa decorre de atores individuais; ii) o âmbito do controlo pode ser dirigido a atores individuais ou a pequenos grupos de atores envolvidos numa dada ação comum; iii) o tipo de controlo caracteriza-se por sucessivas tentativas para concretizar determinados propósitos, desde a definição de papéis, regras e posições no jogo; a entrada vs fechamento/proteção do espaço interativo ou o isolamento de um determinado ator vs manutenção de alianças e/ou amizades (cf. Quadro 2).

No excerto do episódio interativo que se segue, as tentativas para controlar a situação estão na base do conflito que se instala, sobretudo, entre a Sara e a Luísa, quando esta última, acabada de chegar, pretendia entrar na dança, mas para ocupar um lugar central na interação e no arranjo espacial do grupo:

“[As meninas do grupo da Sara estão a dançar, em cima do muro do tanque]. A Íris está virada para elas, no chão, a dar orientações. A Luísa aproxima-se de Sara e pergunta se pode brincar. A Sara responde-lhe: - Mas aqui não cabe!

A Luísa sugere: - Então vamos para outro sítio!

Íris propõe-lhe que fique num dos cantos do muro do tanque, mas Luísa não aceita.

A Sara, com tom irónico, diz-lhe: - Querias ficar no meio, era?!

Luísa: - Não! Mas ali não quero!

Marta, decidida: - És professora!

Luísa: - Não pode ser duas professoras!

A Sara deu a ideia de trocarem: ficam elas no chão e Íris (a professora) no tanque. Assim fizeram: Luísa e Sara ficaram no meio, nos cantos ficaram a Marta e Laura. No entanto, apesar de não ser a “professora”, Luísa ia dando instruções.” (21 Out. / Episódio Interativo 2.1. I)

 

Solicitar ou declarar diretamente a participação num jogo é uma estratégia raramente usada pelas crianças, uma vez que estas perguntas exigem uma resposta imediata que, frequentemente, é negativa (CORSARO, 1985). É isso que começa por acontecer por parte da Sara face à pergunta da Luísa, mas esta não desiste, do mesmo modo que também não aceita a sugestão que lhe é feita pela Íris, para ocupar um lugar “ao canto”. Em causa parecem estar não apenas tentativas da Luísa para entrar na dança do grupo, mas para, fazendo-o, acumular uma dupla sobreposição de posições simbólicas e espaciais (ocupar o centro, mudar a dança de lugar e, com isso, vir a assumir outra posição de relevo no grupo e ocupar o tão desejado lugar central na “coreografia” da dança e do grupo). “Estar no centro” parece, assim, representar o auge de poder simbólico nas relações entre estas meninas; uma posição que a Luísa não alcançou, mas sem que isso a tenha impedido de continuar a tentar controlar o jogo, competindo com a Iris, a “professora” que comandava a ação.

Ainda neste episódio é de sublinhar a intervenção pontual da Marta para resolver o conflito que se gerava, quando sugere que a Luísa seja “a professora”, mas, sobretudo, o papel da Sara, a líder do grupo, que assim se mantém do início ao fim, mostrando várias estratégias de controlo do conflito: explicitando os desejos inconfessados da Luísa, sugerindo uma alternativa para a reorganização do grupo e continuação da ação comum, que ganha o consenso das restantes meninas.

Em suma: Poder-se-á afirmar que, de um modo geral, as principais causas dos conflitos entre meninas, observados nos recreios, estão relacionadas com interesses pessoais/do grupo, com o contexto social e simbólico em que se gera o conflito, com as tensões psicológicas que provoca e as divergências de posicionamento intelectual ou de princípio (BOLDÚ, CARRASCO ET AL., 2003). Nestas interações conflituais tornaram-se visíveis complexas estratégias de poder, através de confrontos e disputas verbais e não verbais, e expressando sentidos vários – controlo, dominação, falcatrua, provocação, humilhação, intimidação.

Pode dizer-se também que a génese destes conflitos tende a envolver duos e trios específicos de meninas que interagem entre si ou que participam em interações mais alargadas, como é o caso da tríade gémeas, Cátia e Clara, e a Carla, ou do grupo da Sara, que agregava geralmente a Luísa, a Íris, a Marta e a Laura. Reciprocamente, parece haver meninas que são alvos preferenciais destes conflitos, ainda que possa haver motivos nas relações entre pares que as diferenciam, como é o caso da Luísa, que procura reiteradamente uma posição de controlo e de “centralidade” nas várias interações que estabelece.

Os conflitos gerados entre meninas, nas suas várias formas e sentidos, explícitos ou implícitos, evidenciam “a variação dentro do mesmo género, incluindo fontes transversais de divisão e de semelhanças” (THORNE, 1993, p. 96). Estas clivagens nas relações intragénero feminino, na sua elevada invisibilidade e pouca exuberância sonora, fazem as meninas parecerem mais discretas que os meninos, dado o modo como agem umas com as outras – conversando, brincando ou dançando, mas fazendo complexos jogos psicológicos, morais e/ou afetivos, em que as agressões físicas estão pouco presentes.

Apesar das causas de os conflitos femininos tenderem a eclodir já no decurso de uma dada interação, por meio de alguém de fora ou de dentro, e de vários conflitos se poderem suceder perpetrados pelas/entre as mesmas meninas ou outras chegadas de “fora”, a maior parte deles terminou com o afastamento da menina que desencadeou a situação conflitual ou de outro elemento do grupo que não pretendia submeter-se às regras impostas. No entanto, também se presenciaram estratégias de negociação, de mediação, de resolução dos seus próprios conflitos, como se procurou sublinhar, visando a reconciliação das partes e o recomeço da interação. Nesse sentido, nas dinâmicas conflituais estiveram sempre presentes, em simultâneo, interesses individuais e coletivos; poderes, saberes e afetos; inclusões e exclusões; conflitos e ludicidade.

Considerações finais

As crianças encontram-se num mundo estruturado por relações sociais que, por um lado, lhes organizam a sua vida diária e, por outro, em que elas organizam as suas relações com os pares e com os adultos. É no âmbito destas relações que elas produzem as suas culturas e constroem as suas identidades pessoais enquanto crianças, enquanto crianças genderizadas, enquanto crianças que se posicionam e são posicionadas socialmente no grupo de pares e como membros de uma categoria social específica, a infância. Assim sendo, ao estudar as suas experiências, as suas vozes, ou seja, os seus processos e formas de participação, verbais e não verbais, entre meninas procurou-se problematizar as suas relações conflituais nos espaços recreativos, de modo a compreender como se geravam, desenvolviam e terminavam. E, com isso, como se entrelaçam culturas de pares e organização social do(s) grupo(s) de pares, desconstruindo este último como sinónimo de homogeneidade interna.

As interações conflituais nos grupos de pares femininos possibilitaram às meninas o desenvolvimento de experiências específicas em torno do género, idades e sociabilidades, e a expressão de diferentes interesses, pontos de vista e poderes, ora desencadeando, ora enfrentando, ora resolvendo conflitos. A presença maior de interações não conflituais bem como os esforços envolvidos para a sua resolução, reforça a importância de um dos maiores valores das culturas de pares infantis: o desenvolver ações comuns com outros, ou, mais vulgarmente, “brincar” com os outros (CORSARO, 1997; FERREIRA, 2004). Talvez por isso, na maior parte dos casos, os desfechos dos conflitos tenham sido marcados pela rápida retoma da ação interrompida, ou suspensa, para a prosseguirem ou para a reestabelecerem segundo novas propostas de ação e (re)organização das participantes. Estes factos evidenciam que os conflitos podem constituir modos de estimular a defesa de interesses e o empoderamento das crianças envolvidas na ação, tornando-se um meio credível para que os problemas possam ser esclarecidos, debatidos e negociados e para que assim se possam construir as identidades pessoais e sociais das crianças e fortalecer as alianças interpessoais.

Por outro lado, os conflitos, quando perspetivados no âmbito das culturas de pares e das culturas de pares genderizadas, permitem outra compreensão do fenómeno da designada violência escolar, já que a perspetiva das crianças não é necessariamente coincidente com aquilo que os adultos representam e significam – a carga que a palavra e o conceito de violência veiculam ao nível do senso comum permite, deste ângulo, desconstruir a conceção de que a escola contemporânea é um lugar perigoso, potenciador de violências constantes, especialmente se for pública.

Este estudo permite-nos, de igual modo, argumentar e reforçar a ideia de que é no universo do contexto escolar que se pode promover a cidadania e o desenvolvimento pessoal e social das crianças. É no decurso e no rescaldo dos conflitos vivenciados pelas/entre as crianças que se lhes torna possível reconfigurar, desfiar ou manter, reforçar, transformar ou subverter as posições ocupadas na hierarquia que organiza socialmente o grupo de pares e, nessas dinâmicas processuais e relacionais, encontrar soluções e outras alternativas, uma vez que os conflitos também podem estar no âmago das mudanças pessoais e sociais.

 

Referências

ABRAMOWAY, Miriam. Escola e violência. Brasília: Unesco/UCB, 2003.


ADLER, Patrícia; ADLER, Peter.
Peer power: Preadolescent culture and identity. London: Rutgers University Press, 1998.


ADLER, Patricia; KLESS, Steven; ADLER, Peter. Socialization to gender roles: Popularity among elementary school boys and girls.
Sociology of Education, vol.65, n.3, p.169-187, jul.1992.


AIKENHEAD, Glen.
Educação científica para todos. Mangualde: Edições Pedago, 2009.


ALMEIDA, Ana Tomás. As relações entre pares em idade escolar. Braga: Centro de Estudos da Criança da Universidade do Minho,
2000.


BAILEY, Karen. The girls are the ones with the pointy nails: An exploration of children’s conceptions of gender. Western Ontário: Althouse Press, 1993.


 BERNDT, Thomas. Obtaining support from friends during childhood and adolescence.
In: D. Belle. (Ed.). Children's social networks and social supports. New York: John Wiley & Sons, p. 308-331, 1989.


BOLDÚ, Maite; CARRASCO, Rosa et al.
Introducción a la Mediación. In: GARCÍA, Ana Poyatos (Coord.). Mediación familiar y social en diferentes contextos. Valencia: Nau Llibres, p. 77-111, 2003.


CARBONARI, Paulo. Ética, Violência e Memória das Vítimas: um olhar à luz dos direitos humanos. Filosofazer, Passo Fundo, n. 29, p. 75-89, jul./dez. 2006.


CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias, Porto Alegre, n.8, p. 432-443, jul./dez. 2002.


CHRISPINO, Álvaro. Gestão do conflito escolar: da classificação dos conflitos aos modelos de mediação. Ensaio: Avaliação e políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v.15, n.54, p. 11-28, jan./mar.
2007.


 
CORSARO, William. Friendship and peer culture in the Early Years. Norwood, N.J: Ablex, 1985.


CORSARO, William. The sociology of childhood.
London: Pine Forge, 1997.


CUNHA, Pedro.
Conflito e negociação. Porto: Edições ASA, 2001.


DAVIES, Bronwyn. Life in the classroom and playground: The accounts of primary school children.
London: Routledge,1982.


DEBARBIEUX, Éric. Violência na escola: um desafio mundial?. Lisboa: Instituto Piaget, Horizontes Pedagógicos, 2007.


DEEGAN, James. Children’s friendships in culturally diverse classrooms.
London: Falmer Press, 1996.


DELALANDE, Julie. La cour de récréation: Pour une anthropologie de l’enfance. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2001.


ESTRELA, Albano; FERREIRA, Júlia. Violence et indiscipline à l´école/Violência e indisciplina na escola. Lisboa: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, AFIRSE, 2002.


FERREIRA, Manuela. Do «avesso» do brincar ou … as relações entre pares, as rotinas da cultura infantil e a construção da(s) ordem(ens) social(ais) instituinte(s) das crianças no jardim-de-infância. In: SARMENTO, Manuel, Jacinto; CERISARA, Ana, Beatriz. Crianças e miúdos: Perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Edições ASA, p. 55-104, 2004.


FERREIRA, Manuela. “- Tá na hora d'ir pr'á escola!"; "- Eu não sei fazer esta, senhor professor!” ou... Brincar às escolas na escola (JI) como um modo das crianças darem sentido e negociarem as relações entre a família e a escola. Interacções, n. 2, p. 7-58, 2006.


 FILHO, Nei Alberto Salles. Educação para a paz (EP): Saberes necessários para a formação continuada de professores.
Universidade Estadual de Ponta Grossa: UEPG-PR, 2009.


FRANCIS, Becky. Power play: Primary school children’s constructions of gender, power, and adult work.
London: Trentham Books, 1998.


GAITÁN, Lourdes. Sociología de la infância. Madrid: Editorial Sintesis,
2006.


GOODWIN, Marjorie Harness. Exclusion in Girls' Peer Groups: Ethnographic Analysis of Language Practices on the Playground. Human Development, 45, p. 392-415, 2002.


LEWICKI, Roy; SAUNDERS, David; Barry, Bruce. Negotiation. Boston: McGrawHill, 2006.


MAYER, Bernard. The dynamics of conflict resolution. San Francisco: Jossey-Bass, 2000.


MEKSENAS, Paulo.
Alegoria do duelo e os conflitos escolares. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 30, n. 106, p. 111-129, jan./abr. 2009.


MORGADO, José. Qualidade na educação. Um desafio para os professores.
Lisboa: Editorial Presença, 2004.


NEVES, Tiago; MALAFAIA, Carla. Gestão de conflitos: uma experiência, um guia. Colab. Agostinho Rodrigues Silvestre, Ana Luísa Castelo. Porto: Legis Editora, 2012.


PAECHTER, Carrie. Meninos e meninas: Aprendendo sobre masculinidades e feminidades. Porto Alegre: Artmed, 2009.


PONTE, Cristina. Crianças em notícia: A construção da infância pelo discurso jornalístico 1970-2000.
Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005.

 

RENOLD, Emma. Presumed innocence: (hetero) sexual, heterosexist and homophobic harassment among Primary School girls and boys. Childhood, 9 (4), p. 415-434, 2002.


RIZZO, Thomas; CORSARO, William. Toward a better understanding of Vygotsky's process of internalization: Its role in the development of the concept of friendship. Developmental Review, 8(3), p. 219–237, 1988.


SARAMAGO, Sílvia Sara Sousa. As Identidades da infância: Núcleos e processos de onstrução das identidades infantis. Sociologia – Problemas e Práticas, n.16, p. 151-171, 1994.


SARMENTO, Manuel Jacinto; CERISARA, Ana Beatriz. Crianças e miúdos: Perspectivas sociopedagógicas da infância e educação.
Porto: Edições ASA, 2004.

 

SINGER, Elly; DOORNENBAL, Jeannette. Learning morality in peer conflict: A study of schoolchildren’s narratives about being betrayed by a friend. Childhood, vol. 13, n. 2, p. 225–245, 2006.


SPOSITO, Marília Pontes.
Percepções sobre jovens nas políticas públicas de redução da violência em meio escolar. Pro-Posições, vol. 13, n. 3 (39), p. 71-83, set./dez. 2002.

 

THOMPSON, David; ARORA, Tiny; SHARP, Sonia. Bullying: effective strategies for long-term improvement. Londres: Routledge/Falmer, 2002.


THORNE, Barrie. Gender play: Girls and boys in School. New Brunswick, New Jersey, and London: Rutgers University Press, 1993.


THORNE, Barrie; LURIA, Zella. Sexuality and gender in children's daily worlds. Social Problems, vol 33(3), p. 176–190, fev. 1986.


VIENNE, Philippe. Comprendre les violences à l’école. Bruxelles: Éditions De Boeck Université, 2008.

 

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)

Notas

[1] As letras referidas no quadro 2 reportam-se à identificação atribuída aos episódios interativos.