NÃO SE CALE – uma campanha digital feminista que instiga a capacidade da voz e da fala diante das violências[1]

DON’T BE SILENT – a digital feminist campaign that instigates the power of the voice and the speech in the face of violence


NO SE CALLE - una campaña digital feminista que instiga la capacidad de la voz y del habla ante la violencia

 

Maria Simone Vione Schwengber

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, RS, Brasil.

simone@unijui.edu.br   

 

 

Recebido em 28 de março de 2022

Aprovado em 14 de junho de 2023

Publicado em 17 de janeiro de 2024

 

RESUMO

Vive-se no Brasil uma história de naturalização ou mesmo de apagamento, de não inscrição, de não registro das violências. Como tentativa de saída ante as violências corporais, há movimentos pela via de políticas feministas digitais contemporâneas, que têm se expandido, ativando campanhas que evocam o debate sobre o silenciamento das violências ou que reivindicam práticas de não violência. De um conjunto de políticas feministas digitais, escolhemos a campanha NÃO SE CALE. O objetivo é analisar essa campanha a partir de seu enunciado reitor, a fim de compreender as condições de possibilidade históricas que motivam a enunciação da capacidade de fala diante das violências corporais. O corpus de análise da campanha, neste artigo, é constituído por imagens e dizeres enunciativos postados no perfil em redes sociais digitais, tais como Instagram, Facebook e Twitter. Para a análise, propomos um percurso metodológico inspirado na perspectiva foucaultiana, com o enunciado reitor NÃO SE CALE. Como resultado de análise, destacamos que a campanha se desdobra em dois movimentos interligados. A campanha NÃO SE CALE faz certa fissura. Por um lado, aponta que as mulheres podem falar, “devem falar” e não se calar diante das violências, sinalizando que o enfrentamento para ruptura do silêncio diante das violências passa pela dimensão de um cuidado de si, de um novo sujeito político, singular e ativo, que toma atitude diante das violências. Por outro lado, e ao mesmo tempo, mostra uma nova memória, de resistência, destacando que, em um mundo violento, a voz, a fala, aparecem como primeira arma.

Palavras-chave: Cuidado de si; Políticas digitais feministas; Violências.

                                                                 

ABSTRACT

In Brazil, there is a history of naturalization or even of erasure, of non-registration, of non-recording of violence. As an attempt to escape physical violence, some movements have expanded through contemporary digital feminist policies, activating campaigns that evoke the debate on the silencing of violence or that claim non-violent practices. From a set of digital feminist policies, we have chosen the DON'T BE SILENT campaign. The objective is to analyze this campaign from its guiding statement, in order to understand the historical conditions of possibility that motivate the enunciation of the ability to speak in the face of bodily violence. The corpus of analysis of the campaign, in this article, consists of images and enunciative sayings posted on the profile on digital social networks, such as Instagram, Facebook and Twitter. For the analysis, we have proposed a methodological approach inspired by the Foucauldian perspective, considering the statement DON'T BE SILENT. The results of the analysis have led us to highlight that the campaign unfolds in two interconnected movements. The DON'T BE SILENT campaign causes a certain fissure. On the one hand, it points out that women can speak, “must speak” and not be silent in the face of violence, signaling that the confrontation to break the silence in the face of violence involves the dimension of care of the self, of a new singular and active political subject who takes action when faced with violence. On the other hand, and at the same time, it shows a new memory, of resistance, highlighting that, in a violent world, the voice, the word, the speech emerge as the first option.

Keywords: Take care of yourself; Feminist digital policies; Violence.

 

RESUMEN

En Brasil se vive una historia de naturalización o incluso de borrado, de no inscripción o de no registro de la violencia. Como un intento de alejarse ante la violencia corporal, hay movimientos a través de las políticas feministas digitales contemporáneas, que se han ido expandiendo, activando campañas que evocan el debate sobre el silenciamiento de la violencia o que exigen prácticas de no violencia. De entre un conjunto de políticas feministas digitales, elegimos la campaña NO SE CALLE. El objetivo es analizar esa campaña desde el punto de vista de su enunciado principal, para entender las condiciones históricas de posibilidad que motivan la enunciación de la capacidad de hablar ante la violencia corporal. El corpus de análisis de la campaña en este artículo está compuesto por imágenes y enunciados publicados en el perfil en redes sociales digitales como Instagram, Facebook y Twitter. Para el análisis, proponemos un enfoque metodológico inspirado en la perspectiva de Foucault, con el enunciado principal NO SE CALLE. Los resultados del análisis muestran que la campaña se desarrolla en dos movimientos interconectados. La campaña NO SE CALLE establece una cierta fisura. Por un lado, señala que las mujeres pueden hablar, "deben hablar" y no callarse ante la violencia, señalando que la confrontación para romper el silencio ante la violencia implica la dimensión del cuidado de sí mismos, de un nuevo sujeto político, singular y activo, que actúa ante la violencia. Por otro lado, y al mismo tiempo, muestra una nueva memoria, de resistencia, subrayando que, en un mundo violento, la voz, el habla, surgen como la primera arma.

Palabras clave: Cuidado de sí mismo; Políticas digitales feministas; Violencia.

 

 

Evocando o debate sobre o silenciamento das violências

 

Durante séculos, as violências, como discriminação, importunações corporais, assédios, ameaças, humilhações, coerções e intimidações em casa, na rua e/ou on-line, “[...] mandam muitas, muitíssimas mulheres para o hospital e para o túmulo” (SOLNIT, 2017, p. 34). O fenômeno da  violência é transversal atingindo quase todas as raças, classes, religiões, nacionalidades, e de modo particular as mulheres (SOLNIT, 2017). Historicamente, as mulheres foram educadas a ficar silenciosas diante das violências, sendo, muitas vezes, consideradas como irracionais, mudas, inertes, menores, passivas.

Conforme Federici (2017, p. 81), até o século 17, as mulheres que falavam das violências eram ameaçadas de terem “suas línguas dilaceradas”, o que significava      despedaçar e/ou rasgar como uma forma de violência e punição pela tentativa de enunciação. Assim, grande parte das mulheres deparavam-se com uma pedagogia violenta, uma vez que as suas línguas eram tratadas como um atributo que exibia e alimentava as denúncias. Nesse sentido, um alfabeto violento instala-se na forma de uma razão comunicativa silenciosa, produzindo uma “linguagem estável e aceitável”, que passa a compor o cotidiano das coletividades de mulheres e de homens. A naturalização da violência, com o tempo, gerou certo automatismo de ações em      sociedades/comunidades, onde os sujeitos se mostram cada vez mais permissivos quanto a diferentes formas de violência.      

Arendt (2009) aponta que a violência se instala nos sujeitos e os amedronta: sob domínios violentos, os sujeitos tendem a calar-se; a palavra não revelada no espaço público esconde-se na opacidade do privado. As violências contra as mulheres são consequências de uma posição que define a condição “feminina” como inferior à condição “masculina”. As diferenças entre o feminino e o masculino são transformadas em desigualdades hierárquicas por meio dos discursos masculinos sobre a mulher, os quais incidem, especificamente, sobre os corpos das mulheres ou sobre partes deles (CHAUÍ, 2005). Chauí (2005, p. 43) afirma que, “[a]o considerá-los discursos masculinos, o que queremos notar é que se trata de um discurso que não só fala de ‘fora’ sobre as mulheres, mas sobretudo que se trata de uma fala cuja condição de possibilidade é o ‘silêncio das mulheres’”.

A violência, para Federici (2017), era (e é) ensinada (uma alfabetização) nas normas de convivência, sendo integrada ao desenvolvimento e talvez instalada no subconsciente coletivo como violação sistemática e corporativa, a ponto de muitos sujeitos nem sequer a notarem, pelo seu caráter silencioso e cumulativo. Trata-se de uma mensagem transmitida por meio de uma marca no corpo, uma cicatriz social como signo de violência, que se expõe nos corpos das mulheres como marca das tramas sociais, simbólicas e culturais que lhe dão legitimidade e, ao mesmo tempo, uma impunidade institucional histórica.

Ainda segundo Federici (2017), a constituição de uma estrutura coletiva das relações de gênero se deu com base na desigualdade, caracterizando-se como uma das organizações políticas mais arcaicas e permanentes da humanidade, de modo que estrutura o funcionamento de várias desigualdades de prestígio e de poder em outros âmbitos da vida. Assim, a acentuação da violência contra as mulheres constituiu-se historicamente em “uma estratégia deliberada, com o objetivo de propagar medo, destruir as resistências coletivas, silenciar comunidades de mulheres e ainda produzir estratégias de cercamento, que consistem em cercamentos de terra, de corpos” (FEDERICI, 2017, p. 40). Em síntese, afirma Federici (2017, p. 40), o corpo é, para as mulheres, “o principal terreno de exploração de violência, mas também o de resistência.”

Com o avanço, entretanto, dos movimentos feministas, as pautas de combate à violência de gênero expõem a violência da qual grande parte das mulheres era (e é) a vítima preferencial, o que caracteriza essa violência como problema político e de saúde pública, exigindo o cumprimento dos direitos humanos e a existência de processos educativos para homens e para mulheres. O feminismo vai mudando a maneira como entendemos os poderes, os direitos, as vozes e as representações. Junto com a disseminação das tecnologias digitais, os movimentos feministas – especialmente as ações de mulheres – foram propagando conhecimentos e se mobilizando cada vez mais, de acordo com as necessidades e em busca dos seus direitos – entre estes, o direito à palavra e à fala, o que se reflete na luta perante           as violências. Como diz Mia Couto (2012, p. 114) na obra A confissão da Leoa, “num mundo violento a palavra é como a primeira arma”.

Nesse sentido, destaco neste artigo que o outro lado do silêncio das violências é a fala, a palavra, enfim, as vozes. Aposto que o silêncio ante situações de violências corporais não produz possibilidade de amparo e, por que não, também de reparo. Ainda, o silêncio diante de situações de violências corporais faz perpetuá-las, impossibilitando o seu enfrentamento. A violência exige fala, e não silêncio. É isso, sobretudo, que algumas políticas digitais incitam e nos ensinam.

No Brasil, no tempo presente da segunda década do século 21, observa-se a emergência de um conjunto de políticas feministas digitais contra as violências. Desencadeadas e articuladas pelo movimento ciberfeminista, desdobram-se em uma série de campanhas, como #MeToo, de repercussão mundial, e movimentos de repercussão nacional, como #MeuPrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto, #chegadefiufiu, #mexeucomumamexeucomtodas,#NaoSeCale, #Denuncie, #Ajam, #JuntasContraViolencia, #VamosAgir, #VaiPassar, #EpidemiaViolenciaContraMulher, #TocomElas, #PorTodasElas, #meumotoristaabusador, #meumotoristaasseadiador, entre outras.

Dentro das políticas digitais feministas, escolho analisar a campanha NÃO SE CALE, que produz um alerta sobre as violências. Parte do pressuposto de que, quando você se cala diante delas, a violência fala mais alto.

A campanha NÃO SE CALE visa a produzir certa quebra ou fratura dos silêncios. Como destaca Foucault (2010), mansamente, as descontinuidades invadem, talvez garantindo a si o status de um acontecimento: aquele capaz de ajudar a produzir outra memória, de inserir-se descontinuamente no ritmo da permanência, sacudindo as estreitezas. Assim, o próprio tratamento dado a essa questão abre laços, reinscrevendo o silêncio das violências em outra ordem de saber, o que permite novas correlações, posições, funcionamentos e transformações. Para Foucault (2010, p. 147), a noção de descontinuidade é central, pois “[...] permite construir novo enfrentamento para o tempo presente”.

O movimento analítico, neste artigo, será o do enunciado reitor verbo-visual NÃO SE CALE, na tentativa de compreender as condições de possibilidade históricas que motivam a enunciação da capacidade de fala diante das violências corporais. Com base em Foucault (2008), venho compreender como o enunciado NÃO SE CALE emerge e se torna um acontecimento em um determinado tempo. Pergunto, então: quais as condições históricas de produção do NÃO SE CALE? Que formações discursivas regulam o enunciado reitor NÃO SE CALE?

 

Caminho metodológico – NÃO SE CALE como campanha digital feminista

O acompanhamento e o mapeamento da campanha venho fazendo desde 2017 até março de 2022 nas plataformas das redes digitais sociais Twitter, Facebook e Instagram. É possível localizar a divulgação da campanha em diversos meios digitais, por isso, pode ser descrita como uma campanha transmidiática, movida pelo enunciado reitor NÃO SE CALE. A campanha é divulgada também por diferentes Organismos Governamentais de Políticas para Mulheres (OPM), que, no Brasil, orientam os estados e os municípios a abordarem a violência, assim como órgãos em parceria com outras instituições, como a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), a Subsecretaria de Políticas Públicas da Mulher (SPPM), a Secretaria Especial de Segurança e Defesa Social (Sesdes), as Polícias Civil e Militar, o Conselho Nacional de Justiça, a Associação dos Magistrados Brasileiros e ainda as diferentes Secretarias de Estados Brasileiros, reforçadas por ONGs.

Vale salientar que aqui, intencionalmente, analisei uma amostra do corpus, a partir de uma seleção geral da campanha nas redes sociais digitais, utilizando sua imagem de perfil e de divulgação, tanto do Instagram quanto do Facebook e do Twitter.  Em 11 de janeiro de 2022, a campanha NÃO SE CALE encontrava-se nas plataformas Twitter (a mais antiga, com 90 mil seguidores), Instagram (com 13,1 mil seguidores) e Facebook (com 9.836 mil seguidores). A imagem do perfil foi escolhida porque é a primeira que os seguidores e os visitantes veem. Geralmente, é uma imagem filtrada, percebida de maneira diferenciada; é, digamos, uma criação de identidade online.

O foco analítico deste texto repousa no enunciado reitor NÃO SE CALE. Segundo Foucault (2010), os sujeitos são efeitos dos discursos. O discurso sustenta-se em enunciados, e há enunciados que têm a função de reitor, de regência, que rege, dirige. Foucault (2010, 27) compreende o enunciado reitor como uma “função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam conteúdos concretos, no tempo e no espaço”; ainda, o enunciado reitor funciona como matriz enunciativa que delibera os domínios das regras das demais formações discursivas (FOUCAULT, 2010).

Pertencemos ao tempo presente, concebidos à maneira foucaultiana, ou seja, pelos acontecimentos discursivos. Isso implica examinar as condições de possibilidade históricas de enunciações de dadas formas, e não de outras. Com efeito, sugere-se examinar o “solo histórico” dos acontecimentos discursivos dos enunciados, elencando as posições do sujeito na história que constituem os modos de enunciar a si, ao outro e aos objetos de saberes. Este artigo tem por objetivo analisar alguns enunciados verbo-visuais que materializam discursos da campanha NÃO SE CALE. A postura de análise vale-se de conceitos foucaultianos para identificar “rastros” de rupturas e mutações nos regimes de enunciabilidades, bem como a emergência do acontecimento discursivo.

Fundamento, a condução metodológica nos conceitos, de acontecimentos discursivos e enunciados (FOUCAULT, 2010). Considerando as materialidades verbo-visuais de três imagens da campanha, localizo as regras de formação discursivas que as compõem, com vistas a ampliar o repertório discursivo de enunciações. Em suma, agrupo a partir do material o que foi possível localizar em relação às novas formas de opor-se às violências.

Realizar uma análise discursiva orientando-se pela postura foucaultiana implica considerar questões como: “o jogo de regras históricas que definem as transformações de um objeto de discurso; as relações de coexistência entre os enunciados; a ruptura nas práticas discursivas e as descontinuidades que as atravessam” (FOUCAULT, 2010, p. 103). Trazer essas questões para o campo da análise do discurso permite problematizar a relação entre acontecimentos históricos e a enunciação, expondo também a relação entre o enunciado e a história. Localizar os enunciados demanda questionar seus modos de existência (FOUCAULT, 2010).

Por fim, considero os elementos visuais da composição das imagens, com base em Rose (2001) e Schwengber (2018). Destacando  os seguintes critérios, tais como: a superfície da imagem, a composição, a organização e a disposição; os enunciados de valores, ligados a uma maior ou menor posição na imagem; a gama de cores e suas relações de contraste; os elementos gráficos e a matéria da própria imagem, na medida em que proporciona a noção (pixel, no caso da imagem digital) a integração entre a subjetividade da imagem com a objetividade da mesma.

Na próxima seção, apresento o eixo analítico da campanha NÃO SE CALE, a partir do pressuposto do cuidado de si enquanto possibilidade de novas relações de dizer – da palavra –, uma vez que declarar os direitos humanos das mulheres de não serem violentadas, por si só, não dá conta da complexidade das violências. Parece que é preciso estimular, por meio do exercício da cidadania da palavra e da fala, uma ação pedagógica com participação direta das mulheres, com um protagonismo que as leve à autoria de si, podendo não só problematizar, mas também desconstruir as práticas discursivas que retroalimentam e legitimam a violência.

 

O cuidado de si diante das violências: as vozes, as palavras, as falas

Com base em Foucault (2008), busco compreender como o enunciado NÃO SE CALE emerge e se torna um acontecimento em um determinado ponto do tempo presente (FOUCAULT,2008). Como afirma Foucault (2008), o discurso é um fragmento, uma unidade enunciativa e descontínua na própria história, que coloca um tema/problema de modo próprio em uma temporalidade no tempo presente (FOUCAULT, 2008).

A partir dessa perspectiva, a intenção é mostrar, em três materiais discursivos, a campanha NÃO SE CALE. São materiais replicados em diferentes mídias digitais, o que leva a pensar em certa pulverização de um ciberfeminismo e/ou ampliação de veiculação de políticas feministas em redes digitais (PEREZ; MARTINEZ, 2019). A política, geralmente, “é o que dá a ver aquilo que não tinha razão de ser visto” (RANCIÈRE, 2014, p. 24); ou melhor, dá a ver o que não é visto, ou ainda, como propõe Butler (2021), neste caso específico, trata-se de uma dimensão da vida política que tem a ver com a nossa exposição à violência e a nossa cumplicidade com ela, na busca de uma base para a crítica à violência e para a reivindicação de direito à não violência.

Começo a análise com um post da imagem (Figura 1) retirado do perfil disponível na rede Facebook da campanha NÃO SE CALE que circula e se mantém desde 2017. Em posição central, as mulheres parecem destacar que o problema de calar-se diante das violências não é de uma só, mas de muitas.

Figura 1 – NÃO SE CALE

Fonte: FACEBOOK (2022).

A imagem apresenta, como recurso visual, as cores preta, vermelha e branca. A cor preta geralmente é associada com elegância, força, ser forte (ser capaz), e também remete à memória emocional de um luto, talvez pela condição precária da violência. Além disso, é uma cor que acaba ajudando a dar destaque, realçando a imagem central de outro rosto feminino, destacado com o recurso da cor vermelha, associando, assim, a ideia de uma luta de muitas mulheres. A cor vermelha lembra força, poder, calor, agressão, perigo, sangue. Ela remete ao sangue, à guerra, ao conflito, à luta, como um sinal de basta das formas silenciosas de situações de violências. Ainda, o vermelho é um tom que transmite a sensação de urgência de debates e embates sobre esse tema, o que estimula a ação e invoca rapidez.

O enunciado NÃO SE CALE, nesse post, utiliza o NÃO em vermelho, como um alerta à palavra CALE. Há, assim, uma mistura entre as cores preta e branca. O branco, por sua vez, parece transmitir a sensação de organização, limpeza; além disso, é uma cor adequada para ressaltar a luz das outras cores, que, quando combinadas, dão a impressão de harmonia e equilíbrio, deixando o enunciado mais intenso. A palavra CALE na cor branca talvez chame a atenção para uma competência que as mulheres têm de reverter e/ou desenvolver melhor.

Perrot (2015) afirma que as mulheres, por muito tempo, tiveram sua vida marcada pelo silêncio diante das violências. O silêncio é um mandamento reiterado há séculos por diferentes religiões, e não só no padrão judeu-cristão, que tratou de afirmar a fraqueza de caráter e a debilidade física, mental e emocional das mulheres, justificando e estimulando a submissão. O silêncio foi e é reiterado também nos sistemas políticos e nos manuais de comportamento, que reafirmam a obediência da mulher – passiva, calada, submissa, subordinada ao homem (PERROT, 2015).

Solnit (2017) reforça que a violência exerce o papel de mecanismo mantenedor da submissão. A autora afirma que essa é uma maneira de silenciar as pessoas, de negar-lhes a voz e a credibilidade e de reforçar, ainda, a ideia de que as decisões da vida das mulheres não cabiam a elas. Solnit (2017) ensina-nos que somos seres sociais e que internalizamos as ideias por meio das socializações; por exemplo, encaixar-se nos padrões impostos, entre eles, o do silêncio, como se fosse necessário pedir perdão pelo corpo que temos, pela condição feminina e pelo que acontece.

Solnit (2017, p. 35) destaca que a categoria mulheres é uma longa avenida que se cruza com várias outras, como as de classe, raça, escolarização, pobreza e riqueza. Percorrer essa avenida significa cruzar outras, onde a dimensão do silêncio não tem apenas uma rua e/ou uma rota importante, já que “os silêncios (...) vão rolando ladeira abaixo”. A autora desafia-nos a pensar a violência contra as mulheres como materializada por um conjunto de silêncios – desde a violência materializada no homem que agride uma mulher para silenciá-la, a violação do corpo, o impedimento de reação e de denúncia das violações, os estupros e a invalidação do depoimento das mulheres, até o silenciamento final com o assassinato. Todas essas violências, em suas diferentes formas, são violências, porque não apenas ofendem e desrespeitam o Outro (considerado como um sujeito), mas também porque lhe retiram os direitos a ele/a inerentes. Sendo assim, o silêncio é o que permite que os sujeitos sofram sem remédio e que os crimes passem impunes.

A metáfora “o silêncio é de ouro” era afirmada na Antiguidade. No tempo presente, nesta segunda década do século 21, observa-se outro movimento: manter o silêncio equivale à morte, ao apagamento, ao sofrimento sem alternativas. Ser privado da voz é ser desumanizado e/ou excluído da sua humanidade, como afirma Solnit (2017, p. 28). Por voz, assim compreende Solnit (2017, p. 31): “não me refiro apenas à voz em sentido literal – o som produzido pelas cordas vocais nos ouvidos dos Outros –, mas à capacidade de se posicionar, de participar, de ser experimentado como um sujeito livre e com direitos”. A voz, enfim, é um diferencial no exercício dos direitos. Para Solnit (2017, p. 35), “os direitos humanos não se resumem a isso, mas essa dimensão é essencial, e assim podemos considerar a história dos direitos e da falta dos direitos das mulheres como uma história do silêncio e do rompimento do silêncio”.

Visualiza-se, então, a emergência histórica de um enunciado que faz uma abertura, uma convocação:  NÃO SE CALE. Há, aqui, certa fissura: as mulheres podem falar, “devem falar” e não calar diante das violências. Problematiza-se o silêncio, pautado como uma questão pública – dar voz, ser voz do problema, transformá-lo em direito, transformar uma cultura.

Arendt (2009) convoca o conceito de vita activa, em que a ação é a coluna mestre do agir. Agir, para a autora (2009), significa iniciar, tomar iniciativa, começar. Arendt (2009) leva-nos a compreender que é por meio das palavras e das ações que as experiências humanas ganham sentido. É o sentido que torna possível aos humanos a construção da vida e sua atuação no mundo dos humanos.

Ao refletir sobre os efeitos da violência, Arendt (2009, p. 62) ensina que “a diminuição do poder de enfrentar, seja de modo individual, coletivo e/ou institucional é sempre um fator que pode levar a mais violência”; mais ainda, diz que “[...] muito da violência é efeito pela severa frustração da faculdade de ação do mundo” contemporâneo. Segundo Arendt (2009, p. 63), a violência instala-se com mais força onde não existe poder para agir: “a violência tem um caráter instrumental de silêncio e de obediência construídos pela coerção, dessa forma, o domínio pela violência advém de onde o poder está sendo perdido”. Refletindo sobre a relação entre poder e violência, Arendt (2009) afirma que, quando o poder da voz, da fala, se encolhe, a violência se instala.

O movimento da campanha NÃO SE CALE repensa e/ou propõe tanto ações que permitam o agir coletivo quanto uma gestão participativa. Supõe um agir coletivamente, construído com base na ética e na coerência de pensamento que mitigam a violência e transformam a ação do agir em algo dotado de sentido compartilhado no coletivo. A campanha NÃO SE CALE ensina-nos que só o agir (no caso, a voz, a fala), enfim, a ação, é capaz de produzir algo novo; uma ação para o pensar e o agir, de maneira que os conflitos sejam mediados pela comunicação: a voz, a palavra, a fala.

Arendt (2009, p. 44) afirma que, desde a antiga Grécia até os dias de hoje, a política é da esfera da polis e pressupõe argumentação e discussão de ideias; o poder político refere-se a um coletivo, e devemos “agir extremamente atentas para não enveredarmos pelos caminhos tortuosos da banalização da violência”. Nesse sentido, a campanha NÃO SE CALE, dentre as políticas digitais feministas, é como um agir no campo dos discursos, dá existência ou ainda visibilidade às violências. Possibilitando a compreensão das violências como fenômeno social e cultural.

Apresento a seguir a imagem retirada do perfil disponível na rede social Instagram da campanha NÃO SE CALE. Essa imagem de perfil circula e se mantém desde 2018.

 

 

Figura 2 – NÃO SE CALE - perfil do Instagram

Fonte: INSTAGRAM (2022).

 

O post da imagem do perfil do Instagram (2022) apresenta o símbolo de hashtag e, como imagem maior, a mão, ou melhor, o punho cerrado, fechado, erguido, símbolo clássico de uma política feminista. Para Costa (2018, p. 47), o feminismo explora, por intermédio das redes online, “um modelo de comunicação efetivamente contagioso” e “traz visibilidade a uma causa, levanta debates e mantém um foco nos efeitos da esfera política como representativa, ferramentas de divulgação, de renovação e diálogo”. Pode-se dizer que na campanha, a partir de uma experiência política coletiva, se instiga o ser individual, cada mulher, a NÃO SE CALAR.

O corpo (o punho) é como uma ferramenta de poder, o que demonstra força e combatividade do feminismo, convocando e exigindo o grito denúncia das mulheres para não se calarem. Destacamos o empenho do movimento feminista nestes novos tempos, como na articulação entre velhas formas de linguagem comunicacional (o punho como símbolo) e novos meios digitais de comunicação, e na utilização das redes digitais como instrumentos de reação à lógica de violência estruturante.

A imagem evidencia, ainda, o vermelho na unha, uma cor quente, cheia de vida, que estimula a coragem, a força, a resistência e também a sexualidade. É a cor ideal quando se quer ser notada, ser o foco das atenções. Estimula um fazer mais engajado e destemido.

A composição gráfica também traz a palavra CALE separada, destacando o poder da voz, da palavra, da fala. Parece afirmar e reforçar que a mulher não deve ter medo de expor-se e de denunciar a violência, seja doméstica, de assédio, importunações, médicas ou qualquer outra.

Mulheres posicionadas com punho para o alto, como que dispostas a um diálogo e a um embate com seu tempo de modo diferente. O punho representa a força, a resistência das mulheres. A palavra CALE, conjugada no tempo presente, enfatiza as mudanças históricas desse segmento. É ela que tem o poder de decidir? Punho fechado tem a força de um soco, ou aí está o grito denúncia de muitas mulheres.

Butler (2020) defende a tese de que o gênero é um ato performativo, o que presume a existência de uma plateia social. Butler (2020) vê, também, existências práticas histórico-sociais, como observamos nessa campanha de renovação de políticas representacionais de poder que se expressam em linguagem. Isso, por sua vez, assume um caráter político renovado de alianças, ou seja, só se é alguém no momento em que se é identificado e, por conseguinte, se tem reconhecido seu lugar no mundo, sua inclusão em um ordenamento discursivo jurídico vigente e em tudo que dele decorre.

A fala, a palavra, é posta como pauta fundamental das políticas de lutas feministas, como na campanha NÃO SE CALE. Conforme assevera Butler (2019), a linguagem política dos direitos sempre se faz na linguagem. Somos seres da linguagem, somos seres linguísticos. Butler (2021) afirma que a linguagem (a fala) traz uma marca da existência social. A autora (2020) ressalta que a política se legitima na linguagem, e aí transforma a referência e produz deslocamento de posições. A rigor, na esteira de Butler, a linguagem só é possível como iterabilidade – uma repetição no bojo da qual algo de novo é produzido –, de forma que o uso linguístico (do enunciado, como NÃO SE CALE) é, em alguma medida, uma espécie de ressignificação histórica de outros sentidos.

Com efeito, para Butler (2021), o processo de construção do sujeito ocorre na fronteira entre o autodesenvolvimento e a contenção das subjetividades outras. Butler (2021) apoia-se em Foucault para compreender o processo de formação das subjetividades como resultado contingente da relação entre poder e linguagem social no caso das políticas. É nesse contexto que a ressignificação aparece como estratégia linguística política para fazer frente às violências. “[...] A ressignificação do discurso requer a abertura de novos contextos, falar de formas que ainda não foram legitimadas, produzindo, daí, legitimação de outra forma” (BUTLER, 2021, p. 41). As formas de aparecimento das violências no público são, para Butler (2019), performatividades, as quais permitem compreender atos corporais e linguísticos como materialidades que ocorrem no momento da enunciação, acionando um conjunto de efeitos que se atualizam em um movimento de reivindicação por modos de viver-enunciar-corpos que resistam às violências.

No entendimento de Butler (2019), a performatividade da linguagem tem sempre um componente de repetição: é a iteração de atos de fala que torna a comunicação possível. Não existem atos de fala soberanos que sejam pronunciados uma única vez. E mais: o ato de fala é constitutivamente disputável: “o enunciado linguístico se tornou disputado” (BUTLER, 2019, p. 91). Isso nos permite compreender a dinâmica do enunciado reitor NÃO SE CALE, que se replica fundamentando uma teoria performativa como política coletiva.

Outro post da campanha NÃO SE CALE que analiso é o do perfil do Twitter o qual parece apontar que o tom de voz e/ou de violência pode aumentar.

Figura 3 – NÃO SE CALE

Fonte: TWITTER (2022).

 

Esse post utiliza simbolicamente o megafone com a expressão NÃO SE CALE. O megafone é um aparelho empregado para amplificar sons. Sua principal qualidade é que não necessita de um sistema de som completo, com microfone ou alto-falante, e é portátil. O alto-falante descontruindo o imaginário do silêncio, vem em tempo de ressignificar posições e forçar uma mudança na forma de as mulheres agirem diante das violências. Entendemos o NÃO SE CALE como um movimento de “afirmação das vozes, o que significa o poder da voz – da palavra: o direito de autodeterminação, de participação, de concordância ou divergência, de viver e participar, de interpretar e narrar a si”, como destaca Solnit (2017, p. 30).

Para Solnit (2017, p. 37), a linguagem é poder: “(...) o poder de transmitir significado, o poder de nos fazer enxergar, sentir, dar importância, desenterrá-lo e fazê-lo vir à tona. Se não temos palavras para nomear um fenômeno, uma emoção, uma situação de violência, o que significa que não poderá tratar do problema, e muito menos mudar a situação”. A quebra do silêncio é fundamental para a construção da pauta de enfrentamento de violências; o silenciamento é o apagamento como uma questão pública. É necessário dar voz ao problema para transformá-lo em direito.

Compreendo  que a campanha NÃO SE CALE, no Brasil, provém de um debate que começou a ganhar espaço no final dos anos 1970 e início dos 1980, quando o movimento feminista promoveu, entre as mulheres, uma conscientização de sua posição social de luta (reivindicação) em igualdade de condições com os homens e as levou a transgredir dicotomias e fronteiras, inserindo, no espaço público, o debate e a denúncia referentes a crimes considerados de cunho privado. A Lei nº 11.340/06 denominada de Maria da Penha emergiu em 2006 e passou a dar mais rigor à punição do agressor – como uma medida punitiva e pedagógica de proteção estatal. Para a ação estatal acontecer, todavia, precisa haver denúncia, e essa é uma provocação do Estado e das políticas feministas. Desse modo, entendo que o enunciado NÃO SE CALE se associa a outros já existentes, como o Faça a Denúncia, “Diga NÃO à violência contra a mulher, denuncie e disque 180”. Enfim, como vemos, esses enunciados marcam um tempo em que o poder da voz, da palavra, da fala, convida a mudanças de ações.

Entendo NÃO SE CALE como uma campanha que emerge com força no contexto do século 21, como uma espécie de convocatória às mulheres: desafia a usar a voz por meio de um dizer comprometido com um cuidar de si. Compreendo que NÃO SE CALE convoca (ou incita) articulação simultânea do corpo (a voz diante das violências), a prática da coragem (saída da menoridade), a ética de melhor cuidar de si e o compromisso com a dignidade humana (uma vida com direito).

O conceito de violência empregado aqui alinha-se com a produção de Saffioti (2018), que compreende violência como uma ruptura da integridade física, psicológica, moral e, sobretudo, dos direitos humanos. Desse modo, a violência é expressa no sentido ontológico da palavra violação dos direitos humanos. A voz, as palavras, a fala, surgem como um meio que ajuda a problematizar, tratar, compreender, modificar o pressuposto do silêncio das violências. Calar significa não reconhecer “como pessoa que tem valor e tem direito à autodeterminação, à integridade física, à dignidade. É uma forma brutal de ser transformada numa pessoa sem voz, de não ter o poder de decisão sobre seu corpo, sua vida e seu destino” (SOLNIT, 2020, p. 103). Como destaca Solnit (2020), ao longo da história, as mulheres foram posicionadas em um lugar menor, subordinadas, com a simbolização do homem como superior.

A política digital feminista configurada na expressão NÃO SE CALE instiga e desafia a romper o silêncio diante das violências. NÃO SE CALE desenquadra as mulheres do lugar da vitimização, da posição de “coitadinhas” (CERQUEIRA, 2008). A campanhaempreende um projeto democrático entre a individualidade (substância ética de cuidado de si e apelo ao “NÃO SE CALE”) e a coletividade (uma experiência política feminista que produz a campanha). A violência de gênero não pode ser considerada crime individualizado, privado, circunscrito às relações afetivas, mas pensada a partir do reconhecimento de uma dimensão pública como uma responsabilidade também do Estado e da sociedade civil como um todo.

Entendo que a indicação do cuidado de si – NÃO SE CALE – busca fraturar a violência em seu aspecto subjetivo, em uma posição-sujeito que convida a se desidentificar com os saberes patriarcais, sobretudo do silêncio. Conclama: fale, ligue 180, faça a denúncia. Nessa perspectiva, o cuidado de si vem como experiência do eu em existir no mundo, como um modo de ação; a constituição da subjetividade como resultado de uma “prática de si”, de uma relação de poder de si, de implicar-se com a violência que se sofre. Há, nessa decisão, um modo subjetivo das mulheres de ocuparem-se consigo mesmas, transformando-se em alguém que promove a autojustiça e o cuidado de si.

Embasei-me em Foucault (2014) a fim de pensar uma educação que promova o cuidado de si a partir de uma política coletiva, no âmago da formação das mulheres constituídas como sujeitos históricos que, pelos seus corpos, dão sentidos outros à sua existência. Foucault (2010) elucida precisamente a recomendação do cuidado de si que exprime ocupar-se consigo mesmo, ou seja, não se esquecer de si mesmo e ter cuidado consigo mesmo. A política NÃO SE CALE incita as mulheres a pensarem e a problematizarem, rompendo silenciamentos e atenuando possíveis violências, sejam elas físicas e/ou psicológicas, contra si e/ou contra o outro. Nessa perspectiva, o cuidado de si encontra-se no domínio ser-consigo; “aparece, de maneira bastante clara e [...] no quadro geral da epiméleia heautoû (cuidado de si mesmo), como uma das formas, umas das consequências, uma espécie de aplicação concreta, precisa e particular, da regra geral: é preciso que te ocupes contigo mesmo, que não te esqueças de ti mesmo, que tenhas cuidados contigo mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 6).

O cuidado de si é voltado para a necessidade de vencer a violência, por meio do acesso às políticas. Cuidado de si entre o eu e o mundo é constitutivo da ação, mas de uma ação refletida, regulada e circunstanciada. O cuidar de si não tem a finalidade de fugir do mundo, mas de alcançar um melhor modo de agir, “cuidar-se” ou “prestar culto a si mesmo”, “respeitar-se” (FOUCAULT, 2010, p. 13). Para Foucault, o ser humano foi confiado ao cuidado de si, o que o diferencia dos demais seres vivos. Assim, “o cuidado de si é um privilégio-dever, um dom-obrigação que nos assegura a liberdade obrigando-nos a tomarmos nós próprios como objeto de toda a aplicação” (FOUCAULT, 2014, p. 62). Cuidar de si ‟(...) é uma regra coextensiva à vida” (FOUCAULT, 2010, p. 222).

O cuidado de si é, nesses termos, proposto pela campanha NÃO SE CALE, tanto em uma relação do indivíduo consigo, com seu eu, quanto, ao mesmo tempo, em “uma relação social, constituinte de uma nova ética baseada no princípio da relação verbal e formativa com o outro” (FOUCAULT, 2010, p. 157). Ressaltamos, contudo, que um bom ethos diante da violência é o sujeito desenvolver todo um trabalho em relação a si mesmo, caracterizado como cuidado de si. O olhar para si implica, então, o olhar dos outros e o entorno histórico-social. Nesse sentido, a campanha NÃO SE CALE aponta para um horizonte novo. É, efetivamente, a conscientização a respeito do cuidado de si em sentido subjetivo e social.

Para Foucault (2014), cuidar remete à condição de estar implicado, responsabilizar-se por determinado projeto, um agir. O cuidado de si conecta as formas de subjetivação, as quais passam primeiro pôr o sujeito querer constituir as ações, assim como desnaturalizar a violência que vive e, a partir de um lugar, ao problematizar as condutas, romper com paradigmas, como o do silêncio. Cuidar de si, segundo Foucault (2014), abarca a dimensão implicada com a ação do sujeito.

O cuidado de si, de acordo com Foucault (2010) envolve a constituição ética, a pergunta de “como chegamos a ser o que somos”. As palavras nos unem (FOUCAULT, 2014, p. 28), as vozes se juntam – que no seu conjunto possam alcançar cumulativamente um volume alto. Para Solnit (2020, p. 36), “uma mudança que é audível é uma mudança em quem é considerado alguém”. Novas posições vão emergindo enquanto o status das mulheres vai mudando de ninguém para alguém (SOLNIT, 2020).

 

Longe de concluir: Não se cale – no enfrentamento às violências

 

À luz de um conjunto de autoras e autor , como Perrot (2015), Foucault (2010), Federici (2017), Butler (2020) e Solnit (2017, 2020), compreendo a campanha NÃO SE CALE como um artefato cultural e um dispositivo pedagógico que reivindica a não violência pautando ações de um ciberfeminismo. A voz, a palavra, a fala, nomeando as violências. As violências deslocadas do campo do silêncio abrem-se para pensar a apropriação da voz como uma reivindicação da não violência; a força da palavra designada por quem sofre a violência.

Foucault (2010, p. 41) desafia-nos com as perguntas: “Quem somos nós?” e “O que se passa com nós mesmos?”. Propondo uma ontologia do presente, o autor convoca-nos a responder a pergunta: “Como chegamos a ser o que somos?”. Pode-se afirmar: de silenciosas às que passam usar a voz, a palavra, a fala. Mulheres passam a não aceitar o silêncio diante das violências e encontram sua voz, em um deslocamento da posição de silenciosas. São mulheres mais bem equipadas que, a partir dessas e outras políticas, recorrem à autodefesa (BUTLER, 2021), à reapropriação dos corpos, reinvestindo em processos de fala, que reivindicam como objetos políticos. A autodefesa é compreendida “como um eu que se defende, cuja vida é digna de ser defendida” (BUTLER, 2021, p. 14).

A campanha NÃO SE CALE faz como um elo/laço coletivo e convida as mulheres a reconhecer o poder da voz, da palavra, da fala, ensinando a ver em outra perspectiva e a cuidar de si. Os silêncios não garantem a proteção; rompendo o silêncio, aproximamo-nos de outros sujeitos que podem ajudar. A política autoriza o direito de quem fala, uma vez que o NÃO SE CALE está na ordem da lei, e seu aparecimento discursivo concede um lugar que desarma aquele que agride. É a transformação do silêncio em ação.

Na condição de mulheres, desde muito cedo, aprendemos a silenciar. Por isso, é salutar trazer esse debate da fala enquanto uma reivindicação feminista que opera muito além das questões punitivas. Trazer esse debate como campo educativo, mostrando que, se silenciarmos, seremos receptivas à violência, o que pode torná-la aceitável. Para Butler (2021), sair da prática de violência vai além da autodefesa; implica condições políticas de amparo dos laços sociais com as políticas.

O enunciado reitor da campanha NÃO SE CALE convida a “tomar uma atitude”. Faz um jogo discursivo que incita as mulheres a cuidarem de si. De algum modo, afirma o cuidado de si, que vem, eticamente, em primeiro lugar, na medida em que a relação consigo é eticamente primária. Ainda, um NÃO SE CALE é agir como um sujeito de outro tempo histórico, deslocado das garras silenciosas e contundentes do patriarcado. É o questionamento como uma das marcas deste tempo presente nos corpos, nas vozes e na vida das mulheres.

Vale frisar que a campanha NÃO SE CALE não remete apenas à experiência ou vivência de um sujeito, embora este tenha sua dose de relevância. Remete, também, a condições políticas historicamente construídas a partir de leis (políticas) comuns de saberes feministas sobre as violências. Salienta-se que o acontecimento enunciativo do NÃO SE CALE promove a inscrição das mulheres em uma posição de fala, de enfrentamento das violências, de desinstalações do silêncio. Esse acontecimento enunciativo faz gerar outra posição-sujeito, produz uma ruptura, um deslocamento, instiga a um exercício coletivo de resistência, problematiza a conduta dos silêncios diante das violências e incita a uma experiência política de exposição às violências individuais. Mais ainda, cobra um posicionamento social e público das violências, o que exige dos sujeitos as suas transformações.

Entendo que esse debate da campanha NÃO SE CALE se configura como uma maneira de transformar o silêncio em oportunidade de fala, uma abertura para que possamos tirar essa questão do esquecimento e, junto dela, todas as mulheres que se encontram presas. A dor das violências precisa ser de todos nós. Sem fala pública, há poucas chances de recuperação.

A campanha atua como uma política, uma vez que produz processos formativos de outra educação, outra posição histórica: a de fala que anuncia “não me calo diante das violências”. Uma campanha que é atravessada por reivindicações dos direitos voltados ao respeito às mulheres e à livre expressão. Assim, NÃO SE CALE faz sobressair o estatuto das mulheres como sujeitos, consistindo na oposição ao assujeitamento e às diferentes formas de silêncio. Essa modalidade de luta, de resistência, levantada em torno da subjetivação, não condiz propriamente com a ordem do individualismo, mas é expressa pelos movimentos de resistência, culminando na superação do individualismo mediante novas alianças do indivíduo/sujeito com as novas formas de viver e os novos vínculos comunitários. Reafirmamos o que diz Mia Couto (2012, p.114):” em um mundo violento, a palavra – a fala – está como a primeira arma.” Diante do silêncio, não há possibilidade de amparo, não há vínculo social que permita a quebra da condição de violentada. Por isso: NÃO SE CALE.

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Notas



[1] A discussão acerca de políticas feministas, da educação da não violência dos corpos faz parte de projeto de pesquisa que desenvolvo com apoio do edital FAPERGS 07/2021 - Programa Pesquisador Gaúcho – PqG e também com apoio da bolsa de Produtividade em Pesquisa - PQ/CNPq Nível 2.

 

 

 

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