O contexto de implementação do Ensino Técnico Integrado em Meio Ambiente no Centro Paula Souza

 

The implementation context of Integrated Technical Education in the Environment at Paula Souza Center

 

El contexto de la implementación de la Enseñanza Técnica Integrada en Medio Ambiente en el Centro Paula Souza

 

Marco Aurélio Pereira

Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, São Paulo, SP, Brasil

marcoaurelio.p@hotmail.com

 

Rosa Maria Feiteiro Cavalari

Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, SP, Brasil

r.cavalari@unesp.br

 

Recebido em 20 de abril de 2022

Aprovado em 08 de setembro de 2022

Publicado em 06 de setembro de 2023

 

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo compreender os contextos sociais, econômicos e políticos nos quais ocorreu a implementação do curso Técnico em Meio Ambiente Integrado ao Ensino Médio (Etim) do Centro Paula Souza, no Estado de São Paulo. Tal objetivo se justifica visto que estamos diante de uma crise sistêmica na qual os processos de exploração, extração e degradação da natureza têm culminado na desestabilização das relações ecológicas e na ameaça à existência da vida na Terra. Assim, a sociedade, diante da urgência da aquisição de outros valores e comportamentos socioambientais em substituição ao utilitarismo, tem visto os campos da Educação e da Educação Ambiental – EA - como potenciais articuladores para o enfrentamento dessa crise. Implementar a formação técnica é fundamental; no entanto, parece não ser o suficiente sem que se problematize as complexas inter-relações socioambientais com vistas à formação integral e omnilateral. A investigação foi realizada a partir da perspectiva qualitativa, adotando como procedimentos de coleta de dados a análise documental e entrevista semiestruturada. Como ferramenta analítica utilizamos a Análise Textual Discursiva – ATD. A partir dos resultados, compreendemos que a constituição do currículo do Etim em Meio Ambiente ocorreu sob a influência das políticas neoliberais em contextos sociopolítico e econômico de contradições entre a formação para as competências e a autonomia. Observamos um curso constituído em um mosaico de aspectos sociopolíticos e estruturais condicionantes do processo formativo com foco na questão ambiental.

Palavras-chave: Crise ambiental; Formação integral; Políticas neoliberais.

 

ABSTRACT

This article aims at understanding the social, economic, and political environments in which occured the implementation in the Technical course in Environment Integrated to High School (Etim) at Paula Souza Center, in São Paulo, downtown. This goal is justified since we are facing a systemic crisis in which the processes of exploitation, extraction, and degradation of nature have culminated in the destabilization of ecological relationships, and also the threat to the existence of life on Earth.Thus, society has seen the areas of Education and Environmental Education - EE - as potential articulators to deal with this crisis in the face of the urgency of acquiring other socio-environmental values and behaviors in order to replace utilitarianism. Implementing technical education is critical. However, it does not seem to be enough without problematizing the complex, socio-environmental interrelationships focusing on integral, and omnilateral education. The investigation was based on the qualitative perspective, following a document analysis, and semi-structured interview as data collection procedures. Discursive Textual Analysis – DTA was used as an analytical tool. Based on the results, we understand that the design of the curriculum of the Technical course in Environment Integrated to High School (Etim) occurred under the influence of neoliberal policies in socio-political, and economic contexts of contradictions between education for competences and autonomy. We have observed a course made up of a mosaic of political, and structural aspects focused on the training process on the environmental issue.

Keywords: Environmental crisis; Integral education; Neoliberal policies.

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo comprender los contextos sociales, económicos y políticos en los cuales ocurrió la implementación del curso Técnico en Medio Ambiente, Integrado a la Enseñanza Secundaria (Etim) del Centro Paula Souza, en el Estado de São Paulo. Tal objetivo se justifica visto que estamos delante de una crisis sistémica en la cual los procesos de explotación, extracción y degradación de la naturaleza han culminado en la desestabilización de las relaciones ecológicas y en la amenaza a la existencia de la vida en la Tierra.Así, la sociedad, delante de la urgencia de la adquisición de otros valores y comportamientos socioambientales en reemplazo al utilitarismo, ha visto los campos de la Educación y la Educación Ambiental – EA - como potenciales articuladores para el enfrentamiento de esta crisis. Implementar la formación técnica es fundamental; Sin embargo, parece no ser lo suficiente sin que se problematice las complejas interrelaciones socio ambientales con vistas a la formación integral y omnilateral. La investigación fue realizada a partir de la perspectiva cualitativa, adoptando como procedimientos de recolecta de datos el análisis documental y entrevista semiestructurada. Como herramienta analítica utilizamos el Análisis Textual Discursiva – ATD. A partir de los resultados, comprendemos que la constitución del currículo del Etim en Medio Ambiente ocurrió bajo la influencia de las políticas neoliberales en contextos sociopolítico y económico de contradicciones entre la formación para las competencias y la autonomía. Observamos un curso constituído en un mosaico de aspectos sociopolíticos y estructurales condicionantes del proceso formativo con enfoque en la cuestión ambiental.

Palabras-clave: Crisis ambiental; Formación integral; Políticas neoliberales.

 

Introdução

 

          Dentre os desafios presentes na sociedade contemporânea, a crise mundial tem sido uma das grandes preocupações humanas. Capra (1982),Neiman (1989), Dupas (2008), Boff (2012), Viola (2016) e Marques Filho (2018) têm apontado há muito tempo, a relação entre a ocupação da Terra e os problemas decorrentes da degradação ambiental. No entanto, foi apenas no século XX que as discussões acerca da exploração e precarização da vida e do ambiente ganharam notoriedade.

De acordo com Viola (2016, p. 2), na década de 1960, na Europa e nos Estados Unidos, foi o marco para o surgimento do movimento ecológico, iniciando discussões acerca da degradação ambiental provocada pelo crescimento econômico e encarada “como um problema global que supera amplamente diversas questões pontuais [...] das décadas de 1950 e 1960”.

No Brasil em meio a conflitos e resistência dos movimentos políticos e estudantis em oposição à violenta ditadura (FURLAN, 2013), a década de 1970, é considerada como o marco para o início dos movimentos ecológicos(GONÇALVES, 1990; CARVALHO, 2012; VIOLA, 2016).

Segundo Viola (2016), no Brasil, além da ditadura militar, o crescimento econômico acelerado na década de 1970, com a proposta desenvolvimentista do General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974)(GONÇALVES, 1990; FURLAN, 2013),o Brasil entrou na era da industrialização, herdando da cultura escravocrata o desrespeito ao trabalhador e à natureza, face a uma sociedade movida por indústrias e máquinas.

Com a industrialização, cresceu a demanda por recursos naturais para fins utilitaristas, a expansão latifundiária, o desmatamento e a ocupação de novas áreas em ciclos de extração e uso desordenado do ambiente (GONÇALVES, 1990; VIOLA, 2016).Culminando na perda da biodiversidade, destruição de habitats e espécies,  diminuição da qualidade de vida, doenças, mortes e prejuízos reconhecidos como acidentes ambientais.

Segundo Carvalho (1989) e Dias (2004), tais acidentes abrangeram desde o aumento dos índices de poluentes atmosféricos deixando mortos e sequelados pelo mundo, até o desrespeito às comunidades tradicionais, as quais tiveram perdas materiais e imateriais.

Além desse complexo contexto de degradação, em particular no Brasil e de certo modo no mundo, a sociedade tem experienciado um modelo político de desmonte e ataque às pautas ambientais a partir da ascensão de Jair Messias Bolsonaro no Governo Federal (2018 – 2022).

Segundo o Instituto Socioambiental (2021), desde 2018, tem sido sistemático o desmonte das políticas e órgãos responsáveis pela gestão e fiscalização das áreas florestais, sobretudo na Amazônia Legal. Houve um aumento de 79% no desmatamento das reservas Amazônicas, quando comparados os anos de 2016 a 2018, com os anos de 2019 a 2021, do atual governo.

Cabe destacar o posicionamento do então Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, em 22 de abril de 2021, durante uma reunião interministerial, na qual declarou ser oportuno o momento da pandemia da Covid-19, para a implementação de medidas anti-ambientais. Segundo ele, ideal para passar a boiada da destruição ambiental e expandir o desmatamento na Amazônia.

Se não bastasse essa política de desmonte ambiental, nesse governo, a sociedade civil tem lutado contra a liberação de agrotóxicos banidos da União Europeia, e aprovados para a agricultura brasileira. Em fevereiro de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 6.299, de 2002, apelidado de PL do veneno, o qual altera a Lei 7.802, de 1989, flexibilizando o uso de agrotóxicos no Brasil. A partir dessa medida, a autorização e liberação de agrotóxicos se tornam menos rigorosas, seguidas da proposta de exclusão da palavra agrotóxico em substituição ao termo pesticidas, ou defensivos agrícolas, um eufemismo em referência ao termo veneno.

Assim, somos estimulados a refletir sobre causas, efeitos da degradação ambiental, e em âmbito mundial buscar entender perspectivas a respeito do que fazer diante dessa problemática. Desta maneira, o campo da Educação tornou-se um segmento social potencialmente idealizado como estratégico para articular ações que viabilizem o enfrentamento da crise ambiental. Cabe ressaltar, que de certa forma, apropriar-se do aparelho educacional, como mediador do debate ambiental, seja mais uma das muitas atribuições historicamente instituídas à educação.Conforme denominou Saviani (2012), o campo da educação tem se prestado aos ajustes conciliatórios de conflitos e dilemas sociais, a educação compensatória.

Carvalho (1989) ao discutir potenciais influências da Educação nas transformações do cenário de degradação ambiental e social, considera que se espera da educação muito mais do que ela realmente pode realizar.

Assim, a  temática ambiental passou a ser incorporada como mais uma questão a ser abarcada pelo campo da Educação e consequentemente, a Educação Ambiental (EA), passou a assumir o papel estratégico na promoção do debate ambiental na educação formal e não-formal, tendo em vista a consolidação da EA nos encontros promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU).

No Brasil, na Rio-92, a EA, foi o marco para a formulação do Tratado de Educação Ambiental para sociedades sustentáveis (CARVALHO, 2012). Esse documento, consequentemente, serviu como referência para a construção de políticas públicas em EA e a formulação da Política Nacional de Educação Ambiental – PNEA, Lei 9.795 de 27/04/1999 (BRASIL, 1999).

A partir da PNEA, todos os níveis e modalidades de ensino no Brasil devem implementar um seus currículos, o enfrentamento dos problemas decorrentes da crise ambiental. Como forma de subsidiar os profissionais da educação, o Ministério da Educação apresentou ao Conselho Nacional de Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental (DCNEA).

Desta maneira, à área de formação técnica em Meio Ambiente, Recursos Naturais, Saúde e Segurança, propõe-se um processo formativo crítico atrelado às complexas relações socioambientais. Conforme Brasil (2012, p. 9), que se preze “[...] temas de relevância socioambiental”, incorporando aspectos políticos, econômicos e culturais, entre outros, os quais permeiam as relações construídas entre homem e natureza.

A Educação Profissional Técnica de Nível Médio,é uma modalidade de curso em que havendo o cumprimento dos componentes da Base Comum, torna-se possível ofertar a formação técnica,podendo ser em concomitância, em uma área profissional de interesse. Em nosso caso, trata-se do Ensino Técnico em Meio Ambiente Integrado ao Ensino Médio - Etim em Meio Ambiente, ofertado pelo Centro Paula Souza - CPS.

Cumpre destacar que de acordo com Manfredi (2002), Cunha (2005) e D’Angelo (2007), historicamente o ensino profissional tem sido constituído de maneira dicotômica, dissociando formação geral da formação técnica para o trabalho. Uma formação técnica específica, distanciando-se de um processo educacional que propicie o desenvolvimento do pensar, do planejar, do elaborar produtos e serviços (BRASIL, 2013). Essa formação fragmentada tem sido contrária ao que se estabelece nas Diretrizes Curriculares Nacionais, nas quais se contempla uma educação integral para além da qualificação para o trabalho, uma formação humana (BRASIL, 2013). Tendo em vista tais perspectivas para a educação em nível Médio e Técnico, interessou-nos compreender o contexto de implementação do Ensino Técnico em Meio Ambiente integrado ao Ensino Médio, no Centro Paula Souza no Estado de São Paulo. Tal interesse se justifica, uma vez que autores como Manfredi (2002), Cunha (2005) e D’Angelo (2007), afirmam que a educação técnica tem se constituído a partir de propostas de ensino fragmentado e dicotomizado. E ainda, em um curso específico do campo ambiental, parece coerente uma formação que discuta a crise ambiental, e se estimule os indivíduos a pensar em um outro modelo de sociedade, tendo paradigmas ambientais, para além do utilitarista. 

Para tanto, a investigação foi realizada a partir da perspectiva qualitativa de acordo com Bogdan e Biklen (1994). Adotamos como ferramenta analítica a Análise Textual Discursiva – ATD, proposta por Moraes e Galiazzi (2016). Analisamos o Plano de Curso 167 – Etim em Meio Ambiente, bem como os dados obtidos a partir da entrevista realizada com a Coordenadora do Laboratório de Currículos do Grupo de Formulação e Análises Curriculares – Gfac – CPS. A escolha da coordenadora se deu por ter coordenado a equipe de elaboração do Plano de Curso 167; articulado segmentos sociais; e fundamentações legais relativas às propostas para este curso. Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos e ainda obtivemos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pela entrevistada.

 

O neoliberalismo na década de 1990 em face ao currículo da formação técnica do Centro Paula Souza - CPS

 

O Centro Paula Souza - CPS é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, compondo uma rede de Escolas Técnicas Estaduais do Estado de São Paulo. No ano de 2008, foi instituído o Grupo de Formulação e Análises Curriculares – Gfac, responsável pela elaboração, reformulação e atualização dos Currículos e Planos de Curso das Habilitações Profissionais Técnicas do CPS (CENTRO PAULA SOUZA, 2011).

Apesar de o Gfac ter sido estruturado em 2008, segundo a Coordenadora do Laboratório de Currículo entrevistada, as articulações para a construção dos currículos da formação técnica tiveram início desde o final da década de 1990, período marcado por profundas alterações nas políticas educacionais.

Diversos autores, Martins (2000), Manfredi (2002), Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) e D’Angelo (2007), definem a década de 1990, como o período educacional marcado por intensos conflitos, em virtude da desvinculação entre Ensino Médio e Ensino Técnico, por meio do Decreto nº 2.208/97.

Para Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), com a promulgação desse decreto houve um retrocesso na política educacional brasileira, o que significou a extinção da formação integrada, tendo como consequências uma formação fragmentada, aligeirada, visando atender às necessidades do mercado.

A promulgação do referido decreto não foi um ato político isolado e descontextualizado do cenário mundial, e sim, uma tendência global à efetivação da atual fase do capitalismo, o neoliberalismo (MARTINS, 2000).

Ao longo da década de 1980, o neoliberalismo chegou nos Estados Unidos, Alemanha, Dinamarca e América Latina (Chile), anunciando o controle da economia inflacionária, a concessão de lucros à iniciativa privada e o enfraquecimento dos sindicatos e dos trabalhadores. Na década de 1990, o capitalismo também passou a se apropriar do aparelho estatal como forma de garantir a hegemonia do capital privado (MARTINS, 2000). Segundo o autor, o Estado se tornou submisso às agências financeiras internacionais, como por exemplo, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento – Bird, sobretudo no Brasil, período no qual ocorreu a propositura do Decreto nº 2.208/97.

Anteriormente à promulgação desse decreto, ainda que o país estivesse distante de condições ideais de igualdade e justiça social, havia expectativas de transformação, a Constituinte de 1988 anunciava terreno profícuo para os avanços educacionais (MARTINS, 2000). Segundo Saviani (1977, p. 57 apud Martins 2000), “[...] diferentemente da tradição brasileira em que as reformas educacionais [...] resultam do Poder Executivo, neste caso [a Constituinte de 1988] [...] foi um projeto gestado no interior da comunidade educacional”. No entanto, com a derrota do campo progressista, e a implementação do Decreto, a educação e os educadores estiveram sensíveis aos impactos imediatos das alterações legais na educação brasileira, conforme relatou a Coordenadora do Laboratório de Currículos, em entrevista:

 

No final da década de 1990, houve a separação do Ensino Técnico do Ensino Médio, foi uma revolução, não fazia muito sentido para a gente isso. Acho que sempre entendemos que o propedêutico tinha que estar junto com o profissionalizante, embora não caminhasse muito junto, a verdade é essa. Não era uma coisa integrada, mas pelo menos havia uma conversa, entre o Ensino Médio e o Ensino Técnico, aí de repente separou [...] (COORDENADORA DO GRUPO DE TRABALHO DO LABORATÓRIO DE CURRÍCULO).

 

Apesar do descompasso entre ensino propedêutico e profissionalizante a entrevistada compreende que para os educadores não fazia muito sentido a alteração da proposta educacional. Mas, parece ter havido intencionalidades objetivamente concretas a partir da promulgação desse Decreto, possivelmente o atendimento a um mercado que demandava um novo perfil formativo para a mão de obra assalariada, diante das políticas neoliberais.

No excerto que segue, a Coordenadora do Laboratório de Currículos apresenta considerações acerca das articulações e adequações observadas como necessárias para a formulação dos currículos do CPS a partir da década de 1990:

 

[...] Eu acho que a elaboração de currículo começou a acontecer mesmo no CPS, que a gente teve essa iniciativa por parte da Cetec [Unidade de Ensino Médio e Técnico], de formar o Laboratório de Currículo, isso no fim da década de 1990. A premissa de que o currículo da Educação Profissional é dinâmico, pois o próprio mundo do trabalho é dinâmico, e que não poderia ser um currículo eterno. Então, por iniciativa do professor Almério, ele começou a formar as equipes para discutir currículo, mas isso só aconteceu no CPS, mesmo. Jamais na Secretaria da Educação a gente teve essa oportunidade, o currículo era imposto, já vinha pronto. A gente teve essa oportunidade, no final da década de 1990, de começar a pensar currículo como alguma coisa que poderia ser ajustável, e eu acho que isso é uma contribuição muito importante do CPS (COORDENADORA DO GRUPO DE TRABALHO DO LABORATÓRIO DE CURRÍCULO).

 

Essa tendência de adequação ao mercado, de acordo com Machado (1991), é uma das estratégias do capitalismo para garantir a consolidação e manutenção de suas necessidades produtivas. Segundo a autora a condição na qual o processo educativo se constitui na escola, passa a ser um fator fundamental para determinar os mecanismos de acomodação e adequação da força de trabalho às necessidades do mercado. Em outras palavras, um currículo ajustável, dinâmico, conforme apresentou a coordenadora, possibilitaria que a escola se configurasse tal como um acessório indispensável à produção do capital, problematizado pela autora, de modo a se centralizar ao atendimento do mercado.

Assim sendo, cabe questionar, seria papel das escolas públicas, o atendimento integral, a um tipo de formação que se molde aos interesses do mercado de trabalho? Até que ponto reproduzimos processos formativos com objetivos específicos para a formação da força de trabalho?

Na busca por respostas aos questionamentos apresentados, compreendemos a importância de se considerar a luta de classes como um fator preponderante para a definição do papel do Estado em uma sociedade capitalista. Machado (1991) discute a ideia de que o Estado, apesar de se apresentar como uma organização autônoma, neutra, propondo-se a mediar o jogo de interesses entre as classes, na realidade, a máquina estatal, deve ser considerada como mais uma engrenagem que compõe a estrutura social. Em outras palavras, a partir da ascensão de uma elite neoliberal, o Estado tem se posicionado nesse jogo, como elemento central para a implementação de um plano de governo que esteja alinhado ao neoliberalismo, em detrimento de uma maioria que se torna cada vez mais desassistida socialmente. Conforme a autora, parece que o Estado advoga em nome da concretização dos objetivos concebidos pelo poder hegemônico vigente e institui propostas por meio de normas, leis, adequações e implementações de políticas sociais e educacionais.

Portanto, sugere-se que o papel do Estado, mesmo diante da atual resistência de classes, por meio dos diferentes movimentos (negro, LGBTQIA+, feminista, indígena, ambientalista, MST, estudantil, entre outros), na busca da legitimação do direito de existência, participação política, social, educacional, cultural, entre tantas outras pautas, estamos sob a influência do poder hegemônico neoliberal, legitimado pelo Estado.

Considerando o Estado em consonância com o campo ideológico burguês, visando a manutenção do acúmulo de capital, impactos de diferentes naturezas passaram a interferir na organização do tecido social, quer fosse em virtude da redução de investimentos, da precarização da estrutura de ensino ou da formulação de currículos cada vez mais alinhados ao mercado. Tais alterações também contribuíram para condicionar a proposta de curso estabelecida pelo CPS para a formação técnica. Deste modo, foi diante de influências neoliberais, características da década de 1990, conforme temos apresentado, que o CPS, por meio do Gfac estabeleceu um Currículo e um Plano de Curso propondo contemplar a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. No quadro 1 apresentamos as definições de Currículo e de Plano de curso, de acordo com o CPS.

 

Quadro 1: Conceituação de Currículo e Plano de Curso proposta pelo CPS como forma de estabelecer as diretrizes dos processos formativos dos cursos técnicos integrados

 

Currículo - CPS

Plano de Curso - CPS

Esquema teórico-metodológico que direciona o planejamento, a sistematização [...] de perfis profissionais, atribuições, atividades, competências, habilidades, bases tecnológicas, valores e conhecimentos, [...] da Formação Profissional de Nível Médio, de acordo com as funções do mercado de trabalho e dos processos produtivos e gerenciais, bem como as demandas sociopolíticas e culturais, as relações e atores sociais da escola

Documento legal que organiza o currículo na forma de planejamento pedagógico, de acordo com as legislações e outras fundamentações socioculturais, políticas e históricas, abrangendo justificativas, objetivos, perfil profissional, organização curricular das competências, habilidades, bases tecnológicas, temas e cargas horárias teóricas e práticas, [...]

Fonte: Centro Paula Souza (2011)

 

Com base nas definições de Currículo e Plano de Curso apresentadas no Quadro 1, pudemos observar a proposta formativa da Pedagogia das Competências, bem como também se preconiza uma educação pautada em fundamentações socioculturais, políticas e históricas, o que parece tratar-se da formação integral.

D’Angelo (2007) ao problematizar a concepção de Ensino Médio Integrado ao Ensino Técnico Profissional, apresenta a necessidade de se atribuir um novo significado a essa modalidade de curso, tendo como perspectivas uma formação para além da técnica. De certo modo, parece que o propósito de formação integral discutido pela autora, poderia estar correlacionado com as fundamentações socioculturais, políticas e históricas identificadas nas diretrizes do Currículo e Plano de Curso propostos pelo CPS. No entanto, Ciavatta (2014)explicita que a partir da década de 1990, no Brasil, as Diretrizes Curriculares para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio, estiveram submetidas às determinações de mercado. De acordo com a autora:

 

[...] os anos do Governo F. H. Cardoso, lamentavelmente, com continuidades no Governo Lula da Silva e no Governo Dilma Rousseff, Leis e programas relativos à educação, se não estavam marcados pela repressão de palavra dos governos ditatoriais, tinham a imposição das determinações para serem implantadas nas escolas segundo a pedagogia das competências, segmentando o conhecimento e a educação de acordo com as necessidades do mercado (CIAVATTA, 2014, p. 199).

 

Em outras palavras, as influências das políticas neoliberais demarcaram as relações e estruturas sociais, mesmo em administrações governamentais do campo ideológico de esquerda, Lula e Dilma. Supõe-se ainda que os programas de educação estiveram atrelados às propostas formativas que segmentaram o conhecimento em favorecimento de uma educação específica, imediatista, pautada na resolução de problemas atendendo às necessidades do mercado. Tal como se caracteriza a pedagogia das competências citada pela autora, ainda que os currículos também trouxessem em suas pautas demandas sociopolíticas e culturais.

Uma vez apresentadas e problematizadas as articulações relativas à proposição do Currículo e Plano de Curso da formação técnica em face ao contexto sociopolítico da década de 1990, passaremos a tratar especificamente das propostas elaboradas para a construção da Habilitação Profissional de Técnico em Meio Ambiente Integrado ao Ensino Médio.

 

Perfil profissional e objetivos propostos para o Técnico Ambiental

 

De acordo com as diretrizes apresentadas pelo CPS, a construção do Plano de Curso 167 do Etim em Meio Ambiente, ocorreu a partir de uma sequência de encontros entre a equipe responsável pela elaboração do documento e segmentos sociais, culminando em um currículo “mais afinado com o mercado de trabalho” (CENTRO PAULA SOUZA, 2011, p. 11). A equipe contava com uma Bióloga, um Geógrafo, uma Engenheira Química e uma Engenheira Agrônoma.

OEtim em Meio Ambiente faz parte do Eixo Tecnológico de Ambiente e Saúde, em um itinerário formativo seriado em três anos.Para a primeira série não há certificação. Ao término da segunda série, será concedida a certificação de Auxiliar Técnico em Meio Ambiente. E o concluinte, será diplomado como Técnico em Meio Ambiente.

Tendo em vista a organização curricular acima apresentada, o perfil concluinte do profissional técnico da área ambiental, caracteriza-se como um importante pilar neste curso, sendo capaz de consolidar a natureza do técnico ambiental, formado pelo CPS. Conforme o CPS, o perfil concluinte estabelece que:

 

O Técnico em Meio Ambiente, é o profissional que coleta, armazena e interpreta informações, dados e documentações ambientais. Colabora na elaboração de laudos, relatórios e estudos ambientais. Auxilia na elaboração, no acompanhamento e na execução de sistemas de gestão ambiental. Atua na organização de programas de educação ambiental, de conservação e de preservação de recursos naturais, de redução, reuso e reciclagem. Identifica as intervenções ambientais, analisa suas consequências e operacionaliza a execução de ações para preservação, conservação, otimização, minimização e remediação dos seus efeitos (CENTRO PAULA SOUZA, 2011, p. 14).

 

Observa-se uma proposta formativa alicerçada na identificação, coleta, armazenamento, interpretação e execução de ações, as quais supõem-se atender demandas de ordem prática, na busca da resolução de problemas ambientais, enquanto técnico em Meio Ambiente. Tal como apresentadas, essas demandas parecem atreladas ao perfil de um profissional executor de tarefas, em detrimento de uma identidade profissional que também esteja alinhada a processos cognitivos de planejamento e elaboração de saberes.

Interpreta-se portanto, o técnico ambiental, dissociado de um amplo domínio cognitivo capaz de estabelecer a relação teoria e prática, tal como apresentada por Marx e discutida por Machado (1991). Uma vez ausente tal relação, parece que o perfil concluinte passa a se caracterizar a partir de um roteiro prescritivo capaz de instrumentalizar o técnico à implementação de determinados comandos. Supõe-se o desenvolvimento de tarefas para específica finalidade, solucionar problemas, dissociados de problematizações, reflexões e questionamentos acerca do sistema e processos produtivos.

Além desses aspectos técnicos-instrumentais, observa-se no perfil concluinte, a organização de programas de Educação Ambiental de conservação e de preservação de recursos naturais, de redução, reuso e reciclagem. Com base nos autores: Carvalho (1989), Gonçalves (1990), Dias (2004) e Carvalho(2012), observamos a importância de uma formação técnica que também contemple o desenvolvimento de programas de Educação Ambiental - EA, como uma possibilidade de construção de debates e reflexões acerca da questão ambiental, nos diferentes espaços de socialização.

Nogueira (1990), ao discutir a formação técnica, correlacionou importantes aspectos na construção de processos formativos: a relação teoria e prática, o desenvolvimento intelectual e manual, a união entre ensino e trabalho e a integração de conhecimentos para a formação dos indivíduos. Face às propostas apresentadas pela autora, parece razoável admitir a inserção desses atributos na formação do educador ambiental, de forma que esteja apto para o desenvolvimento de projetos ambientais condizentes ao enfrentamento da atual crise ambiental.

Carvalho (2012), ao problematizar abordagens em EA, discute a importância de se considerar que tipo de EA intenciona-se desenvolver. Segundo a autora, é importante que se compreenda que há abordagens além da tradicional naturalista, frequentemente adotada em projetos, a qual se caracteriza por meio da intocabilidade da natureza, com enfoque distanciado da sociedade e da cultura. Para a autora, a superação desse modelo pelo socioambiental, integrador, capaz de considerar o homem e suas multiplicidades como agente da sociedade, relacionando-o às dinâmicas ecossistêmicas, é portanto, um dos desafios a serem enfrentados.

De acordo com o Plano de Curso 167, o mercado de trabalho destinado ao técnico ambiental, constitui-se de demandas dos segmentos públicos, terceiro setor e empresas de serviços ambientais. Desta maneira, a equipe de elaboração do currículo propôs objetivos específicos para o profissional desta área, sendo:

 

Identificar as fontes e o processo de degradação natural de origem química, geológica e biológica e as grandezas envolvidas nesses processos, utilizando métodos de medição e análise. Atuar na organização de programas de educação ambiental, de conservação e preservação de recursos naturais, de redução, reuso e reciclagem. Identificar as intervenções ambientais, analisar suas consequências e operacionalizar a execução de ações para preservação, conservação, otimização, minimização e remediação dos seus efeitos. Executar o monitoramento de variáveis ambientais. Participar da gestão em unidades de conservação (CENTRO PAULA SOUZA, 2011, p. 11).

 

Tal como os objetivos estão propostos, observa-se correlação com o perfil concluinte do profissional técnico, pautado em um processo formativo direcionado para o enfrentamento e resolução de problemas ambientais e em programas de EA. Assim como no perfil concluinte, também encontramos nesses objetivos, indícios de uma proposta de debate ambiental pautada em elementos como redução, reuso e reciclagem, os quais parecem se enquadrar na macrotendência pragmática explicitada por Layrargues e Lima (2014). Essa tendência tem sido comumente adotada em projetos ambientais, influenciados pela hegemonia neoliberal, como estratégia para a resolução de problemas, a conservação e preservação de recursos naturais, por meio da redução, reuso e reciclagem de resíduos.

Em entrevista, a Coordenadora do Laboratório de Currículos, apresentou informações acerca dos objetivos e possíveis condições que possam ter contribuído para a consolidação do perfil do técnico ambiental. De acordo com a entrevistada:

 

A gente não pode por exemplo demonizar uma prática porque ela é ambientalmente prejudicial. Não podemos demonizar totalmente, porque esse técnico pode ser que vá trabalhar numa Monsanto, por exemplo, ou, vá trabalhar numa empresa de celulose que ainda está poluindo. O que esse técnico tem que saber? Chegar sabendo que há um problema e que pode propor soluções, pode cooptar pessoas. Mas, ele não pode falar que está errado, porque ele está indo lá para trabalhar, ou ele não trabalha, ou ele propõe soluções, e vê se dá certo convencer as pessoas. [...] Ele teria que ter as informações básicas, e que qualquer tipo de trabalho que ele fosse fazer, ele pudesse se envolver. E não criar uma pessoa totalmente verde, totalmente ambientalista, daqueles fanáticos, Greenpeace,etc. Porque o mercado de trabalho não é esse. Então, ele tem que saber o problema, não podemos esconder o problema, mas ele tem que saber como propor soluções. Então, a gente tem ideologias nisso (COORDENADORA DO GRUPO DE TRABALHO DO LABORATÓRIO DE CURRÍCULO).

 

Conforme temos discutido e identificado por meio dos registros apresentados no Plano de Curso 167, o depoimento da entrevistada reafirma o alinhamento do curso com o atendimento às necessidades do mercado de trabalho. Veja-se: não pode por exemplo demonizar uma prática, porque ela é ambientalmente prejudicial, ou seja, parece que ainda que o técnico identifique problemas ambientais, supõe-se que eles não sejam tratados. Talvez se possa interpretar que as exigências do processo produtivo e, por conseguinte do capital se sobreponham às necessidades socioambientais, mesmo diante de situação ambientalmente prejudicial envolvendo questões de poluição.

De acordo com Machado (1991) os processos formativos devem estar baseados na estreita relação entre conhecimento e vida, que a prática da atividade do trabalho reflita sobre o ambiente, determinando a construção da práxis social,  relacionando o homem e ambiente que o cerca. Portanto, supor a atuação do técnico ambiental dissociada das relações dialéticas entre aplicação do conhecimento e benefício para a sociedade, contradiz uma proposta de educação responsável e integrada ao meio em que vivemos. Ignorar tal integração, significaria abrir mão do que Gramsci denominou como princípio educativo (GRAMSCI, 1979).

Além das questões discutidas, o excerto em análise, parece indicar uma formação técnica geral, sem que houvesse um enfoque específico em determinada área ambiental. Veja: ele teria que ter as informações básicas, e que qualquer tipo de trabalho que ele fosse fazer, ele pudesse se envolver.

No entanto, talvez seja coerente atentar para uma formação que contemplasse além de informações básicas, os fundamentos sociopolíticos, culturais e históricos previsto no Plano de Curso 167, em diálogo com a práxis social, anteriormente citada.

Assim, tendo em vista a práxis social, parece possível que se admita que contrariamente a argumentação explicitada pela Coordenadora do Laboratório de Currículo, seria papel do técnico ambiental identificar, questionar e intervir em situações as quais observasse processos produtivos danosos ao ambiente. Que o técnico ambiental entenda que tratar as não conformidades ambientais em uma empresa faz parte de suas atribuições, visando mensurar e minimizar impactos socioambientais.

No entanto, parece haver contradições nas ideias apresentadas pela Coordenadora, referentes à atuação do técnico ambiental. Observe: [...] ele não pode falar que está errado, porque ele está indo lá para trabalhar [...]. Em outras palavras, é plausível que se espere do técnico ambiental um agente atuante em potencial, um articulador de diálogos, por meio do conhecimento e de atuação assertiva, e que tenha assegurada a condição de articulador, problematizador, tal como tem feito o movimento ecológico desde a década de 1960.

Além do que já foi exposto, parece coerente que também se problematize a seguinte ideia: [...] não criar uma pessoa totalmente verde, totalmente ambientalista, daqueles fanáticos, Greenpeace, etc. porque o mercado de trabalho não é esse.

Assim, face aos desafios socioambientais da atualidade, extinção de espécies, desmatamento, uso de agrotóxicos, desigualdade social, pandemia e concentração de poder, parece necessário estimular um amplo debate envolvendo ambientalistas, mercado, patronato, sociedade civil, educadores e demais segmentos, visando o enfrentamento de problemas ambientais, reunindo esforços que promovam a transformação do sistema. De acordo com Carvalho (2012), trata-se de reconhecer que, para apreender a problemática ambiental, é necessária uma visão complexa de meio ambiente, em que a natureza integra uma rede de relações não apenas naturais, mas também sociais e culturais.

Vale observar as contradições presentes neste curso, uma vez que, interpretar a atuação ambientalista do técnico ambiental como extremista, em um curso que prevê fundamentações socioculturais, políticas e históricas, constituído a partir de diálogos, distancia-se das propostas do currículo. Vejamos: para a formulação do Plano de Curso, a equipe se reuniu com a comunidade externa: Secretaria do Meio Ambiente, Departamento de Recursos Hídricos do Estado e do Município de São Paulo, ONGs e Indústrias, objetivando construir uma ampla discussão entre as partes. Conforme esclareceu em entrevista, a Coordenadora do Laboratório de Currículos, responsável pela equipe:

 

Era minha função convidar pessoas de fora para apresentar e discutir com a gente, principalmente qual era a expectativa que eles tinham para o Técnico em Meio Ambiente. Então, a gente trabalhava com o pessoal da Secretaria do Meio Ambiente, Departamento de Recursos Hídricos do Estado e do Município de São Paulo. E também, trabalhamos com algumas ONGs. Trabalhamos também, não com muitas indústrias, com poucas, mas principalmente da parte da indústria de papel de Suzano. Eles traziam para a gente, qual era a expectativa deles em relação ao Técnico em Meio Ambiente e é interessante que desde aquela época, o que eles mais falavam não era tanto a questão de conteúdo, porque em geral, especialmente os empresários eles falam isso. Eles falam que a parte técnica, a gente pode depois fornecer a especificidade, porque eles iriam trabalhar em um laboratório que não era o laboratório que eles tinham na escola, com os equipamentos que não eram os que a gente tinha na escola. Aliás seria impossível a gente estar sempre avançado como a própria indústria. E eles falavam, aí a gente treina, mas o que a gente precisa, é o que hoje a gente chama de competências socioemocionais. Naquele tempo, eles falavam, a gente precisa de uma pessoa que tenha iniciativa, que saiba conversar, que proponha coisas, que não seja uma pessoa acomodada. Então, eles criam essa demanda para um técnico, mais do que um conhecimento técnico profundo. E da nossa parte, o que a gente trabalhava, trabalhava com os conhecimentos básicos, no mínimo o técnico tem que saber o que? Tem que saber sobre geoprocessamento, tem que saber as características de solo, o que prejudica o que não prejudica, como faz uma análise de água, então, uma coisa básica. Naquela época, não tinha nem mesmo muitos laboratórios, usava-se mais os laboratórios do Ensino Médio, de Ciências, para a gente desenvolver o curso do técnico. (COORDENADORA DO GRUPO DE TRABALHO DO LABORATÓRIO DE CURRÍCULO).

 

Assim, o Etim em Meio Ambiente se constituiu a partir de contribuições de segmentos sociais, os quais explicitaram expectativas acerca da formação técnica, o que parece ter direcionado ao atendimento das necessidades do mercado de trabalho. De certa forma, talvez possa se entender como um tipo de subserviência ao poder exercido pelo mercado econômico sobre a sociedade, alicerçado em políticas neoliberais cada vez mais presentes no interior das escolas, como a pedagogia das competências.

Dentre os segmentos consultados, instituições governamentais, empresas, ONGs e Indústrias, apesar de se constituírem em pluralidade, por motivos que desconhecemos, não tiveram representatividade um colegiado de educadores, e ainda um coletivo que representasse a sociedade civil, via de regra imediatamente afetados mediante deliberações.

Assim, entende-se imprescindível a participação, a politização e a representatividade de segmentos populares nos espaços de poder durante a tomada de decisão, exigindo-se pelo direito de vez e voz nas construções sociais. Interessamo-nos ainda compreendermos que aspectos foram demarcados pelos setores presentes na construção desta proposta de curso.

Em relação às Organizações Não Governamentais – ONGs, supúnhamos identificar diálogos ambientalistas, socioambientais. No entanto, por meio de entrevista da Coordenadora do Laboratório de Currículos, não houve relatos específicos acerca da contribuição desse segmento no currículo. Em contrapartida observamos indícios de expressivas demarcações do empresariado. Tal como relatou a Coordenadora: o que eles [empresários] mais falavam não era tanto a questão de conteúdo, porque em geral, especialmente os empresários eles falam isso: [...] Aí a gente treina [...]. Supõe-se haver influências do empresariado, de modo a sugerir que os conteúdos fossem discutidos de forma geral pela escola, e se necessário, disponibilizar-se-ia treinamento complementar no trabalho, em consonância com as necessidades e especificidades do empregador.

Essa proposta de educação, característica do capitalismo, quando criticamente analisada, como o fez Machado (1991), aponta para um tipo de educação para educar e adestrar operários submissos e dóceis, atendendo aos interesses da burguesia. Kuenzer (2001), ao discutir o papel da escola diante das demandas do mercado de trabalho, considera que a apropriação do aparelho estatal pelo poder hegemônico, tem se prestado a legitimar preconceitos, limitar o tipo de conhecimentos a serem atribuídos aos diferentes estratos sociais, adequando a oferta de mão de obra às necessidades do mercado.

Nogueira (1990, p. 176), define esse processo como alienação do trabalhador, em virtude da perda do controle das suas condições de trabalho, o que parece refletir de forma a fragilizar os indivíduos em suas dinâmicas sociais.  A autora ainda conclui: “[...] a burguesia, visando manter controle sobre o processo produtivo, assegura para si o controle do conhecimento científico e ergue obstáculos à aquisição, pelos trabalhadores, de uma verdadeira formação científico-técnica [...]”.

De acordo com a coordenadora desafios estiveram presentes na construção do currículo em parceria com a comunidade externa. Segundo a entrevistada, ainda que se empenhasse esforços para ouvir, tentar contemplar as demandas e explicitar os mecanismos legais que regem a implementação de um currículo, as empresas resistiam em aceitar e compreender os limites de intervenções cabíveis na construção de um currículo e o tempo em que se constrói a educação.

Machado (1991), afirma que a relação entre ensino e produção não é imediata como deduz o capital. Portanto, o aligeiramento de processos, tal como intencionou o empresariado, parece inapropriado para a educação.

 

Da promulgação do Decreto 5.154/04 à implementação do Etim em Meio Ambiente

 

Tendo em vista os aspectos sociopolíticos, históricos, econômicos e educacionais da década de 1990, marcados pelas políticas de retração no campo social, sob influências neoliberais, nas décadas seguintes, com a ascensão política e ideológica da esquerda, algumas mudanças ocorreram no país.  O Brasil, sob o comando do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003 - 2007), em seu primeiro mandato, revogou o decreto nº 2.208/97 e promulgou o decreto nº 5.154/04, determinando o retorno do Ensino Técnico Integrado ao Médio. Naquele momento, reacendeu na sociedade o conflituoso debate entre formação propedêutica versus formação para o trabalho.

Não raro, problematizações acerca da relevância, bem como da intencionalidade de oferta do Ensino Técnico Integrado, são reacendidas no tecido social. Historicamente essa modalidade tem se apresentado imersa às desigualdades, injustiças sociais, subjugações em se tratando da formação dos pobres, dos pretos, dos socialmente desprivilegiados, ou seja, todos aqueles e aquelas que cotidianamente necessitam exigir a legitimação de seus direitos de existência, de educação e de formação para além do trabalho. Assim, continuar insistindo no Ensino Médio Integrado ao Técnico, seria realmente a melhor alternativa para a formação dos filhos da classe trabalhadora? Diante das transformações sociais a partir da década de 2000, políticas públicas de reparação social, ações afirmativas e maior número de populares nas universidades, caberia ainda essa modalidade de curso? Por que não ofertar uma formação propedêutica, preparatória para todos?

Tendo em vista a problematização apresentada, tal como a realidade da sociedade brasileira tem se mostrado, historicamente marcada por profundas injustiças sociais, pobreza e desigualdades, os filhos da classe trabalhadora têm urgência em se inserir no mercado de trabalho, a subsistência da família faz parte da vida do jovem trabalhador, não há como esperar a formação superior para iniciar a vida profissional (CIAVATTA, 2014).

Portanto, a educação profissional em nível médio, pode ser uma possibilidade para a garantia das necessidades básicas, bem como um movimento de transformação social para a classe trabalhadora. De acordo com Ciavatta (2014, p. 198), “se a formação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade da população trabalhadora, admitir legalmente essa necessidade é um problema ético-político”. Ou seja, que também se rompa com a resistência social representada pelo elitismo arraigado e meritocrático, de modo que a sociedade se reconheça organicamente marcada por desigualdades estruturais e ainda necessitada de políticas públicas reparadoras.

Segundo a autora, são necessários investimentos substanciais em políticas sociais de forma que não se exija dos jovens uma profissionalização precoce,  e sim, somente após a maturidade intelectual, possibilitando escolhas profissionais assertivas.

Retomando o Decreto nº 5.154/04, com essa legislação, houve o retorno do ensino integrado, estimulado por políticas de fortalecimento dessa proposta, como o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), do Governo Federal, o qual através do Decreto nº 6.302/07, criou o Programa Brasil Profissionalizado (BRASIL, 2018). Nos artigos 1º e 2º do referido Decreto:

 

Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Ministério da Educação, o Programa Brasil Profissionalizado, com vistas a estimular o ensino médio integrado à educação profissional, enfatizando a educação científica e humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional no contexto dos arranjos produtivos e das vocações locais e regionais. [...]

 

Art. 2º O Programa Brasil Profissionalizado prestará assistência financeira a ações de desenvolvimento e estruturação do ensino médio integrado à educação profissional mediante seleção e aprovação de propostas, formalizadas pela celebração de convênio ou execução direta, na forma da legislação aplicável (BRASIL, 2007).

 

Por meio do Decreto nº 6.302/07, se propõe a disponibilizar investimentos financeiros do Governo Federal, para a ampliação da formação técnica integrada no país. Para tanto, o Programa prestará assistência financeira a ações de desenvolvimento e estruturação do ensino médio integrado, idealizando uma educação profissional científica e humanística.

No entanto, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 4) afirmam que apesar do caráter humanístico do decreto 5.154/04, o sistema educacional brasileiro não se adequou às mudanças estruturais necessárias como espaços para além das salas de aula, metodologias e condições para o trabalho docente. Para os autores ao contrário do que se esperava, o governo progressista (Lula), se tornava cada vez mais “heterogêneo dentro do campo da esquerda e com alianças cada vez mais conservadoras”.

Face às políticas educacionais de incentivo ao Ensino Técnico Integrado no país, o CPS, passou a empenhar esforços para a implementação de diversos cursos nas Escolas Técnicas Estaduais - Etecs. Então, no ano de 2011 ocorreu a implementação do Etim em Meio Ambiente. Em entrevista, a Coordenadora do Laboratório de Currículos afirmou que:

 

[...] A gente participava do Programa Brasil Profissionalizado. A partir de 2011, era justamente para a gente conseguir o recurso do Governo Federal. A gente tinha que ter o compromisso de ampliar o Ensino Técnico Integrado ao Ensino Médio. Então, foi aí que começamos a trabalhar mais as habilitações, mas especificamente a habilitação de Meio Ambiente, não saberia te dizer se teve alguma coisa específica, porque todos os cursos, todas as habilitações foram trabalhadas nesse sentido, acho que foi uma coisa mais macro do que específica do Meio Ambiente [...] (COORDENADORA DO GRUPO DE TRABALHO DO LABORATÓRIO DE CURRÍCULO).

 

Observa-se que o CPS diante da possibilidade de celebração de convênio junto ao Governo Federal, objetivava aderir ao Programa Brasil Profissionalizado, de modo a receber assistência financeira, conforme Decreto nº 6.302/07. Nesse sentido,  investiu esforços para ampliar a oferta de cursos integrados em diversas áreas do conhecimento, isso se deu independentemente de quaisquer outros fatores que não fosse conseguir o recurso do Governo Federal, tal como afirma a Coordenadora.

Especificamente acerca do Etim em Meio Ambiente, mesmo diante da atual crise ambiental, não encontramos qualquer indício deste curso como estratégia de aproximação ou engajamento dos jovens ao debate ambiental.

Compreendemos a partir dos relatos da coordenadora, que a proposição do Etim em Meio Ambiente se deu como resultado da política pública do Governo Federal, Brasil Profissionalizado, a qual viabilizou recursos financeiros para que escolas técnicas públicas no país passassem a ofertar a modalidade de curso Ensino Técnico Integrado ao Médio. Cabe salientar, tal como os registros estão apresentados, a coordenadora foi categórica todos os cursos, todas as habilitações foram trabalhadas nesse sentido. Entenda-se, tendo o compromisso de ampliar o Ensino Técnico Integrado ao Ensino Médio objetivando obter o recurso financeiro do Programa Brasil Profissionalizado.

Desta maneira, interpreta-se que essa política governamental federal tenha despertado o interesse do Governo do Estado de São Paulo e por conseguinte do CPS, o que sugere não ter havido relação específica entre a proposição do curso Técnico em Meio Ambiente Integrado ao Ensino Médio, com qualquer questão ambiental, mesmo diante da atual crise ambiental que assola o planeta.

 

Considerações finais

Tendo em vista o contexto no qual se estruturou a implementação do Etim em Meio Ambiente, a partir dos dados analisados, pudemos compreender que as perspectivas políticas e socioeconômicas neoliberais estiveram presentes na década de 1990, período no qual a proposta de Plano de Curso para a formação técnica começou a ser estruturada. Tais políticas contribuíram para a elaboração de propostas educacionais direcionadas à eficiência, competência, ao saber-fazer e ao saber específico. Deste modo, diante dos dados apresentados tendo como foco as influências das políticas neoliberais a partir da década de 1990, o Plano de Curso 167 – Etim em Meio Ambiente – CPS, foi constituído sob as influências das demandas de um novo mercado, determinado pelo capital e referendado pelo Estado.

 

 

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