Benzer-me no marafo: fundamentos da Educação, Pedagogias e Culturas em terreiros do interior gaúcho

I bless in marafo: Fundamentals of Education, Pedagogies and Cultures in terraces in the interior of the state of Rio Grande do Sul

Bendíce me en el marafo: fundamentos de Educación, Pedagogías y Culturas en terrazas del interior de Rio Grande do Sul

 

Rodrigo Lemos Soares

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

rodrigosoaresfurg@gmail.com

 

Denise Marcos Bussoletti

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

denisebussoletti@gmail.com

 

Recebido em 20 de abril de 2022

Aprovado em 25 de julho de 2022

Publicado em 01 de setembro de 2023

 

RESUMO

Benzer-se no marafo implica em estar de acordo com as dinâmicas religiosas, além disso, que estamos cientes das sequências ritualistas que envolverão nossos corpos e produzirão subjetividades. O texto que segue é fruto de entrevistas semiestruturadas com sete dirigentes de terreiros do interior do Rio Grande do Sul. O objetivo é descrever as compreensões dos colaboradores, com relação aos conceitos de Educação, Pedagogias e Culturas, enquanto elementos implicados na tradição oral, entendida como prática educadora indispensável para problematização das dinâmicas educativas do sagrado. O texto está organizado em três subitens: Assentando saberes (os fundamentos); Pedagogias: ferramentas disciplinares para educar-ensinar (tecnologia da Educação); e Culturas: contextos que oportunizam diferentes leituras da Educação (indissociabilidade dos três conceitos). Esses conceitos (Educação, Pedagogias e Culturas) apontam, respectivamente: o princípio mais amplo do que sabemos, iremos ensinar e estratégias de aprendizagem recorridas. O segundo orientado pela práxis dialógica do saber ser e cuidar de si. E o terceiro, instituído pela gama de saberes que fundamentarão cada escolha, atitude, preparação e execução das práticas educativas. É na interação desses três que compreenderemos os processos de pedagogização que nos forjam e que sempre envolverão relações de poder e saber, que não se conectam apenas pelos meandros ideológicos, visto que os saberes estão subordinados às teias do poder, campos teóricos conceituais e estratégias didático-pedagógicas. O saber será sempre fruto de um complexo cultural, que poderá vir a ser pedagogizado por diferentes vieses, constituído de linhas de força que disputarão qual deverá entrar na ordem discursiva e qual não.

Palavras-chave: Educação; Terreiros; Pedagogias culturais.

 

ABSTRACT

Blessing oneself in the marafo implies agreeing with religious dynamics, moreover, that we are aware of the ritualistic sequences that Will involve our bodies and produce subjectivities. The text that follows is the result of semi-structured interviews with seven leaders of terraces in the interior of Rio Grande do Sul. The objective is to describe the collaborators' understanding of the concepts of Education, Pedagogies and Cultures, as elements involved in the oral tradition, understood as na essential educational practice for questioning the educational dynamics of the sacred. The text is organized into three sub-items: Establishing knowledge (the fundamentals); Pedagogies: disciplinary tools for educating-teaching (Education technology); and Cultures: contexts that provide opportunities for different readings of Education (inseparability of the three concepts). These concepts (Education, Pedagogies and Cultures) point out, respectively: the broader principle of what we know, we Will teach and learning strategies used. The second guided by the dialogical práxis of knowing how to be and take care of oneself. And, the third, instituted by the range of knowledge tha twill base each choice, attitude, preparation and execution of educational practices. It is in the interaction of these three that we Will understand the pedagogization processes that forge us and that Will always involve relations of Power and knowledge, which are not connected only by ideological intricacies, since knowledge is subordinated to the webs of power, conceptual theoretical fields and strategies didactic-pedagogical. Knowledge will always be the result of a cultural complex, which may be pedagogized by different biases, consisting of lines of force that will dispute which should enter the discursive order and which not.

Keywords: Education; Terraces; Cultural pedagogies.

 

RESUMEN

Bendecir se en el marafo implica estar de acuerdo com lãs dinámicas religiosas, además, que seamos conscientes de lãs secuencias rituales que envolverán nuestros cuerpos y producirán subjetividades. El texto que sigue es el resultado de entrevistas semiestructuradas com siete líderes de terrazas del interior de Rio Grande do Sul. El objetivo es describir la comprensión de los colaboradores sobre los conceptos de Educación, Pedagogías y Culturas, como elementos involucrados em la tradición oral, entendida como práctica educativa esencial para cuestionar la dinámica educativa de lo sagrado. El texto está organizado entres subtemas: Establecer el conocimiento (los fundamentos); Pedagogías: herramientas disciplinares para educar-enseñar (Tecnología de la educación); y Culturas: contextos que brindan oportunidades para diferentes lecturas de la Educación (inseparabilidad de los tres conceptos). Estos conceptos (Educación, Pedagogías y Culturas) señalan, respectivamente: el principio más amplio de lo que sabemos, enseñaremos y las estrategias de aprendizaje utilizadas. La segunda guiada por la praxis dialógica del saber ser y cuidarse. Y, la tercera, instituida por el abanico de saberes que fundamentarán cada elección, actitud, elaboración y ejecución de las prácticas educativas. Es en la interacción de estos tres que comprenderemos los procesos de pedagogización que nos forjan y que involucrarán siempre relaciones de poder y saber, que no están conectadas sólo por entresijos ideológicos, ya que el saber está subordinado a las tramas de poder, conceptual teórico campos y estrategias didáctico-pedagógicas. El conocimiento será siempre el resultado de un complejo cultural, que puede ser pedagogizado por diferentes sesgos, constituido por líneas de fuerza que se disputarán quién debe entrar em el orden discursivo y quién no.

Palabras clave: Educación; Terrazas; Pedagogías culturales.

 

Assentando saberes: incursões iniciais

É essa vontade de saber que pode nos mover no sentido de ir adiante [...] E esse ir adiante é no sentido de examinarmos as mudanças que agora estão ocorrendo, [...] nas relações entre a Educação e essas novas e estranhas configurações que está assumindo o mundo contemporâneo [...]

(VEIGA-NETO, 1999, p. 02).

 

Ao partir pela explanação de Veiga-Neto (1999), posiciono um local de fala, uma postura ético-estética, a qual se debruça sobre a esteira que afirma que a Educação é inerente a existência humana, pois, enquanto sujeitos sociáveis, vivemos processos educacionais dinâmicos. Contudo, penso ser necessária a compreensão de que precisamos analisar os conjuntos que forjam a produção de conhecimentos, bem como a circulação dos saberes para diferentes contextos. Somos cruzados no marafo


[1] como uma forma de manifestar nosso contato com o sagrado nos terreiros[2]. É quando pinga, ou posto em excesso que o cheiro da aguardente desperta e/ ou aguça os sentidos para iniciarmos uma ritualística, isso porque, ela junto das ervas da defumação[3] aproxima as entidades que nos acompanharão ao longo da sessão.

Benzer-se no marafo implica em estar de acordo com as dinâmicas que seguirão. Significa que estamos cientes das sequências ritualistas que envolverão nossos corpos e produzirão subjetividades. O texto que segue é fruto de entrevistas semiestruturadas com sete dirigentes de terreiros do interior do Rio Grande do Sul. A proposta de análise tem o intuito de descrever as compreensões e relações estabelecidas por esses colaboradores com os conceitos de Educação, pedagogias e culturas, enquanto elementos das suas casas religiosas. Expresso que o artigo é fruto de dados produzidos para uma tese em Educação.

A Educação está presente nos terreiros e exige que posturas sejam assumidas de modo responsável e ordenado, na intenção de iniciar e desenvolver os(as) seus/ suas adeptos(as). Para além das arquiteturas, dos detalhes e modos de organização espacial é no terreiro que se experimentam as primeiras aproximações com pertencimento a um(a) orixá e entidade, é nele que aprendemos a circular saberes como: o manuseio das ervas, a seleção, cocção ou entrega crua dos alimentos, a produção de contas, os pontos e rezas, as cores de cada orixá e entidades, os cheiros, as danças, as artes e artesanatos, sobre a vida e a morte, dentre outros ensinamentos.

Ao observar o ilê, como espaço de ocorrência da Educação, minhas atenções voltam-se para os casos limítrofes entre os processos pedagógicos que possibilitam redes de aprendizagem e os saberes vinculados a crueza técnica do saber-fazer. As estratégias de ensino, bem como a verificação das habilidades adquiridas são conduzidas e observadas ao modo individual de cada dirigente, isso porque, “[...] cada lugar e pessoa, dentro da sua casa, tem uma noção do que seja ensinar [...] passa seus conhecimentos baseada nas formas como foi ensinada [...] uma forma de seguir fazendo do mesmo modo, significa que na tua casa tem um jeito, o jeito dela, o que não faz dela melhor ou pior, só com a cara dela [...]” (Maria Padilha das Almas[4]).

A Educação, dentro da lógica social, que escapa a visão centrada no espaço escolar, é entendida “[...] como um conjunto de ações pelas quais uns conduzem os outros, logo compreenderemos que ela ocupa lugar de honra nos estudos sobre governamento[5] [...]” (VEIGA-NETO, 2015, p. 53). Para tanto, esse conjunto não implica em algo inerte e neutro. A condução propiciada pelos elementos dessa formação interage, a todo instante, com diferentes concepções de moral e ética – coletivas e individuais, que são balizadores dos modos como cada sujeito acessará o conjunto educativo ou não. Isso implica dizer que“[...] tu ensinar alguém é muito difícil, hoje em dia, mas nós, nos terreiros não temos escolhas, então a gente se ocupa muito da hierarquia e da disciplina [...]” (Maria Padilha das Almas).

Dito isso, o sistema de governamento é dependente das normas e leis que regularão grupos específicos e documentos oficiais que determinam modos de convivência interpessoais. “[...] a lei aqui em casa é a da disciplina e do rigor, uma das primeiras coisas que eles aprendem é que precisam respeitar o sagrado, aqui o exigido é que quando se entra no ilê, todo problema da rua fica lá, pelo menos, até eles chegarem aos pés do Pai Ogum (orixá regente da casa) e cumprimentarem ele, saberem de que modo podem auxiliar em alguma rotina [...]” (Tiriri da Encruzilhada).

As normas e os processos de normalização agem de modo a cooptar práticas e sujeitos em prol de uma estrutura, a qual forjará uma noção de cultura localizada. Essa compreensão cultural, fruto das normatizações será regulamentada por práticas disciplinares, que esquadrinham corpos por vias educacionais orientadas pela ética em que “[...] ocupar-se consigo para poder governar, e ocupar-se consigo na medida em que não se foi suficiente e convenientemente governado [...]” (FOUCAULT, 2006a, p. 57) precisam ser propostas na minúcia, no detalhe e no escape. Essas atitudes visam garantir que os processos educacionais sejam reiterados e assim mantenham a rotina, o fundamento, o assentamento que sustenta as propostas religiosas de um determinado terreiro. Implica o saber que Cultura e Educação sãoindissociáveis.

“[...] costumo pensar e dizer que a Educação está com valores distorcidos, que as pessoas estão fazendo o que querem, não acho isso ruim, quando é fora do terreiro e não machuca ninguém [...] no terreiro é fundamento, tradição, a coisa como ela é. Fora dele, o problema é que as famílias, parecem que não sabem nem o que é educar. Tem gente que chega aqui gritando, como se estivesse numa festa [...] Isso não é ruim também, mas o problema é que não se bate palma, nem se assobia na porta, nem dentro de um terreiro, porque isso assusta e espanta o Bará (orixá dos caminhos, que faz a segurança na porta casa), isso desrespeita a cultura do ilê [...]” (Maré).

Houve uma época em que se convencionou que ser educado era ser europeizado. A sociedade yorubá era vista como Ará Oko (pessoas ignorantes). Cultura e Educação eram vistas como primitivas e pagãs. Os princípios da educação são baseados na concepção Omoluwàbí, ou seja, um bom caráter em todos os sentidos da vida, e que inclui o respeito aos mais velhos, lealdade aos pais e à tradição local, honestidade, assistências aos necessitados e um desejo irresistível pelo trabalho. É um processo de vida longa, onde a sociedade inteira é a “escola” (BENISTE, 2006, p. 35).

 

Educação e Cultura são conceitos que precisam ser entendidos para além da superfície. É no profundo dessas discussões que conseguiremos desnaturalizar e/ ou descristalizar saberes que determinam funções e identidades sociais dos terreiros. O viés da Educação que se orienta nessa esteira de pensamento preconiza uma noção de prática democrática, o que conduz os sujeitos a compreensão das suas funções e contextos, a partir de situações concretas, de suas rotinas religiosas. Requer a ciência de que a organização cultural – o terreiro, em que estamos inseridos(as) está pautada em direitos e deveres e, para além disso, leva-nos a perceber uma estética da existência (FOUCAULT, 2006a) o que requer cuidados de si como forma de projeção de uma ascese contemporânea, a qual exige um grande empreendimento laboral. Essa orientação preconiza uma ética de liberdade, que dialoga com as outras posturas presentes na casa e passa a ser interdependente dos modos como nos relacionamos com o meio. Esse olhar para Educação requer um entendimento que ela,[…] ultrapassa qualquer concepção estritamente utilitária [...] é preciso inscrevê-la para além de uma simples adaptação [...]”(DELORS, 1998, pp. 84-85).

“[...] tu não nasces religioso, tu nasces protegido pelos orixás, pelos guias espirituais. Tu viras religioso com o tempo, com as obrigações, com tudo que tu te deixas aprender dentro do terreiro. É difícil e custa muito. Depende da tua disposição em querer fazer, porque é assim que se aprende, tu vais virar religioso no tempo do sagrado, com as marcas que ele deixará no teu corpo. Tu precisas querer aprender, só assim tu vais ser preparado para ser um filho de santo que sabe respeitar os fundamentos, a mãe de santo, os irmãos, só assim tu vais respeitar o terreiro como teu lugar, tua casa [...]” (Maria Quitéria do Cemitério).

A Educação, enquanto modo de governo, precisa ser entendida como uma anatomopolítica dos e sobre os diferentes conjuntos corporais. Desse modo, precisamos compreendê-la como um fenômeno complexo, que pouco fica assentado em definições conceituais, isso porque, a Educação será definida pelo que as enunciações discursivas dizem sobre ela. Estará sempre dependente da função regulamentadora de tecnologias políticas que investirão no ordenamento dos sujeitos, por via das disciplinas, controle e normalização que orientam as dinâmicas ritualísticas (SOARES, 2018). É pela Educação que nos tornamos sujeitos, por meio dela teremos condições cognitivas de perceber os modos como somos esquadrinhados(as) pelas transformações histórico-sociais a que somos submetidos(as).

“[...] É preciso para ensinar, dentro do terreiro, que consiga ver o máximo possível do que as pessoas estão fazendo. Tens que ser uma pessoa que se não vê tudo, precisas tentar, pelo menos. Tu estás ensinando uma coisa aqui com o olho lá, para se algo dar errado tu já saber a quem chamar atenção e corrigir. Tens que regular todos, já que tudo tu não vais conseguir, ensinar exige muito trabalho e precisas dialogar com todos para não ser autoritário [...]” (Pantera Negra). É preciso entender as formas de regulação que nos forjam e instituem posições de sujeito que ocuparemos na sociedade, a partir dos modos como realizamos os cuidados com as nossas subjetividades. Essa compreensão parte do saber que “[...] as relações de poder/ governamentalidade/ governo de si e dos outros/ relação de si para consigo compõem uma trama e que é em torno destas noções que se pode, a meu ver, articular a questão da política e a questão da ética [...]” (FOUCAULT, 2006a, p. 307).

Passei a conviver com ciência de que somos educados(as) pela vontade, assim como, temos vontade pela Educação e, foi esse jogo filosófico, o ponto de vista que me conduziu ao entendimento de tipos específicos de saberes. A vontade, implica em desejo de saber, o saber implica poder, que juntos forjam o saber-poder (FOUCAULT, 2013). A locução está alicerçada na lógica de que a Educação possibilita acessos a diferentes espaços, bem como, manipularmos diferentes estratégias de controle ou disseminação de conhecimentos. No entanto, é preciso uma constante prática de desconfiança, voltado a derrubar verdades absolutas e metanarrativas que generalizam as práticas sociais e sujeitam as pessoas a algum tipo de determinismo ou posicionamento inflexível. Isso porque, precisamos desconfiar das bases que solidificam promessas e projetam acontecimentos que nada ou pouco auxiliarão no desenvolvimento dos sujeitos (SOARES, 2018).

“[...] A casa é a tua cara. Tens que garantir que a coisa ande. Tudo que ensinares precisa se manter para todos, tens que garantir um jeito da casa, com explicação e objetivo que todos entendam [...]” (Rainha das 7 Encruzilhadas). De modo mais específico o importante “[...] é entendermos como chegamos a ser o que somos e, a partir daí, contestarmos aquilo que somos [...]” (HENNING; HENNING, 2012, p. 23). Esses exercícios, são possíveis se compreendermos a existência dos Artefatos Culturais e de que eles atuam diretamente sobre os espaços educativos e culturas que nos circulam. É preconizada uma atitude dialética, porque se trata de um movimento cíclico, dinâmico e não neutro. Toda contestação é possível se o sujeito compreende as redes capilares de poder em que está imerso, se se percebe e identifica com as sujeições que lhes são impostas a todo instante.

Educar-se é uma vontade e possibilidade de se posicionar socialmente. Para isso, reitero que não estou focado na Educação advinda do espaço escolar, que é restritivo e, por vezes, excludente. Antes disso, as discussões aqui abordadas são do campo não-formal, da ética de si com o trato pedagógico “[...] a preocupação ética e a luta política pelo respeito dos direitos, entre a reflexão crítica contra as técnicas abusivas de governo e a investigação ética [é o] que permite instituir a liberdade individual [...]” (FOUCAULT, 2004a, p. 285). A defesa aqui é de que o sujeito compreenda que esteja onde estiver, a Educação atuará, pela presença física, móvel, imóvel, mediada por outros sujeitos ou automediada/ autorregulada.

“[...] as pessoas já chegam nos terreiros educadas, dentro das lógicas familiares delas. Até os bebês já trazem suas vidas com os relacionamentos dos pais e familiares ou de quem cuida deles. Cada um já vem moldado pelas suas vidas, o que acontece é que precisas aprender que aqui é comunidade, irmandade e muito aprendizado. As pessoas sabem o que é aberto, mas temos nossos segredos dos fundamentos e assentamentos que só sendo filho aprenderás [...]” (Padilhinha). Para tanto, julgo ponderável um diálogo, a partir de alguns pilares educacionais: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser (DELORS, 1998).

O aprender a conhecer, requer, uma experiência que conduza ao domínio das ferramentas do saber, de modo a entendê-las sob dois vieses: como meio e como fim. O primeiro, implicado nas condições cognitivas para realizarmos as leituras do terreiro, para assim, agenciarmos nossas escolhas e caminhos. O segundo, sugere que a finalidade do aprender a conhecer carrega em si uma noção de prazer – o de aprender algo diferente, o viver de outra forma acontecimentos já experienciados, é a atribuição de significados às dinâmicas religiosas. Essas perspectivas, precisam ser vividas por todos os sujeitos do ilê, em prol da aprendizagem. A ampliação do repertório de saberes permitirá outras concepções do sagrado, além disso, “[...] favorece o despertar da curiosidade intelectual, estimula o sentido crítico e permite compreender o real, mediante a aquisição da autonomia na capacidade de discernir [...]” (DELORS, 1998, p. 91). Representa a compreensão, em si, das práticas, dos arranjos e artefatos culturais que instituem os sujeitos e seus comportamentos na prática religiosa.

“[...] a Educação no terreiro só se efetiva pela vivência. Cada filho precisa atribuir um valor ao que aprendeu e estabelecer conexões com a mitologia do seu orixá, seus guias e o que a casa preconiza. Não existe religioso que só saber dizer o que é tal coisa, porque, a Educação do terreiro é composta por duas coisas: a oralidade e a feitura [...] pela oralidade mantemos os fundamentos da casa, aprendemos que é sempre preciso escutar o outro. [...] pela feitura tem que botar a mão na massa, saber fazer, no mínimo, a comida dos teus orixás, teus guias e, por consequência, a dos guias que regem a casa [...]” (Maria Padilha das Almas).

O aprender a fazer está intimamente conectado ao anterior, contudo, ele representa mais o caráter técnico manipulativo. O fazer, diz respeito a execução dos gestos motores, a nível de vida cotidiana. Uma crítica a ele, está na sua iminência prática, por vezes, potencialmente alienadora. É preciso atentar aos modos como será conduzida, isso porque, como precisamos entender, todo ensino requer processos reflexivos e isso depende da intervenção educativa do(a) dirigente, da capacidade reflexiva proposta, independente da área de atuação. Para além disso, manipular conhecimentos em prol de uma atividade estritamente pedagógica implica em “[...] saber como será possível evitar nessas práticas nas quais o poder não pode deixar de ser exercido e não é ruim em si mesmo [...]” (FOUCAULT, 2004a, p. 284). “[...] começa a Educação dentro da cozinha, o corte, a depenação, a limpeza, a ritualística da obrigação, todo mundo tem que saber fazer algo. [...] também tens que saber limpar a casa, nos fundamentos da casa [...]” (Maioral).

O aprender a conviver, tem a premissa de que somos pessoas distintas e, por essa razão, é por meio dassubjetividades e das diferenças que necessitamos ampliar nosso repertório, sem recorrer a estratégias de julgamento, com bases conceituais definidas pelo fazer ético-estético das nossas vidas, não somos o centro. As origens de contexto e base cultural diferentes podem exacerbar desigualdades, as quais precisam ser observadas e lidas, a partir de uma lógica estrutural que exige níveis de convivência, isso porque, “[...] quando se trabalha em conjunto sobre projetos motivadores e fora do habitual, as diferenças e até os conflitos interindividuais tendem a reduzir-se, chegando a desaparecer em alguns casos [...]” (DELORS, 1998, p. 98).

“[...] as pessoas que chegam aqui, vindo de outra terreira, precisam se adaptar a coletividade. O que elas trazem de conhecimento não é rejeitado, mas é pesado para ver até que ponto isso gera aproximação ou conflitos. [...] é preciso ensinar alguns modos de convivência, estabelecer os padrões de respeito, as leis da casa, para que a gente tenha mais harmonia do que brigas, é muita gente junto que veio de lugares diferentes, com histórias de vida e jeito de viver diferente, todos precisam saber que para o bem de todos tem que ter respeito [...]” (Maria Padilha do Cruzeiro).

O aprender a ser, apresenta um caráter moral e ético, que é dependente do conjunto de regras, leis e, demais estratégias normalizadoras. A Educação, sob esse pilar, necessita contribuir para uma formação integral do sujeito, é um conjunto holístico que integrará “[...] espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade social, espiritualidade [...]” (DELORS, 1998, p. 99). Aprender a ser, expõe um viés educativo que possibilita atitudes, como: “[...] a liberdade de pensamento, discernimento, sentimentos e imaginação [...]”(DELORS, 1998, p. 100)de que necessitamos para nos desenvolvermos e, tanto quanto possível, sermos donos do próprio destino. Nenhum desses itens pode ser aceito sem questionamentos e enfrentamentos, visto que, vivemos uma contemporaneidade que exige posicionamentos e defesas de interesses individuais e coletivos.

“[...] a religião é dinâmica e nós já perdemos muito dos nossos fundamentos, por isso, eu priorizo que as pessoas sejam quem são, para que eu possa conhecê-las mesmo, saber o que elas querem da casa, tentar pegar o caráter delas. Aos poucos apresento quais atitudes podem e quais não podem, mas sem apagar aquilo que elas já trazem do arquétipo dos orixás e guias [...]” (Maria Padilha do Cruzeiro).

Ainda que as nossas escolhas possuam relações diretas com os sujeitos e contextos de vida, nos [e]/ com os quais nos relacionamos, isso não implica algum tipo de determinismo social. É esperado que os sujeitos da Educação percebam suas potencialidades para romper com ciclos viciosos e paralisantes. Assim, os quatro pilares educacionais requerem diálogos com os modos como mobilizamos nossos conhecimentos, um aprender a aprender que dialoga diretamente com os saberes dos terreiros ensinados na trajetória temporal, de feitura de cada casa religiosa.

O sujeito “[...] reconhece ter o direito de interrogar a verdade nos seus efeitos de poder e o poder nos seus discursos de verdade; a arte da desobediência voluntária [...] crítica seria, por isso, o dessubjugamento [...]” (FOUCAULT, 1999, p. 03). Para tanto, o aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser, preconizam, em certa medida ou totalidade, de três dimensões educacionais: a conceitual, a procedimental e a atitudinal(ZABALA, 1998).

A dimensão conceitual – “O que se deve saber?” (ZABALA, 1998, p.31). O que se busca nessa perspectiva é o saber sobre: conceitos, princípios e fatos (COLL, 1997). Para ocorrer essa dimensão a premissa requerida estabelece diferentes formas de acesso aos saberes construídos culturalmente. Atentar aos processos históricos, as lutas sociais, as condições de possibilidade que colocaram um saber na ordem discursiva (FOUCAULT, 2013) em detrimento de outro. Nessa dimensão, os sujeitos terão condições de realizar leituras reflexivas sobre os itens que constituem os saberes dos terreiros, sobre os conteúdos e, acima de tudo, acerca da prática religiosa. Por isso,“[...] nunca chegarás e meter à mão e sair fazendo. Primeiro tu vai saber o que os filhos do teu orixá podem e não podem fazer, quais são as atividades que eles são prioridade, pelos fundamentos e quais eles precisam deixar o filho de outro orixá fazer, a mesma coisas quando se fala dos guias espirituais [...]” (Maioral).

A dimensão procedimental – “O que se deve saber fazer?” (ZABALA, 1998, p.31). Ela preconiza o saber fazer, dominar os procedimentos técnicos, desenvolver as habilidades corporais e destrezas particulares. A dimensão exige experimentação, vivências, a fim de promover possibilidades de compreensão e assimilação dos conhecimentos que envolvem saberes específicos. Ela salienta os caracteres que constituem o que o sujeito precisa saber fazer. A Educação, ao longo da sua história, se pautou muito por essa perspectiva, contudo, sem esquecer de lidar com fundamentos e técnicas subsidiados por valores subjacentes (atitudes) (COLL, 1997). “[...] cada oferenda, bandeja, axé tem muitas etapas de montagem, algumas delas requerem que diferentes filhos façam aquela parte específica, então embora tu precises saber o todo, nem sempre podes fazer tudo, tu dependes do porque estamos fazendo aquele axé e daquele jeito [...]” (Tranca Ruas das Almas).

A dimensão atitudinal – “Como se deve ser?”(ZABALA, 1998, p.31). Está implicada no saber ser. Nessa perspectiva preconiza as regras/ normas/ legislações, atitudes e valores como basilares para compreensão e desenvolvimento da dimensão (COLL, 1997). A ação, o agir pautados em atitudes morais e éticas, de cunho geral, significam modos de convivência cruciais para uma Educação integral, emancipatória, crítica e empática. Os sujeitos necessitam compreender que no âmbito das relações sociais as diferenças requerem comportamentos distintos entre sujeitos e grupos, dessa premissa advém a máxima de identidade plural e dinâmica, visto que, em cada ambiente que acessaremos, as subjetividades forjarão comportamentos específicos do lugar. “[...] o ilê já tem as determinações que vieram lá da minha goa[6], da nossa raiz [...] O que me resta é fazer tudo acontecer, colocar na prática os fundamentos e para isso, os filhos precisam saber como nossa goa pensa que um religioso deve ser, mas as pessoas não aprendem isso por instinto, o pai de santo precisa ensinar e isso é feito no dia-a-dia, no jeito que a gente ensina, nas coisas que cada um está pronto para aprender e, também, tem permissão de fazer [...]” (Rei das 7 Encruzilhadas).

As relações entre os pilares e as dimensões da Educação, apresentados, podem significar uma aprendizagem significativa. No entanto, o que pode garantir a abrangência é a atitude dos dirigentes, em relação com as vontades e buscas dos fieis pelo espaço do sagrado, nas relações sociais. Articular as dimensões e pautar as atitudes implica em reconhecer que os sujeitos são educados(as) em diferentes momentos e lugares. Evidenciar a necessidade do ensino [atitude procedimental], de modo a estabelecer relações éticas [dimensão atitudinal], possibilita que os(as) praticantes compreendam o seu direito de aprender (a conhecer, a fazer, a conviver e a ser) [abordagem conceitual], nas diferentes estruturas, por meio das pedagogias, que como veremos são “ferramentas” (o que não significa tornar menor todo campo de conhecimento advindo dessa área) de Educação e, também, de docilização. “[...] a educação no terreiro parte do fundamento de que é preciso buscar na ancestralidade aquilo que é necessário para manutenção da religião [...] os antepassados nos ensinaram a buscar sempre na história deles os modos como a gente precisa se relacionar com os irmãos de fé [...]” (Maria Padilha das Almas).

 

Pedagogias: ferramentas disciplinares para educar-ensinar

“[...] cabe à educação apenas dizer, àqueles que estão entrando no mundo, o que é mesmo este mundo e como ele funciona. É evidente o tom totalitário de qualquer pedagogia monocultural [...]” (VEIGA-NETO, 2003, p. 13)

A pedagogia, a partir do exposto por Veiga-Neto (2003), precisa questionar uma noção de cultura no singular. Isso significa dizer que são as atitudes pedagógicas que interpelam nossos comportamentos e forjam os sujeitos. Larrosa (1994), por sua vez, expõe que, “[...] o sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito, já não é analisada apenas do ponto de vista da objetivação, mas, também, da subjetivação [...]” (LARROSA, 1994, p. 54). Isso significa dizer e apontar quais são os modos de como as práticas pedagógicas interpelam nossas relações, sejam elas individuais, ou coletivas, porque elas são fatos culturais.

“[...] Tu só vai ensinar algo se tiveres as ferramentas necessárias, por mais que, às vezes, a gente extrapole a calma, perca a paciência, mesmo assim, ensinar os saberes precisa de passos, como o respeito ao tempo das pessoas, a necessidade de que elas aprendam naquele momento [...] não dá para jogar as coisas nas mãos das pessoas e achar que elas vão sair fazendo porque já viram alguém fazer, até tem quem faça, mas é além disso, tem que saber o ponto que precisa ser cantado, a reza que precisa ser entoada senão nada funciona e tu não educou [...]” (Pantera Negra).

São as relações que estabelecemos com as pedagogias, estas pautadas sobre as narrativas educacionais que possibilitarão algumas das nossas experiências. Isso porque, “[...] o sentido do que somos depende das histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos [...]” (LARROSA, 1994, p.48). A pedagogia precisa ser entendida enquanto terreno de debates, de experiências, de culturas, que se utiliza de saberes, inclusive os da cultura popular, para compor os campos de saber para compreendermos os resultados das análises das práticas experienciadas. A partir dessa compreensão, ainda que tenhamos a mediação de outros sujeitos, são as nossas atitudes que possibilitam vivências com os saberes produzidos culturalmente, que originam nossas experiências e, nessa esteira de pensamento, “[...] uma coisa ensinada só faz sentido, se fizer significado para o filho [...]” (Maré).

Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna [...] somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria (LARROSA, 2002, p. 27).

 

A pedagogia então, requer um saber de experimentação, de vivência, de algo que promova alguma transformação no sujeito, tendo em vista que ela é “[...] espaço narrativo [...]” (GIROUX, 1995, p. 92). Dessa forma, por mais que seja produzida para o coletivo, as práticas pedagógicas reverberam de modos individualizados. Toda ação dessa natureza precisará ser maturada pela estética (filosófica) e menção ética de cada pessoa. É essa premissa que garantirá uma aprendizagem mediada pelas concepções subjetivadas pelos sujeitos, orientadas que são pelas culturas que, por sua vez, produzirão não apenas pessoas diferentes, mas as posicionarão em desigualdades, isso porque,“[...] nos tornamos sujeitos pelos modos de investigação, pelas práticas divisórias e pelos modos de transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos [...]” (VEIGA-NETO, 2003, p. 136).

“[...] é preciso mediar tudo depois que algo foi ensinado [...] o filho precisa compreender o porquê e quais os passos que ele deu quando foi fazer o indicado a ele [...] não podes seguir ensinando se tu não sabe o que ele realmente sabe e como ele sabe [...] se ele não faz relações com as outras coisas do terreiro tu ensinou no vazio, mas isso não é que tu perdeu algo, só precisa ver onde foi que ele se perdeu ou se esqueceu de algo [...] sempre tem que ter um jeito para saber se ele está pensando sobre as coisas que ele aprendeu, se ele consegue fazer sozinho, sem a tua presença, se ele poderá se defender na tua falta [...]” (Maria Padilha das Almas).

A pedagogia, é uma forma de política cultural, uma ciência da Educação. Para tanto, o que a orienta não é a formação docente, mas antes disso, os fenômenos educativos, de modo a abarcar todas as redes capilares de complexidade e abrangência. Enquanto política cultural, ela corresponde aos saberes específicos de cada contexto, fundamentados que são pelas investigações sobre os modos como os sujeitos se comportam, aprendem e transmitem seus conhecimentos, ao longo do tempo. Enquanto ciência da Educação, a Pedagogia significa “[...] um campo de conhecimentos sobre a problemática educativa na sua totalidade e historicidade e, ao mesmo tempo, uma diretriz orientadora [...]” (LIBÂNEO, 2001, p. 06). Ademais, implica dizer que ela “[...] investiga a realidade educacional em transformação, para explicitar objetivos e processos de intervenção metodológica e organizativa referentes à assimilação de saberes e modos de ação” (LIBÂNEO, 2001, p. 10).

Por essa visão, a Pedagogia assume caráter formativo e integrativo dentre as diferentes áreas de saber. Essa função, não implica uma afirmação de superioridade dela em relação aos demais campos de conhecimento. A intencionalidade da pedagogia não é apenas formativa (embora também tenha), antes disso, uma das funções dela é averiguar e apresentar respostas aos problemas de cunho educativo e formativo. É esse pensamento que vai, ao longo dos tempos, definir as identidades que acarretarão uma compreensão acerca da existência de problemas específicos da área. Essa lógica, a conduz na direção de entendimento globalizado das funções do ensino-aprendizagem que contribui com as circunstâncias educativas. Dessa razão emerge a existência de autonomia dessa área, visto que, ela apresenta linguagem, técnicas, métodos e metodologias de ordem auto direcionada e organizada pela sistematização dos seus saberes. Essa visão está centrada nos saberes desenvolvidos nos terreiros, pois, a Pedagogia “[...] se reporta a uma teoria que se estrutura a partir e em função da prática educativa [...]” (SAVIANI, 2011, p. 102).

“[...] a Quimbanda possui uma estrutura ritualística cheia de coisas para serem ensinadas e, por isso, tendo o exu e a pomba-gira como comunicadores entre os mundos, nós dirigentes precisamos estabelecer as comunicações necessárias para que por mais que exista a hierarquia ela não seja vista como uma coisa que determina quem pode mais e quem pode menos, é ao contrário viu, a gente tem é que fazer o meio de campo seja do jeito que os filhos aprendem, como eles se relacionam e do jeito que eles se dirigem até nós e respeitam as regras do terreiro [...]” (Padilhinha).

Entender as ações pedagógicas, ou questionar o conceito de pedagogia requer uma ampliação de olhar, de modo a compreender a existência dela em todo e qualquer ambiente que circulamos. As práticas enunciativas e discursivas que possibilitam diferentes entendimentos sobre a área são interdependentes dos processos de globalização, de aculturação[7] (CUCHE, 2012) e dos modos como nos relacionamos com os saberes disponíveis em cada momento histórico e terreiro adentrado.

Por esses cenário a Pedagogia sim, é uma ciência que se pauta por autonomias sustentadas pela existência de linguagens/ conteúdos/ saberes própria(os), os quais faz uso conscientemente, a partir de dispositivos de métodos, que lhe são inerentes e balizadores dos modos de recorrer seja como fim ou meio. Essa visualização é o que fundamenta o campo de conhecimentos da Quimbanda, o qual oportuniza que a Educação se desenvolva, a partir de experimentações orientadas pelos contextos culturais em que os processos pedagógicos ocorrem, nesse caso, especificamente em espaços não escolarizados, como os terreiros. Além disso, “[...] aqui não é um colégio, mas eu ensino como se tivesse o mesmo esquema da escola, só falta o boletim de papel, porque tudo que preciso falar na hora de ensinar, eu falo com rigidez, para que eles saibam dividir hora de brincar de aprender [...]” (Maioral).

 

Culturas: contextos que oportunizam diferentes leituras da Educação

“[...] a cultura que une é

também a que separa e que legitima as distinções compelindo todas as culturas a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante[...]”

(BOURDIEU, 1989, p.11)

 

É necessário mantermos a dinâmica discursivo-reflexiva, acerca dos entendimentos de Cultura para assim, realizarmos diferentes leituras da Educação. Os contextos culturais forjam posições de sujeitos e é essa condição que possibilita a função multi-leitura do arcabouço teórico-conceitual das pedagogias advindas das religiões. Não podemos esquecer a existência das distinções que definirão os distanciamentos culturais observados até hoje nos campos educacionais (BOURDIEU, 1989). O que temos são batalhas constantes tanto pelo significado, quanto pelas narrativas e assim, elas se produzem, moldam, fixam, e ao mesmo tempo, “[...] são contestadas, questionadas e disputadas [...]” (SILVA, 1995, p. 205), forjam subjetividades e corporalidades, que são produzidas nas práticas religiosas.

Nesse cenário, as culturas, representam uma metáfora de lentes de óculos, com as quais lemos umas coisas e outras não. Imaginar que o aumento (ressaltar) de conhecimentos, comportamentos e desejos é uma questão de visão implica dizer que os sujeitos, em suas relações optam por credenciar uns saberes em detrimento de outros. Para tanto, as leituras relativas aos campos educacionais são subjetivas e isso significa dizer que as vontades dos sujeitos são moldáveis, variáveis, fluidas. “[...] o que te identifica como um bom religioso é o modo como tu articula tudo que tu sabe com o modo como repassa tudo [...] as pessoas te reconhecem por essas atitudes e apontam se és um bom ou mal pai de santo [...]” (Tranca Ruas das Almas).

E, na base desses pensamentos, ao conduzir esse cenário ao terreiro, reflito acerca das nossas atitudes em respeito às inclinações culturais dos(as) praticantes e frequentadores(as) dos ilês. Eis uma das dificuldades de organizar o trabalho pedagógico: contemplar diferentes anseios, variar o comportamento de modo a conceber o eu e o que as pessoas buscam nas casas religiosas, práticas de acesso orientadas por diferentes razões e modos de compreender o sagrado. É no compartilhamento dos anseios que a cultura se forja e produz laços interacionais e, muitas vezes, geracionais que abrirão cenários para mostrarmos nossas intenções educativas. “[...] tu não sustenta uma casa sem organização e, essa organização, significa tu saber o porquê das coisas, tem uma ciência que está posta quando se fala em fazer e manter um terreiro aberto [...] o primeiro a saber responder é sempre o pai ou mãe de santo, se ele ou ela fraquejar na postura ou resposta, provavelmente a casa é vista como sem fundamento, o que não significa que ela fechará, mas quer dizer que ela está crua, sem firmamento para fazer os oris/ eledás (cabeça) de algum filho, seja pelo orixá ou guias espirituais [...] como é o caso da Umbanda e da Quimbanda, não é só querer abrir é ter conhecimento das mitologias, histórias e rituais, é saber fazer cada axé necessário e, também, é saber ensinar [...] (Maré).

Devemos planejar o que pode ser planejado, de acordo com a decisão comum. Mas no que diz respeito à cultura, a atitude certa será a que nos lembre de que uma cultura é, por essência, insuscetível de planejamento. Devemos assegurar os meios de vida e os meios para a comunidade constituir-se. Mas o que será a vivência, com base em tais meios, não podemos conhecer e nem traduzir. A ideia de cultura apoia-se numa metáfora: o velar pelo crescimento natural. E é sem dúvida no crescimento, como fato e metáfora, que se deve colocar a ênfase final. Em nenhuma outra área é maior a necessidade de reinterpretação (WILLIAMS, 1969, p. 343).

 

Digo então que “[...] nem a cultura é um ente abstrato a nos governar, nem somos meros receptáculos a sucumbir às diferentes ações que sobre nós operam [...]” (GOELLNER, 2007, p. 39). Não são as escolhas dos(as) outros(as) que definirão os(as) religiosos(as) que seremos, tampouco, podemos rejeitar as demonstrações de desejos das pessoas para nos firmarmos enquanto fieis. É preciso ampliar o campo de leitura dos grupos que temos para contemplarmos em um número expressivo as expectativas de cada sujeito. Para isso, entender o que é Pedagogia e Educação significa fortalecer o planejamento da nossa prática, a fim de mantermos o fluxo de aprendizagens produzidas nos terreiros, isso porque, “[...] qualquer civilização hoje imaginável depende de ampla variedade de capacidades altamente especializadas, que acarretarão, em partes definidas da cultura, inevitável fragmentação da experiência [...]” (WILLIAMS, 1969, p. 341).

É por esse conjunto de argumentos que defendo uma noção de Cultura que "[...] é inerente à reflexão das ciências. Ela é necessária, para pensar a unidade da humanidade na diversidade além dos termos biológicos. Ela parece fornecer a resposta mais satisfatória à questão da diferença entre os povos [...]" (CUCHE, 2012, p. 09). Isso significa dizer que os sujeitos possuem capacidade adaptativa a diferentes acontecimentos, a leitura cultural, tal como os fazeres religiosos não são naturais e fixos e, por essa razão, precisamos desenvolver uma capacidade de alterar nossos planejamentos sem sofrimento. Ler o ensino, a Educação e as pedagogias, dentro dos preceitos de um terreiro, com essa orientação implicam em perceber que as exigências religiosas exercem função educacional sobre os nossos planejamentos e compreensões acerca da nossa função no ilê, o que estabelece a dinamicidade cultural, onde [...] a cultura é entendida como espaço de contestação e conflito e, também, de consenso e reprodução social [...]” (SOARES, 2016, p. 76).

Então, se cultura é algo contestado, nossas práticas também o são. Dessas atitudes contestatórias extraímos os jogos de saber-poder que engendrarão as leituras que definirão as tipologias de fieis e os modos como desenvolveremos os rituais. Assim, desloco o conceito de cultura para compreensão de “[...] uma cadeia ampla e abrangente de instituições e de práticas que incluem desde atividades rotineiras, próprias ao dia a dia dos sujeitos, até as que se exercem nas instituições [...]” (WORTMANN; VEIGA–NETO, 2001, p.108), que lidam com o sagrado.

E, desse modo, ao organizar os sistemas de capitais humanos e de acesso ao sagrado, os sistemas culturais apontam que precisamos pensar que nossos conhecimentos sobre religião, educação e pedagogias, enquanto eixos balizadores dos nossos processos de ensino-aprendizagem, requerem postura, presença e entrega. Mais que isso, são os caracteres ético-estéticos que conduzem nossas atitudes religiosas e os modos como desenvolvemos nossas interações com nossos(as) irmãos(ãs), consulentes rotineiros(as), clientes[8] e, demais sujeitos com quem nos relacionaremos no entorno do terreiro. Com a premissa entendida de que a Educação é forjada pelas diferentes culturas, tal e qual, o inverso dessa afirmação é também verdadeiro e incide diretamente sobre as nossas vontades e aspirações de contato com o sagrado, penso ser necessário a manutenção do princípio autoquestionador acerca do que fazemos.

Contudo, essa atitude não implica em tomarmos nenhum tipo de partido conceitual que aponte como ponderativo “[...] tomar a cultura como uma instância epistemologicamente superior às demais instâncias sociais, mas sim tomá-la atravessando tudo aquilo que é do social [...]” (VEIGA-NETO, 2003, p.05). É para antes disso, reconhecer as influências forjadas nos jogos relacionais, nas relações de poder e nos modos como nos posicionamos socialmente é “[...] saber ensinar, saber aprender e ser implicado no entendimento de que ao adentrar o universo religioso pela fé requer a ciência do que se está fazendo [...]” (Maré).

 

Amarrações...

Deter-me nos itens Educação, Pedagogia e Cultura está implicadona tradição oral, entendida como prática educadora indispensável para problematização das dinâmicas educativas religiosas. Consegui observar e extrair posicionamentos que colocaram em interação processos educacionais, pedagogias e culturas. O primeiro pautado no princípio mais amplo do que sabemos, iremos ensinar estratégias de aprendizagem recorridas. O segundo orientado pela práxis dialógica do saber ser e cuidar de si. E, o terceiro, instituído pela gama de saberes que fundamentarão cada escolha, atitude, preparação e execução das nossas práticas educativas.Contudo, destaco que a Educação é um conjunto de campos, nos quais travamos batalhas pela entrada na ordem discursiva, pois “[...] todo sistema de Educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que trazem consigo [...]” (FOUCAULT, 2013, p. 44). É na interação desses três, que compreenderemos os processos de pedagogização que nos forjam.

Os processos de pedagogização sempre envolverão relações de poder e saber, que não se conectam apenas pelos meandros ideológicos, tampouco posso dizer que os saberes estão subordinados as teias do poder como se elas fossem limitadoras dos espaços, campos teóricos conceituais e estratégias didático-pedagógicas.O saber será sempre fruto de um complexo cultural, que poderá vir a ser pedagogizado por diferentes vieses. Os conteúdos para desenvolvermos nosso trabalho estarão permeados por relações de saber-poder, estritamente as de força que disputarão qual deverá entrar na ordem discursiva e qual não.

 

Referências

 

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SOARES, Rodrigo Lemos. “Quero ver balanciar!” o ensino de danças de exus e pombagiras em terreiros de Quimbanda do Rio Grande/RS / Rodrigo Lemos Soares. – 2018. 200p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Programa de Pós-Graduação em História, Rio Grande/RS, 2018.

 

SOARES, Rodrigo Lemos. Entre prazeres, desprazeres e ambivalências: discussões sobre violências em relações afetivo-sexuais entre homens/ Rodrigo Lemos Soares. – 2016. 220f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde, Rio Grande/ RS, 2016.

 

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WORTMANN, Maria Lúcia Castagna; VEIGA-NETO, Alfredo. Estudos culturais da Ciência & Educação. Belo Horizonte, Autêntica. 2001.

 

Notas



[1] Marafo é o modo como é chamada, em alguns terreiros, é a aguardente, a cachaça(SOARES; DILMANN, 2020).

[2] Terreiros são as casas onde ocorrem, em sua maioria, as ritualísticas das vertentes religiosas advindas de África. São conhecidos, também, como: Ilê, casa de santo, centro espírita, dentre outras possibilidades. Contudo, destaco que para os campos de estudo das religiosidades ele possuem significados distintos(SOARES; DILMANN, 2020).

[3] Defumação é o ato de passar um artefato com brasa e ervas, no intuito de limpar o corpo, afastando dele maus espíritos ou energias(SOARES; DILMANN, 2020).

[4] As narrativas dos(as) colaboradores(as) estão colocadas no corpo do texto, grifadas em itálico procedidas do codinome do(a) narrador(a).

[5] Foucault (2015) apresenta e descreve na obra “Microfísica do poder” os itens os quais ele considerou as quatro bases fundantes das tecnologias de governamentalidade: 1. As tecnologias de produção (que nos permitem produzir, transformar e manipular coisas); 2. As tecnologias de sistemas de signos (as que nos permitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou significados); 3. tecnologias de poder (responsáveis por determinar as condutas dos indivíduos, fazendo uma objetivação do sujeito); e, 4. As tecnologias do eu (a forma que os indivíduos têm em efetuar, por conta própria ou com ajuda de outros, certo número de operações com seu corpo e alma, obtendo assim uma transformação de si mesmos, seria a forma como cada indivíduo atua sobre si mesmo).

[6] Goa significa família. Alguns lugres chamam de bacia ou raiz religiosa(SOARES; DILMANN, 2020).

[7] Esse é um termo utilizado para designar os fenômenos que resultam da existência de contatos diretos e prolongados entre duas culturas diferentes e que se caracterizam pela modificação ou pela transformação de um ou dos dois tipos culturais em presença (CUCHÊ, 2012).

[8] São os sujeitos que procuram os terreiros para fazer algum banho de axé, oferenda, dentre outras possibilidades, porém, não possuem vínculo com o local.

 

 

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