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Os professores diante do novo ensino médio: relações externas de mudança e trabalho docente

 

Teachers facing the new upper secondary education: external relations of change and teaching work

 

Los profesores frente la nueva escuela secundaria: relaciones externas de cambios y trabajo docente

 

Carina Tonieto

Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Ibirubá, RS, Brasil

tonieto.carina@gmail.com

 

Altair Alberto Fávero

Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil

altairfavero@gmail.com

 

Junior Bufon Centenaro

Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil

juniorcentenaro93@gmail.com

 

Chaiane Bukowski

Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil

chaiane_bukowski@yahoo.com.br

 

Caroline Simon Bellenzier

Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil

carolsimon@hotmail.com

 

Recebido em 19 de novembro de 2021

Aprovado em 08 de setembro de 2022

Publicado em 22 de junho de 2023

 

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar as percepções de professores da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul (RS), a fim de identificar se eles se percebem como protagonistas no processo de elaboração e de implementação da reforma educacional do novo ensino médio. Trata-se de uma pesquisa de natureza básica, exploratório-descritiva quanto aos seus objetivos, qualitativa-quantitativa quanto à abordagem do problema e um estudo de caso quanto aos procedimentos. O estudo está ancorado teoricamente na perspectiva epistemológica pós-estruturalista da teoria da atuação de Ball, Maguire e Braun (2016), na perspectiva sócio-histórica do currículo de Goodson (2019) e na perspectiva crítica de Masschelein e Simons (2018) e Laval (2004). Os dados foram coletados em dez escolas pilotos do RS por meio da aplicação de questionários e realização de entrevistas com professores e gestores. O estudo apresentado é um recorte de uma pesquisa interinstitucional a respeito das políticas curriculares para o ensino médio. Os resultados mostram que a reforma do ensino médio foi concebida e é executada por meio de relações externas de mudança. Nesse contexto, os professores veem a si mesmos como espectadores, destinatários ou, ainda, entregadores de um pacote formativo, apesar de considerarem que devem ser ouvidos e envolvidos nos processos de reforma; portanto, as mudanças acontecem sem uma discussão acerca da carreira e condições de trabalho do professor.

Palavras-chave: Ensino Médio; Participação docente; Políticas curriculares.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the perceptions of teachers from the state education network in the State of Rio Grande do Sul (RS), in order to identify if they perceive themselves as protagonist in the process of elaboration and implementation of the educational reform of the new upper secondary education. This is a basic exploratory-descriptive research in terms of its objectives, qualitative-quantitative in terms of the approach to the problem and a case of study in terms os the procedures. The study has as its theoretical axis the post-structuralism epistemological perspective of Ball, Maguire and Braun (2016), in the social-historical perspective of Goodson`s curriculum (2019) and in critical perspective of Masschelein and Simons (2018) and Laval (2004). The data were collected in tem pilot schools of RS through the application of questionnaires and interviews with teachers and managers. The study presented is part of inter-institutional research on curricular policies for upper secondary education. The results indicate that the reform of secondary education was conceived and executed through external relations of change. In this context, teachers see themselves as spectators, recipients or even deliverers of a training package; however, they consider that they should be heard and involved in the reform processes, therefore changes in the reform occurs without a discussion about the teacher’s career and working conditions.

Keywords: Upper Secondary Education; Teacher Participation; Curricular Policies.

 

RESUMEN

En el presente artículo el objetivo es analizar percepciones de profesores del Estado de Rio Grande del Sur, e identificar su protagonismo en el proceso de elaboración e implementación de la reforma educacional de la nueva escuela secundaria. Es una investigación de naturaleza exploratoria – descriptiva, mixta cuali – cuanti. El abordaje es un estudio de caso. El estudio tiene como eje teórico la perspectiva epistemológica post estructuralista de Ball, Maguire y Braun (2016); en la perspectiva socio- histórica del currículo de Goodson (2019) y en la perspectiva crítica de Masschelein y Simons (2018) y Laval (2004). Los datos se recolectaron en diez escuelas pilotos a través de la aplicación de cuestionarios y entrevistas con profesores y gestores.  El estudio presentado es de corte interinstitucional sobre las políticas curriculares para la escuela secundária. Los resultados señalan que la reforma de la educación media superior fue creada y ejecutada por medio de las relaciones externas de cambios. En este contexto, los profesores se observan espectadores, destinatarios o entregadores de un paquete formativo; sin embargo, se consideran que deben ser escuchados e involucrados en los procesos de reforma, la cual ocurre sin una discusión sobre la carrera y condiciones laborales del profesor.

Palabras-clave: Escuela secundaria; Participación docente; Políticas curriculares.  

 

Introdução

O objetivo do presente estudo é analisar as percepções de professores da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul (RS) que atuam nas escolas participantes do “projeto piloto” de implementação do Novo Ensino Médio (NEM), estabelecido pela Lei n. 13.415/2017.  A pesquisa busca identificar se os professores se percebem como protagonistas no processo de elaboração e de implementação da reforma educacional. O problema de pesquisa orientador do estudo é: os professores do ensino médio das escolas-piloto do Rio Grande do Sul se percebem como protagonistas no processo de elaboração e de atuação da política que regulamenta o Novo Ensino Médio?

O estudo está ancorado teoricamente na perspectiva epistemológica pós-estruturalista da teoria da atuação de Ball, Maguire e Braun (2016), perspectiva sócio-histórica do currículo de Goodson (2019) e crítica de Masschelein Simons (2018) e Laval (2004). A pesquisa consiste em um estudo de caso de dez escolas do projeto piloto do NEM, do Rio Grande do Sul, caracterizando-se como uma pesquisa básica, exploratório-descritiva, qualitativa-quantitativa. Os dados foram coletados por meio da aplicação de questionários e da realização de entrevistas com professores e gestores. Os resultados apresentados são um recorte de uma pesquisa mais ampla a respeito das políticas curriculares para o ensino médio, desenvolvida pela equipe de pesquisadores vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior (GEPES/UPF).

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa de natureza básica, exploratório-descritiva quanto aos seus objetivos e qualitativa-quantitativa quanto à abordagem do problema; quanto aos procedimentos, trata-se de um estudo de caso, pois consiste em uma investigação empírica do processo de implementação do Novo Ensino Médio (NEM) em dez escolas integrantes do projeto piloto do RS, de modo a compreender o processo em profundidade e no seu contexto real (YIN, 2015). Foi adotado o método indutivo, pois a pesquisa consistirá na elaboração de um conjunto de premissas oriundas da triangulação dos dados, a partir das quais serão elaboradas as conclusões. Os sujeitos são professores do ensino médio e gestores das escolas e da Coordenadoria Regional de Educação (CRE). A realização da pesquisa está amparada pelos critérios legais e éticos, atestada pela aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE nº. 48056221.2.0000.5342).

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com 24 gestores escolares (diretores e coordenadores) e da CRE, as quais aconteceram de forma on-line, por meio da plataforma Google Meet e da aplicação de questionário on-line, por meio da plataforma Google Forms, para os professores do ensino médio das respectivas escolas, dos quais 163 responderam. Todos os instrumentos de coleta de dados garantiram o anonimato dos sujeitos e o sigilo das informações. Os gestores escolares, no presente texto, serão sempre denominados como coordenadores pedagógicos (CP), diretores (D), coordenadores do novo ensino médio (CNEM) e gestores da coordenadoria regional de educação (CRE), utilizando-se o gênero masculino e as letras do alfabeto para diferenciação entre ambos. As entrevistas foram gravadas, transcritas, organizadas em planilhas e agrupadas em torno da temática de cada uma das perguntas, utilizando-se da análise de conteúdo como técnica de leitura e de interpretação do texto (MORAES, 1999). Os resultados do questionário foram organizados em planilhas de modo a calcular os índices de representatividade e a gerar gráficos ilustrativos dos resultados. Eles foram analisados a partir do referencial teórico orientador da pesquisa, que está ancorada, epistemologicamente, em um posicionamento crítico e em uma perspectiva pluralista, devido à complexidade do fenômeno analisado. Adota-se como referência o pós-estruturalismo da teoria da atuação de Ball, Maguire e Braun (2016), a visão sócio-histórica do currículo de Goodson (2019) e a crítica de Masschelein e Simons (2018) e Laval (2004).

Referencial teórico

As reformas educacionais não são novidades no campo educacional. Elas são justificadas pela necessidade de adaptação à tendência mundial de atender as demandas sociais e econômicas geradas pelo mundo globalizado em constante transformação. Por meio de um discurso de “inovação”, as reformas se tornaram um fenômeno guiado pelo gerenciamento das escolas e pela profissionalização dos professores (LAVAL, 2004). Observa-se, no entanto, que a agenda econômica assumiu o protagonismo das políticas educacionais e curriculares, de modo que há um processo de colonização da escola pelo mundo dos negócios (LAVAL, 2004; GOODSON, 2019) e, como consequência, a redefinição dos parâmetros de participação dos professores na discussão, planejamento e operacionalização das reformas. Tais tendências podem ser observadas na reforma do Ensino Médio brasileiro por meio da Lei n. 13.415/2017, com a quase anulação da participação dos professores na discussão e formulação da proposta. Nesse sentido, o “protagonismo” dos professores, tão defendido nos novos documentos curriculares, está ausente, poiso que deve ser ensinado já fora delimitado pelos reformadores.

O presente estudo parte do pressuposto de que a política curricular é um espaço público de tomada de decisões e, nesse sentido, supõe-se que a escola é um local que precisa participar da decisão política, não sendo, portanto, uma atribuição única e exclusiva, das instâncias governamentais, a definição de prioridades e direcionamentos da política curricular. Compreende-se, dessa forma, que os sujeitos do contexto escolar, sejam professores, estudantes ou pais, embora nem sempre reconhecidos, também são decisores políticos. Sendo assim, entende-se que tanto a definição de uma reforma educacional, quanto seu processo de implementação necessita de um intenso diálogo com os sujeitos do contexto escolar, de modo que eles não sejam apenas destinatários ou meros executores da reforma educacional.

A redefinição do papel dos professores diante das reformas é sistematizada por Goodson (2019, p. 31) em um “[...] padrão evolutivo” que permite identificar e avaliar dois movimentos relacionados à mudança educacional. Por um lado, a “[...] mudança educacional interna” e, por outro, as “[...] relações externas de mudança”. O primeiro movimento representa um processo de mudança gerado internamente e que busca a legitimação externa, no qual os profissionais da educação são os protagonistas das mudanças e das formas de operacionalização e, por consequência, responsáveis por tais processos, seja respondendo a estímulos internos ou externos. A força da mudança, portanto, é interna e busca apoio e sustentação externa de modo a garantir a sua instauração e normatização.

No segundo movimento, as mudanças são pensadas externamente e os profissionais da educação apenas reagem a elas, não cabendo-lhes mais o papel de propositores e formuladores. Atribui-se, desse modo, aos professores, a função de “entregadores de propósitos” e a sua função é de reagir e ser complacente e, à escola, cabe o poder de reação e não mais de definição (GOODSON, 2019). A ausência de tais sujeitos para pensar a própria realidade escolar demonstra como a lógica mercantil se apoderou das reformas curriculares. Dessa forma, as decisões são tomadas e regulamentadas externamente e, somente após, é negociada internamente na escola, sendo o protagonismo da mudança assumido principalmente pelos grupos governamentais e os empresários da educação.

O padrão evolutivo das “[...] relações externas” caracteriza-se pela: (1) “[...] formulação da mudança” em diferentes espaços externos de disputa pelo poder, amparados, em muitos contextos, na educação como mercadoria e na “[...] entrega de serviços educacionais” para “[...] consumidores”; (2) “[...] promoção da mudança”, conduzida pelos grupos externos com uma controlada e seletiva participação interna, de modo que a definição das categorias, papéis e atividades devem ser incorporadas pelas escolas e professores, a fim de a adquirirem legitimação; (3) “[...] legislação da mudança” impõe as normas e regras que devem ser seguidas pelas escolas e professores, garantindo a incorporação das mudanças pela definição de padrões de medida, aferição de resultados e recompensas; (4) “[...] institucionalização da mudança” está amparada na definição “[...] taxativa de como as escolas operam” impondo e avaliando um currículo e verificando o atendimento das escolhas e demandas dos consumidores (GOODSON, 2019, p. 37-38).

Nesse cenário, a negação do conhecimento especializado de professores e pesquisadores é uma estratégia para que outros atores assumam o papel de peritos educacionais e definidores de objetivos e políticas, por meio de um discurso modernizador. Convém, no entanto, observar que as decisões dos governos a partir da visão dos peritos educacionais, geralmente, são superficiais, seletivas e corporativas. Para que tais decisões sejam aceitas é necessária e estratégica a desqualificação do conhecimento especializado, recorrendo aos dados de pesquisas de instituições que pouco ou nada conhecem do funcionamento das escolas e das dinâmicas educacionais. A estratégia parece clara: a desqualificação do conhecimento especializado abre espaço para o corporativismo e para os interesses do mercado de serviços educacionais e, então, não importam os critérios educacionais e o que dizem professores e demais profissionais da educação.

O movimento corporativista na definição do currículo e das políticas educacionais segue o seguinte padrão: (1) “[...] declaração de objetivos desejados definidos pelos grupos externos”, definidos pela lógica neoliberal e justificados pela necessidade econômica, sendo a educação considerada um insumo para conseguir um trabalho e movimentar a economia; (2) “[...] tradução dos objetivos econômicos em 'matéria de capa sobre a educação’” e, portanto, a educação e currículo se tornam uma mercadoria; (3) “[...] definição de ‘regras de funcionamento’ para a educação” com a mercadorização de práticas, saberes, atividades, formação com ênfase nos resultados das avaliações e estabelecimento de rankings, além de a ação dos professores ser reduzida à aplicação de técnicas para atingir os objetivos almejados; (4) “[...] obrigações e manipulação”, por meio da legislação que expressa os objetivos econômicos associada aos discursos midiáticos controlados pelos grupos externos que amedrontam a respeito da suposta qualidade da educação pública, o que permite o crescimento do mercado educacional com a venda de serviços e produtos educacionais (GOODSON, 2019, p. 42).

Diante desse cenário, a atividade dos professores é substituída pela passividade, cuja função é redefinida como aplicação de técnicas eficazes que garantam o alcance dos objetivos educacionais, não sendo mais necessário o seu envolvimento nos processos de mudança. Tal cenário é expresso pela indiferença e por certa hostilidade com que os professores são tratados diante das contínuas reformas. O deslocamento da função do professor interfere na concepção de sua profissão e no seu exercício profissional, movendo os processos de realização pessoal e profissional para fora do seu espaço de trabalho, assim como, as mudanças vistas como mal construídas, desencontradas e imaturas atingem os seus princípios e valores profissionais (GOODSON, 2019).

O papel dos professores nas mudanças é transformado, tornando-os meros entregadores de expectativas externas do mundo corporativo em relação à educação.  Masschelein e Simons (2018) têm denominado esse processo de “domar a escola” na medida em que ela passa a seguir a dinâmica do mundo corporativo da eficiência e da eficácia. Para eles, a eficácia está ligada a uma técnica com objetivo fixo, estendida às escolas, aos professores e aos alunos, cuja evidência está em selecionar os meios apropriados para cumprir e efetivar o plano estabelecido, ou seja, “[...] eficiência significa identificar a forma adequada de alocação de recursos [...], dado o objetivo definido” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018, p. 122). Isso significa, por exemplo, que, no caso do currículo, tanto os objetivos quanto a forma de atingi-lo são determinados por agentes e forças externas à própria escola. Isso reflete a proliferação dos chamados “currículos nacionais padronizados”, que se, por um lado, disseminam a promessa da melhoria da educação pela igualdade curricular, por outro, impõem uma visão unilateral do currículo e subtraem da escola seu papel contestador, crítico, emancipador, para tornar-se um espaço de “excelência” somente naquilo que diz respeito a execução de listas de conteúdos, habilidades e competências estabelecidas nacionalmente. 

 A constatação do “professor domado”, tem sido associada ao papel dos professores nas reformas educacionais geridas pelo mundo dos negócios. Nesse cenário, o professor é reduzido a um especialista ou expert que precisa atender e se enquadrar em listas de competências esperadas (perfil profissional), funções específicas e resultados para entrega. Os perfis detalhados das competências esperadas dos professores “[...] colocam um chicote na mão do governo, que é usado para domar não só a escola, mas também os professores experientes e novatos. Domar em nome das exigências atuais do mercado, do consumo ideal e da empregabilidade” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018, p. 140).

O currículo deixa, portanto, de ser uma construção contextualizada, criada e recriada pelos sujeitos escolares, pois “[...] o trabalho manual de determinar os objetivos do curso e desenvolver um currículo torna-se um desafio para os profissionais charadistas; as regras são estabelecidas e os lápis são apontados para a verificação de subcompetências alcançadas” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018, p. 141). Esse tipo de condição e pressão imposta ao professor o faz cada vez mais um prestador de serviço, ou seja, sua ação enquanto profissional é sempre para atender uma demanda externa, restando pouco espaço para a atuação como autor de mudanças internas no processo educacional. A partir de 2016, as políticas educacionais brasileiras e, especialmente, as curriculares foram fortemente influenciadas por setores empresariais, com participação direta nas instâncias governamentais de tomada de decisão (CÁSSIO, 2019). Com foco nas alterações curriculares, as políticas instituíram uma concepção de currículo baseada em competências e habilidades com vistas a empregabilidade e adaptação dos sujeitos ao status quo e com forte enquadramento nas avaliações externas (CARA, 2019).  Como foi observado anteriormente no modelo evolutivo das mudanças externas de Goodson (2019), as reformas pautadas por uma agenda corporativa tendem a excluir os professores do processo de tomada de decisão sobre a política (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018; LAVAL, 2004). O Ministério da Educação (MEC) afirma que, no processo de discussão e elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), houve um amplo processo de escuta, consulta e acolhimento das sugestões por meio da promoção de audiências públicas, das plataformas digitais e de consulta a especialistas e a entidades (BRASIL, 2018).  Defende, portanto, que foram três anos (2015-2018) de grande mobilização e, na data de dois de agosto de 2018, houve um grande movimento nacional em torno da BNCC para o Ensino Médio. Na oportunidade, professores, gestores e técnicos em educação, organizados em comitês, reuniram-se para propor melhorias no documento por meio do preenchimento de um formulário online

No entanto, apesar de todo o processo de escuta difundido pelo MEC, a aprovação da BNCC do Ensino Médio foi permeada por protestos de professores e estudantes reclamando pela falta de diálogo, escuta e inclusão das sugestões na versão final dos textos (REDAÇÃO, 2018; PERES; SEMI, 2018; CÁSSIO, 2019), sendo que, nesse período, a Lei 13.415/2017 (BRASIL, 2017) já estava aprovada. Vale lembrar que a reforma foi imposta via medida provisória, ainda em 2016, antes de se transformar em lei federal. Em outras palavras, sua origem como medida provisória editada pelo poder executivo federal, representa, por si só, um ato autoritário e sem diálogo com os sujeitos da escola. Diante do cenário no qual foram aprovados os documentos reguladores e iniciada a reorganização das escolas e do trabalho docente para atender às novas demandas, cabe indagar se os professores se sentiram ouvidos e protagonistas no processo de reforma do Ensino Médio.

Resultados e discussão

Os resultados da pesquisa apontam para a pouca escuta das demandas e das considerações dos professores na formulação e implementação da BNCC e do NEM. A grande maioria dos professores participantes da pesquisa (93,86%), conforme Gráfico 1, concorda que deve ser totalmente ouvida na proposição de reformas, ou seja, considera a importância de sua participação ativa nos processos de reforma educacional. Tal posicionamento é justificável uma vez que eles são os profissionais que vivem o cotidiano da escola, conhecem as dinâmicas e os processos escolares, assim como os desafios e adversidades no exercício da profissão, sejam eles pedagógicos, institucionais, econômicos, sociais ou pessoais. No entanto, sabe-se que a não escuta dos docentes é estratégica e injusta, pois os profissionais que serão responsabilizados pelos resultados da reforma, são os menos ouvidos. Já o grupo menor (6,13%), ao afirmar que os professores devem ser ouvidos parcialmente, assume que há momentos adequados para a participação dos professores e momentos em que não há tal necessidade, ou seja, as decisões podem ser tomadas por outros grupos, cabendo aos professores apenas a sua execução.

Quanto a pergunta se os professores foram ouvidos e contemplados pelo MEC e Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), é possível perceber, no Gráfico 1, que o posicionamento preponderante é de que foram parcialmente ouvidos (54,6%), seguidos pelo grupo que afirma que os professores não foram ouvidos e contemplados (28,22%). Há um grupo menor (9,20%), no entanto, que considera que os professores foram totalmente ouvidos na reforma, ou seja, suas demandas e expectativas foram atendidas; há ainda o grupo dos professores que não sabe opinar (7,97%) a respeito da condução do processo pelo MEC e SEDUC.  No site do MEC (BRASIL, 2018), é possível acessar o histórico de construção da BNCC, por exemplo, onde constam os períodos de consultas públicas, no entanto, no site da SEDUC (RIO GRANDE DO SUL, 2021), não constam informações a respeito, apenas notícias relacionadas às atividades desenvolvidas nas escolas para implementação do NEM.

 

Gráfico 1: Percepção dos professores quanto ao seu envolvimento na elaboração da BNCC e do NEM

 

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

O relato de um coordenador pedagógico demonstra o inconformismo com aquilo que a reforma estabeleceu:

CP/A: Eu sei que a questão gerencial é muito grande nesse processo. [...] mas você estar lá na escola e você só enviar planilhas, planilhas e planilhas e relatórios é bem diferente, é bem diferente; então quando alguém planejou tudo isso aqui que a gente está vivendo é por que não está no chão da escola, não está dentro de uma escola e nunca passou dentro de uma sala de aula, eu tô percebendo é que tudo isso que foi feito com as escolas piloto vai ser remodelado, já está sendo remodelado (Grifo nosso).

 

            A fala retrata a exigência frenética do gerencialismo de preenchimento de planilhas e elaboração de relatórios minuciosos. Fica evidente na percepção do CP/A, quando afirma que “[...] alguém planejou tudo isso aqui que a gente está vivendo” que ele, enquanto sujeito, não se reconhece como autor das mudanças e exigências da reforma. Compreende, também, que a política foi pensada e elaborada externamente sem conhecimento e experiência do cotidiano escolar. No momento que invoca a expressão “chão da escola”, sugere que faltou aos formuladores conhecimento daquilo que ocorre no cotidiano dos contextos escolares. A percepção de outro coordenador também indica a exclusão dos professores da elaboração da política:

CP/B: Então, na verdade, o que que a gente pensou na época, que seria mais uma reforma de cima para baixo, né, uma imposição, através de decreto, né, e que, como vem se mostrando, a gente percebe assim que tem pouca participação de quem realmente tá engajado no processo, né. [...] Mas, a gente não sabe como vai vir isso ainda. Se vai vir uma proposta pronta, porque, a princípio na pandemia a gente não construiu nada, a gente só executou, né, aquilo que veio pronto (Grifo nosso).

 

            Os professores e os gestores acabam se transformando em prestadores de contas e executores de tarefas, procedimento típico de reformas pensadas externamente à escola. Entretanto, tal processo atinge, também, outras instâncias da gestão educacional, conforme ressaltado pelos gestores da coordenadoria regional de educação:

CRE/A: Nós recebendo essas orientações, qual é o nosso papel enquanto coordenadoria? Nós somos gestores, de certa forma. Nós temos que passar às nossas escolas essas orientações de maneira clara, efetiva, com casamento e dando suporte para que as escolas consigam realizar as atividades propostas e solicitadas.

 

CRE/B: Olha, [o papel] das escolas é colocá-lo em prática. Da Coordenadoria, na verdade a gente participa em partes, mas a gente costuma dizer que a gente é executor de tarefas. E o Estado [RS] é que está construindo a partir da legislação federal. Então isso é o que acontece. A CRE poucas vezes foi chamada para conversar, apesar de algumas vezes, mas geralmente é esse o nosso papel, executor de tarefas.

 

A influência do papel gerencialista na redefinição do papel do professor como cumpridor de tarefas e entregador de resultados está em conformidade com o apontado pela literatura (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016; GOODSON, 2019; MASSCHELEIN; SIMONS, 2018; LAVAL, 2004). Desse modo, as leituras e releituras que os sujeitos escolares fazem do texto da política e das orientações para sua operacionalização é sempre permeada pela percepção da exigência de cumprimento de determinações legais e, por consequência, de um conjunto de tarefas que tornam possível um novo modelo educacional. Desse modo, cumprir o roteiro é uma obrigação para o sucesso da reforma, entretanto, tal pensamento reducionista e gerencialista, desconsidera o potencial criativo dos sujeitos escolares na reinterpretação das orientações e projeção das ações escolares (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). A retórica de que tudo foi pensado da melhor forma, mesmo excluindo os sujeitos escolares, e que agora cabe a eles colocar em prática da melhor forma é uma postura perversa de responsabilização daqueles sujeitos que foram desconsiderados no processo. 

Talvez por estarem cientes dessa lógica, constatou-se que o acompanhamento das discussões a respeito da BNCC e do NEM ocorreu de forma ocasional pela maioria dos professores, conforme o Gráfico 2.

 

Gráfico 2: Acompanhamento das discussões a respeito da BNCC e NEM pelos professores.

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

Entretanto, é possível perceber que, apesar de uma quantidade expressiva dos professores considerarem a importância de serem ouvidos nas reformas e do contexto gerencialista de implantação no NEM, há um envolvimento significativo dos mesmos no acompanhamento das discussões, seja integralmente ou ocasionalmente. Tal postura mostra que há uma preocupação quanto às discussões em torno de tais políticas, já que elas interferem diretamente na sua vida profissional.

Os meios de acompanhamento das discussões mais utilizados pelos professores revelam a centralidade do papel da direção e coordenação pedagógica das escolas como canais de informação, seguidos dos canais oficiais da SEDUC e redes sociais, de acordo com o Gráfico 3. Observa-se, com isso, que a direção e a coordenação pedagógica são os sujeitos escolares responsáveis pela interlocução direta com as demais instâncias reguladoras.

 

Gráfico 3: Meios utilizados pelos professores para acompanhar as discussões a respeito da BNCC e do NEM. (Atualização do gráfico)

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

A respeito da leitura dos textos da BNCC e do NEM, a maioria dos professores afirma que fez uma leitura parcial dos documentos, conforme o Gráfico 4. Percebe-se, desse modo, que, apesar da centralidade dos documentos para reorganização do Ensino Médio, a preocupação com a leitura na íntegra de tais documentos foi de apenas um grupo e, apesar de menor, há um outro grupo que leu muito pouco ou nem leu os documentos. A leitura parcial da BNCC, pode ser explicada pelo fato de ser um documento prescritivo de conteúdos, habilidades e competências por etapa, série, componente curricular e/ou área do conhecimento, desse modo, é compreensível que os professores tenham dado mais atenção àquelas especificidades ligadas a sua esfera de atuação docente. Já o texto legal da reforma do ensino médio propõe alterações na forma de compreensão e finalidade do ensino médio e deveria ser de interesse geral. Quais as condições de participação e questionamentos a respeito da implementação do NEM dos professores que conhecem parcialmente, conhecem pouco ou não conhecem os documentos?

Gráfico 4: Leitura dos textos da BNCC e do NEM pelos professores.

Fonte: Elaborado pelos autores

 

Todavia, se, por um lado, levarmos em consideração as manifestações, já citadas dos gestores, de que as estratégias para implantação da reforma vieram prontas das instâncias superiores, então a participação dos professores não foi requisitada e, portanto, não houve espaço para questionamentos; se levarmos em consideração que, apesar do pacote para a implementação chegar pronto às escolas, coube aos professores e gestores a condução e execução do processo, fica claro, desse modo, que a participação, o questionamento e o diálogo estão localizados no núcleo institucional da escola. Assim, o espaço privilegiado para as contribuições dos professores continua restrito ao interior da escola, sendo que as grandes e impactantes mudanças são protagonizadas do exterior à revelia da avaliação daqueles grupos de profissionais que efetivamente fazem o processo educativo acontecer. Considera-se, nessa direção, que mesmo em um cenário restrito e controlado de participação, para contribuir de forma crítica e criativa é necessário o conhecimento dos documentos orientadores e discussões mais amplas a respeito das reformas, como as desenvolvidas por pesquisadores da área de educação publicizados em diversos meios de comunicação. Entretanto, percebe-se que a literatura especializada não é a mais acessada pelos professores.

As fontes de informação, o conhecimento do texto da política, as experiências individuais e coletivas e o contexto da escola interferem diretamente na interpretação e na tradução do texto da política pelos sujeitos escolares, produzindo novas formas de compreensão, ação e resistência (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), assim como, diversas perspectivas quanto às condições de trabalho e futuro profissional (GOODSON, 2019; MASSCHELEIN; SIMONS, 2018; LAVAL, 2004). A afirmação do Coordenador do Novo Ensino Médio (CNEM/B) de uma das escolas participantes da pesquisa mostra que o contato com a proposta do NEM se dá no momento da implementação como escola piloto: “O primeiro contato que a gente teve com o novo ensino médio foi o convite para sermos escola-piloto, né. Depois de ouvir na imprensa sobre a mudança, a escola como escola, o primeiro contato que a gente teve foi o convite”. O posicionamento de um dos diretores entrevistados reforça tal afirmação:

 

DG: Eu posso te dizer assim: primeiro os professores não participaram da construção desta reforma; se tivessem participado a acolhida da reforma teria sido mais tranquila; então, os meus professores não participaram da construção da reforma, quem apresentou a reforma fui eu como diretor e o professor X que na época era meu vice-diretor do turno da manhã e que se dispôs a ir para Porto Alegre para tomar conhecimento da tal reforma.

 

Ou seja, durante o período de discussão e disputas envolvendo a reforma, tanto professores quanto escolas acompanharam de longe, como expectadores, corroborando a quase nula participação dos professores na elaboração da reforma. Tal característica é típica de uma mudança que é gestada externamente. Estando à margem das discussões, é compreensível que os professores tenham acompanhado as discussões ocasionalmente, tenham conhecimento parcial dos documentos e que a fonte de informação preponderante provém das equipes diretivas que trazem as informações para as escolas. Dessa forma, as equipes diretivas, além de atualizarem os professores, também, são responsáveis pela condução do processo de implementação da reforma, que, obedecendo a ordem burocrática, emana da SEDUC para a CRE, dessa para as equipes diretivas e dessas para os professores, sendo que às duas últimas, conforme mencionado acima, cabe o papel de execução.

Outro fator de desmobilização dos professores para conhecimento e aprofundamento dos documentos é que as mudanças constantes, e sem a participação dos professores, tornaram-se algo naturalizado. A manifestação do CNEM/B deixa clara a percepção de que, apropriados das mudanças e com o trabalho de pilotagem em andamento há dois anos, a escola se depara com uma nova mudança: 

CNEM/B: Valeu, tanto é que eu te digo que estava bom até aqui, se essa nossa entrevista tivesse sido há quinze dias atrás, você estaria diante de outra pessoa e de outra ideia. Porque, eu estava encantado, a escola estava dando certo e nós estávamos, como eu te falei, inclusive sendo destaque na comunidade por causa do trabalho que a gente estava desenvolvendo. É bom até para vocês saberem que o novo ensino médio já é velho.

 

Ou seja, o trabalho desenvolvido pelos professores como escola piloto não foi considerado no momento de impor mais uma mudança a ser acatada pela escola.  É a mesma constatação realizada por dois outros coordenadores:

CNEM/C: A minha frustração hoje é o que foi apresentado lá em 2018 e início de 2019 se perdeu muito, foi feito uma proposta depois foi feito outros encaminhamentos que a gente acabou pilotando dessa metodologia e que agora vamos voltar para a primeira proposta, então isso não é bom.

 

CP/B: Então, a gente teve muitas dificuldades e a formação foi o que menos chegou para nós. [...] aconteceu muito durante o período da pandemia, da gente receber uma informação hoje e na outra semana já não ser mais a mesma, e daí a gente ter que modificar totalmente a forma de trabalho. [...] a princípio na pandemia a gente não construiu nada, a gente só executou, aquilo que veio pronto.

 

            Desse modo, é perceptível que as descontinuidades são constantes e não levam em consideração as trajetórias das escolas, a motivação e empolgação com o trabalho realizado, assim como, as dificuldades e desafios de cada contexto (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). A lógica da mudança externa não está preocupada com o cotidiano da escola e com as pessoas, ela está focada no gerencialismo e esse desconsidera os desafios concretos da prática educacional (GOODSON, 2019; MASSCHELEIN; SIMONS, 2018; LAVAL, 2004). Fica difícil para os professores e gestores escolares, nesse cenário, acompanharem e se adequarem às novas orientações, pois é um processo constante de refazer, fato que é agravado pelas condições de trabalho dos docentes.

Tanto a BNCC quanto o NEM são políticas públicas robustas, já que instituem mudanças substanciais nos currículos escolares e colocam novas exigências profissionais para os docentes e gestores. No entanto, os seus desdobramentos não atingiram aspectos fundamentais da carreira docente e condições de trabalho. Não é novidade que os professores, há muito tempo, demandam melhores condições de trabalho, salários, valorização profissional, os quais são parte dos problemas estruturais do ensino médio. Soa estranho, entretanto, que uma reforma que se diz pautada pelos problemas mais urgentes do ensino médio ignore tais aspectos e não se desenhe perspectivas sérias para o enfrentamento de tais problemas. A manifestação de um coordenador pedagógico denuncia que um dos grandes problemas para consolidar processos complexos como o NEM é justamente o vínculo precarizado da maioria dos professores:

 

CP/B: Como nós temos no Estado do Rio Grande do Sul uma gama muito grande de contratados, então, esse pessoal não tem vínculo com a escola. Então, toda e qualquer caminhada que você passa com o pessoal que não é efetivo chega num determinado momento que rompe, chega um outro profissional e a gente tem que começar tudo de novo.

           

            Segundo informações da página oficial da SEDUC, o último concurso público para o magistério ocorreu em 2013. Desde então, têm se intensificado os contratos temporários ou emergenciais para atuação na rede estadual. Como o próprio nome indica, são “emergenciais”, ou seja, contratos com tempo determinado, firmados no início de cada ano letivo com duração aproximada de dez meses, desvinculados de plano de carreira. Nota-se que esse modelo de contratação de docentes segue a dinâmica do capitalismo contemporâneo de retração dos direitos trabalhistas, em nome de uma suposta necessidade de ajuste fiscal das contas do Estado, em que se legitimam os baixos salários, as contratações temporárias, a desresponsabilização do Estado e do setor empresarial com os encargos da seguridade social, que são essenciais para a perspectiva de futuro dos profissionais da educação. Isso representa, portanto, a acentuação da precarização das relações de trabalho dos professores.

Como é possível observar no Gráfico 5, dos 163 professores que responderam ao questionário, 64 (39%) declararam serem concursados. É impressionante o número de professores somente com contrato temporário, que chega a 78 (48%), e daqueles que, embora estejam concursados, possuem um contrato temporário para complementação (21,13%). Nota-se, a partir dos dados, que 61% dos professores respondentes, ou seja, praticamente dois terços dos professores, possuem pelo menos um contrato temporário.

 

Gráfico 5. Tipo de vínculo dos professores com as escolas de ensino médio.

Fonte: Elaborado pelos autores

           

O vínculo empregatício temporário, associado ao número de escolas e à carga horária dos professores, significa condições de trabalho adversas para a grande maioria dos professores responsáveis pela implementação do NEM, a respeito da qual serão cobrados e julgados socialmente. Tais condições precárias são exemplificadas pelas declarações indignadas de um Diretor:

DH: Uma das coisas que dificulta bastante é essa questão do professor contratado, que trabalha em duas, três, quatro escolas, daí ele não consegue participar da reunião pedagógica e daí ele está sempre por fora.  Porque ele chega sempre na hora e vai direto para sala de aula, ele sai dali porque ele tem outra escola, nós temos professores aqui que tem quatro escolas e daí se perde muito. Nós teríamos que ter grupos de professores que fossem exclusivos para aquela escola, que ele não tivesse de trabalhar em uma, duas, três, quatro escolas para ele poder sobreviver. Porque os professores têm que trabalhar em tantas escolas? Para ele ter um salário para conseguir sobreviver. [...]. Eu tenho em torno de 41 professores que estão na ativa e tenho quatro ou cinco de laudos, de 41 professores eu não consigo tirar 10 que trabalham exclusivamente dentro da minha escola, porque trabalha em três ou quatro escolas ou até em outro município.

 

Sobre esse aspecto das condições de trabalho docente, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) divulga anualmente o Censo Escolar da Educação Básica, tendo como um de seus indicadores o esforço docente (IED). Os dados de 2021 revelam que, em âmbito nacional, pouco mais da metade dos professores do ensino médio (55,4%) estão nos níveis 4 e 5, em uma escala que vai até 6. Desse total, a maior parte se situa no nível 4 (42,4%), no qual o docente tem entre 50 e 400 alunos e atua em dois turnos, em uma ou duas escolas; outra parte significativa de docentes se situa no nível 5 (13%), em que o docente tem mais de 300 alunos, atua em três turnos, em duas ou três escolas (INEP, 2021). No estado do Rio Grande do Sul, a porcentagem de professores de ensino médio nos níveis 4 e 5 é ainda maior, 45,5% e 15,1%, respectivamente. Isso representa 60,6% dos professores (INEP, 2021).

Quando se observa os Gráficos 6 e 7, é possível verificar o número de escolas e a carga horária semanal de trabalho dos professores da rede estadual das escolas-piloto da pesquisa.

 

Gráfico 6: Número de escolas que os professores trabalham.

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

 


Gráfico 7: Carga horária semanal dos professores.

 

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

            Quando se analisa informações mais pormenorizadas dos questionários (Gráfico 8), percebe-se que os professores concursados tendem a estar em uma escola apenas, enquanto que a maioria dos contratados temporariamente atuam em duas ou três escolas.

Gráfico 8: Relação do tipo de vínculo empregatício com o número de escolas em que trabalha

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

Quando questionado sobre a situação de trabalho dos professores contratados temporariamente, um dos gestores responsáveis pela implementação da reforma na região educacional e com grande conhecimento dos processos internos do NEM no estado do RS afirmou:

CRE/A: Realmente, nas escolas, na sua grande maioria o número de professores contratados é maior do que o de nomeados. [...]. Eu vejo de maneira negativa, sim, porque eu sou professora nomeada há mais de 25 anos e trabalhei em poucas escolas. Nas escolas que eu trabalhei, realmente você acaba criando um vínculo com a escola. Eu trabalhava 40 horas nomeada na mesma escola e tive colegas que eram contratados e trabalhavam em três ou quatro escolas, então, muitas atividades que a gente ia fazer de forma interdisciplinar ou que envolvesse atividades extracurriculares, esses professores não podiam participar porque eles estavam em outra escola, ou porque eles não tinham tempo, ou porque também não tinham desejo. Eles não tinham aquele vínculo com a escola, então, acredito que faz diferença. Penso que nessa implementação do novo Ensino Médio teria que ter concurso, sim.

           

Pelo fato de integrar a equipe que conduz a implementação do NEM regionalmente, o gestor foi questionado se havia essa preocupação da SEDUC em aliar a reforma com a melhoria das condições de trabalho dos professores. A resposta foi bastante vaga: “Acredito que sim [...]. Eu acredito que estamos no caminho, acredito” (CRE/A). O gestor ao mesmo tempo que reconhece o tipo de vínculo dos professores com a escola como um dos grandes problemas do ensino médio, quando perguntado sobre o que realmente está sendo feito para resolver isso, afirma que os desafios são muitos e, por isso, não há como resolver tudo de imediato. Há, ao mesmo tempo, um reconhecimento dos problemas e uma posterior relativização deles.

Conclusões

O presente estudo buscou compreender, analisando questionários e entrevistas, a percepção dos professores sobre seu nível de participação e envolvimento no processo de concepção e implementação do novo ensino médio. Constata-se, a partir da análise realizada, que a reforma do ensino médio, desde a sua concepção até sua execução, está ancorada em relações externas de mudança, ou seja, as mudanças são pensadas e projetadas no exterior da escola e chegam até ela com um alto grau de estruturação e padronização. Desse modo, evidencia-se que os professores veem a si mesmos como espectadores, destinatários ou, ainda, entregadores de pacote formativo, ou seja, cabe-lhes acompanhar o desenrolar da construção da política realizada externamente, para, em seguida, apropriar-se do texto da política, aguardar as orientações a respeito da sua implementação e executar o plano estadual de implementação.

Apesar do destaque dado pelos professores à importância de serem ouvidos e de serem levadas em consideração as suas experiências, esforços e demandas, nota-se que não são ouvidos pelos reformadores, pois a força motriz das reformas é corporativa e mercadológica e os objetivos a serem atendidos acabam por reduzir-se a essas expectativas. A maledicência e exclusão do conhecimento especializado e a desatenção às contribuições dos professores é reveladora de uma intencionalidade que tenta mudar a escola de fora para dentro, cujos fins, apesar de polidos pelo discurso da busca pela qualidade da educação pública, é notadamente mercadológico. Nessa lógica, o currículo, a pedagogia e a avaliação passam a existir sem o papel ativo do professor, sem sujeitos, desistoricizado.

Seguindo esse viés, observa-se que a reforma do ensino médio – promotora de grandes alterações na organização escolar, seja no âmbito dos componentes curriculares ou da própria organização da jornada escolar – acontece sem uma discussão acerca da carreira e condições de trabalho do professor. Ou seja, a preocupação está centrada na transformação do currículo e nas suas novidades (que não são novas) sem considerar a estrutura e o funcionamento do trabalho docente à qual é necessária e fundamental para que o processo aconteça. Sabe-se que não acontecem melhorias nos processos formativos sem as condições adequadas de trabalho e remuneração justa para os professores, no entanto, ignora-se tal dimensão profissional. As condições precárias de trabalho impedem que os professores participem ativamente de processos reflexivos da reforma educacional; o número elevado de escolas impede-os de atuar de modo colaborativo em âmbito interdisciplinar, como, por exemplo, é a exigência dos itinerários formativos. Na medida em que as demandas dos professores, relacionadas à docência e ao cotidiano da escola, são ignoradas, desconsidera-se a sua condição de sujeitos/agentes, a construção de sua identidade profissional e o seu desenvolvimento profissional.

É muito comum a exigência de que os professores se adaptem às tecnologias digitais, desenvolvam aulas criativas, atraentes, conectadas com os interesses dos jovens do ensino médio. Ao mesmo tempo que se consolida uma retórica do professor como responsável para que a mudança aconteça em termos de ensino e aprendizagem, é invisibilizado e ignorado, seja na definição de políticas de abrangência nacional, como a reforma do ensino médio e a BNCC, seja nos projetos micro de implementação dessas políticas. Aos professores, seja exercendo a docência ou a gestão escolar, cabe-lhes o papel de executores, sendo rotineiramente responsabilizados, pois, nos momentos de avaliação e divulgação dos resultados que medem a suposta qualidade da educação pública, os reformadores nunca são responsabilizados e julgados, mas os professores, sim.

Em síntese, as percepções dos professores indicam que o processo de implementação da reforma está negligenciando aspectos decisivos para que uma real mudança aconteça na etapa do ensino médio. Há uma latente desconsideração por parte do Estado com relação ao índice de esforço docente, que interfere diretamente na qualidade do trabalho e na saúde do professor, embora seja um indicador constatado pelo próprio MEC. Além disso, os professores não são ouvidos e consultados a respeito das políticas educacionais que interferem diretamente no seu trabalho, apesar da retórica de que a participação, engajamento e protagonismo docente é fundamental. As próprias condições materiais de sobrevivência não lhes permitem atualização constante, seja pela remuneração defasada ou pelo pouco tempo disponível em razão da carga horária de trabalho, apesar da defesa pública ressaltar a importância e a necessidade do professor estar atualizado na sua área de atuação e dominar as tecnologias. Por fim, o trabalho temporário e a fragilidade de vínculo com a escola não permitem o exercício da sua criatividade e o engajamento em ações coletivas.

Referências

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INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Indicador de Esforço Docente, 2021. Brasília: MEC, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/indicadores-educacionais/esforco-docente. Acesso em: 12 mar. 2021.

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