Dossiê

Infâncias, diferenças e pandemia: a exacerbação das violências sobre a vida das crianças

Vanderlete Pereira da Silva

Universidade do Estado do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil.

vanderletesilva@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0001-9353-3110

 

Lucinete Gadelha da Costa

Universidade do Estado do Amazonas. Manaus, Amazonas, Brasil.

lucinetegadelha@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-2433-123X

 

Célia Ratusniak

Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Paraná, Brasil.

celiaratusnia@ufpr.br - https://orcid.org/0000-0002-0608-8838

 

Clenio Perlin Berni

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil.

clenioberni@gmail.com

 

Sueli Salva

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil.

susalvaa@gmail.com

 

Recebido em 30 de março de 2022

Aprovado em 30 de março de 2022

Publicado em 25 de abril de 2022

Apresentação

As crianças, no decurso da história da humanidade, sempre vivenciaram experiências de violências. O que propomos neste dossiê são discussões sobre essa questão e sua exacerbação na contemporaneidade, agravada e exposta pela pandemia da Covid-19. Objetivamos dar visibilidade às distintas e permanentes formas de violências que vitimam as crianças, não se restringindo aos países com abissais desigualdades sociais como o Brasil, mas que também estão presentes em países chamados de desenvolvidos. Essa condição as impede de vivenciarem suas infâncias plenamente. 

Reunimos pesquisadoras e pesquisadores da Região Norte e Sul do Brasil, da França e Itália, buscando problematizar e explicitar como têm sido produzidas e conduzidas políticas e ações de controle e gerenciamento da pandemia especificamente direcionadas às infâncias, e o quanto a pandemia tem evidenciado a vulnerabilidade das crianças diante do recrudescimento das violências contra as populações subalternizadas de diferentes povos, raça/etnia, gênero, classe social, religião, idade, território e nacionalidade onde estão “inclusas”. 

Durante os sete meses em que este dossiê estava sendo construído, o cenário foi se modificando. Passamos pelos efeitos da variante Delta, período em que o Brasil teve mais de quatro mil mortes diárias. E, mesmo num contexto de negacionismo e de campanhas anti-vacina orquestradas pelo próprio governo federal, a vacinação avançou, diminuindo consideravelmente as mortes, firmando a imunização como estratégia eficaz no combate ao vírus. Ainda em 2021, a população adolescente foi incluída no Plano Nacional de Vacinação, e no início de 2022 foi a vez das crianças. 

A inserção das crianças de 5 a 11 anos não se deu de forma consensual entre governo e instituições ligadas à saúde. A Associação Médica Brasileira, em 27 de dezembro de 2021, através de seu Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19, manifestou-se favorável à vacinação em crianças de 5 a 11 anos, alertando que essa faixa etária também pode desenvolver sequelas e Covid longa, produzindo um documento que foi assinado por 15 sociedades, associações e federações brasileiras ligadas à Medicina (MATOS, 2021). 

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aprovou a vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos em 16 de dezembro de 2021, com a consultoria e acompanhamento de especialistas da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, Sociedade Brasileira de Imunologia e Sociedade Brasileira de Pediatria (BRASIL, 2021a). 

            Mesmo com as entidades médicas e a Anvisa se posicionando favoravelmente à imunização das crianças, o Ministério da Saúde, através da Secretaria Extraordinária de Enfrentamento da Covid-19, lançou uma consulta pública a respeito da vacinação no período de 23/12/2021 a 02/01/2022 (BRASIL, 2021b).  O resultado foi publicado no Relatório Técnico Covid/MS nº1, disponível no site do Ministério da Saúde, relatando que 99.309 pessoas participaram da consulta pública e responderam a cinco perguntas. Destas, destacamos uma sobre a concordância ou não com a vacinação de crianças de 5 a 11 anos. Cabe ressaltar que a redação da pergunta poderia induzir ao erro, pois ela indagava se a/o participante concorda com o posicionamento do MS pela não obrigatoriedade da vacina, como podemos perceber: Você concorda com a vacinação de crianças de 5 a 11 anos de forma não compulsória, conforme propõe o Ministério da Saúde? O resultado mostra que 53% responderam sim a essa questão e 47% não (BRASIL, 2022a). 

No dia 4 de janeiro de 2022, o Ministério da Saúde promoveu uma audiência pública com especialistas na área para discutir a inserção de crianças de 5 a 11 anos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, atrasando ainda mais o início da imunização dessa população. Foi somente no dia 15 de janeiro de 2022 que elas começaram a ser vacinadas. O resultado dessas manobras políticas é a pouca procura das famílias pela vacina. 

A reportagem da CNN publicada em 04 de fevereiro de 2022 nos mostra que a campanha de imunização naquela data ainda não tinha atingido 50% da população almejada. Cabe ressaltar que apenas 12 cidades enviaram os dados. A matéria ainda explicava que a vacinação estava sendo feita de forma escalonada porque o Ministério da Saúde não disponibilizou doses suficientes para toda a população (RESENDE, 2022).

Trinta dias após a recomendação da ANVISA as crianças começaram a receber a vacina, em meio a uma enxurrada de fake news sobre seus efeitos nas crianças. A estratégia de escalonamento fez com que se perdesse a oportunidade de que retornassem às aulas totalmente imunizadas. O vacinômetro do Ministério da Saúde nos indica que no dia 23 de fevereiro de 2022, 5.230.303 doses de vacinas contra Covid 19 foram aplicadas em crianças de 5 a 11 anos. Para a população de 12 a 17 anos, temos 15.624.299 adolescentes com a 1ª dose e 10.159.110 com a segunda (BRASIL, 2022c). Ao confrontarmos o número de crianças e adolescentes disponibilizados pelo Observatório da Crianças e do Adolescente da Fundação Abrinq (ABRINQ, 2021) com o número de doses aplicadas nessa população, concluímos que apenas 47% foram vacinadas, isso sem considerar as crianças de 5 anos. Em Manaus, por exemplo, 30 dias após o início da vacinação, apenas 17% das crianças foram imunizadas (INFORME AMAZONAS, 2022). 

            Os artigos que compõem esse dossiê problematizam a travessia das crianças pela pandemia. São resultados de trabalhos de pesquisa realizados no Brasil, na França e na Itália, que nos permitem compreender os diferentes contextos de violências nos quais as crianças foram/são expostas no contexto pandêmico.  

As professoras Célia Ratusniak e Vanderlete Pereira da Silva, no artigo “Deus abençoe o nosso Brasil” - recomendações para o retorno às aulas presenciais das crianças: a travessia da biopolítica à necropolítica, analisam o discurso do Ministro da Educação do Brasil, Miltom Ribeiro, proferido no dia 20 de julho de 2021, conclamando o retorno às aulas presenciais. No pronunciamento, dados sobre a situação da pandemia são omitidos, distorcidos ou apresentados de maneira equivocada, construindo um contexto de pós-verdade. O texto problematiza esses dados, mapeando as táticas que borram a realidade e inventam um cenário com ações do Ministério da Educação que teriam garantido todas as condições para que o direito à Educação e as medidas de proteção sanitárias tivessem sido disponibilizadas pelo governo federal durante a pandemia. Também apontam as estratégias discursivas que acionam o poder pastoral (FOUCAULT, 2008), e que entrelaçadas ao biopoder (FOUCAULT, 1988) são usadas pelo ministro na condução das condutas, mostrando o caminho da salvação da Economia e do futuro das crianças e dos adolescentes, que passaria pelo retorno presencial a qualquer custo. Também mostra a insuficiência de financiamento para que as escolas pudessem adotar as medidas sanitárias necessárias para o retorno seguro às aulas. Assim, a travessia na pandemia expôs a morte e deixou morrer muitas pessoas para que o retorno presencial fosse imposto. 

No artigo Violência simbólica e práticas escolares: um estudo com crianças indígenas, o professor Roberto Sanches Mubarac Sobrinho apresenta os resultados de uma pesquisa etnográfica realizada em uma comunidade indígena urbana, e em duas escolas públicas que atendem um grupo de 12 crianças da etnia Sateré-Mawé, residentes na cidade de Manaus/Amazonas/Brasil. Os leitores e as leitoras são convidados/as a dialogar com aporte teórico e metodológico oriundo dos estudos de Pierre Bourdieu. Para tanto, é tomada como referência a relação entre as culturas escolares e a cultura do povo Sateré-Mawé. Na escuta das vozes das crianças Sateré-Mawé foram priorizados dois elementos: o ser criança e o brincar. O autor destaca que a concepção de infância para os Sateré-Mawé é delimitada pela existência de um ritual de transitoriedade, que demarca de forma muito evidente o mundo infantil e o mundo adulto. Por fim, são destacados os movimentos fronteiriços entre a cultura Sateré-Mawé e a violência simbólica ocorrida no espaço escolar. Onde as fronteiras se distanciam, são constatadas manifestações e processos de violência simbólica. Na interação com os dados apresentados podem ser observados o confronto do saber “legítimo” da escola sobre o saber da cultura Sateré-Mawé.

O artigo O aumento da violência intrafamiliar na França durante a pandemia. Do que estamos falando?, escrito pela professora e socióloga Vanessa Stettinger, questiona se a pandemia aumentou essa forma de violência ou se os serviços disponibilizados nesse período facilitaram e incentivaram as denúncias, resultado de ações e políticas anteriores à pandemia. A autora traz para o artigo dados de sua pesquisa etnográfica sobre a construção de vínculos familiares com famílias em situação de pobreza, realizada anteriormente à pandemia, e que retrata um interessante e intenso trabalho sobre a construção de vínculos intrafamiliares. Stettinger alerta para o risco da posição de subalternidade a que podem ser colocadas as famílias com o perfil daquelas que pesquisou, o que faz com que quase sempre sejam vistas na falta, nomeadas como pobres e como responsáveis pela sua condição, numa perspectiva individualizante. Por fim, conclui que estar em situação de pobreza deixou as famílias mais expostas e mais vulneráveis. A pandemia evidenciou situações de violência intrafamiliar que já existiam antes, ela não produziu violência entre pais/mães e filhos/filhas, mas, nas palavras da autora "testou vidas frágeis".   

O artigo Os efeitos da crise da Covid-19 e das medidas de confinamento sobre o bem-estar das crianças confiadas à proteção da infância, escrito pela psicóloga e professora Emmanuelle Toussaint e pelo psiquiatra Daniel Rousseau,  analisa  os impactos favoráveis ​​ou desfavoráveis ​​ no bem-estar e na qualidade de vida das crianças de menos de cinco anos, protegidas em instituições de acolhimento na França e em pessoas adultas responsáveis pelo seu cuidado, durante a crise sanitária imposta pela pandemia de COVID-19. A pesquisa traz importantes contribuições para compreender os efeitos do confinamento nas crianças e as modificações das práticas nas instituições que as atendem. Os resultados permitem identificar fatores ou estratégias de intervenção favoráveis à saúde mental desse público, que possui necessidades específicas. Também produzem conhecimentos que podem fundamentar recomendações para melhor adequar as práticas profissionais na proteção da criança e reduzir as desigualdades em saúde.

A professora Clara Maria Silva, no artigo Educação e cuidados das crianças no tempo do coronavírus. A resposta dos serviços educativos italianos, aborda os impactos pedagógicos da situação de emergência em saúde pública de importância internacional (Pandemia de Covid-19). Para tanto, apresenta o marco político e regulatório nacional da Itália, com foco sobre a realidade da Toscana, região central do país. Os resultados apresentados demonstram como as restrições decorrentes da pandemia impactaram o cotidiano educacional no atendimento às crianças pequenas. Nesta leitura, somos convidadas/os a vislumbrar um cenário de esforço tanto da gestão das rotinas institucionais quanto dos desdobramentos das novas relações estabelecidas com as famílias das crianças. A autora apresenta os movimentos e algumas estratégias utilizadas pelos serviços educacionais para o estabelecimento da relação educacional à distância, durante o confinamento, e a dinâmica das atividades na retomada do ano letivo 2020-21. No panorama de dados discutidos no texto, destacam-se os desafios e as possibilidades criadas por educadoras/es no cenário inovador de aprendizagens. Por outro lado, debruçamos o olhar para dados do contexto familiar, para a posição peculiar em que os pais e mães passaram a interagir compartilhando mais diretamente a dinâmica entre os seus filhos, as suas filhas e  educadoras/es. 

O dossiê Infâncias, diferenças e pandemia: a exacerbação das violências sobre a vida das crianças traz questionamentos sobre a crescente precarização da vida, numa estratégia de denúncia e de reivindicação do direito à proteção das crianças, com problematizações que permitem compreender as opressões potencializadas pela pandemia. Muitas questões e desafios são colocados para as instituições responsáveis pelo cuidado e pela proteção, o que faz com que as pesquisas tenham um papel fundamental na investigação sobre como esses serviços estão sendo ofertados e seus efeitos nas diversas infâncias. Os trabalhos apresentados aqui nos mostram que travessia da pandemia impôs às/aos profissionais que trabalham com crianças desafios que exigiram muita inventividade e comprometimento para a garantia de direitos, mas que esses precisam estar atrelados às políticas públicas efetivas e permanentes, num compromisso do Estado.

Referências

ABRINQ. Observatório da Crianças e do Adolescente da Fundação Abrinq. População estimada pelo IBGE segundo faixas etárias. 2021. Disponível em: https://observatoriocrianca.org.br/cenario-infancia/temas/populacao/1048-populacao-estimada-pelo-ibge-segundo-faixas-etarias?filters=1,1626. Acesso em 23 de fev. 2022. 

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa. Anvisa aprova vacina da Pfizer contra Covid para crianças de 5 a 11 anos. 16/12/2021. 2021a Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2021/anvisa-aprova-vacina-da-pfizer-contra-covid-para-criancas-de-5-a-11-anos. Acesso em: 09 fev. 2022.  

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório Técnico. Consulta Pública SECOVID/MS n. 1. 2022a Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt- br/composicao/secovid/Comunicados/2022/fevereiro/caderno-audiencia-publica-04-02-vsfinal.df/view. Acesso em: 09 fev. 2022.

 

BRASIL. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. CONSULTA PÚBLICA SECOVID/MS Nº 1, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2021. 2021b Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/consulta-publica-secovid/ms-n-1-de-22-de-dezembro-de-2021-369263243/ Acesso em: 09 fev 2022.

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Vacinômetro COVID-19. 23 fev. 2022. 2022c. Disponível em: https://infoms.saude.gov.br/extensions/DEMAS_C19_Vacina_v2/DEMAS_C19_Vacina_v2.html. Acesso em: 23 fev. 2022.

 

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

 

FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 

 

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html?utm_source=portal&utm_medium=popclock&utm_campaign=novo_popclock. Acesso em 07 fev. 2022.

 

INFORME AMAZONAS. Amazonas chega a mais de 100 mil crianças de 5 a 11 anos vacinadas contra Covid-19, 23 fev. 2022. Disponível em: https://informeamazonas.com.br/amazonas-chega-a-mais-de-100-mil-criancas-de-5-a-11-anos-vacinadas-contra-covid-19/. Acesso em: 23 fev. de 2022. 

 

MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018.

 

MATOS, Renato. Vacinas em crianças Posicionamento das sociedades médicas. 29/12/2021. Disponível em: https://www.4oito.com.br/blog/renato-matos/post/vacinas-em-criancas-posicionamento-das-sociedades-medicas-9068. Acesso em: 09 fev. 2022.

 

PORTAL DA TRANSFERÊNCIA. Especial Covid-19 uma ação dos cartórios civis do Brasil que atualizam permanentemente o número de óbitos. 23 de fev. 2023. Disponível em: https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid. Acesso em: 23 de fev. 2022. 

 

RESENDE. Isabelle.  CNN Brasil. Menos de 50% do público infantil recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid. 04/12/2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/menos-de-50-do-publico-infantil-recebeu-a-primeira-dose-da-vacina-contra-a-covid/ . Acesso em: 09 fev. 2022.

 

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