Ao ritmo da COVID-19: entre políticas para a infância e práticas pedagógicas em pandemia. Que perspetivas sobre os direitos das crianças?

 

At the rhythm of COVID-19: between childhood policies and pedagogical practices in the pandemic. What perspectives about children’s rights?

 

Al ritmo del COVID-19: entre las políticas de infancia y las prácticas pedagógicas en la pandemia. ¿Qué perspectivas sobre los derechos del niño?

 

Manuela Ferreira

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Universitdade do Porto, Portugal / Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE/FPCEUP)

manuela@fpce.up.pt - https://orcid.org/0000-0003-4512-1669

 

Catarina Tomás

CICS. NOVA, Universidade Nova de Lisboa, Escola Superior de Educação de Lisboa, Portugal

ctomas@fcsh.unl.pt - https://orcid.org/0000-0002-9220-964X

 

Recebido em 22 de abril de 2022

Aprovado em 16 de dezembro de 2022

Publicado em 02 de maio de 2023

 

RESUMO

Partindo dos Estudos Sociais da Infância e da Sociologia da Educação, consideram-se as diretrizes sanitário-educativas oficiais e as práticas pedagógicas privilegiadas por educadoras de infância portuguesas, para compreender em que medida e que direitos das crianças foram assegurados e/ou ameaçados no decurso das arritmias geradas pela COVID-19 na Educação de Infância (EI). Com apoio em metodologias qualitativas de recolha e de análise das medidas/recomendações oficiais para a EI (março 2020 a junho 2021) e de entrevistas a educadoras de diversas instituições, contextos e percursos (jardins de infância da rede pública e privada; meio urbano e rural; tempo na profissão), visou-se identificar e analisar i) os direitos que se asseguraram oficialmente às crianças e sua educação; ii) as (re)interpretações daquelas medidas/recomendações face às principais preocupações educativas das educadoras, facilidades/dificuldades encontradas nas recontextualizações pedagógicas assumidas para lidarem com elas. Na diversidade de (re)interpretações e práticas pedagógicas, e seu (des)alinhamento face às políticas, sublinha-se a ênfase na aprendizagem de conteúdos; a interferência de fatores socioestruturais e contextuais no cumprimento dos direitos das crianças e o conhecimento limitado daqueles direitos pelas educadoras, perspetivando-se a necessidade e urgência da sua ampla divulgação na EI.

Palavras-chave: Direitos da criança na pandemia; Conceções e práticas pedagógicas; Educação de infância.

 

ABSTRACT

From Social Studies of Childhood and Sociology of Education, the official sanitary-educational guidelines and the pedagogical practices privileged by Portuguese educators are considered to understand to what and which children's rights were guaranteed and/or threatened during the arrhythmias generated by COVID-19 in Early Childhood Education (ECE). Supported by qualitative methodologies of collection and analysis of official measures/recommendations for ECE (March 2020 to June 2021) and interviews with educators from different institutions, contexts, and pathways (public and private kindergartens; urban and rural; time in the profession), we aim to identify and analyse: i) what rights were officially guaranteed to children and their education; ii) the (re)interpretations of those measures/recommendations, main educational concerns and facilities/difficulties in the pedagogical recontextualization assumed. In the diversity of (re)interpretations and pedagogical practices, and their (mis)alignment with policies, emphasis is placed on learning content; the interference of socio-structural and contextual factors in the fulfilment of children's rights and the limited knowledge of those rights by educators, considering the need and urgency of its wide dissemination in ECE.

Keywords: Children Rights in the pandemic; Conceptions and pedagogical practices; Early Childhood Education.

 

Resumen

A partir de los Estudios Sociales de la Infancia y la Sociología de la Educación, se consideran las orientaciones sanitario-educativas oficiales y las prácticas pedagógicas favorecidas por las maestras de educación infantil portuguesas para comprender en qué medida y en qué medida los derechos de los niños fueron garantizados y/o amenazados durante las arritmias generados por el COVID-19 en Educación Infantil (EI). Con el apoyo de metodologías cualitativas de recopilación y análisis de medidas/recomendaciones oficiales para la IE (marzo de 2020 a junio de 2021) y entrevistas con educadores de diferentes instituciones, contextos y trayectorias (jardines de infantes públicos y privados; entornos urbanos y rurales; tiempo en la profesión), el el objetivo fue identificar y analizar i) los derechos que se garantizaban oficialmente a los niños y niñas ya su educación; ii) las (re)interpretaciones de dichas medidas/recomendaciones a la luz de las principales preocupaciones educativas de los educadores, facilidades/dificultades encontradas en las recontextualizaciones pedagógicas asumidas para abordarlas. En la diversidad de (re)interpretaciones y prácticas pedagógicas, y su (des)alineamiento con las políticas, se subraya el énfasis en el aprendizaje de contenidos; la interferencia de factores socioestructurales y contextuales en el cumplimiento de los derechos de la niñez y el escaso conocimiento de los mismos por parte de los educadores, de cara a la necesidad y urgencia de su amplia difusión en la IE.

Palabras clave: Derechos del niño en la pandemia; Concepciones y prácticas pedagógicas; Educación Infantil.

 

Introdução

 

A COVID-19 teve um impacto profundo no mundo (SANTOS, 2020) havendo já indicadores que possibilitam afirmar os múltiplos riscos associados à doença e o agravamento de desigualdades (COSTA, 2020; FAO et al, 2021). Portugal, ainda mal recuperado de uma profunda crise económica e social resultante da intervenção da Troika (2011-2014) e das políticas de austeridade, é surpreendido com os primeiros casos de COVID-19 em 2 de março de 2020, e a primeira morte a 16 desse mês, sendo assolado por uma nova crise, agora com outros contornos e densidades (CARMO; TAVARES; CÂNDIDO, 2020; FARIA; BENDO; MITCHELL, 2021; MAMEDE, 2020; BEIER, 2021; UNESCO, 2021; UNICEF, 2021; OECD, 2021; UNICEF, 2021). A 12 de março, o Governo português anunciou medidas extraordinárias de prevenção, contenção e mitigação da Covid-19 cobrindo um vasto leque de domínios (circulação, socialização, uso de máscara e viseira, horários dos estabelecimentos comerciais, consumo em espaços púbicos, etc.), e o estado de emergência foi declarado a 19 de março e renovado duas vezes, só terminando a 2 de maio de 2021. Foi, nessa altura, substituído pelo estado de calamidade (menos severo), associado a uma reabertura gradual das atividades económicas e sociais (MAMEDE, 2020).

O campo da educação, sob pressão social das famílias e do trabalho, também foi alvo de tomadas de decisão política, sendo um dos que mais impactos sofreu, particularmente, quando estiveram em causa crianças pequenas e a salvaguarda prioritária da sua vida e condições de saúde (CNE, 2021; JALONGO, 2021). Daí que a Educação de Infância (EI) tenha estado na mira política e mediática tanto aquando do encerramento das creches e jardins de infância (JI) como aquando da sua reabertura. Tendo sido das primeiras instituições a encerrar devido à pandemia, tal facto alimentou uma ampla discussão no espaço público, dado o seu impacto socioeconómico imediato para famílias e profissionais e, posteriormente, dadas as dificuldades sociopedagógicas e consequências negativas antevistas a curto, médio e longo prazo na educação das crianças, decorrentes da não realização atempada de determinadas aprendizagens.

O Relatório “O Estado Global da Educação – 18 meses em pandemia” (OCDE, 2021) - contabilizou o número de dias em que as escolas estiveram encerradas naquele período e Portugal destaca-se pelo maior número de dias em relação à média na OCDE, incluindo a Educação Pré-escolar (EPE). De repente, o encerramento de creches e JI provocou um quadro de disrupção social intenso: milhares de crianças portuguesas ficaram confinadas ao espaço privado durante aproximadamente 80 dias (os dois confinamentos), pelo que a sua educação no JI sofreu a quebra das redes de relações sociais em copresença e a redução das atividades educativas e pedagógicas, agravando as vulnerabilidades, desigualdades e exclusões de muitas delas e suas famílias. Tais restrições refletiram-se, ainda, ao nível das relações inter e intrageracionais, por exemplo nas limitações dos contactos com as/os avós/ôs, no cancelamento das atividades sociais, desportivas e culturais e na educação a distância (ALANEN, 2020). Por todas estas razões, o encerramento dos JI parece ter sido sentido com uma lacuna nos quotidianos sociofamiliares o que, em condições de teletrabalho, gerou uma enorme visibilidade e reconhecimento acerca do seu papel complementar na educação das crianças e na salvaguarda dos seus direitos de proteção e provisão (TOMÁS, 2011; BARALDI; COCKBURN, 2018).

O encerramento dos JI significou também que, pelo menos no primeiro confinamento, e de modo a darem continuidade à sua ação, as/os profissionais se viram perante uma “emergência pedagógica” (OGG GOMES; ANTERO CORREIA; MESSETTI, 2020, p. 4) para procederem à sua recontextualização (BERNSTEIN, 1996) quer em função das orientações/recomendações oficiais quer em relação às famílias das crianças, ao mesmo tempo que enfrentavam a impessoalidade tecnológica e procuravam superar distâncias na comunicação e relação por via da mediação familiar no acompanhamento das atividades a distância (MALETTA, FERREIRA; TOMÁS, 2020). Com efeito, na recontextualização pedagógica o princípio recontextualizador “seletivamente, apropria, reloca, refocaliza e relaciona outros discursos, para constituir sua própria ordem e os seus próprios ordenamentos” (BERNSTEIN, 1996, p. 46). Neste deslocamento de textos dos seus contextos originais para a sua recolocação noutros, entende-se que estes, enquanto comunicação falada, escrita, visual, espacial produzida por alguém, fornecem indicações acerca das formas que a relação social assume. Isso significa que as diretrizes/recomendações oficiais são alteradas por via das releituras, ressignificações e critérios de valor que educadoras/es diferentes, e a trabalharem em contextos sociais diversificados, lhes interpõem na sua prática pedagógica - desde o planeamento à sua implementação e avaliação as/os educadoras/es fazem escolhas acerca do que – os conteúdos - e dos como – modos de fazer -, mudando os significados originais. Significa, também, que, em tempos de pandemia, os processos de recontextualização pedagógica se duplicaram: se ao selecionarem e elegerem dadas diretrizes/recomendações oficiais em detrimento de outras as/os educadoras/es as recontextualizaram para os seus discursos e práticas pedagógicas, o mesmo aconteceu quando, depois, os/as repensaram e procuraram relocar nos discursos e relações pedagógicas dirigidos às famílias das crianças. Ou seja, na “pedagogização” do curriculo, dos conteúdos e relações a serem transmitidas (MAINARDES; STREMEL, 2010). Neste sentido, discursos e práticas pedagógicas são constitutivos das relações sociais quer entre autores das diretrizes/recomendações oficiais e educadoras/es e crianças, quer entre educadores/as e famílias e crianças, por meio dos textos por eles produzidos – no primeiro caso, em tempos de atividades presenciais e de confinamento, e no segundo, em tempos de confinamento.

De modo a compreender processos de recontextualização pedagógica na EI em tempos de pandemia, cabe então questionar, nos múltiplos desafios profissionais, pedagógicos e sociais que se colocaram aos/às educadores/as de infância, quais foram as suas maiores preocupações em termos da educação das crianças? Por outro lado, se recuarmos ao panorama da EI pré-COVID 19 que temos vindo a caraterizar como sendo crescentemente orientado para a “escolificação” e para a reconfiguração das crianças em alunos/as, das/os educadoras/es em professoras/es e do JI em escola, e em que os direitos de participação das crianças eram substimados em prol de uma EI apostada numa precoce modelação das crianças pequenas e preparação nas qualificações úteis para uma futura inserção no mercado de trabalho (FERREIRA; TOMÁS, 2018, 2021, TOMÁS; FERREIRA, 2019), é tempo de perguntar como é que, na cadência de acontecimentos nos últimos dois anos da era COVID - suspensão de atividades presenciais e regresso, nova suspensão e novo regresso às atividades presenciais -, ficaram os direitos da criança?

Informadas pelos Estudos Sociais da Infância e da Sociologia da Educação, partimos das diretrizes sanitário-educativas oficiais para a EI e das práticas pedagógicas privilegiadas que foram reportadas por educadoras para compreender, nos processos de recontextualização pedagógica desenvolvidos no decurso das arritmias geradas pela COVID-19, em que medida e que direitos das crianças foram assegurados e/ou ameaçados.

Recorreu-se a processos metodológicos qualitativos para recolher e analisar i) as principais medidas/recomendações oficiais para a EI (março 2020 a junho 2021) emanadas pelas entidades governamentais - Direção Geral de Saúde (DGS), Ministério da Educação (ME) e Ministério do Trabalho, Solidariedade Segurança Social (MTSSS) - e por uma Associação Profissional representativa dos/as educadores/as de Infância em Portugal (APEI); ii) as entrevistas realizadas a educadoras de infância, partir de uma amostra de conveniência constituída pelo procedimento de “bola de neve”, considerando a diversidade de tempos na profissão, a natureza institucional e geosocial dos JI - rede pública e privada; contextos urbanos, periferias urbanas e rurais. A análise de conteúdo das medidas/recomendações oficiais procurou inferir que direitos procuraram ser salvaguardados, o mesmo acontecendo com o corpus de 13 entrevistas das educadoras, com base: i) nas suas principais preocupações pedagógicas nos períodos de confinamento e nos retornos às atividades presenciais; ii) no seu posicionamento pedagógico face às medidas/recomendações da DGS e ME/MTSSS durante os dois períodos de retorno ao JI; iii) nas suas narrativas acerca dos direitos das crianças que foram salvaguardados/ameaçados durante/após os confinamentos. Os processos de (re)interpretação das medidas/recomendações oficiais pelas educadoras, em função das suas principais preocupações educativas e das facilidades/dificuldades pedagógicas assumidas para as tornarem execuíveis em casa e no JI, contribuem assim, quer para refletir acerca dos direitos assegurados às crianças e sua educação nos últimos 2 anos, quer para perspetivá-los em contexto de pandemia.

Educação de Infância em tempos de pandemia: guerra e tréguas

 

Devido à situação epidemiológica da doença COVID-19, entre 13 de março e 1 de junho de 2020, e depois, entre 22 de janeiro e 15 de março de 2021, Portugal viveu dois confinamentos que levaram ao encerramento dos JI, alternados com dois períodos de regresso às atividades letivas com presença de crianças1.

Durante estes períodos, a Direção-Geral de Saúde (DGS)2, o Ministério da Educação (ME)3, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) e a Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI) produziram um conjunto de medidas e recomendações relativas à EI, conforme se sistematiza, ainda que não de forma exaustiva, no quadro 1:

Quadro 1 – Principais medidas/orientações ou recomendações das entidades oficiais (2020/2021): que direitos das crianças?

 

ENTIDADES

DOCUMENTOS (MEDIDAS/ORIENTAÇÕES/RECOMENDAÇÕES)

OBJETIVOS

DIREITOS DA CRIANÇA

(categoria e direito)

DGS

Coronavírus 2019 n-CoV RECOMENDAÇÕES GERAIS (05.02.2020)

Visam “o como fazer” nos JI para que crianças e adultos adoptem medidas de proteção contra o vírus

Provisão – Sobrevivência e Desenvolvimento (art.º 6.º); Saúde (art. 24.º)

 

Participação – Acesso a informação apropriada (art.º 17.º)

Orientação 02/2020, Orientação 03/2020 e cartazes (10.02.2020)

Toolkit IPSS sobre o Coronavírus (COVID-19), apresentação geral e cartazes para afixar (09.03.2020)

Orientação nº 002/2020, de 25/01/2020 – Plano de Contigência de cada equipamento

Regras a cumprir em caso de suspeita e de infeção

Provisão – Saúde (art. 24.º)

Microsite da Direção-Geral da Saúde acerca COVID-19

Atualização regular de informação

Provisão – Saúde (art. 24.º) e Educação (art.º 28.º e 29.º)

Referencial Escolas - Controlo da Transmissão de COVID-19 em Contexto Escolar 2020/2021; 2021/2022

Informações e indicações de medidas específicas em contextos educativos

Ministérios Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e Saúde

Despacho Conjunto nº 2875-A/2020, de 3 de março

Medidas de proteção social para todos os adultos trabalhadores que têm a seu cargo crianças menores de 12 anos, ou sem limite de idade em caso de filho com deficiência e doença crónica

Provisão – Interesse Superior da Criança (art.º 3.º); Sobrevivência e Desenvolvimento (art. 6.º);

Responsablidade dos Pais (art.º 18.º);

Saúde (art.º 24.º); Segurança Social (art.º 26.º); Nível de Vida (art.º 27.º); Família (Preâmbulo)

Medidas extraordinárias para fazer face à situação Epidemiológica COVID-19. Instituições, respostas sociais e ação social (16.03.2020)

Suspensão de atividades; Garantir a Alimentação; Comparticipações financeiras; Mecanismos de apoio à manutenção dos postos de trabalho; Apoio excecional à família para trabalhadores que tenham de permanecer em casa com os filhos

ME

Áreas Governativas da Educação e da Presidência, que tutelam a Cidadania, a Igualdade e a Integração e Migraçõessite apoioescolas.dge.mec.pt, iniciativas, estratégias e soluções para crianças e jovens. (DGEstE, 20.03.2020)

Comunicado às escolas - Propostas gerais de intervenção para alunos em situação de vulnerabilidade

Provisão – Interesse Superior da Criança (art.º 3.º); Sobrevivência e Desenvolvimento (art. 6.º); Nível de Vida (art.º 27.º)

Contributos para o Apoio e Acompanhamento a distância, na EPE (DGE, 2021) + conjunto de recursos Educativos (canais de televisão  RTP 2 e RTP Memória)

Ferramenta de apoio às escolas, educadores/as de infância e pais, na implementação Educação a Distância

Provisão – Educação (art.º 28.º e 29.º)

ME e MTSS

Resolução do Conselho de Ministros n.o 33-C/2020, de 30 de abril

Orientação para a reabertura da EPE - Adaptação dos planos de contingência COVID-19, conforme Orientação 006/2020 - DGS

Provisão - Saúde (art.º 24); Educação (art.º 28.º e 29.º)

DGS,ISS,IP e DGEstE

Plano de Desconfinamento - Rastreios Laboratoriais para SARS-COV2

Orientação conjunta relativa à testagem em equipamento das áreas da educação e da infância

Provisão – Interesse Superior da Criança (art.º 3.º); Sobrevivência e Desenvolvimento (art. 6.º); Saúde (art.º 24.º)

Fonte: Elaboração das autoras

 

Sob o espectro da incerteza, risco e medo que caraterizam as sociedades ocidentais contemporâneas, a pandemia causada pela COVID-19 veio colocar na agenda sociopolítica as questões da saúde pública e da urgência da sua gestão e governação maciça, impondo, em nome da vida e da saúde da população, mudanças drásticas na vida da população. Neste contexto biosocial, e no quadro do paradigma hegemónico da biomedicina (WILL, 2020), é conferido e reconhecido à DGS a legitimidade de intervenção na regulamentação da ordem social, cujas medidas geram efeitos nos fenómenos produzidos pela vida coletiva (cf. Quadro 1). Tais medidas de intervenção, agindo sobre a higiene pública e os mecanismos de segurança, podem assim ser vistas como uma tecnologia e

uma forma de poder que se excerce sobre os fenómenos da vida, o nascimento, a fecundidade, a velhice, as enfermidades e a morte: são fenómenos coletivos que só aparecem com os seus efeitos económicos e políticos, que só se tornam pertinentes ao nível da massa” (FOUCAULT, 2008, p. 293).

Pode então dizer-se que nos textos dos documentos oficiais, a garantia dos direitos de provisão das crianças (cf. Quadro 1) assumiu uma dupla centralidade: a regulamentação e gestão sociopolítica com enfoque na família e medidas de proteção social durante os confinamentos, e a regulamentação nas organizações educativas, em medidas de provisão de educação, de saúde e de alimentação das crianças durante os confinamentos e durante as atividades presenciais.

Neste contexto, destaca-se o contibuto da APEI (2020) na elaboração do documento “Contributo para assegurar a qualidade pedagógica em educação pré-escolar (3-6 anos) em tempo de COVID19” que contou com a participação de um vasto número de investigadores/as e profissionais da EI, cuja qualidade, reconhecida pelo ME, veio a ser divulgada nas redes. O documento apresentava um conjunto de estratégias e propostas às direções, às equipas educativas, às crianças e às famílias “relativas à reabertura das instituições de educação de infância” (2020, p. 2) e distingue-se dos outros porque enfoca nas dimensões pedagógicas, não descurando a importância das relações entre pares e dos direitos da criança, incluindo o brincar.

 

Práticas pedagógicas em tempos de pandemia: narrativas de educadoras de infância

 

Retrato das educadoras

 

De entre as 13 educadoras de infância, cujas idades oscilam entre os 25 e os 64 anos, a maioria tem a licenciatura havendo um conjunto de veteranas (7), ou seja, com mais de 21 anos de atividade profissional face às restantes (5), e uma novata com 2 anos, refletindo o panorama nacional de envelhecimento do grupo profissional (CNE, 2020). Destas educadoras 9 encontram-se há menos de 10 anos a exercer no mesmo JI e 4 há mais de uma década.

Na generalidade, todas desenvolvem a sua prática pedagógica com grupos de 26 crianças, em média, e heterogéneos em termos de sexo, idades (3-6 anos) e origem social, originárias de famílias que as educadoras posicionam em grupos da classe média (6), média-baixa (5) e média-alta (2). Em relação ao contexto geosocial do JI consideram que 5 apresentam caraterísticas urbanas; 6 mantêm fortes traços rurais (regiões de Lisboa e Vale do Tejo, e Centro) e 2 outros que, em expansão urbana, ainda conservam traços rurais (região Centro). Em relação à rede e localização dos JI, 5 situam-se na região de Lisboa e Vale do Tejo (4 públicos e 1 na rede privada com fins lucrativos); 4 públicos na região Centro; 1 público na região Norte, 1 da rede privada sem fins lucrativos na região do Alentejo e outro na Região Autónoma dos Açores e, finalmente, 1 da rede privada com fins lucrativos na região de Lisboa e Vale do Tejo.

 

O que dizem as educadoras?

“durante os períodos de encerramento do JI”: preocupações, facilidades e dificuldades

 

Manter a presença e o acompanhamento às crianças (5 referências, doravante R) e prosseguir a “promoção das aprendizagens por via da família (4R) foram as grandes preocupações da maioria das educadoras nos períodos de confinamento, estando em causa assegurar, por um lado, as linhas de continuidade relacional e pedagógica construídas com crianças e, por outro, a prossecussão das aprendizagens, “transferindo” práticas pedagógicas para o quotidiano familiar. Menor relevância parecem ter tido as preocupações focadas no bem-estar das crianças (3R) cuja tónica incidiu no “saber onde e como estavam as crianças” (E[1]2), nas suas condições de saúde mental dada a ausência do brincar com e a “perda das relações reais entre pares” (E10).

A subtração das relações socioeducativas em que se construía o quotidiano do JI, e em que se alicerçava a função pedagógica das educadoras em tempos de pré-pandemia, obrigou-as a lançar mão de estratégias e recursos vários para superarem as distâncias físicas impostas. A recontextualização pedagógica do currículo (BERNESTEIN, 1996) do JI na esfera doméstica foi o elo possível de continuidade com as práticas em curso e de minimização de efeitos perversos. Poder contar com a “colaboração dos pais/famílias” (4R) e, sobretudo, com aqueles/as que dispusessem de recursos tecnológicos, foi essencial e facilitador da presença do JI no domicílio:

 

Os pais faziam atividades e enviavam por mail ou por whatsapp - havia esse feedback. (…). Trabalhamos em equipa e eu coordenava as atividades. A ideia era haver uma sequência e também procurámos adaptar projetos que havia do agrupamento sobre consciência fonológica, matemática, alimentação saudável para as crianças continuarem em casa com os EE. (…) participaram sempre que puderam. Sempre preocupados. Quando precisavam de alguma coisa enviavam mensagem e eu também, quando eles não vinham. (E12).

 

Nesse sentido, dispor de um computador e internet, recursos ideais para assegurar uma presença e comunicação audiovisual a distância, não sendo generalizáveis a todas as famílias das crianças, dada a sua diversidade sociocultural e económica, requereu desde logo, da parte das educadoras, processos de abertura para o necessário ajuste e flexibilidade em função de cada caso. Esta comunicação e colaboração sociopedagógica com as famílias, sobretudo por via das tecnologias (computador e/ou telemóvel), revelou-se multifacetada nos seus usos, conforme o gráfico 1:

 

Gráfico 1 – Estratégias de contatos com as famílias na pandemia

Fonte: Elaboração das autoras

 

Como principais dificuldades sentidas na recontextualização pedagógica durante os confinamentos, as educadoras mencionaram “as famílias” e “o trabalho pedagógico”. No primeiro caso, devido a condições socioeconómicas e culturais (7R) - “Muitas famílias não têm acesso à internet e nem sabem, algumas” (E2) e “Os responsáveis pelas crianças (avós) não possuírem conhecimentos ao nível das novas tecnologias” (E11) – bem como à falta de disponibilidade e adesão dos pais (6R). No segudo caso, “as propostas pedagógicas” em contexto de educação a distância configuram-se como um enorme desafio nas narrativas das educadoras: “pensar a pertinência e adequação das propostas que ia fazendo ao grupo (E10)” e “sempre aquele grande problema de nos quererem comparar ao 1.º ciclo e pôr-nos a fazer como elas fazem” (E13).

 

Processos de recontextualização das práticas pedagógicas do JI no contexto familiar

 

Ao serem explicitados os modos como as educadoras lograram construir lógicas de continuidade pedagógica pela transposição de práticas para o contexto familiar, foram as referências a estratégias relativas às aprendizagens das crianças que ganharam relevância. Em alguns casos, houve o cuidado em que as propostas de atividades, a serem desenvolvidas em casa, se incluissem na realização das rotinas domésticas e na exploração dos usos habituais dos seus utensílios com outra intencionalidade e finalidades:

 

proposta e dinamização de atividades que, por meio do caráter lúdico e de objetos presentes na casa de qualquer família, tinham como principal intuito despertar a criança para o desenvolvimento de competências essenciais para a sua aprendizagem. (E1)

 

rotinas diárias e atividades familiares em que as crianças poderiam contribuir e ao mesmo tempo aprender. (E6)

 

A maioria das educadoras procurava, assim, conciliar as potencialidades educativas da educação familiar informal com a formalização de aprendizagens consideradas úteis e necessárias, assumindo, nesses processos, um papel de liderança na orientação das ações de adultos/as e de crianças. O controlo exercido a distância pelas educadoras manifestava-se na indicação de propostas de atividades a serem realizadas: “eu organizava uma programação com essas atividades para uma semana que eram enviadas aos pais” (E12).

Os processos de monitorização das atividades propostas bem como o controlo da assiduidade das crianças e a avaliação das suas performances, agora realizadas e reproduzidas pelas famílias, exigia uma comunicação constante entre educadoras e pais e, num caso, também entre eles: “a participação ativa das famílias que, através de um grupo criado no WhatsApp se mantiverem sempre em interação e ajuda mútua, promovendo a continuidade nas aprendizagens das crianças”. (E7)

Outros posicionamentos das educadoras, porventura mais descontraídos e criativos, mas em clara minoria, levaram, a partir de determinado momento – quando se aperceberam da desmotivação das crianças – a “pensar a pertinência e adequação das propostas que ia fazendo ao grupo” (E10) – e a apostar na promoção de atividades familiares, elegendo atividades expressivas, incluindo o movimento, para dinamizarem a sua intervenção pedagógica naquele contexto:

[recolha] de imagens, fotos e vídeos vividas no confinamento, nomeadamente os desafios feitos por mim às crianças e famílias. (E12)

 

depois de 2 semanas eu acabei por descobrir a melhor forma de os cativar - começámos a fazer ateliers de dança, de experiências e atividades de expressão plástica (…) A maior parte das vezes os trabalhos eram feitos pelos pais que estavam ali a pintar e a recortar com os meninos. Acaba por ser uma atividade familiar e, portanto, a partir dali, quando descobri essa fórmula, já não a larguei mais. (E13)

 

Não obstante estas estratégias para comunicarem e para envolverem as famílias na concretização das atividades propostas, em algumas situações em que aquelas não dispunham dos meios informáticos necessários para participarem (2R) foi necessário que as educadoras usassem e/ou criassem recursos alternativos como o uso do telemóvel, a ida aos domicílios e/ou o uso dos correios (cf. Gráfico 1), quer para contatarem com elas quer para lhes disponibilizarem as propostas de atividades:

 

Criar alternativas de desafios para duas crianças/famílias sem computador, através de entrega de materiais na Junta de Freguesia. (E5)

 

[as famílias] brasileiras e venezuelanas era por telemóvel e havia dois ou três casos de situações mais complicadas e, aí, não foi possível haver interação. (E12)

 

No limite, durante os períodos de encerramento do JI, crianças oriundas de famílias mais despossuídas económica e socialmente acabaram por ver quebradas as continuidades com a EI, a educadora e os seus pares, reforçadas que foram as suas vulnerabilidades estruturais e a sua exclusão. Não deixa, pois, de ser significativo o argumento da falta de disponibilidades dos pais/famílias como a maior dificuldade daquele período (7R):

 

não ter recebido qualquer feedback por parte dos encarregados de educação de algumas crianças. (E1)

 

falta de adesão às sessões através dos meios digitais por parte de alguns/poucos encarregados de educação. (E9)

 

Uma educadora referiu ainda a “desmotivação das crianças” como uma dificuldade - “sessão síncrona por semana, de meia hora (…), a partir de uma dada altura, as crianças começam a ficar cansadas, e eram muito pequeninas e não aguentavam muito tempo” (E12). Só uma educadora referiu “não encontrei dificuldades” (E4).

Nos processos de recontextualização pedagógica relatados, as relações sociais estabelecidas refletem, seja nos aspetos considerados mais positivos, seja nos mais problemáticos, uma hierarquia entre as educadoras - agentes transmissores - e destinatários/as – pais e crianças -, pautada por princípios de regulação do poder e de controlo nos processos de comunicação.

“Regressos ao JI”: preocupações, facilidades e dificuldades 

 

O “bem-estar das crianças” (11R), as “aprendizagens” (3R) e “o brincar” (2R) foram as maiores preocupações mencionadas pelas educadoras aquando do regresso das crianças ao JI, após os períodos de confinamento. Estas dimensões estão em consonância com as “Orientações. Reabertura da Educação Pré-Escolar” (ME/MTSS, 2020):

a recomendação atual de distanciamento físico, não podemos perder de vista a importância das aprendizagens e do desenvolvimento das crianças, bem como a garantia do seu bem-estar e direito de brincar. É também essencial considerar que as interações e as relações que as crianças estabelecem com os adultos e com as outras crianças são a base para a sua aprendizagem e desenvolvimento. (p. 2)

 

O bem-estar das crianças tendeu a enfatizar a dimensão social (6R) refletindo, ora uma lógica institucional do “retomar rotinas e regras de convivência em grupo - valores de partilha e cooperação” (E10) -, ora uma lógica relacional/comunicativa de “desdramatizar as questões do contacto pessoal” (E6) e de “retomar de imediato as terapias de fala que haviam sido interrompidas” (E4). Já para outras educadoras é sublinhada a salvaguardada da dimensão emocional das crianças (4R): “A maior preocupação foi a da estabilidade emocional e retornar à ‘normalidade’ das crianças” (E11). A menção às aprendizagens, sobretudo por educadoras a trabalharem na rede pública, reside na perceção de estagnação das mesmas durante o encerramento do JI e disso fazer perigar o futuro académico das crianças: “As minhas maiores preocupações foram as de desenvolver com grande intencionalidade as competências fundamentais para as crianças abordarem com sucesso a fase seguinte de aprendizagem” (E9). Talvez por isso, as poucas referências ao “brincar (2R) reiteram os seus usos pedagógicos para a aquisição das aprendizagens infantis (FERREIRA; TOMÁS, 2018, 2021).

As facilidades reportadas pelas educadoras aquando dos regressos aos JI parecem exaltar esses momentos de reencontro com os diversos atores educativos como muito significativos, desde logo pelo apoio dos pais (5R) - “adesão [das famílias] ao regresso de todas as crianças da sala” (E11) e pelo entusiasmo das crianças (4R) - “a vontade das crianças em regressar à instituição” (E8).

As dificuldades sentidas em situação de copresença sublinham as que derivam do cumprimento das recomendações/medidas oficiais (5R), umas associadas ao uso de máscara (3R) e outras às regras de distanciamento (DGS) (2R), seguidas de questões relacionadas com os processos de aprendizagem das crianças (3R), seja porque “Denotei que algumas das aprendizagens estagnaram” (E6), seja porque se fez sentir “A pressão para aprender” pela direção das escolas e das famílias.

 

Medidas/recomendações oficiais e processos de recontextualização das práticas pedagógicas: encerramentos e regressos ao JI

 

Tendo por referência as principais recomendações/medidas oficiais para o regresso às atividades presenciais (cf. Quadro 1), as educadoras viram-se na contingência de terem de recontextualizar os processos pedagógicos até então habituais. Nesse sentido, é generalizada a referência à promoção de atividades no exterior e de movimento (4R), reconhecendo a necessidade das crianças estarem ao ar livre depois de confinadas, quase como se de uma espécie de compensação se tratasse:

 

privilegiei, foram as atividades ao ar livre como era recomendado pela DGS. (…) Além do contacto com os amigos, dos afetos, eles precisavam disso. (…) eles precisavam era de ar livre, precisavam de outros desafios. Tudo o que implicasse movimento. (E13)

 

Outro dos processos pedagógicos postos em ação centrou-se na elaboração de estragégias que visavam recriar condições espaciais, temporais e materiais para assegurar que as crianças brincassem dentro do cumprimento das regras da DGS/ME (3R):

eu tirei tudo mas arranjei sacos de plástico para cada criança e coloquei dentro brinquedos variados e as crianças podiam usar, mas só o que era delas. Tinham um desinfetante para cada. Outros jogos era quando as crianças pediam, usavam mas depois tínhamos de desinfetar... só podíamos ter 2 crianças por cada mesa. Mas eu vou-lhe dizer: eles são uns heróis porque eles conseguiram fazer o que estava decidido e não sair do lugar. (E12)

 

As limitações inerentes a tais estratégias, a par das dificuldades em gerir as mobilidades infantis, que no limite obrigavam a sujeitá-las a uma disciplinação do corpo (FOUCAULT, 2009 [1975]), levou a que algumas educadoras levantassem objeções à recomendação de evitamento de contato físico entre crianças:

 

da minha parte garanti que continuassem a ter o direito de brincar livremente, de se movimentarem nos espaços, de partilharem materiais. (E9)

 

de vez em quando, eu deixava-os andar juntos porque eles precisavam relacionar-se entre eles. (E12).

 

Quando questionadas sobre as medidas/recomendações da DGS e do ME durante o confinamento, a maioria das educadoras (10R) assume uma posição positiva face às mesmas, considerando “que foram objetivas, contextualizadas e eficazes” (E5). O seu descontentamento (7R) reporta-se, por ordem decrescente, i) ao desconhecimento do ME relativamente à EPE, patente em medidas de educação a distância restritivas que, num primeiro momento, apenas se circunscreveram ao 1.º Ciclo de Ensino Básico [anos iniciais do ensino fundamental], e na proibição dos contactos entre crianças; ii) à desconsideração das condições económicas e socioculturais das famílias e desigualdades de acesso e domínio das tecnologias.

A insatisfação das educadoras aumenta quando questionadas sobre medidas/recomendações da DGS e ME para as atividades presenciais: no geral consideram que foram “Excessivas e difíceis de implementar.” (E4), designadamente, a impossibilidade dos pais entrarem no JI, o apelo ao distanciamento entre crianças, o uso de máscara, a constante desinfecção de materiais, brinquedos e calçado sem recursos humanos suficientes.

 

Que direitos das crianças? Uma Educação de Infância assente na provisão

 

As educadoras são unânimes no reconhecimento de que os direitos das crianças ficaram colocados, em grande medida, sob alçada da família, visto que se tratava de assegurar, antes de mais, o direito à saúde. Esta preocupação com a salvaguarda das crianças, quando ainda estão dependentes dos adultos, implicou a adoção de medidas relativas a estes (proteção ao trabalho, medidas financeiras compensatórias – cf. Quadro 1) e reforçou processos de educação familiar.

Neste contexto, a complementaridade e o lugar do direito à educação a partir da EI assumiu uma posição periférica, desde logo pelas dificuldades em transpor para a esfera privada e para as condições socioculturais e económicas dos domícilios a diversidade de propostas pedagógicas de atividades, espaços, tempos e materiais do quotidiano dos JI, bem como das mediações pedagógicas discursivas necessárias para a sua concretização e a sua respetiva monitorização e avaliação.

Os direitos provisão para as crianças, incluindo os de educação, assumiram a dianteira face aos direitos de educação das crianças. Por outro lado, foi no direito à educação proporcionado pelo JI que facetas da proteção social mais se evidenciaram, como foi o caso da alimentação (3R) “pelas escolas de acolhimento” (E6) e do acesso às tecnologias e outros materiais pedagógicos:

 

O acesso a todas as crianças, se se conseguiu assegurar o direito à igualdade de oportunidades? Isso ficou a dever-se às educadoras, ao trabalho das educadoras... o elo com as crianças que não tinham as tecnologias implicou trabalhar em rede. Havia materiais que eram enviados para a escola para serem imprimidos e que eram distribuídos por essas crianças. Não tendo o computador, essas crianças não tinham o acesso a mim e aos materiais como as outras... e foi essa forma de resolver. (E13)

 

Denotou-se uma maior desigualdade no acesso às aprendizagens. (E6)

 

O brincar foi referido ora como tendo sido garantido (2R) ora como tendo sido violado (4R):

verificou-se na maioria das situações, sendo positivo a maior proximidade das famílias às crianças e um maior conhecimento das suas caraterísticas, partilhado depois com a educadora. (E3)

 

da minha parte garanti que tivessem o direito de brincar livremente, de se movimentarem nos espaços, de partilharem materiais. (E9)

 

a falha foi de brincarem uns com os outros. Acho que ficaram muito solitários, fechados em casa, sozinhos, muitos sem irmãos, filhos únicos. Acho que foi essa parte…eles passavam muitas horas a ver televisão. (E12).

 

Estes posicionamentos, acrescidos do silêncio das restantes educadoras escutadas reitera o lugar marginal que o brincar tem vindo a ocupar nas práticas educativas (TOMÁS; FERREIRA, 2019). O mesmo sucedeu com os direitos de participação (5R):

 

O direito à participação e ao poder exprimir a sua opinião, por vezes não foi possível de concretizar, devido aos constrangimentos familiares e à gestão de um grande grupo de crianças, o que não permitia responder a todas as necessidades. (E3)

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Catherine Will afirmou que “a pandemia de coronavírus veio demonstrar, no momento oportuno, o compromisso da sociologia em compreender a marginalização em todas as suas formas e as conexões existentes entre práticas e ações governamentais e a experiência do vírus na Europa e no resto do mundo” (2020, p. 967). A infância surge, neste contexto, como um dos grupos geracionais mais afectado pelo quadro de crise gerado pela COVID-19 (MALETTA, FERREIRA; TOMÁS, 2020; UNICEF, 2021): se a invisibilidade social se acentou pelo seu desaparecimento do espaço público e pela sua clausura em casa devido ao encerramento das instituições educativas, ganharam visibilidade as consequências sociais da pandemia nas suas vidas (desemprego e precariedade dos pais; negligência, sobretudo alimentar; pobreza infantil, perturbações de saúde mental; violência doméstica; etc.) o que convocou a necessidade de reafirmar a garantia dos seus direitos.

Neste sentido, não é demais relembrar que a Convenção dos Direitos da Criança (ONU, 1989) consagra direitos de proteção, provisão e participação (LANSDOWN, 1994; TOMÁS, 2011; SARMENTO; TOMÁS, 2021) e que, apesar de ser um documento incompleto, constitui um referencial sociojurídico e uma base de trabalho útil e necessária para escrutinar as relações entre leis e práticas sociais, norma universal e diversidade cultural, vontade política e iniciativa de concretização. De igual modo, sabendo-se que os direitos de participação das crianças continuam a ser os que mais dificuldades têm em serem reconhecidos e promovidos, particularmente na EI, foram os direitos de provisão e proteção aqueles que, durante dois anos de pandemia, mais foram sujeitos a medidas políticas. Assim sendo, tanto na análise das recomendações oficiais relativas à saúde e educação, como nas narrativas das educadoras sobressai a preocupação comum com a garantia da sua provisão às crianças. O locus de concretização das medidas de provisão (cf. Quadro 1) convergiu para a família.

Por conseguinte, perante os encerramentos dos JI as educadoras procuraram não perder de vista o contato com as crianças e prosseguir com os processos de aprendizagem, naquele momento mediados pelas famílias e pelas tecnologias, sempre que possível. Neste esforço de recontextualização pedagógica (BERNSTEIN, 1996, 2000), subsistiram dificuldades das famílias em dar continuidade ao trabalho pedagógico no domicílio, situação que tendeu a agravar-se quanto mais se alongaram os períodos de confinamento. Porém, este trabalho de contacto pelas educadoras foi crucial na sinalização da desproteção e da falta de provisão.

Dadas as disrupções geradas pelos confinamentos na vida de crianças, familías e educadoras, os regressos ao JI tenderam a ser narrados com ênfase nas dimensões do bem-estar derivado do reencontro das crianças com os seus pares e das oportunidades de brincarem, mas sem descurar a preocupação com as aprendizagens. Se a adesão das famílias e crianças em regressarem ao JI foi facilitadora da retoma das rotinas, já o cumprimento das medidas/recomendações oficiais colocaram entraves a este processo por serem vistas como restritivas e exageradas pelas educadoras. É, neste contexto, que são narradas situações em que as educadoras exercem a sua autonomia relativa flexibilizando aquelas normas em nome dos direitos das crianças e do seu bem-estar subjetivo (FERREIRA; SARMENTO, 2008). 

A recontextualização pedagógica que algumas educadoras fizeram das recomendações oficiais, mostrando-as críticas, resvalaram, no entanto, para posicionamentos que, na defesa dos interesses das crianças, reiteraram argumentos sustentados na individualização do bem-estar e numa conceção do direito à educação a partir de dentro, isto é, de uma prática pedagógica assente no binómio clássico do desenvolvimento e da aprendizagem. Com efeito, a perplexidade de algumas educadoras com o facto de as crianças rapidamente se apropriarem das recomendações oficiais, aquando dos regressos ao JI, nomeadamente as questões da higiene e a sua familiarização com o uso das máscaras pelos/as adultos/as, não deixa de ser significativa dos modos limitados como elas parecem entender as competências das crianças – aquelas ações das crianças atestavam a sua atenção e compreensão do mundo em que estavam a viver, e o seu papel ativo nos processos de mudança social (ESSER et al., 2017). Mais do que mera conformidade às regras, cumpri-las por ser a única forma de poderem continuar a estar com os seus pares e em contexto, expressava um dos valores das culturas de pares (CORSARO, 1985) e uma manifestação da sua agência nas relações de geracionalização (ALANEN, 2009).

As limitações que, na sua globalidade, as educadoras expressaram acerca do entendimento das competências sociais das crianças segue a par de um conhecimento superficial acerca dos seus direitos. Tais constatações parecem dificultar uma visão da ação educativa em contexto de EI holística, integral e pluralista – para além das aprendizagens – e conectada com as realidades sociais em que se insere, e que a intersectam, como acontece com os efeitos da estrutura social que se refletem nas práticas pedagógicas, na condição infantil e nas ações das crianças. Uma visão em que o respeito pelos direitos de proteção, provisão e participação das crianças na EI seja levado a sério e vivenciado todos os dias e não como uma data comemorativa e como se de um prémio(s) se tratasse(m).

 

Referências

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Notas

[1] E significa Entrevista, seguida do número da educadora entrevistada.

 

1 Em 2020, o Decreto-Lei n.º 10 - A/2020, de 13 de março aprova um conjunto de medidas excecionais e temporárias que encerram as instituições de educação até ao dia 1 de Junho 2020. Segue-se aprovação pelo Governo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de abril, de uma estratégia gradual de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID-19. O Decreto -Lei n.º 12-A/2020, de 6 de abril, procede à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 10-E/2020, de 24 de março, e pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à pandemia da doença COVID-19.

2 Consultar https://www.dgs.pt/

3 Ver https://www.dgeste.mec.pt/index.php/destaque_1/coronavirus-informacao-0052020-da-direcao-geral-de-saude/