Uma rede semântica em torno do letramento: termos e adjetivações e seus possíveis significados
A semantic network around literacy: terms and adjectives and their possible meanings
Una red semántica en torno de la literacidad: términos y adjetivos y sus posibles significados
Isabel Cristina Alves da Silva Frade
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
icrisfrade@gmail.com
Fundação Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil.
otilia.heinig@gmail.com
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
andreatbrito@gmail.com
Recebido em 25 de abril de 2022
Aprovado em 29 de agosto de 2023
Publicado em 07 de fevereiro de 2024
RESUMO
Este artigo investiga a rede semântica que se estabelece em torno do termo letramento. Analisa as terminologias e qualificações mobilizadas a fim de caracterizar o letramento e seus desdobramentos em temas investigados, quadros teóricos e cruzamentos. Selecionou-se três edições do Colóquio Internacional de Letramento e Cultura Escrita por constituir uma instância científica importante na discussão do tema. Estudou-se os dados do corpus na perspectiva de análise do conteúdo a partir de uma pesquisa documental. Os resultados mostram que há uma diversidade de termos filiados a perspectivas teóricas e que, na maior parte, tratam de práticas sociais e culturais na história e contemporaneidade. Alguns termos visam a demarcar contextos, grupos e sujeitos bem como a natureza do letramento. Outros especificam linguagens, não necessariamente registradas pelo alfabeto, mostrando a força do termo letramento. A existência de metáforas dispersa os termos e leva, por conseguinte, a uma conceituação menos precisa do letramento.
Palavras-chave: Letramentos; Cultura escrita; Práticas sociais de escrita e leitura; Multiletramentos.
ABSTRACT
This article investigates the semantic network that is established around the term literacy, the terminologies and qualifications mobilized to characterize literacy and its developments in terms of researched topics, theoretical frameworks and intersections. We selected 3 editions of the International Colloquium on Literacy and Written Culture for constituting an important scientific instance in the discussion of the subject. The corpus data was analyzed from the perspective of content analysis based on documentary research. The results show that there is a diversity of terms attached to theoretical perspectives and that many deal with social and cultural practices in history and contemporaneity. Some terms aim to delimit contexts, groups and subjects and the nature of literacy. Others specify languages, not necessarily registered by the alphabet, showing the strength of the term literacy. The existence of metaphors that disperse the terms and, therefore, a less precise conceptualization of literacy.
Keywords: Written culture; Social practices of writing and reading; Multiliteracy.
RESUMEN
Este artículo investiga la red semántica que se establece en torno al término literacidad, las terminologías y calificaciones movilizadas para caracterizar la literacidad y sus desarrollos en temas investigados, marcos teóricos e intersecciones. Seleccionamos 3 ediciones del Coloquio Internacional sobre Literacidad y Cultura Escrita por constituir una importante instancia científica en la discusión del tema. Los datos del corpus fueron analizados desde la perspectiva del análisis de contenido a partir de una investigación documental. Los resultados muestran que existe una diversidad de términos adscritos a perspectivas teóricas y que, muchos, tratan de prácticas sociales y culturales en la historia y la contemporaneidad. Algunos términos apuntan a delimitar contextos, grupos y sujetos y la naturaleza de la literacidad. Otros especifican idiomas, no necesariamente registrados por el alfabeto, mostrando la fuerza del término literacidad. La existencia de metáforas dispersan los términos y, por tanto, una conceptualización menos precisa de la literacidad.
Palabras clave: Cultura escrita; Prácticas sociales de escritura y lectura; Multiliteracidad.
Introdução
O termo letramento tem sido disseminado no Brasil há aproximadamente quatro décadas, sendo importantes referências as publicações em língua portuguesa, no Brasil, de Ângela Kleiman (1995) e Magda Soares (1998). O conceito abriu espaço para pesquisas acadêmicas que buscam compreender como o letramento é disseminado, como é apropriado em diversos contextos e instituições, quais grupos usam a escrita, quais instâncias o transmitem ou dele se apropriam, quais são os significados atribuídos às escritas, quais são as relações de poder envolvidas. É, portanto, um campo vasto, que não se prende a uma área de conhecimento específica. Dessa forma, mesmo quando não se usa o termo letramento, questões afins a este são investigadas com diferentes denominações, como cultura escrita, práticas de leitura e escrita, alfabetização, entre outras. De outra forma, o mesmo conceito, ainda em disputa e em construção, tem informado políticas públicas nos últimos anos, com ênfase nas propostas pedagógicas que têm o texto e seus usos como foco. Marinho (2010) faz alguns alertas em relação a esse conceito, afirmando que era preciso desenvolver estudos que evidenciassem as referências conceituais relativas ao termo, no Brasil, assim como explicitassem as tensões em torno de sua apropriação. Para a autora,
esse conceito prevê referenciais teórico-metodológicos capazes de dar conta das competências e habilidades discursivas, linguísticas, técnicas, além de referenciar disposições que são condicionadas por determinados fatores históricos, sociais, políticos e culturais. (MARINHO, 2010, p. 17)
Como o campo acadêmico pode ajudar a constituir e configurar conceitos e a evidenciar suas disputas e apropriações? Uma instância a ser investigada é a dos eventos que discutem especialmente o tema. O objetivo mais amplo de nossa investigação foi compreender por onde circulam as pesquisas e de que elas tratam. Para selecionar o universo de pesquisa e compreensão de tendências, elegemos o evento mais significativo da área, cujo nome designa a abordagem específica do letramento, o Colóquio Internacional de Letramento e Cultura Escrita, que ocorre em Belo Horizonte/Brasil.
O Colóquio, que teve sua primeira edição em 2007, foi liderado pelo Centro de Alfabetização Leitura e Escrita, em parceria com várias instituições, em interlocução com pesquisadores brasileiros, como Magda Soares, e internacionais, como Brian Street (Grã-Bretanha), Beatrice Fraenkel (França), Elsie Rockwell (México), Judith Green (EUA). O segundo, de 2008, teve como convidados Brian Street e Gunther Kress (Grã-Bretanha) bem como Judith Kalman e Hernandez Flores (México). Naquela ocasião, pesquisadores brasileiros e internacionais já reconheciam e identificavam a interdisciplinaridade dos estudos e percebiam que o tema do letramento poderia ser objeto de diversos campos de conhecimento, como a “Semiótica Social, a Antropologia, a Linguística, a História, a Psicologia, a Sociologia e a Educação” (MARINHO, 2010, p. 12). O livro Cultura escrita e letramento (MARINHO; CARVALHO, 2010) registrou as discussões do colóquio, contribuindo para evidenciar tendências e ampliar a compreensão sobre como um evento científico pode revelar disputas e configurações dos campos de pesquisa.
Ao nos depararmos com o corpus, algumas questões passaram a nortear pesquisa: quais são as redes semânticas que se estabelecem em torno do termo letramento? Quais autores apoiam as discussões apresentadas? Com quais teorias, além das dos estudos dos letramentos, os trabalhos apresentados dialogam? Como as pesquisas apresentadas nos eventos abordam as agências ou instâncias de letramento? Para este artigo, debruçar-nos-emos sobre a primeira questão, a fim de analisar como o termo letramento e/ou outros a ele associados aparece e quais são as terminologias e qualificações mobilizadas para caracterizar o fenômeno. Primeiro, problematizamos o uso do termo letramento e os termos a ele associados. Depois, analisamos as qualificações a partir destas categorias: “Letramento: o que é e qual a sua natureza”; “Letramento: de quem?”; “Letramento em uma esfera de atuação”; “Letramento digital: esfera? Linguagem? Lugar? Dispositivo?”; “Letramento em qual linguagem?”; e “Letramento: qual o seu alcance político? Para quê?”.
Abordagem metodológica
O estudo desenvolvido se caracteriza como uma pesquisa qualitativa na Educação (BOGDAN; BIKLEN, 1994), cujo foco, como anunciado anteriormente, está nos letramentos e nas redes semânticas que se estabelecem a partir do termo-chave letramento. Optamos pela pesquisa documental e esclarecemos dois pontos primordiais nesse tipo de pesquisa: a coleta dos documentos e a análise do conteúdo. O evento selecionado para o levantamento dos dados é bastante representativo quanto a diferentes abordagens acerca do conceito de letramento, problematizando pesquisas e políticas, além de já ter ocorrido em sete edições e, portanto, ser consolidado. Foram selecionadas para a análise, as edições de 2014, 2017 e 2019, cujos documentos estavam disponíveis em arquivos digitais.[1] Para o levantamento inicial, selecionamos os trabalhos que incluíssem o termo letramento entre suas palavras-chave. Assim, o corpus foi construído por 211 trabalhos, dos quais foram lidos e analisados os resumos, as palavras-chave e os resumos expandidos.[2]
No que tange à análise dos textos selecionados dos anais dos três eventos, foram identificados conteúdos e criadas categorizações, tais como: palavras-chave utilizadas, espaços e sujeitos de pesquisa, metodologias, quadros teóricos, objetivos da pesquisa e principais conclusões. Depois desse balanço, colocamos as categorias em diálogo para estabelecer conexões de diversas naturezas, tais como tema e palavras utilizadas, sujeitos e espaços e termos ou teorias mobilizadas, entre outros cruzamentos. Mesmo reconhecendo os limites de um trabalho feito a partir de resumos expandidos, chegamos a um balanço relativo, rico em dados, dos trabalhos apresentados nos três eventos selecionados.
Termos relacionados ao letramento
O termo letramento em diferentes campos de estudos tem como objeto, de forma associada ou específica, a escrita, os sentidos a ela atribuídos, sua aprendizagem e ensino, seus usos, as consequências cognitivas destes, as relações de poder configuradas pelo contexto social. Essa complexidade é discutida na tendência chamada Novos Estudos do Letramento, uma das correntes que tem tido influência em pesquisas brasileiras. Brian Street (2014) afirma que a concepção do letramento ideológico inclui a do autônomo, pois a ideologia deste último opera com a ideia de que há um letramento universal baseado em habilidades. Para além dessa diferenciação, que dá destaque à interculturalidade e aos letramentos não hegemônicos, proliferam diferentes termos (STREET, 2012). Para o autor, compreender como esse letramento opera supõe romper com a falsa divisão entre oralidade e escrita e implica também considerar como o sistema alfabético é perpassado por outros modos. Assim, há uma grande complexidade entre os sistemas de linguagem que tem refletido numa nomeação e especificação que pode tornar opaca a própria natureza do letramento. O termo também se relaciona a metáforas que nem sempre ajudam a compreender sua especificidade, mas ainda parece ser objeto de disputas.
Buscando construir um quadro conceitual apropriado ao termo, Street (2010, p. 34) afirma que “toda esta trajetória tem contribuído para construir algumas ideias e conceitos que tem a ver com a compreensão de letramentos – no plural – através de contextos culturais.” Ao considerar a variação do letramento – mesmo quando usa o termo no singular –, o autor chega a empregar palavras que podem qualificar determinadas práticas sociais, ressaltando a ideia de variação cultural e de poder:
Minha experiência no Irã e em todos os outros lugares, pelo contrário, me diz que letramento varia. As diferenças entre letramento comercial, letramento do alcorão, letramento escolar são consideráveis. As pessoas podem estar envolvidas em uma forma e não na outra, suas identidades podem ser diferentes, suas habilidades podem ser diferentes. Por isso selecionar só uma variedade de letramento pode não ter os efeitos que se espera. Refiro-me a este modelo como um modelo ideológico: não só um modelo cultural, embora seja isso, mas ideológico porque há poder nessas ideias. (STREET, 2010, p. 37)
Do ponto de vista dos limites e alcances desse termo, Kress (2005) pondera sobre os riscos de tantas qualificações para outros sistemas, pois o vocábulo letramento é bem específico para o sistema alfabético, e não para outros sistemas de escrita. Para relacionar a escrita ocidental alfabética com outros sistemas, como o imagético, o autor se refere ao letramento visual ou ao letramento multimodal.
Marinho (2010, p. 70-71) também tece considerações sobre a construção social dos termos, sobre a diversidade da associação destes ao letramento, assim como sobre sua origem:
Embora a palavra literacy venha de fora, as concepções de letramento, de alfabetização e de cultura escrita são específicas e diferentes em relação aos países de onde importamos as palavras. Estas concepções estão estreitamente relacionadas com os processos sociais de produção e distribuição do conhecimento, com os processos de inclusão de grupos sociais e étnicos na escola, nas universidades em espaços socioculturais dos quais tem sido excluídos.
Ao mesmo tempo em que os termos proliferam, dialogam com quadros teóricos que contribuem para desvendar fenômenos ideológicos, sociais, políticos, identitários e exclusivos. Sobretudo, quando se discute a conceituação de práticas de letramento e se busca compreender o contexto social que as configura, outras denominações vêm da relação com as teorias mobilizadas, como “a linguística do discurso, as teorias enunciativas e pragmáticas, particularmente inspiradas nos trabalhos de Bakhtin e da análise do discurso francesa.” (MARINHO, 2010, p. 80).
No entanto, não devemos desconsiderar as dimensões cobertas por cada termo, por exemplo, o de cultura escrita, que pode abarcar mais sistemas e linguagens, pois, conforme Marinho (2010, p. 75), “cultura escrita seria um conceito amplo: envolveria as práticas do escrito que não são exclusivamente dependentes da língua escrita baseada no sistema alfabético.” Não por acaso, uma perspectiva antropológica, nem sempre baseada na etnografia, como a da história cultural, tem ajudado a definir cultura escrita e sua história, como faz Gomez (2003). Ele define, como objetivo da história da cultura escrita, “reunir, em uma história de longa duração, os diferentes suportes de escrita e as diversas práticas que a produzem ou que dela se apropriam.” (GOMEZ, 2003, p. 105). No mesmo texto, problematiza diversos “tempos do escrito”, nomeados como: ‘tempo da aquisição” (quando se acede à competência gráfica); “tempo da produção” (circunstâncias que intervêm no momento de criar ou fabricar um produto da cultura escrita); “tempo da recepção” (quando focamos o leitor e suas apropriações); e “tempo da conservação” (referido a quais instituições que têm desenvolvido historicamente a competência sobre o patrimônio escrito).
O termo cultura escrita é amplo e é problematizado por Galvão (2010, p. 218), que o define do ponto de vista antropológico:
se tomarmos o conceito de cultura em uma acepção antropológica, ou seja, como toda e qualquer produção material e simbólica produzida a partir do contato dos seres humanos com a natureza, com os outros seres humanos e com os próprios artefatos criados a partir dessas relações, podemos considerar que a cultura escrita é o lugar – simbólico e material – que o escrito ocupa em/para determinado grupo social, comunidade ou sociedade.
A partir das considerações em torno dos termos relacionados ao letramento, ao analisarmos as palavras-chave associadas aos trabalhos apresentados no colóquio, constatamos uma proliferação de termos relacionados ao letramento, que aparece sozinho, pluralizado ou qualificado. Em algumas situações, o trabalho trata de um tipo de letramento, mas não o qualifica, preferindo usar letramento ou letramentos.
Letramento, letramentos e multiletramentos
Nos trabalhos analisados, os termos associados ao letramento variam. Uma adjetivação utilizada por pesquisadores teria como objetivo marcar uma posição no campo político, teórico ou metodológico? A qualificação daria visibilidade a qual fenômeno? Descreveria uma prática, um território cultural, um local, a linguagem? Fica limitado, ao ler os resumos expandidos, analisar as epistemologias ou lógicas conceituais que expliquem as denominações, e elas parecem se ligar a fenômenos empíricos, sociais ou culturais a que se quer dar visibilidade. No entanto, considerando que o quadro conceitual é o de letramento como prática social, o foco no modo (visual, sonoro etc.), no canal (por exemplo, o computador) ou na linguagem corre o risco de tirar esses vocábulos do contexto social. Segundo Street (2012, p. 104),
o foco estaria no modo, no visual e no computador, e não nas práticas sociais nas quais os computadores, a mídia visual e outros tipos de canais concretamente recebem significados. Gostaria de argumentar que são as práticas sociais que atribuem significados e conduzem a efeitos e não o canal em si mesmo.
Uma análise mais abrangente dos termos permite fazer algumas considerações que apresentaremos nesta seção de análise. Constatamos designações para indicar: sujeitos (de crianças com deficiência, de professores); instituições (escolar, prisional); alcance (crítico); práticas não hegemônicas (ideia de letramento não dominantes); aspectos da linguagem (numeramento, letramento visual, múltiplos letramentos em Matemática); emancipação ou resistência (de reexistência, racial, inclusiva); metáfora (letramento das águas); práticas (acadêmicas, transculturais); espaços ou suportes (virtuais ou digitais); inovação (novos letramentos); influência/instância (religiosa); e um campo (literário).
No corpus investigado, os autores posicionam o letramento numa concepção que vai além das habilidades técnicas, como prática específica de um grupo ou um processo e construção, às vezes, associando-o a uma qualificação, como o trabalho sobre a legislação do funk carioca, que usa o termo letramento de ruptura, possivelmente para mostrar a conquista de um reposicionamento cultural e sua legitimidade colocada em texto escrito legal. No trabalho sobre educação prisional, define-se o letramento como “capacidade – sempre em construção – de se fazer valer da linguagem para se posicionar de maneira flexível, responsável e coerente em situações de uso social da língua” e são nomeadas áreas em que o “letramento prisional” cita o letramento: Direito, Psicologia e Educação.
Num trabalho que aborda biblioteca para deficientes, há aspectos políticos, conceituais, metodológicos e dimensões materiais do letramento, pois o autor reúne Freire (ideia de libertação do homem) e Street (letramento ideológico) para definir politicamente uma expectativa de mudança e libertação do homem. Citando Freire, faz uma advertência para a complexidade do conceito: “Podemos perceber que o conceito de letramento é complexo, uma vez que é o resultado de uma prática discursiva de determinado grupo social.” O mesmo trabalho utiliza uma expressão específica, “materialidade do letramento”, para colocar em relevo um tipo de habilidade não visual e ainda faz uma apropriação metodológica do termo: “o letramento será visto como o evento que envolve necessariamente as atividades específicas de ler e escrever de pessoas com deficiência visual.”
Em geral, o termo letramentos apareceu para designar formas subversivas ou marginais de uso, como aquelas de jovens atuantes no hip hop ou em grupos culturais da periferia, ou para nomear práticas e eventos que ocorrem em outros domínios, além das instituições de prestígio e de exclusão como alunos com deficiência e suas famílias. Há um trabalho que destoa dessa perspectiva; ele analisa representações de infância na literatura de Bartolomeu Campos Queirós, mas parece mais voltado para questões culturais e identitárias da infância do que sobre o campo literário.
O termo multiletramentos também aparece nos trabalhos. Segundo Street (2012), a ideia de múltiplos letramentos é um conceito importante para desafiar a ideia de que existe um tipo de letramento com L maiúsculo e autônomo, mas o autor alerta que não se pode correr o risco de reificá-los, isolando-os dos contextos culturais específicos e das práticas que lhe dão sentido. Da mesma forma, o autor discute os perigos das qualificações que põem em foco os modos ou canais, que podem cair no determinismo do modo ou canal sem indicar a importância dos contextos. Sobre o termo multiletramento, o autor assim se expressa:
Cazden e outros do Novo Grupo de Londres/NGL (New London Group 1996) apresentaram a noção de multiletramento em referência não a múltiplos letramentos, associados a culturas diferentes, mas a formas múltiplas de letramento associadas a canais ou modos, como o letramento do computador, o letramento visual. Kress (1997), membro do NGL, critica as extensões posteriores de 'multiletramento', por exemplo, a letramento político ou letramento emocional, usando o termo, dessa forma, como metáfora para competência. Esse é um dos perigos dessa abordagem. O Novo Grupo de Londres está interessado especialmente em canais e modos de comunicação que podem ser denominados 'letramentos'. Particularmente Kress está interessado na noção de letramento visual, então, para ele, o multiletramento sinaliza um novo mundo, em que as práticas de letramento envolvendo leitura e escrita são apenas partes do que as pessoas terão de aprender a fim de serem 'letradas' (Kress e van Leeuwen 1990). (STREET, 2012, p. 72-73)
Cunhada pelo Grupo de Nova Londres em 1996, a ideia de uma pedagogia dos multiletramentos vem sendo divulgada, no Brasil, sobretudo por Rojo e Moura (2012), visando a traçar alguns rumos para a Educação. Segundo a autora, o termo remete à “multiplicidade cultural das populações e à multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica.” (ROJO, 2012, p. 13). Assim, o termo abarca uma proposta que aborda a multiplicidade de linguagens, a diversidade cultural, o plurilinguismo, a multissemiose. Rojo e Moura (2012, p. 8-9) detalham sua especificidade e aplicação na Educação e acrescentam ao conceito a ideia de letramentos críticos; a uma especificidade somam-se outras que podem mostrar um alcance político e transformador:
Caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático – que envolva agência – de textos/discursos que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos valorizados (como é o caso dos trabalhos com hiper e nanocontos) ou desvalorizados (como é o caso o trabalho com picho). Além disso, trabalhar com multiletramentos partindo das culturas de referência do alunado implica a imersão em letramentos críticos que requerem análise, critérios, conceitos, uma metalinguagem para chegar a propostas de produção transformada, redesenhada, que implicam agência por parte do alunado.
Trabalhar com multiletramentos pode designar uma forma de letramento voltada para a diversidade e apareceu em estudos sobre: ambientes virtuais de aprendizagem, como o Duolingo e conceito de pen pals; diversificação da linguagem, como a Matemática; comunidades excluídas, como a de deficientes. A este último se acrescenta o termo letramento inclusivo. Considerando a diversificação das linguagens, o termo multiletramento associa-se à multimodalidade para especificar uma pesquisa sobre a leitura de memes e hipertexto.
Quando se trata de novas linguagens e diversidade cultural, o termo multiletramento é mais utilizado. Exemplificamos com um trabalho que focaliza a rede social Interpals (www.interpals.net) e as questões e ambientes envolvidos na aprendizagem de língua estrangeira, mas que também considera como importantes aspectos como a expansão das sociabilidades e dos interesses culturais dos participantes.
As qualificações para o letramento: categorização e análise dos resultados
As qualificações do letramento, para além de sua relação com as letras, parecem vir dos objetos a que se quer dar relevo: onde se dá o letramento? De que natureza ele é? Para quem ele se produz? Quais grupos se apropriam dele? Qual é a linguagem/modo ou sistema de signos que se destaca? Em qual ponto quer se chegar com o letramento? Em vários casos, essas questões se mesclam, mas nos esforçaremos produzir uma categorização.
Letramento: onde e de que natureza?
A ideia de contexto como constitutivo do letramento é cara aos estudos do letramento e é o que justifica a virada antropológica, o uso da etnografia e as abordagens transculturais. Talvez isso justifique uma adjetivação que marca o contexto.
Uma série de estudos sobre o letramento escolar se encaixa nesta categoria, ou seja, o que se faz na escola no sentido do letramento almejado (autônomo) ou habilidades envolvidas em avaliações e o trabalho com gêneros textuais, indicando uma concepção mais universal de letramento. Há também trabalhos que discutem, numa nova perspectiva da área aqui estudada, o que a cultura escolar faz com o letramento e com a alfabetização, por exemplo, quando a professora mobiliza o trabalho com gêneros textuais a partir do contexto cultural escolar. Num estudo que tem como palavra-chave letramento escolar/alfabetização com duas turmas de escola pública, o paradigma vai além do letramento autônomo: “Letramento escolar refere-se aos usos, às práticas e aos significados da língua escrita no contexto escolar [...], mas com práticas de letramento muito diferentes do que pregava o currículo formal.”
Um ensaio também anuncia uma superação do modelo autônomo pela escola, com base nos NSL e ancorado numa perspectiva etnográfica e antropológica:
“[...] aprender o letramento não é simplesmente adquirir conteúdo, mas aprender um processo” (Street, 2014, p.154). Street (1984, 2010, 2014) propõe e discute dois modelos de letramento: o autônomo e o ideológico. Evidenciar os diferentes letramentos subjacentes à prática pedagógica na educação básica pode ser uma possível contribuição à superação da adoção de um modelo único de letramento (Rojo, 2009 e Tôrres, 2003).
Uma categoria do escolar que se distingue é o letramento acadêmico, geralmente utilizado para a compreensão de práticas que ocorrem nos cursos de graduação e de pós-graduação. O letramento acadêmico parece se relacionar também a formas como as práticas de leitura e escrita ocorrem em diversos cursos, Brasil e Portugal, intercâmbios, ou no estudo de algum ambiente específico em que os textos acadêmicos são produzidos, como ambientes virtuais de aprendizagem, mídias e plataformas ou o que ocorre quando se variam as linguagens dos textos, compondo-os com recursos multimodais. Quando o termo é associado a letramentos críticos, as investigações buscam evidenciar rompimentos ou novos tipos de letramento acadêmicos em cursos de Artes ou em novos formatos de teses e dissertações. Um trabalho sobre práticas de letramento de uma comunidade acadêmica de produção de Artes Visuais faz uma crítica ao modo disciplinar dominante em relação ao discurso e produtos da arte visual da comunidade de produção de conhecimento. Associar o letramento acadêmico ao crítico ou a novos estudos do letramento parece almejar uma compreensão crítica por contestar as relações de poder ou implementar ações que potencializem as questões de poder envolvidas na academia. Esses trabalhos se mesclam à categoria alcance do letramento, que será tratada em tópico específico.
Os letramentos associados a contextos ou a um tipo de letramento do contexto também podem ser exemplificados com um trabalho sobre as práticas de leitura e escrita na indústria petroquímica que contrapõe as exigências de habilidades com os tipos de letramento do contexto, mencionando letramentos críticos no mundo do trabalho. Baseando-se em categorias discutidas por Hull (2000) de letramentos críticos no mundo do trabalho, o autor põe em relevo determinado contexto. No entanto, considera a diversidade cultural envolvida no mundo e a localização apenas de um outro trabalho sobre letramentos em contexto de comércio de feirantes, o qual ainda é pouco explorado.
A ocorrência de vários estudos sobre o contexto familiar ressalta a importância dada às práticas familiares, algumas vezes, pensadas como algo a ser melhorado ou alcançado, em outras, como instância que pode contribuir, mas esse contexto também é investigado como ações a serem compreendidas. Um estudo sobre a instância família associa vários tipos de letramento no mesmo trabalho: “utilizando os conceitos de letramento familiar (Cairney, 2005), prática de letramento (KLEIMAN, 1995), agência (BAZERMAN, 2011), jornal eletrônico (PALÁCIOS, 2001b) e letramento digital (LEU na AL, 2004).”
Letramento: de quem? Letramento em uma esfera de atuação
O termo letramento também se associa a determinado grupo, como letramentos de filhos deficientes. Chama a atenção três estudos sobre letramentos do professor se referindo a suas práticas e processos identitários. Considerando a força dos contextos culturais nos estudos, a adjetivação do letramento pelos sujeitos é menos utilizada no corpus investigado. Essa escassez talvez mostre que a ideia de contexto social de letramento é a que mais se adapta ou é mais coerente com a ideia de letramento como prática social.
A ideia de que há relações entre o letramento e determinada esfera ou formação discursiva é indiciado em denominações como letramento midiático, sustentado pela conceituação de Lemke (2010), associado a Gee (2014), que analisa novas mídias, como games para o ensino de inglês para crianças, letramento científico para a análise de blogs de divulgação científica. O uso do termo letramento religioso – não conceituado no resumo – aplica-se a um estudo sobre práticas religiosas de crianças desenvolvidas em famílias.
Nos estudos do letramento literário como “processo de apropriação da literatura enquanto linguagem”, na acepção de Cosson (2015, p. 182), predominam abordagens que relacionam Literatura e Educação e abordam: práticas desenvolvidas na Educação Infantil; círculo de leitura no Ensino Fundamental; programas institucionais de formação de professores; programas como o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e sua apropriação por gestores e professores. Questões inerentes à própria literatura como espaço de construção de representações sobre o feminino também são nomeadas como letramento literário, assim como projetos de leitura de periferia.
O fato de não se nomear como letramento literário alguns aspectos investigados, como práticas em uma biblioteca, mostra uma filiação do estudo à análise do discurso, tendência que se faz presente nos estudos apresentados no colóquio. Ao mesmo tempo, trabalhos sobre produções literárias não dominantes, como o funk e o hip hop são uma tendência alternativa ao estudo da literatura canônica que ocorre no espaço escolar. Há estudos identificados sobre livrarias virtuais que usam outras perspectivas conceituais, como a do circuito de comunicação do livro de Robert Darnton (2010). Talvez essa tendência mostre que o campo literário, em nosso país, tenha mais influência na escola do que em outros contextos.
Letramento digital: esfera? Linguagem? Lugar? Dispositivo?
O chamado letramento digital é nomeado em 10 trabalhos, apresenta-se em diferentes conceituações e é aplicado a estudos de teses e dissertações, escrita colaborativa, blogs de alfabetização, inserção das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) no ensino profissionalizante, sequências didáticas para o ensino de língua estrangeira, práticas de pesquisa virtual em sala de aula, políticas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O termo é controverso e, segundo Cassany (2002), a novidade do campo de estudo se manifestava já no início do século XX com imprecisão: new literacies, e-literacies, eletronic literacy, online literacy, computer literacy, screen literacy, média literacy. Os trabalhos costumam nomear esse letramento como um novo tipo de letramento, como letramento não dominante ou o associam ao multiletramento. É o tipo de letramento mais conceituado nos resumos. Nos anais do VII Colóquio, é citado Buzato (2007, p. 83) que afirma:
as mudanças nos modos de interagir com e através da linguagem trazidas pela escrita cibernética implicam uma mudança no tipo de conhecimento que possibilita ao leitor/escritor cibernético a prática social da leitura e da escrita mediadas eletronicamente, ou seja, um novo tipo de letramento.
Uma pesquisa sobre professores de inglês e escrita colaborativa no Google Docs usa o termo letramentos digitais e o desdobra na ideia de macroletramento:
o macroletramento mobile literacy (HOCKLEY, DUDENEY & PAGRUM, 2013), que se refere à capacidade de navegar de forma eficaz, interpretar informações e se comunicar através da internet móvel, torna-se mais intenso, o que pode, de fato, maximizar os outros letramentos praticados [...] desenvolver seus conhecimentos sobre os seguintes letramentos digitais: texting, que se refere ao continuum fala-escrita e à habilidade de se comunicar em netspeak; b) multimídia, referente à capacidade de interpretar e criar textos multimodais, seguindo a noção de Kress (2010, 2003); c) intercultural, que se associa à interação construtiva com interlocutores de diferentes contextos culturais; e d) network, que se relaciona à habilidade de usar redes sociais e profissionais para se comunicar e filtrar informações na construção de personal learning networks (HOCKLEY, DUDENEY & PAGRUM, 2013). (grifos do autor)
No trabalho com uma turma de primeiro ciclo, é usada a definição de letramento digital de Ribeiro e Coscarelli (2014) como aquele que
diz respeito às práticas sociais de leitura e produção de textos em ambientes digitais, isto é, ao uso de textos propiciados pelo computador ou por dispositivos móveis, tais como celulares e tablets, em plataformas como e-mails, redes sociais na web, entre outras.
O resumo expandido de uma pesquisadora com várias obras sobre o tema das tecnologias critica a noção de letramentos baseados em adjetivações, pois acredita que os letramentos estão integrados. Ela afirma que a apropriação didática do termo letramento digital acaba escamoteando a integração de diferentes tecnologias, mas o define:
A noção de letramento digital (COSCARELLI, RIBEIRO, 2005) passa a ser central para este trabalho, na medida em que leituras e escritas aqui focalizadas partirão sempre de interações produzidas e em circulação por meio de máquinas computadoras, em aplicativos amplamente conhecidos e populares.
De qualquer forma, o termo é complexo, abrange uma diversidade de linguagens, de gêneros digitais e é difícil sua classificação como esfera, pois, dentro do espaço virtual, circulam produções de vários campos. Não é possível também considerar o virtual como um contexto ou lugar devido à desterritorialização deste espaço.
Há diferenciação de termos, embora sejam usados autores que nem sempre o defendem. Letramento digital pode indicar o uso de aparatos que, associado ao multiletramento e ao letramento inclusivo, dá a dimensão de como as qualificações se desdobram em camadas. Por exemplo, o estudo sobre representações discursivas sobre Educação Inclusiva, construídas por professores e famílias de deficientes visuais, agrega estudos de Soares, Kleiman e Street e toma o letramento digital como uma condição para o letramento inclusivo: “Andrade (2013) estabelece que as práticas de letramento inclusivo para estudantes com DV são realizadas por aparatos tecnológicos: máquina perkins, software, braille, reglete, punção.” Assim, o letramento digital e seus aparatos tecnológicos vêm a serviço de outro tipo de letramento, o inclusivo.
Letramento em qual linguagem?
Kress (2005) faz uma crítica às utilizações do termo letramento para o que não se refere às práticas que envolvem o registro alfabético de escrita, trabalhando com a visão de que os sistemas ocidentais de escrita é que seriam mais propícios de serem estudados ao se abordar o conceito. Até a escrita ideográfica seria excluída desse termo, que tem, em sua origem etimológica, a ideia de letra. Parece que está em xeque a constatação de que o sistema de escrita não representa e cria significados como outros sistemas ou que o uso de outros sistemas repercute na escrita:
Já disse, insistentemente, que a principal mudança é que não podemos mais tratar a alfabetização (ou a linguagem) como o único e principal grande meio de representação e comunicação ao nosso alcance. Existem também outras formas e em muitos dos ambientes em que a escrita ocorre, essas outras formas podem ser mais perceptíveis e significativas [...]. E, neste caso, é o mesmo papel que o papel de escrita ou um diferente? Se assim for, teríamos que postular que a linguagem (como linguagem falada ou escrita) tem potenciais ou limitações especiais, ou seja, suas próprias permissibilidades. Essa é uma nova pergunta a ser feita sobre a linguagem e a alfabetização. (KRESS, 2005, p. 49, tradução nossa)
Kress (2005, p. 50, tradução nossa) também defende que, para dar visibilidade a outros modos, é preciso ir além das teorias linguísticas: “A mudança teórica ocorre da linguística para a semiótica de uma teoria que só explica a linguagem para uma teoria que também explica os gestos, o discurso falado, a imagem, a escrita, o objeto, a cor, a música e, sem dúvida, outros.” Na verdade, quando põe mais força nos modos, o que ele defende não é uma supressão da escrita, mas a necessidade de uma teoria multimodal do alfabetismo.
Para designar linguagens que não se referem ao sistema de escrita, há trabalhos que usam o termo numeramento. Localizamos um ensaio em que o autor discute a dimensão social das práticas matemáticas e realiza a pesquisa sobre o uso de numeramento e numeracy em artigos, teses e dissertações em português e inglês. Outro texto usa o termo numeramento para se referir ao comércio popular e níveis de alfabetismo. Um trabalho que focaliza a Educação Matemática em jogos acaba associando o termo multiletramentos às atividades de leitura e escrita para explicar que “o letramento matemático é pautado na teoria dos múltiplos letramentos (Street, 2007, Kleiman, 1995, Rojo, 2009) e implica em adotar a leitura e escrita matemáticas como habilidades essenciais para o exercício de atividades básicas na sociedade.”
Outro trabalho usa o termo letramento matemático escolar adotando duas qualificações, uma para a linguagem e outra para a instância. Além desse, há um estudo que associa o letramento acadêmico à esfera e o letramento estatístico a um tipo de conhecimento matemático.
Destacamos um resumo que focaliza funções e formas de linguagem analisando como os alunos constroem diferentes argumentos (em inglês) denominados argumentative literacy. Há também dois resumos que utilizam os termos letramento visual para tratar de questões bem diferentes. Um volta-se para habilidades de escrita de textos multimodais, no gênero discursivo infográfico, denominado letramento verbo-visual, certamente pelos modos existentes neste tipo de texto (imagem e escrita). O outro utiliza o termo letramento visual a partir das práticas sociais de surdos aprendizes da segunda língua, ou seja, do modo cultural que predomina na comunicação, com a definição do lugar ocupado na vida dos surdos pelo letramento visual “pela perspectiva visual pode-se considerar que, para as crianças surdas, o letramento visual precisa ser compreendido a partir de práticas sociais e culturais de leitura e compreensão de imagens.”
Letramento: qual seu alcance político? Para quê?
O quadro conceitual construído nos novos estudos do letramento permite que este seja qualificado em função de noções de identidade, de raça, de resistência, de ruptura, de cidadania, a questões emergentes como imigração ou ações afirmativas. Ou seja, concebe-se o letramento em termos de um alcance, dando uma ideia de finalidade mais ampla, de uma crítica política e ideológica. É difícil agrupar a diversidade de denominações nesta categoria alcance político e letramento para quê, mas compreendemos melhor esse alcance quando a relacionamos a temas. No trabalho sobre discursos sobre ações afirmativas relacionadas ao sistema de cotas, aparecem associados os termos letramento acadêmico, letramento social, talvez tentando marcar mudanças sociais.
Alguns empregam o termo letramento crítico, uma das qualificações mais utilizadas nesta categoria, e o definem como:
Monte Mór (2009) e Duboc (2011) destacam que é uma prática social comprometida com a expansão de perspectivas, porém, não é um método pré-estabelecido, mas uma postura ou atitude sobre um determinado texto que pode levar à compreensão de privilégios e relações de poder, para se referir a representações sobre imigrantes na imprensa.
“[...] por meio da perspectiva do Letramento Crítico, pode permitir uma melhor compreensão das identidades dos professores, incluindo os professores de línguas estrangeiras, contribuindo para a formação de cidadãos que atuem em suas comunidades para a promoção da democracia e da justiça social e respeito aos direitos humanos” cita Monte-mór (2013).
Esses trabalhos são especialmente relacionados a representações sobre imigrantes, estratégias de uso de tiras cômicas em aula de espanhol ou estudo sobre práticas situadas de uso do português como língua adicional localizado no campo de estudos decoloniais, ensino-aprendizagem da língua inglesa como língua adicional ou ensino de língua inglesa. Neste último, o termo letramento crítico associa-se a outros, como letramentos, multiletramentos, novos letramentos, letramentos críticos. Como muitos deles se referem ao aprendizado de uma segunda língua, geralmente, são associados a questões mais amplas envolvendo imigrantes, situações de exclusão (Paulo Freire é citado em alguns); parece que há algumas aplicações de termos que são próprias de um tema.
Um estudo analisa o tratamento dado às poéticas negras nos livros didáticos do Ensino Médio, vincula o letramento literário ao racial, empregando
dispositivos teórico-metodológicos sobre o letramento literário (COSSON, 2016; PAULINO & COSSON, 2009), o letramento racial (FERREIRA, 2015) [...] no caminho proposto por Brian Street (1994) de um modelo alternativo, chamado de modelo ideológico, entendemos que as práticas sociais de leitura e escrita acontecem em meio a um processo de socialização e construção de significado do letramento. os estudos do letramento estão comprometidos com a “investigação do papel de tal ensino no controle social e na hegemonia de uma classe dominante” (STREET, 2014, p.44).
O uso do termo letramento crítico parece estar mais relacionado ao desvendamento das relações de poder, a estudos decoloniais e, geralmente, relaciona-se a outras designações para o letramento. Em certos casos, aparece como metáfora e não se liga apenas a práticas de escrita, mas a contextos culturais e sociais, como letramento das águas, nomeado num estudo sobre prática de ribeirinhos da região amazônica e seus saberes. Pode ser agregado, à ideia de alcance, o termo transcultural, usado num trabalho cujo tema é a diáspora e a escrita de fanfiction de uma escritora afrodescendente, ou seja, a questões de narrativas:
Informado pela teoria do letramento transcultural (Kostogritz & Tsolidis, 2008) e discussões de reposicionamento transcultural como prática em mediação linguística e cultural (Orellana, 2007) e os princípios da etnografia interacional e análise microetnográfica do discurso.
Há termos e temas para designar um tipo de alcance ou finalidade ou mudança de posicionamento, afirmação como o uso do termo letramento de ruptura para se referir ao funk carioca e a enunciados estigmatizantes “Lei 5.544/09, que reconhece o funk como cultura do estado do Rio de Janeiro, destacaremos como esse texto é um efeito do que chamamos de “Letramento de Ruptura sobre o funk carioca” que é definido no mesmo trabalho como “Trata-se de formas de usar socialmente a leitura e a escrita que, a um só tempo, repetem e desafiam enunciados estigmatizantes”.
O termo letramento de reexistência, por exemplo, é usado para dar visibilidade a práticas sociais e padrões de letramento excludentes. Isso ocorre em um trabalho que associa os termos letramentos literários e letramento de reexistência numa pesquisa que tematiza a literatura marginal periférica.
Vários são os autores que os pesquisadores chamam para dar sustentação. Alguns parecem ter cunhado determinada qualificação do termo. Outros são supostamente mais citados em determinados campos, seja da Comunicação ou da Linguística, da Educação. Outros dão uma sustentação mais ampla, entre eles são citados Monte Mór e Duboc (2011), Street, Freire, Hull (2000).
Quando não se usa o termo letramento: indícios de outras referências, escolhas alternativas ou contrapontos?
Chamam a atenção os trabalhos que não utilizam o termo letramento ou outros termos mais citados nesse campo de estudos, coerentemente com a concepção do colóquio, que traz em seu título o termo cultura escrita. Isso mostra que pode haver diferenciações (MARINHO, 2010) que vêm de outros quadros teóricos ou perspectivas para olhar o fenômeno investigado.
O termo letramento, mesmo num evento denominado letramento, não aparece como palavra-chave em vários trabalhos. Supostamente, isso pode ser explicado por vários fatores: algumas áreas mais específicas e consolidadas têm outro campo semântico; o uso de outros termos pode se relacionar com concepções próprias de cada campo ou com objetos de estudo ou também pode representar uma escolha alternativa, uma vez que não se fala de letramento, mas se investiga a partir da concepção de letramento.
Termos alternativos ou contrapostos ao letramento são: leitura, escrita, leitura e escrita, escritas de si, escritas colaborativas e texto. Num texto que analisa materiais de escrita produzidos por tribos Xacriabás e Pataxós, por exemplo, aparecem os termos usos da escrita, formas de circulação de materiais em escolas e comunidades, autoria, outras formas expressivas. Em dois trabalhos em espanhol, é usado o termo escritura acadêmica e escritura de línguas indígenas, sendo que o último se relaciona à pesquisa sobre produções de alunos de uma comunidade indígena. Neste último, não se discute o termo letramento, mas ficam em evidência conceitos que estão em sua base (contextos, relações de poder, diversidade de usos). Um terceiro trabalho sobre como a pessoa adulta analfabeta faz leitura e imagens, em espanhol, utiliza os termos leitura, imagem gráfica e multimodalidade e analisa como esse sujeito faz leitura de imagens. Talvez estes trabalhos, escritos em espanhol, exemplifiquem a diversidade de termos conforme a língua ou país. Isso também ocorre com o termo literacia, que aparece num trabalho escrito em português de pesquisa feita na Inglaterra e em outro, escrito em inglês, mas que faz críticas à Política Nacional de Alfabetização instituída no Brasil, no governo de Jair Bolsonaro.
Vale ressaltar um grupo de trabalhos com abordagem histórica que utiliza os termos culturas do escrito, cultura escrita ou história da cultura escrita. Eles abordam: as práticas de leitura em um clube (Club Riocotense – 1907-1920); a divulgação do primeiro catecismo da doutrina católica; e o Jornal Luz e as práticas mediadas pela escrita no âmbito da religião espírita. Outra pesquisa, especialmente, embora não seja histórica, usa a ideia de circuito da comunicação de Darnton para discutir a divulgação de obras de poesia em livrarias virtuais. Em geral, são citados como referência Chartier (1990, 1996, 1998, 2002), Darnton (2010) e Galvão (2010).
Vemos que as abordagens históricas se valem de perspectivas da história cultural, história do livro e da leitura. Estas dialogam com uma visão heterogênea de cultura escrita.
Considerações Finais
O termo letramento, quando relacionado a práticas sociais de natureza mutante, certamente será objeto de polêmicas e revisões e até de adjetivações. Os fenômenos que esse conceito visa a demarcar também variam, aproximando-se de alfabetismo funcional, por exemplo. O caráter reduzido (modelo autônomo) tende a usar o letramento dito universal no singular e o caráter ampliado (perspectiva ideológica) abre portas para uma pluralização de denominações. Assim, tanto as concepções como as denominações são objeto de disputa e se relacionam a fenômenos que se quer destacar ou mesmo apagar.
Ao ressaltar os diferentes processos de apropriação do termo letramento e seus significados em vários países, Magda Soares (2010, p. 56) já nos alertava:
também entre nós, atualmente, letramento é uma palavra semanticamente saturada, uma palavra que significa diferentes coisas para diferentes pessoas de diferentes contextos culturais e acadêmicos, para diferentes pesquisadores e para diferentes professores.
A saturação também ocorre nas adjetivações; e podemos concluir que as redes semânticas que se estabelecem em torno do letramento são diversas e que existe uma gama significativa de termos filiados a uma perspectiva teórica; entretanto, nem sempre foram anunciadas pelos autores as concepções de letramento. Na maior parte, essas perspectivas tratam de práticas sociais e culturais na história e contemporaneidade. Alguns termos visam a demarcar os espaços, os contextos e a natureza do letramento; e isso parece coerente com a ideia de contextos sociais, que é central nos estudos do campo, bem como em suas agências e instâncias. Outros especificam linguagens, mesmo aquelas que não são registradas pelo alfabeto, mostrando a força que ainda tem o termo letramento como conceito que abarca outros sistemas de registro escrito. Acrescenta-se a isso a existência de metáforas que ajudam a dispersar os termos e, por conseguinte, uma conceituação mais precisa do letramento.
Para uma ideia de finalidade do letramento é preciso alcançar a crítica, fazer rupturas e afirmar legitimidade, ou seja, é preciso romper com determinados poderes. De toda forma, o uso do termo letramentos, no plural, não resolveria as polêmicas. Afinal, uma retomada dos termos usados em cada língua pode mostrar que não são as palavras em si que valem, mas a natureza do que se quer investigar. Marinho (2010) comenta o quanto a obra de Gnerre (1985) focaliza o letramento, mesmo sem mencionar essa palavra em sua obra Linguagem, escrita e poder. Os estudos da história social da cultura escrita, da história do livro e da leitura, por exemplo, usam outros termos, mas não deixam de investigar fenômenos relacionados às práticas e representações da cultura escrita (CHARTIER, 1990, 1996, 1998, 2002; GÓMEZ, 2003, 2021; PETRUCCI, 1999). Constatando uma rede semântica que tanto se desdobra, podemos dizer que a heterogeneidade dos termos não pode ser vista como natural e pode ser problematizada em investigações feitas por aqueles que usam os termos ou os inventam.
Referências
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Fontes
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Notas
[1] Cabe a futuros pesquisadores fazer um estudo do colóquio em suas diversas edições para verificar as tendências.
[2] Os trabalhos foram identificados por números que constam na tabela geral para facilitar sua citação. Os autores que subsidiaram a análise, neste artigo, foram citados conforme normas bibliográficas da ABNT, mas os referenciados nos trechos retirados dos anais vão aparecer conforme citação nos trabalhos.
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