A criança tem direitos: Como eles se materializam na educação infantil?

 

The child has rights: How do they materialize in early childhood education?

 

El niño tiene derechos: ¿Cómo se materializan en la educación infantil?

 

 

 

Maria das Graças Oliveira

Federal University of Campina Grande, Paraíba, Brasil

mariaeduc2013@gmail.comhttps://orcid.org/0000-0002-3507-3483

 

Sara Lívia dos Santos Sousa

Federal University of Campina Grande, Paraíba, Brasil

Sara_livia_sousa@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0003-1742-2384

 

Yasmim Samily Menezes de Farias

Federal University of Campina Grande, Paraíba, Brasil

Yasmimmenezes99@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-3413-0204

 

 

Recebido em 25 de abril de 2022

Aprovado em 25 de abril de 2022

Publicado em 03 de maio de 2023

 

RESUMO

Este artigo é um recorte de uma pesquisa concluída que teve como objetivo investigar a materialidade de creches públicas municipais de Campina Grande, na Paraíba. O foco deste artigo será o direito dos bebês e das professoras à disponibilidade de materiais pedagógicos diversificados, adequados à especificidade das crianças, em número suficiente para que todos/as tenham acesso às diferentes possibilidades educativas oriundas desse material no espaço do berçário. A pesquisa qualitativa e quantitativa foi realizada no ano de 2018 em duas creches públicas da cidade de Campina Grande, PB. Os materiais pedagógicos foram contados e catalogados. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito professoras de berçários que trabalhavam nas instituições. As análises foram realizadas por meio dos pressupostos da Análise de Conteúdo de Bardin. As indagações: qual é a materialidade a que os bebês tem acesso nas instituições públicas? Quais são as fontes de aquisição desses materiais? O que são considerados materiais pedagógicos para os berçários? nortearam a investigação. Os resultados mostram que o estado tem contribuído com a materialidade das instituições embora, na perspectiva das docentes, ainda se faça necessário complementá-la.  Percebe-se a existência da parceria entre o estado e algumas instituições privadas nessa função. As instituições por sua vez, no sentido de complementar a materialidade disponibilizada pelos órgãos públicos tanto da esfera federal quanto da municipal, têm adotado estratégias junto à comunidade escolar e à sociedade de modo geral para aquisição de materiais pedagógicos, principalmente livros de literatura infantil.

Palavras-chave: Materiais pedagógicos; Educação e cuidado aos bebês; Direito à educação.

 

ABSTRACT

This article is an excerpt from a finished research that aimed to investigate the materiality of municipal public daycare centers in Campina Grande, Paraíba. The focus of this article will be the right of babies and teachers to the availability of diversified pedagogical materials, adequate to the specificity of children, in sufficient numbers for everyone to have access to the different educational possibilities arising from this material in the nursery space. Qualitative and quantitative research was carried out in 2018 in two public day care centers in the city of Campina Grande, PB. The pedagogical materials were counted and catalogued. Semi-structured interviews were carried out with eight nursery teachers who worked in the institutions. The analyzes were carried out under the assumptions of Bardin's Content Analysis. The questions: what is the materiality that babies have access to in public institutions? What are the sources of acquisition of these materials? What are considered teaching materials for nurseries? guided the investigation. The results show that the state has contributed to the materiality of institutions although, from the perspective of the teachers, it is still necessary to complement it. It´s also noted the existence of a partnership between the state and some private institutions in this role. Institutions, in turn, in order to complement the material made available by public bodies both at the federal and municipal levels, have adopted strategies with the school community and society in general for the acquisition of pedagogical materials, mainly children's literature books.

Keywords: Pedagogical materials; Education and care for babies; Right to education.

 

RESUMEN

Este artículo es un extracto de una investigación concluida que tuvo como objetivo investigar la materialidad de las guarderías públicas municipales en Campina Grande, Paraíba. El foco de este artículo será el derecho de los bebés y de los docentes a la disponibilidad de materiales pedagógicos diversificados, adecuados a la especificidad de los niños, en número suficiente para que todos tengan acceso a las diferentes posibilidades educativas que surgen de ese material en el espacio de la guardería. Se realizó una investigación cualitativa y cuantitativa en 2018 en dos guarderías públicas de la ciudad de Campina Grande, PB. Los materiales pedagógicos fueron contados y catalogados. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a ocho maestras de párvulos que laboraban en las instituciones. Los análisis se realizaron utilizando los supuestos del Análisis de Contenido de Bardin. Las preguntas: ¿cuál es la materialidad a la que tienen acceso los bebés en las instituciones públicas? ¿Cuáles son las fuentes de adquisición de estos materiales? ¿Qué se consideran materiales didácticos para guarderías? guió la investigación. Los resultados muestran que el Estado ha contribuido a la materialidad de las instituciones aunque, desde la perspectiva de los docentes, aún es necesario complementarlo. Se aprecia la existencia de una alianza entre el Estado y algunas instituciones privadas en este rol. Las instituciones, por su parte, con el fin de complementar el material que brindan los organismos públicos tanto a nivel federal como municipal, han adoptado estrategias con la comunidad escolar y la sociedad en general para la adquisición de materiales pedagógicos, especialmente libros de literatura infantil.

Palabras clave: Materiales pedagógicos; Educación y cuidado de bebés; Derecho a la educación.

 

Introdução

Qual é o significado da creche no século XXI? Essa atual noção acompanha a perspectiva do bebê como um cidadão de direito à educação que está sendo difundida em nossa sociedade atual? Tais questões mobilizam o estudo ora apresentado neste artigo. Muito se tem especulado sobre o papel da creche nos últimos vinte anos. Desde que ela passou a fazer parte do campo da educação, várias transformações ocorreram na forma como esse atendimento foi concebido socialmente no Brasil. Esse novo status é um avanço significativo, pois, com base nele, foram criadas normas e legislação que mudaram as formas de contratação de pessoal, a organização curricular e do atendimento às crianças, entre outros. Desses aspectos, destacam-se a exigência de contratação de professores/as habilitados para trabalhar nas instituições de educação infantil, inclusive com a faixa etária dos bebês, de organização de espaços físicos adequados, de materialidade suficiente e que atenda às especificidades das crianças.

Percebe-se, nesse processo, que as dimensões ‒ de cuidar e de educar ‒ da creche pública são ressaltadas nos documentos legais divulgados pelo Ministério da Educação (MEC) e na produção acadêmico-científica atual. Observa-se que a creche pública tem se consolidado como um espaço coletivo de educação e cuidado reconhecido pela sociedade. Isso pode ser constatado nas representações de estudantes de Licenciatura em Pedagogia. No início dos anos 2000, quando abordava o tema creche pública no Brasil em sala de aula com as/os futuras/os pedagogas/os, perguntava às/aos alunas/os o que elas/eles sabiam sobre a creche pública. As repostas vinham marcadas pelas representações sociais, tais como: depósito de crianças, lugar nem sempre adequado à educação de crianças. Nas turmas mais recentes do curso de Licenciatura na segunda década dos anos 2000, as respostas a essa mesma indagação expressam visões acerca das instituições que atendem a essa modalidade de ensino, tais como: crianças, alegria, troca de interações, imaginação, criatividade, subjetividade, mundos diversos, cuidar, bebês, barulho, brincadeiras. Pode-se dizer que essas representações se aproximam de uma concepção educativa e de cuidados, cuja referência se distancia daquela do início da década dos anos 2000.

 As pesquisas acadêmicas sobre as creches públicas buscam desvelar as relações interpessoais, a pedagogia das creches, os bebês como sujeitos socioculturais. Como consequência da divulgação desses trabalhos, a sociedade tem maior conhecimento sobre os bebês e a sua educação e cuidados nas instituições de educação infantil.  A creche é um espaço de educação coletiva das crianças. Um local de imersão na cultura, uma vez que tem como função inserir os bebês e as crianças bem pequenas no universo das tradições, dos costumes da sociedade. Pensar na modalidade creche atualmente é pensar na relação entre cuidado, educação e cultura. Trata-se de uma ação complexa, porque, ao mesmo tempo que estão interligados, apresentam significados simbólicos diferentes. Corrobora-se a noção de “educação como atualização histórica do homem” (Paro, 2000, p.1) que se realiza em duas dimensões: a individual e a social. O autor argumenta que:

 

A dimensão individual diz respeito ao provimento do saber necessário ao autodesenvolvimento do educando, dando-lhe condições de realizar seu bem estar pessoal e o usufruto dos bens sociais e culturais postos ao alcance dos cidadãos (Paro, 2000, p. 1).

A dimensão social tem a perspectiva de uma educação para a democracia, do viver bem de todos, ou seja, uma formação humana voltada para a contribuição dos estudantes para a organização social em que se valorizem o diálogo e o desenvolvimento do senso crítico (Paro 2000). Nesse sentido, pode-se dizer que, na educação infantil, a socialização está relacionada com “a capacidade de cada um a integrar-se na vida coletiva (...) compõe-se de dessocializações e ressocializações sucessivas. Ela é a conquista nunca alcançada de um equilíbrio cuja precariedade garante o dinamismo” (Bouvier, 2005, p.393). A autora argumenta que essa concepção interacionista “implica que se leve em conta a criança como sujeito social, que participa de sua própria socialização, assim como da reprodução e da transformação da sociedade” (Idem, 2005, p. 393). É possível afirmar que, nessa perspectiva, a educação e o cuidado na educação infantil têm, como características, a dimensão coletiva, a participação das crianças no processo educativo e o acesso delas aos bens culturais.

Os bebês, no contexto educativo e de cuidado das instituições de educação infantil, trazem demandas para seus profissionais que vão desde a escuta sensível das crianças à criação de experiências pedagógicas que possibilitem, a eles, o acesso aos saberes necessários ao seu desenvolvimento, aos bens simbólicos e culturais e promovam uma vida coletiva participativa com vista à construção da democracia e da emancipação destes pequenos cidadãos. Nessa perspectiva, a cultura se configura como uma aliada importante. A relação entre educação e cultura é uma discussão complexa, controversa, entretanto, necessária no âmbito deste texto.

Educação e cultura têm uma estreita relação. Ao desempenhar o papel de propiciar aos sujeitos socioculturais subsídios para o seu desenvolvimento pleno, tanto do ponto de vista das relações sociais quanto intelectual, a educação se ocupa também da transmissão da memória, dos valores, da produção científica e artística dos homens de modo que estas não se percam no tempo e no espaço. Embora a escola não transmita a cultura no sentido amplo, ela tem a função de selecionar aspectos da cultura, pode-se dizer que a “escola não ensina senão uma parte extremamente restrita de tudo o que constitui a experiência coletiva, a cultura viva de uma comunidade humana” (Forquin, 1993, p.15). Além da seleção, a escola também precisa transformar esses saberes, conhecimentos assimiláveis pelos novos cidadãos inseridos na cultura escolar. Ela cria uma pedagogia própria com materiais didáticos, atividades escolares que contribuirão para a aprendizagem. (idem, 1993). Essa relação se constitui desde a educação infantil cujas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNEI 2009) trazem a noção de currículo aberta no sentido de que o considera como:

 

O conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade. (BRASIL, 2009, p.12).

 

Nessa perspectiva curricular, temos muitas possibilidades para promover o acesso aos diversos bens simbólicos e culturais nas instituições de educação infantil, especialmente para os bebês, sujeitos de direito, matriculados nesses espaços coletivos de educação. Esses atores sociais têm especificidades educativas que demandam um ambiente organizado, com materiais pedagógicos para explorarem amplamente e, com isso, desenvolverem-se. No desenrolar do currículo no cotidiano das instituições, esses artefatos culturais ganham relevância pela função que desempenham na educação para o desenvolvimento autônomo dos bebês. Pressupõe-se que a produção cultural para crianças desempenhará a importante função de auxiliar professores/as e bebês nesta experiência educativa de conhecer e explorar o mundo físico, cultural e social.

Nesse sentido, torna-se relevante compreendê-los como um direito das crianças nos espaços de educação infantil e, de forma mais aprofundada, entender o que constitui um objeto, um brinquedo, um livro como material pedagógico, enfim, que critérios podem ser utilizados para a seleção desses materiais pelos profissionais da educação.  A resposta às indagações, a seguir, pode contribuir com esta discussão. O que é material pedagógico? Qual é a relação deles com a cultura escolar?

 A intencionalidade é o aspecto que dá o status de pedagógico aos brinquedos e aos objetos lúdicos disponibilizados para as crianças nas instituições de educação infantil, pois, “como elemento que permite distinguir um recurso pedagógico de outro qualquer está na ação do educador que, a partir de uma atuação planejada, mobiliza determinados meios de maneira consciente com vistas a alcançar um objetivo educacional” (Eiterer e Medeiros, 2010, p.1). Especificamente na educação e cuidados aos bebês, a intencionalidade prioritária é a promoção do desenvolvimento autônomo deles, tendo os brinquedos e os objetos lúdicos como aliados importantes.

Froebel e Montessori foram os percussores da criação de materiais pedagógicos para as crianças aprenderem com base em experiências concretas, os quais ainda estão presentes na educação infantil atual (Idem, 2010, p.2). Pode-se depreender dessa acepção que o repertório possível de ser apresentado para o contexto educativo dos berçários, em termos de material pedagógico, é amplo, e a vasta produção cultural disponível na sociedade, como a música, a dança, as artes visuais, as obras literárias, o cinema, tanto quanto os brinquedos, os objetos lúdicos e materiais não estruturados são possibilidades para que os bebês tenham acesso, no espaço coletivo de educação das creches, aos materiais potencializadores de suas atividades.

Tendo em vista esse cenário, este texto se organiza da seguinte maneira: primeiro será realizada uma abordagem sobre o direito das crianças ao material pedagógico nos berçários das instituições públicas de educação infantil, em seguida serão analisadas as formas de aquisição de material pedagógico nas instituições investigadas. As estratégias utilizadas nas creches para constituir o seu acervo de material pedagógico serão analisadas e, por fim, serão tecidas as considerações finais.

 

A aquisição de material didático para os berçários brasileiros: Materialidade e direito

           

            Um dos requisitos consolidados como imprescindíveis para a efetivação do direito das crianças brasileiras à educação e de sua qualidade são materiais didáticos ou pedagógicos adequados às suas necessidades e especificidades educativas. Embora essa seja uma premissa comum que engloba todos os processos educacionais do País, efetiva-se com base em diferentes configurações nas suas diversas etapas e fases. No contexto da Educação Infantil, podemos elencar, pelo menos, duas questões acerca da relação entre o material didático e sua aquisição e uso, as quais urgem problematização. A primeira diz respeito à conceituação de material didático e sua relação com a educação não conteudista prevista para a Educação Infantil. Já a segunda, à responsabilidade do fornecimento desses subsídios, sobretudo considerando o avanço de políticas neoliberais sobre os serviços públicos prestados, primordialmente, pelo Estado.

            Doravante, a fim de abordar essas questões e relacioná-las aos berçários brasileiros, será realizada uma análise sobre o que é material didático para a educação de bebês. De acordo com Bandeira (2014), o “material didático pode ser definido amplamente como produtos pedagógicos utilizados na educação e, especificamente, como o material instrucional que se elabora com finalidade didática” (BANDEIRA, p. 14, 2009). Por conseguinte, a concepção de material didático está relacionada a instrumentos e métodos didáticos, com suas diversas inspirações pedagógicas, pelos quais o conteúdo é ensinado. Desse modo, considera-se a necessidade da adaptação do conceito para o uso com o berçário, tendo em vista seus objetivos e a sua especificidade educativa.

Entendendo que as atividades no berçário giram em torno de processos que envolvem educar e cuidar, pode-se dizer que se caracterizam, como materiais didáticos para o berçário, todos os recursos que o medeiam, tanto pelos profissionais como pelas crianças, que, inclusive, são consideradas capazes, ativas e autônomas no seu processo educativo. Nesse sentido, o berçário é reconhecido como um espaço legítimo de educação, e os sujeitos por ele atendidos, como atores sociais providos de direitos à materialidade adequada para que o seu desenvolvimento, nos aspectos cognitivo, motor e afetivo, seja pleno.

 Araújo (2007) analisa que Montessori, ao criar o material científico, afirma-o como promotor basilar das oportunidades de autoeducação dos bebês, isto é, a materialidade presente nos berçários, quando adequada e atraente, estimula as atividades sensoriais das crianças e lhes permitem serem protagonistas em seus desenvolvimentos motor, sensorial e linguístico. Esse é um dos aspectos de sua importância e, por isso, também os configura como um direito dos bebês, pois, relacionando-os com o conceito de criança ativa, capaz, de direitos e autônomas, o material didático constitui-se um educador. Inspirados na perspectiva de Montessori, os brinquedos industrializados ou artesanais, os livros de literatura infantil, os materiais não estruturados ou industrializados e os objetos de higiene, entre outros, incluem-se no papel de mediadores da relação da criança com a cultura lúdica.

Em relação àquela segunda questão, analisando os documentos nacionais legais da educação infantil, percebe-se que o Estado, em concordância com as prioridades estabelecidas com a educação obrigatória, age como um fornecedor de recursos para o berçário, mas deixa abertura para a necessidade de sua complementação nas unidades educativas por intermédio de serviços e iniciativas privadas e comunitárias. Sendo assim, essa materialidade é mantida por iniciativas federais e municipais, com programas e receitas públicas, e por iniciativas privadas e doações comunitárias. Exemplificando esse argumento, apresentam-se os seguintes trechos da constituição brasileira de 1988:

 

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I ‒ igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

[...]

VII ‒ garantia de padrão de qualidade.

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

VII ‒ atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (Grifo das autoras).

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

§ 3º A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere a universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do plano nacional de educação. (BRASIL, 1988).

 

Diante disso, pode-se destacar que o acesso e a permanência dos brasileiros na educação nacional com qualidade é responsabilidade compartilhada entre o Estado, a família e a sociedade. Além disso, o primeiro, o Estado, efetiva as suas ações por meio de programas e receitas de impostos que priorizam a educação obrigatória. Simultaneamente, a LDB (1996) prevê que:

Art. 4o O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:

IX – padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem;

Art. 68. Serão recursos públicos destinados à educação os originários de: I – receita de impostos próprios da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; II – receita de transferências constitucionais e outras transferências; III – receita do salário-educação e de outras contribuições sociais; IV – receita de incentivos fiscais; V – outros recursos previstos em lei.

Art. 70. Considerar-se-ão como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis, compreendendo as que se destinam a:

VIII – aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar. (BRASIL, 1996).

 

            Em síntese, entende-se que o Estado é responsável e deve se comprometer com a qualidade de todos os níveis da educação nacional e, nesse contexto, insere-se, com relevância, a aquisição de material pedagógico em quantidade e variedade necessária para cada educando. Desse modo, os bebês têm direito à materialidade a ser garantida por diferentes setores, sobretudo pelo Estado. Entretanto, ocupam um lugar menos priorizado na distribuição de receitas que as outras fases e etapas da educação básica.

Além disso, conforme o documento oficial do Ministério da Educação – MEC, os materiais recebidos pela creche podem “ser provenientes de compras governamentais, doações e compras da própria instituição, desde que os critérios pedagógicos e de segurança sejam observados” (Brasil, 2012). Sobre as primeiras, embora importantes e um considerável avanço, não privilegiam a individualidade das creches, já que têm caráter de padronização. Ademais, podem desconsiderar as diferenças educativas da Educação Infantil e do ensino fundamental e investir em recursos inapropriados para a faixa etária de 0 a 1 ano.

Destarte, com intento de discutir, nesta seção, prioritariamente a aquisição de materialidade pelo Estado, é importante esclarecer as principais iniciativas de seu fornecimento para o berçário. São elas, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Por meio desses, as secretarias municipais de educação ou as próprias creches adquirem recursos financeiros e os materiais didáticos possíveis com receitas e incentivos governamentais.

Por fim, argumenta-se que é crucial que os direitos dos bebês de acesso à materialidade adequada sejam garantidos pelos entes e instituições responsáveis, pois visualizamos nela uma possibilidade e um aspecto educativo imprescindível e inalienável para eles, como cidadãos. Além disso, a preocupação com a necessidade dos materiais pedagógicos nas instituições coletivas de educação infantil está presente nos documentos oficiais do Ministério da Educação e Cultura (MEC).

 

Aquisição de materiais pedagógicos para os berçários: consonâncias e dissonâncias entre o poder público, a instituição de educação infantil e a comunidade escolar

                        É sabido que as instituições educativas formais, como a creche, têm intensa influência na constituição dos sujeitos sociais, de seus conhecimentos e de seus comportamentos, já que nelas vivem, geralmente, grande e importante parte da vida. Esses aparelhos sociais educativos, as interações sociais que lhe são inerentes e seus processos pedagógicos, políticos e administrativos internos, por sua vez, são afetados por diversos fatores externos, como as decisões e concepção de Estado vigente acerca da educação e das políticas sociais com vistas à consolidação dos direitos dos cidadãos.

Tratam-se de unidades constituintes, localizadas e afetadas por um constructo maior e por seus regimentos, estratégias e ideais, que interferem indiretamente (ou não) na humanização das crianças por meio de seus processos educacionais, o Estado. Dessa forma, faz-se importante entender o contexto político e histórico brasileiro atual para se compreender suas implicações sobre a educação, em especial, a educação infantil. A seguir, será realizada uma breve reflexão sobre esses aspectos.

                        Desde 1995, com o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil tem experimentado o regime Neoliberal e seus princípios gerenciais. Essa nova forma de direção do País se inicia com a aprovação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995), documento que rege a reestruturação do Estado após a crise econômica, segundo seus redatores, ocasionada pela má Administração Pública Burocrática, que, ao ceder muitos recursos públicos às políticas sociais, desorganiza a economia do País.

                        De acordo com essa organização, deixa de ser interessante que o Estado se comprometa com a efetivação integral de muitos dos serviços sociais destinados a todos os cidadãos brasileiros, como saúde e educação. O aparelho Estatal é, então, dividido, no documento citado, em setores que facilitarão esse trabalho, isto é, permitirão o Estado diluir suas obrigações e, assim, reequilibrar-se. São esses, o Núcleo Estratégico, as Atividades Exclusivas, os Serviços Não Exclusivos e a Produção de Bens e Serviços para o Mercado[1]. Essa estratégia implica o Estado investir nos serviços para camadas sociais mais pobres e delegar os direcionados às demais por privatizações, por exemplo.

                        Outro ponto importante desse modelo Estatal é a forma como o cidadão é entendido. Apesar de contribuir devidamente com os tributos impostos pelo governo, os sujeitos sociais são interpretados como clientes, que precisam comprar muitos dos serviços que, em um Estado não Neoliberal, seriam entendidos como direitos seus. Desse modo, os que não têm condições financeiras suficientes podem se encontrar em situações de vulnerabilidade caso não consigam arcar com o custeio de certos serviços, visto que nem todos os indivíduos considerados capazes de maior independência dos serviços do Estado o são.

            Por conseguinte, com o Estado como provedor parcial dos recursos e condições necessárias ao bom funcionamento, por exemplo, das creches, essas comunidades educacionais podem se encontrar sem fontes satisfatórias e seguras de recursos financeiros e funcionar em situações precárias e desiguais.

                        Segundo Laurell (2002), entre as estratégias usadas para a desresponsabilização do Estado com as políticas sociais, estão o corte de gastos sociais, a Privatização de atividades e instituições Estatais e a Centralização dos gastos restritos aos setores sociais mais pobres. Há uma tendência de que essas inciativas gerem impactos importantes na relação do estado com a educação, especialmente a educação infantil.

                        No âmbito educacional, tais medidas podem influenciar no subsídio financeiro da instituição para a aquisição de determinados materiais pedagógicos, ou seja, existe a contribuição do Estado (ou da prefeitura, no caso das creches), mas de modo tímido e, sendo assim, aquela ─ com o objetivo de oferecer oportunidades favoráveis ao desenvolvimento dos infantes por meio do acesso aos materiais pedagógicos variados, diversificados, em quantidades suficientes e estimulantes ─ necessita, por vezes, procurar caminhos que possibilitem adquirir recursos para ampliar o acervo de materiais pedagógicos a serem disponibilizados às crianças matriculadas.

                        Podem-se encontrar, assim, na materialidade das creches investigada, a iniciativa privada, por meio de doação de material pedagógico, ministração de cursos de formação continuada para as professoras. Concomitantemente, tem-se a ação engajada dos próprios profissionais de educação (comunidade escolar) e da comunidade local no sentido de angariar recursos financeiros para a aquisição de livros, brinquedos, tecidos e outros artefatos culturais para a instituição. A confecção de materiais pedagógicos, pelas docentes, é outra estratégia utilizada pelos atores sociais para complementação do acervo.

                        Com base na pesquisa desenvolvida, com apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica- PIBIC, foi possível constatar os dois processos presentes nas instituições, mas explorar-se-á apenas esse segundo nesta produção: a participação das comunidades escolar e local na aquisição dos materiais pedagógicos e suas estratégias.

Estratégias para aquisição do material pedagógico do berçário na instituição

As duas instituições investigadas têm, no acervo, uma quantidade significativa de material pedagógico. Podemos dizer que esse se constitui de material industrializado, de material confeccionado pelas professoras e de material não estruturado composto por tecidos variados, objetos de uso cotidiano e de material descartável. A catalogação mostrou que prevalece o material confeccionado pelas professoras com descartáveis sendo: 562 materiais artesanais e 472 objetos/ brinquedos industrializados. Esse dado pode ser considerado como um avanço, pois é o prenúncio de que essas instituições têm potencialidade de atender às necessidades educativas dos bebês, tendo em vista que eles precisam explorar o mundo, e esses artefatos culturais, disponibilizados pela instituição, podem contribuir para isso.

                        Destacam-se, nessa seção, as estratégias utilizadas pela Creche A para aquisição de material pedagógico. O relato, a seguir, da professora mostra as fontes de recurso para compra de material:

 

O material vem de doações, vem da própria prefeitura. E... , que também proporciona alguns materiais. Ela... , a prefeitura tem projetos que fazem com que os materiais cheguem às creches e, também, as doações que a gente recebe. (Profa. 2 do berçário, dez. 2017).

A equipe mesmo é bem engajada em conseguir recursos, então, como eu estou lhe dizendo, a gente tanto vai a busca, como recebe e, nesse processo de tanto ir a busca, como receber, a gente é bem suprido. Quando nós temos algumas ideias novas, a gente vai atrás, tá entendendo? (Profa. 2 do berçário, dez. 2017).

 

 

                        Podemos depreender desse relato que as professoras criaram formas alternativas para complementar o material enviado pelo estado para a instituição. O acervo da biblioteca dessa instituição foi adquirido por meio de doações da comunidade. Periodicamente, são realizadas campanhas junto à comunidade para que livros sejam doados para a instituição.  Outra estratégia de mobilização adotada por elas foi o Projeto Sapinho Serafim, como mostra a imagem a seguir:

 

Fonte: Dados da pesquisa (Arquivo pessoal).

 

          Esse Projeto se constitui em um cofre no formato de um sapo que, semanalmente, as professoras levam às salas para que as crianças e pessoas da comunidade coloquem moedas dentro dele. Periodicamente, o cofre é aberto e o dinheiro arrecadado é utilizado para comprar livros para a biblioteca. Dessa forma, o acervo da biblioteca é atualizado. Portanto, esse acervo se constitui de duas formas: a comunidade doando o livro e por meio da arrecadação do cofre.

Na análise da Professora 2 (Creche A), a participação do Estado, na aquisição de materiais pedagógicos para a creche, acontece, entretanto, não atende plenamente às necessidades educativas das crianças. Ela relata a situação da seguinte forma:

[...] a gente trabalha na rede pública, então, nós sabemos que nem todos os recursos necessários vão vir da..., própria instituição, né? Enquanto rede, rede municipal. Então, enquanto professor, se eu quero oferecer o melhor, eu preciso me empenhar um pouco também, entendeu? A gente recebe tudo que eles dão de muito bom grado, faz o melhor uso, mas aí a gente não se limita a esses recursos, que vêm da instituição. A gente sempre vai procurar mais, entendeu? (Profa. 2, Creche A, dez., 2017, grifo nosso).

            Diante dessa afirmação, observa-se que há a participação da prefeitura, que representa o Estado, no fornecimento dos recursos pedagógicos para a creche pesquisada. No entanto, esses não são suficientes para a promoção da educação desejada pela professora às crianças, e esse entendimento a faz buscar outras formas de aquisição de mais recursos, por meio do próprio esforço, a fim de enriquecer as experiências daquelas crianças e seus desenvolvimentos. Pode-se depreender dessa análise da docente sobre a educação pública na cidade de Campina Grande e, em específico, da creche pesquisada, que a política social adotada pelo estado para o suprimento de material pedagógico não é suficiente para o funcionamento efetivo e adequado da instituição. Essa situação desencadeia a necessidade de as professoras criarem estratégias para a obtenção de recursos alternativos, entre elas mesmas e junto à comunidade local.

Tem-se, então, a ação coletiva de toda a equipe educativa com uma finalidade, como expressa a docente:

[...] toda a equipe é bem engajada em oferecer recursos para a criança. Então nosso principal objetivo aqui é proporcionar o melhor para as nossas crianças e, no caso do Berçário, nossos bebês, né? Então, assim, todo mundo é bem engajado (Profa. 2, Creche A, dez., 2017).

 

            Com o intento de proporcionar a educação que acreditam atender às necessidades e especificidades de seus educandos, as profissionais dos diferentes níveis (berçário, maternal e pré-escola) e a coordenação pedagógica se unem em busca dos recursos materiais necessários ao desenvolvimento das crianças, complementando a materialidade oferecida pela prefeitura.

            Nesse contexto educativo, pode-se perceber a importância dada pelas docentes ao trabalho com o material pedagógico na educação e cuidados dos bebês. Na perspectiva delas, a materialidade contribui enormemente para o desenvolvimento global das crianças. No comentário abaixo, observa-se a função e lugar do material pedagógico nos processos educativos infantis segundo o ponto de vista das professoras:

A gente percebe que estimula na..., no desenvolvimento da criança, no relacionamento, na interação, porque a criança brinca e a outra, às vezes, vai e quer tocar e ali os dois brincam com o mesmo objeto. Isso acontece. [...] A gente observa que estimula o desenvolvimento cognitivo porque a gente sempre faz os chocalhos de cores diferentes, de materiais diferentes, então não é só um tipo, têm vários tipos de chocalho (Profa. 2, Creche A[2], dez., 2017).

 

Conclui-se, assim, que os materiais pedagógicos explorados ‒ com e pelas crianças nas creches ‒ têm papel social e cultural nas relações que elas estabelecem com os adultos, os seus pares e com o mundo, permitindo-lhes apropriar-se e produzir cultura e desenvolver-se cognitiva, afetiva e motoramente, por exemplo. Dessa forma, compreende-se que há um consenso (entre teóricos do campo da educação infantil e professoras participantes da pesquisa) acerca da necessidade de materiais pedagógicos variados, ricos e atrativos serem disponibilizados às crianças nos espaços de educação coletiva, pois desempenham relevante função na educação e nos cuidados aos bebês.

Esse entendimento da necessidade e da contribuição dos materiais pedagógicos pelas professoras revela o respeito delas pelos bebês, considerados como sujeitos sociais de direitos, e uma possível presença dos saberes pedagógicos a respeito do desenvolvimento nos aspectos psicológico, social e cultural. 

A observação dos bebês, no espaço coletivo de educação, proporcionou às professoras o conhecimento de que eles se interessam também por objetos comuns de uso cotidiano para explorarem, tais como, latas, garrafas pet, caixas de papelão, tampinhas coloridas, tecidos, panelas, tampas, e tal constatação impactou os critérios de seleção e confecção dos equipamentos pedagógicos a serem explorados pelos meninos e pelas meninas nessa faixa etária. A docente explica: “então a gente sempre se envolve pra fazer. É tanto, que nós fazemos campanhas aqui na instituição [...]” (Profa. 2, Creche A, 2017). Isso pode se configurar em um cenário de trabalho coletivo da creche, de acordo com suas possibilidades, para que, na educação das crianças, elas tenham acesso aos materiais pedagógicos que atendam às suas necessidades educativas. Nessa perspectiva, uma das estratégias adotadas pelas professoras é a confecção de materiais pedagógicos:

[...] alguns professores, a própria equipe pedagógica, é... , restaura alguns materiais, recicla e faz com que objetos se tornem pedagógicos, né? A gente utiliza muito material reciclado porque a gente pega [...] materiais de... , de uso, é... , doméstico e transforma, faz com que eles tenham uso como ferramenta pedagógica, entendeu? A gente transforma objetos normais em objetos de uso da criança (Profa. 2, Creche A, dez., 2017).

 

                        É necessário, nesse contexto, destacar que a utilização de materiais confeccionados pelas próprias docentes não se relaciona restritamente à necessidade de complementação da materialidade ofertada pelo estado, pois, o contato e o conhecimento das preferências dos bebês por determinado tipo de brinquedo levou as professoras à percepção de que as crianças se envolvem com os materiais artesanais e não estruturados. Isso pode ser observado na consideração a seguir de que “a gente acha que não vai ter sucesso, não vai ter êxito, pela o, pelo exemplo, né?! As sucatas, normalmente acontecem, a pessoa coloca lá, aí é... ‘eles gostaram disso?!’” (Profa. 3, Creche B, dez., 2017). A professora afirma que esses materiais têm muita aceitação pelas crianças, são estimulantes e atrativos, mantendo-os, muitas vezes, ocupados por muito tempo em sua exploração.

                        Essas estratégias utilizadas pelas professoras, na busca de materialidade adequadas para os bebês nos berçários, mostram que elas compreendem o papel importante da produção cultural para a infância no processo educativo das crianças, o que corrobora a noção de estudiosos das áreas da psicologia, da cultura e da pedagogia.

                        A exploração de brinquedos, objetos pelos bebês, é uma das ações infantis que desempenham papel importante no desenvolvimento deles. Nessa perspectiva, Vygotsky defende que o brinquedo “preenche as necessidades da criança”, entendidas como “tudo aquilo que é motivo para a ação” (Vygotsky, 1991, p. 62). Para ele, “o comportamento de uma criança muito pequena é determinado, de maneira considerável ‒ e de um bebê, de maneira absoluta ‒ pelas condições em que a atividade ocorre” (Idem, 1991, p. 67). Assim, para os bebês, os objetos adquirem um papel fundamental, pois exercem uma força motivadora para as ações das crianças muito pequenas (Idem, 1991). Pode-se dizer que a presença de brinquedos e dos materiais pedagógicos nos berçários possibilita, aos bebês, a exploração de objetos variados. E isso contribuirá de forma determinante para que eles se desenvolvam de forma plena.

            Nesta perspectiva do papel dos brinquedos e objetos no desenvolvimento, pode-se depreender que a educação e os cuidados aos bebês nos berçários das instituições de educação infantil serão mais adequados a esse público quando forem criados espaços educativos seguros que constituam em um convite à atividade autônoma das crianças bem pequenas. A diversidade e a quantidade de brinquedos artesanais ou industriais, objetos do cotidiano e elementos da natureza disponibilizados aos bebês são suportes relevantes para a atividade das crianças. Assim “o bebê que, em seu lugar habitual, encontra, dia após dia, brinquedos e objetos familiares, tem a possibilidade, quase desde o nascimento e durante todo o seu primeiro ano (e nos seguintes), de exercitar e de desenvolver as suas competências” (Feder, 2011, p. 47). Portanto, é imprescindível que os bebês tenham acesso à materialidade adequada nas instituições coletivas de educação.

            Analisando a materialidade, na perspectiva da antropologia, as considerações de Brougère (1998) são significativas. Essa noção concebe a criança como produtora de cultura na relação que ela estabelece com as pessoas, com as outras crianças, com a cultura, por meio da brincadeira.  A origem da cultura lúdica está nas interações sociais e é assim definida pelo autor: “é o conjunto de sua experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras brincadeiras de bebê evocadas anteriormente, que constitui a sua cultura lúdica” (idem, 1998, p. 26). Ou seja, os materiais selecionados pelas professoras para que os bebês tenham acesso compõem um universo simbólico mais amplo e, por meio da interação com eles, as crianças interpretam o mundo cultural e o recriam.

            À pedagogia, cabe a função de subsidiar as/os docentes no estabelecimento de critérios para a seleção mais adequada de materiais pedagógicos a serem adquiridos e utilizados nas instituições no processo de cuidado e de educação dos bebês. É relevante destacar o caráter pedagógico que os materiais como, caixas de papelão, objetos do cotidiano, brinquedos, livros de literatura, entre outros, podem ser considerados no âmbito pedagógico. Entre esses princípios, estão a consideração dos bebês como coparticipantes na criação dos contextos educativos. Ou seja, a observação atenta da atividade dos bebês, a escuta atenta de suas linguagens, a interação com as crianças podem dar aos profissionais indícios para que suas escolhas sejam pertinentes ao grupo de crianças com as quais trabalham.

                     Embora a escuta aos bebês seja importante critério para a seleção de brinquedos e objetos para os berçários, ela não é suficiente para que a segurança deles seja preservada. O Ministério da Educação (BRASIL, 2012) divulgou orientações para a seleção de brinquedos e materiais para as instituições. Desse documento, destacam-se a observação do selo do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), a adequação à criança, a segurança, a durabilidade, as oportunidades para brincar proporcionadas aos bebês, a multiplicidade de materiais, atendimento à diversidade racial, de gênero e de classe social, a qualidade suficiente para todas as crianças, entre outras. Esses e outros cuidados podem se configurar na aquisição de materiais que, realmente, sejam atraentes e convidativos para a exploração das crianças bem pequenas no berçário das instituições de educação infantil.

 

Considerações Finais

                        O direito das crianças à educação pode ser materializado de diferentes maneiras na sociedade. Isso envolve a ampliação da oferta de vagas, a construção de propostas pedagógicas que promovam o desenvolvimento global das crianças por meio da criação de contextos educativos que permitam, aos meninos e às meninas, experiências significativas e condizentes com os seus interesses e com a sua idade. Que despertem a imaginação, a curiosidade e a alegria de conhecer o universo social e cultural em que está inserida. Nesse cenário, os materiais pedagógicos têm grande relevância. A pesquisa mostrou que as professoras participantes da investigação estão atentas para que esse direito seja respeitado.

Os resultados obtidos com a pesquisa sinalizam o desempenho da atividade das professoras, mais, especificamente, em relação à materialidade, em favor da conformação às políticas Estatais Neoliberais e da manutenção independente da qualidade educacional das crianças que atendem. Isto é, com fins de tangenciar a precariedade educativa adjacente da carência instaurada pelo financiamento parcial dos recursos necessários ao funcionamento da instituição pelo Estado, as professoras contraem uma nova função: a construção e a arrecadação dos materiais necessários a sua ação pedagógica, incentivando a descentração política. Vale salientar que, como defende Laurell (2002),

[...] a descentralização neoliberal não tem por objetivo democratizar a ação pública, mas, principalmente, permitir a introdução de mecanismos gerenciais e incentivar os processos de privatização, deixando em nível local a decisão a respeito de como financiar, administrar e produzir os serviços (LAURELL, p. 174, 2002).

 

Dessa maneira, ao passo que o direito dos bebês à materialidade adequada e, consequentemente, à educação de qualidade, é restringido pelas políticas neoliberais, as condições de trabalho e exercício docente das professoras também. Diante disso, reconhecemos a importância da complementação material realizada pelas professoras na educação dos bebês sem deixar, todavia, de compreender as circunstâncias, os motores e as implicações dessas iniciativas, além da necessidade de a classe docente reivindicar, junto ao Estado, tanto os seus direitos trabalhistas como os dos educandos.

                        Os materiais pedagógicos, nessas instituições, são provenientes de três fontes: o estado, por meio da Secretaria Municipal de Educação; as doações de empresas de setores privados, da comunidade escolar e das campanhas realizadas pelas professoras e gestoras das instituições. Há materiais diversificados, produzidos industrialmente e artesanalmente pelas professoras, materiais não estruturados, objetos de uso cotidiano, elementos da natureza, livros de literatura, enfim, percebe-se a tendência ‒ desse grupo de trabalhadoras das instituições ‒ de se mobilizar coletivamente para envolver a comunidade em suas estratégias na aquisição de material.

                        Os resultados sinalizam ainda para o entendimento da função das professoras na conformação do direito dos bebês à educação, mais, especificamente, à materialidade. Ação que ocorre, sob dois aspectos diferentes. O primeiro remete aos conhecimentos pedagógicos sobre as necessidades educativas dos bebês e da relevância dos brinquedos e materiais pedagógicos na educação e nos cuidados aos bebês. Isso as impulsiona a selecionarem material não estruturado, como tecidos de diferentes cores e texturas, objetos do cotidiano, garrafas pet, para as atividades pedagógicas propostas às crianças. Elas também optaram pela confecção de parte desse material utilizando objetos do cotidiano, tais como chocalhos feitos com as tampas de garrafa pet, instrumentos musicais, baldes e pás para brincadeiras na areia e outros. As docentes investem nesta forma de construção de material com base na observação da atividade das crianças e do envolvimento delas com esses recursos pedagógicos. E também o fazem com o objetivo de complementar a materialidade ofertada pelo estado.  

                        A estratégia de promoção de campanhas, como o Projeto do Sapinho Serafim, a realização de Brechós para arrecadar fundos para a aquisição de material, como livros de literatura, mostra que o estado tem se mostrado tímido nesse aspecto da materialidade das instituições públicas. Percebe-se uma contradição advinda dessa realidade, pois, em vez de reivindicar o que falta junto ao estado representado pela Secretaria Municipal de Educação, as docentes optam por estratégias próprias para a complementação da materialidade. Assim, elas transcendem a sua função social e passam a ser também provedoras da materialidade a que tinham direito tanto quanto as crianças que estão sob a sua responsabilidade. Ou seja, quando o estado restringe a materialidade das instituições, está negligenciando o direito não somente das crianças, mas também de suas professoras. Essa realidade pode ser uma das consequências da tendência da política liberal que se desenha no País.

 

REFERÊNCIAS

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Notas



[1] Na reorganização que torna o Estado regulador, o Núcleo Estratégico é responsável pelas decisões do Estado e pela regulação do cumprimento dessas (o governo). As atividades Exclusivas são as que apenas o Estado pode operar, como o recolhimento dos impostos. Os Serviços Não Exclusivos são os que podem ser realizados pelo Estado com parcerias não estatais, como educação e saúde. Por fim, a Produção de Bens e Serviços para o Mercado é a área que trabalha para o lucro, mas permanece sob controle do Estado.

 

[2] Por questões éticas, nomeamos as creches, onde ocorreram nossas investigações, de Creche A e Creche B, e as respectivas professoras, de Professora 1, Professora 2, Professora 3, Professora 4, Professora 5 e Professora 6.