A produção científica sobre educação e empreendedorismo

Scientific production on education and entrepreneurship

Producción científica sobre educación y emprendimiento

 

 

Valdelaine Mendes

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

valdelainemendes@outlook.com

Cesar Melo

Prefeitura Municipal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

clmmelo@yahoo.com.br

Débora Sinoti

Prefeitura Municipal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

debsinoti@gmail.com

Samantha Guterres

Prefeitura Municipal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

samantha.guterres@outlook.com

 

Recebido em 16 de março de 2022

Aprovado em 23 de novembro de 2023

Publicado em 26 de janeiro de 2024

 

 

RESUMO

Este estudo tem como objetivo realizar uma revisão da produção científica sobre educação e empreendedorismo para identificar características e tendências das pesquisas desenvolvidas sobre essa relação. As análises aqui empreendidas têm como finalidade indicar prevalências metodológicas, institucionais, temporais e espaciais dos estudos realizados sobre a questão, mas pretendem também indicar como o tema empreendedorismo é abordado nos estudos que o vinculam à Educação. Foi possível identificar, em duas décadas, crescimento acentuado na produção acadêmica que articula a discussão entre educação e empreendedorismo. Duas grandes áreas, Educação e Administração, produzem o maior número de estudos. A hipótese inicial da pesquisa, de que os estudos realizados na área da Educação assumiriam uma postura problematizadora, questionadora e crítica sobre a relação entre educação e empreendedorismo não se confirmou. A prevalência absoluta de estudos afinados com a indicação de caminhos para a adoção da educação empreendedora em diferentes níveis e modalidades de ensino foi um achado importante nesta pesquisa.

Palavras-chave: Educação; Empreendedorismo; Produção Científica.

 

ABSTRACT

This study aims to carry out a review of scientific production on education and entrepreneurship to identify characteristics and trends in research carried out on this relationship. The analyzes carried out here are intended to indicate methodological, institutional, temporal and spatial prevalences of the studies carried out on the issue, but they also intend to indicate how the topic of entrepreneurship is addressed in studies that link it to Education. It was possible to identify, in two decades, a marked growth in academic production that articulates the discussion between education and entrepreneurship. Two major areas, Education and Administration, produce the greatest number of studies. The initial research hypothesis, that studies carried out in the field of Education has a problematizing, questioning and critical stance on the relationship between education and entrepreneurship was not confirmed. The absolute prevalence of linked studies with the indication of paths for the adoption of entrepreneurial education at different levels and teaching modalities was an important finding in this research.

Keywords: Education; Entrepreneurship; Scientific production.

 

RESUMO

Este estudio tiene como objetivo realizar una revisión de la producción científica sobre educación y emprendimiento para identificar características y tendencias en las investigaciones realizadas sobre esta relación. Los análisis aquí realizados pretenden señalar prevalencias metodológicas, institucionales, temporales y espaciales de los estudios realizados sobre el tema, pero también pretenden indicar cómo se aborda el tema del emprendimiento en estudios que lo vinculan con la Educación. Se pudo identificar, en dos décadas, un marcado crecimiento en la producción académica que articula la discusión entre educación y emprendimiento. Dos grandes áreas, Educación y Administración, producen el mayor número de estudios. No se confirmó la hipótesis de investigación inicial, que los estudios realizados en el campo de la Educación asumirían una postura problematizadora, cuestionadora y crítica sobre la relación entre educación y emprendimiento. La prevalencia absoluta de estudios en sintonía con la indicación de caminos para la adopción de la educación emprendedora en diferentes niveles y modalidades de enseñanza fue un hallazgo importante en esta investigación.

Palabras-chave: Educación; Emprendimiento; Producción científica

 

Introdução

Dados produzidos por pesquisas são referência, tanto para a formação de estudantes e trabalhadores, dentro e fora das universidades, quanto para a organização das políticas públicas em todos os níveis de governo. A escolha dos temas, dos enfoques, da abrangência das pesquisas, nas mais diversas áreas do conhecimento, é determinada por múltiplos aspectos, cujo propósito poderá estar na potencialização da força de trabalho para atender as demandas do capital ou para a emancipação humana.

Evidências científicas são largamente utilizadas nos meios de comunicação para apresentar resultados de análises daquilo que acontece na vida social. A escolha dos estudos que têm seus resultados socializados, em especial na grande mídia, não ocorre ao acaso, mas corresponde a interesses de várias ordens daqueles que financiam esses meios, já que tudo o que é socializado tem o poder de influenciar tanto a formação de opinião de indivíduos, grupos, organizações, governos, quanto definição de conteúdo de políticas, normatizações e legislações.

Este estudo tem como objetivo realizar uma revisão da produção científica sobre educação e empreendedorismo para identificar características e tendências das pesquisas desenvolvidas sobre essa relação. As análises aqui empreendidas têm como finalidade indicar prevalências metodológicas, institucionais, temporais e espaciais dos estudos realizados sobre a questão, mas pretendem também indicar como o tema empreendedorismo é abordado nos estudos que o vinculam à Educação. Em outras palavras, pressupondo que não há neutralidade na produção do conhecimento, entender a perspectiva assumida pelos autores na abordagem do tema permite compreender quais enfoques e abordagens prevalecem nas análises empreendidas na produção científica.  Por outro lado, a quantidade e a abrangência de estudos realizados sobre uma determinada temática podem ser indicadores da relevância que adquire no campo educacional.

Este texto está organizado em três seções. Na primeira seção são apresentados os percursos metodológicos adotados na investigação. Na segunda seção é realizada uma discussão sobre a relação entre empreendedorismo e educação. Por fim, na última seção são apresentadas as características e as tendências identificadas no corpus analisado.

 

O percurso metodológico da pesquisa

A ampliação de cursos de pós-graduação em todas as áreas do conhecimento, no Brasil, nas últimas décadas, possibilitou um alargamento quantitativo da produção científica. Especialmente na área da Educação, observa-se que essa ampliação da produção tem relação direta com o crescimento da oferta de programas de pós-graduação stricto sensu na área, mas vai além disso, já que inúmeras dissertações e teses têm como objeto de análise as questões educacionais, mesmo quando são produzidas em programas situados em outras áreas do conhecimento. Isso confere amplitude e dispersão ainda maiores à produção científica na Educação, um desafio aos pesquisadores que pretendem realizar o mapeamento da produção na área.

Nesse contexto, estudos de revisão cumprem papel importante de acompanhar a expansão e indicar características, tendências, abordagens metodológicas e contribuições do que é produzido em cada área do conhecimento. De acordo com Vosgerau e Romanowski (2014, p. 167), esses estudos “consistem em organizar, esclarecer e resumir as principais obras existentes, bem como fornecer citações completas abrangendo o espectro de literatura relevante em uma área”. Na produção acadêmica, as revisões recebem denominações diversas. Diante dessa constatação, as autoras organizaram esses estudos em dois grupos: revisões que mapeiam e revisões que avaliam e sintetizam. No primeiro grupo estão o levantamento bibliográfico, a revisão de literatura ou revisão bibliográfica, o estado da arte ou estado do conhecimento e a bibliometria. São tipologias que buscam “levantar indicadores que fornecem caminhos ou referências teóricas para novas pesquisas” (VOSGERAU; ROMANOWSKI, 2014, p. 175). No segundo grupo estão a revisão sistemática, a revisão integrativa, a síntese de evidências qualitativas, a metassínstese qualitativa, a meta-análise e a metassumarização. São tipologias que podem produzir sínteses quantitativas e qualitativas e “partem do princípio de que uma visão interpretativa das evidências seria mais adequada ao campo educacional” (VOSGERAU; ROMANOWSKI, 2014, p. 179).

A escolha por uma tipologia de análise está relacionada aos propósitos e às características da investigação. No caso desta pesquisa, optou-se pela realização de um tipo de revisão que busca mapear a produção sobre empreendedorismo e educação, com o propósito de reunir e conhecer a produção sobre a área e identificar as principais características dessa produção, bem como identificar prevalências espaciais, temporais e institucionais dessa produção. A escolha do estado da arte ocorreu por ser uma metodologia com caráter inventariante e descritivo, que permite “conhecer o já construído e [...] dar conta de determinado saber que se avoluma cada vez mais rapidamente e de divulgá-lo para a sociedade” (FERREIRA, 2002, p. 259).

No texto Revisões sistemáticas de literatura: passos para sua elaboração, Galvão e Pereira (s/d) discutem características de estudos de revisão sistemática de literatura e afirmam que se trata de um tipo de investigação que precisa possuir uma clara questão de pesquisa, ser abrangente e não ser tendenciosa nas suas análises. Os autores elencam um conjunto de passos para a realização desse tipo de estudo, que serviram de inspiração para a organização desta pesquisa, assim estruturada: a) definição da questão de pesquisa; b) levantamento da literatura; c) seleção dos materiais; d) leitura e extração dos dados; e) avaliação da pertinência metodológica aos propósitos da pesquisa; f) síntese dos dados; e g) redação dos resultados. Para Ramos, Faria e Faria (2014), o registro de todas as etapas de pesquisa é um aspecto fundamental no estudo de revisão, tanto para a organização do processo de investigação, quanto para que possa ser replicável por outro pesquisador.

Esta pesquisa é um estado da arte de toda a produção científica disponível em três bancos de dados.  As buscas foram realizadas no banco de dissertações e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), na Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e nos Anais das Reuniões Nacionais da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Foram utilizados os descritores “educação e empreendedorismo” para fazer a busca. Os dois descritores foram utilizados com todas as combinações possíveis nos bancos de dados. Na Scielo e nos Anais da Anped não houve alteração nos resultados das buscas com diferentes combinações, mas no banco de dissertações e teses da Capes percebeu-se que a forma de inserção dos descritores produzia resultados diferentes. Foram, então, estabelecidas 11 combinações, alterando a ordem de digitação das palavras, de colocação de letras maiúsculas e minúsculas, de uso e não uso de aspas.

Em um primeiro exercício de levantamento da produção, com um recorte temporal de dois anos, não se restringiu a pesquisa aos estudos realizados na área da Educação, justamente para verificar como se configurava e como estava distribuída a produção. Esse foi um exercício importante para o coletivo desta investigação, pois indicou que parte significativa das pesquisas sobre o tema, naquele período, estava localizada fora da área da Educação. Essa constatação produziu uma alteração nos rumos da pesquisa, que passou a não mais limitar a busca aos estudos realizados e publicados na área da Educação.

A investigação foi, então, desenvolvida sem um filtro de área. Também não foi utilizado um recorte temporal para a busca nas bases de dados, justamente para verificar em quais períodos houve maior prevalência de estudos sobre educação e empreendedorismo. Além dos descritores, foram utilizadas, como critérios de inclusão, a redação em língua portuguesa e a possibilidade de acesso aos dados do estudo. Neste caso, foi excluído um trabalho que, no Banco de Dissertações e Teses, indicava restrição de acesso. Na primeira etapa de busca foram localizados 128 estudos, assim distribuídos: 60 Capes, 65 Scielo[1] 3 Anped.

A etapa seguinte contou com a leitura e elaboração de uma planilha Excel para organização das informações da pesquisa e constituição de um banco de dados. Para atender o objetivo deste estudo foram observados, nos 128 trabalhos: título, autor, ano da publicação ou defesa, área, palavras-chave, objetivo, sujeitos da pesquisa, base teórica, tipo de pesquisa, recorte temporal, recorte espacial, e recorte institucional. Dadas as especificidades dos tipos de apresentação das produções em cada local de busca, no Banco de Dissertações e Teses da Capes foram observados o nível de estudo (mestrado ou doutorado) e a instituição de realização da pós-graduação; na Scielo foi observado o título do periódico; na Anped foi incluída a edição da Reunião e excluída a coluna palavras-chave, já que os textos não dispõem dessa informação.

Para a organização dos dados na planilha, foi feita a leitura do título e do resumo de todos os 128 estudos. Os trabalhos publicados nos Anais da Anped foram, já na primeira etapa da investigação, lidos na íntegra. Nos casos em que as informações não estavam disponíveis nos resumos ou eram insuficientes, foi feita a leitura da introdução ou de partes das pesquisas. Esse procedimento foi possível na maior parte dos estudos, pois na primeira década do século XX, de muitos trabalhos, estão disponíveis apenas os resumos. Para a busca dos resumos e dos trabalhos na íntegra das pesquisas, foram consultados as bibliotecas virtuais e os bancos de dados dos programas de pós-graduação das universidades (para as dissertações e teses), os sítios dos periódicos científicos (para os artigos localizados na Scielo), e o sítio da Anped (para os trabalhos publicados nas reuniões científicas). Quando os estudos não foram encontrados nesses locais, realizou-se uma busca ampliada na rede virtual, que não se apresentou como uma boa opção, já que, em vários casos, apareciam apenas partes do estudo com outros autores, diferentes daqueles descritos na busca inicial. Com o pressuposto de que a inclusão de outros autores, mesmo que o trabalho tivesse o mesmo título apresentado, por exemplo, no Banco de Dissertações e Teses, poderia resultar em alterações importantes no conteúdo do material, optou-se por não realizar qualquer tipo de análise em que o título e/ou a autoria apresentasse qualquer divergência com a busca inicial.

Cumprida essa etapa, foram inseridos, nas planilhas, os dados extraídos dos 128 estudos. Após a revisão dessa inclusão foi possível identificar que parte dos estudos, mesmo que automaticamente traduzidos pelos aplicativos dos navegadores, não estava disponível em português. Com o receio de que a tradução realizada por esses aplicativos pudesse comprometer a redação original dos autores dos estudos e produzir alguma interpretação equivocada, diferente daquela que equipe de pesquisa encontrou, optou-se pela retirada das linhas da planilha referentes a essas publicações, consequentemente houve redução no banco de dados desta pesquisa, que ficou assim constituído: 58 (Banco de Dissertações e Teses da Capes), 45 (Scielo) e 3 (Anped), totalizando 106 produções.

A área da produção é um aspecto de grande relevância para este estudo, pois é reveladora de quais campos do conhecimento concentram a atenção sobre o tema. No início do desenvolvimento desta pesquisa, o propósito era realizar a revisão da produção exclusivamente na área da Educação, mas logo nas primeiras etapas da investigação foi possível localizar uma ampla produção fora do campo da Educação, tanto nos periódicos quanto no banco de dissertação e teses da Capes. A decisão de ampliar a busca certamente permitiu, a este estudo, uma visão alargada de como o tema educação e empreendedorismo tem sido abordado por diferentes áreas do conhecimento. Isso permitiu a este estudo, como apontam Vosgerau e Tomanowski (2014), compreender o movimento da produção científica sobre o tema em foco e indicar recorrências e tendências.

 

Educação e empreendedorismo: que aproximação é essa?

 

            As crises do capitalismo da segunda metade do século XX criaram as condições adequadas para o avanço da expressão ideológica do capital pelo mundo, o projeto neoliberal. Desde os anos 1980, a reforma e a reestruturação do Estado passaram a ocupar um lugar central no debate político e econômico, em escala planetária. No Brasil, a partir dos anos 1990, esse tema ganhou força resultando em mudanças legais e administrativas no setor público. A necessária modernização da máquina pública e a ineficiência do Estado são os argumentos mais utilizados para defender essa alteração. Um marco regulatório desse processo no Brasil foi a Reforma do Estado dos anos 1990, coordenada por Bresser Pereira, então à frente do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Apenas algumas atividades estratégicas devem permanecer no Estado, e outras, como a produção de bens e serviços, devem ficar ao cargo do mercado (BRESSER-PEREIRA, 1997).

            Nessa lógica, a contratação direta de “funcionários públicos, professores, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, artistas, etc.” caracteriza atuação de um Estado burocratizado que, sob o pretexto de garantir o crescimento econômico e promover o bem-estar da população, cresce explosivamente e assume responsabilidades que extrapolam as funções clássicas do Estado (BRESSER-PEREIRA, 1997, p. 13)

            Obviamente, sem a devida discussão de como se constituiu historicamente o sistema da dívida pública brasileira, a crise fiscal e a ineficiência do Estado são apontadas por Bresser Pereira como justificativas para a produção de uma série de medidas que produziram e produzem mudanças na forma de organização do Estado no Brasil. Na área social, direitos passam a ser concebidos como serviços que devem se ajustar e se conformar ao modelo econômico ultraliberal, de “um Estado que não é sinônimo de interesses públicos, mas que tende a representar de modo prioritário os interesses privado-mercantis” (SGUISSARDI, 2017, p. 875).

            A forma de organização das relações do mercado passa a ser tomada como referência para a ampliação da qualidade dos serviços públicos, para a minimização das desigualdades sociais, e para a adoção de modelos de gestão mais eficientes e menos burocratizados. A ausência de concorrência e a estabilidade nos serviços públicos são usadas como argumentos para justificar a ineficiência do Estado e colocar em marcha medidas que criam condições para a privatização direta e indireta de bens e serviços públicos.

A intensificação da adoção dos valores do mercado na definição das ações do Estado sugere que as desigualdades e as diferenças sociais não são a expressão de processo histórico de um país marcado pela concentração de renda e de riqueza. Assim, “uma intervenção do estado destinada a eliminar essa diferença é vista como algo indevido que desestimula a busca pelo mérito pessoal, sendo ainda uma injustiça com aquele que se esforçou” (FREITAS, 2019, p. 32).

Em um momento de vasta mão de obra disponível, que não tem como ser absorvida pelo mundo do trabalho, nos moldes de organização do modo de produção vigente, o empreendedorismo é apresentado como a alternativa de sobrevivência a milhões de desempregados e desalentados. O empreendedor é, de acordo com Sebrae (2020), aquele que inicia algo novo, que vê o que ninguém vê, enfim, aquele que realiza antes, que sai da área do sonho, do desejo e parte para a ação. Em outras palavras, as condições de existência de cada indivíduo decorrem da sua maior ou menor capacidade de inovar, de projetar, de agir.

Fomentar essa premissa é uma forma, segundo Antunes (2019, entrevista), de “desobrigar o Estado das suas políticas públicas e sociais, desobrigar o Estado de oferecer seguro desemprego, salário desemprego, desobrigar o estado de um mínimo de dignidade para a população”.

O neoliberalismo olha para a educação a partir de sua concepção de sociedade baseada em um livre mercado cuja lógica produz o avanço social com qualidade, depurando a ineficiência através da concorrência. Segundo essa visão, a generalização desta concepção para todas as atividades do Estado produzirá uma sociedade melhor. Os cidadãos estão igualmente inseridos nessa lógica e seu esforço (mérito) define sua posição social. É dessa visão de mundo que advêm as finalidades que ele atribui à educação (FREITAS, 2019, p. 31)

 

Nesse contexto, a educação empreendedora apresenta-se como possibilidade não apenas de fomentar o empreendedorismo, mas de criar condições, na educação formal e informal, de estímulo ao desenvolvimento de valores, comportamentos, conhecimentos que preparem as crianças e os jovens para o mercado de trabalho para que assimilem que essa é a única possibilidade capaz de assegurar uma existência digna. A disposição para correr riscos, o otimismo, a flexibilidade, a determinação e a busca por oportunidades são características que devem ser cultivadas desde cedo na formação humana. 

Nas últimas duas décadas, observa-se que a discussão sobre o empreendedorismo cresce significativamente na área educacional. Impulsionada justamente pelas orientações dos documentos produzidos por organismos internacionais, colocam o empreendedorismo como um requisito à formação escolar, com o discurso de assegurar a empregabilidade da juventude.

Nessa perspectiva, as escolas e as universidades devem incluir a formação empreendedora nos seus currículos, de modo que estudantes aprendam a aproveitar oportunidades oferecidas pelo mercado. A competitividade, a eficiência e o esforço individual são parte de um projeto ideológico, amplamente disseminado na grande imprensa, que deve orientar a formação escolar em todos os níveis de ensino.

Os esforços para incluir a educação empreendedora nos currículos escolares, por meio de criação de legislação específica sobre o tema, são percebidos em todas as esferas da gestão pública. Em municípios, estados e na união, observa-se o encaminhamento de projetos de lei que têm como propósito tornar obrigatório o trabalho com o empreendedorismo, em parte dos currículos, em todos os níveis de ensino.  Há, dessa forma, uma institucionalização do tema, que passa a fazer parte dos currículos escolares de modo sistemático.

No estado capitalista, de acordo com Fontes (2020), são produzidas modificações para impedir que os setores populares consigam avançar nas lutas pela efetivação de seus direitos. Os deslocamentos, no interior do estado, são produzidos para assegurar que os interesses empresariais sejam satisfeitos. Entretanto, como afirma Fontes (2020, p. 21), por ser atravessado de contradições e não ser “mero instrumento na mão de burguesias, mesmo se muito poderosas”, é um espaço de luta.

A produção científica está imersa nessa luta. A disputa por projetos antagônicos de sociedade faz-se presente nas instituições de ensino superior e nos centros de pesquisa de organizações públicas e privadas, já que a produção do conhecimento é subsídio fundamental para a elaboração das políticas nas mais diversas áreas de atuação do governo. Por essa razão, entender as características da produção do conhecimento sobre educação e empreendedorismo torna-se tão relevante.

 

Características e tendências da produção científica sobre educação e empreendedorismo

A quantidade e a diversidade da produção sobre educação e empreendedorismo são reveladoras da amplitude e da penetração que a discussão ocupa no campo acadêmico. Entende-se que essa expressiva produção se constitui em importante resposta do meio científico à inclusão do tema na organização do trabalho educacional, induzindo o formato e o conteúdo das políticas educacionais.

Como informado anteriormente, os dados foram levantados em três bases, Banco de Dissertações e Teses da Capes, Scielo e Anped. Para compreender as características e tendências da produção, foram agrupados por temas de análise: área da produção, período da publicação e focos de estudo. Nesta seção serão apresentadas algumas análises, com base nesses agrupamentos.

Para entender onde a produção sobre empreendedorismo e educação está acontecendo no Brasil, buscamos as áreas de localização das pesquisas. Nas dissertações e teses, essa informação foi obtida pela área de concentração do programa de pós-graduação; e nos artigos da base Scielo, na grande área de localização do periódico. Nesse caso, foi necessário acessar os sites dos periódicos para verificar a localização exata da área da publicação. Em relação à Anped, esses procedimentos não foram necessários, pois se trata de um evento amplamente conhecido no campo educacional. A partir desse levantamento, identificamos que duas áreas concentram a produção sobre o empreendedorismo e educação. Conforme pode ser visto na Tabela 1, essa concentração ocorre na área da Educação e da Administração.

 

Tabela 1– Distribuição das Dissertações e Teses Capes por Área (2000-2019)

Área

Quantidade

Percentual

Administração

10

17,2%

Administração de empresas

1

1,7%

Administração pública em rede nacional

1

1,7%

Ciência, tecnologia e sociedade

1

1,7%

Ciências e tecnologias da educação

1

1,7%

Comunicação

1

1,7%

Desenvolvimento regional

3

5,2%

Desenvolvimento regional e urbano

1

1,7%

Desenvolvimento territorial e meio ambiente

1

1,7%

Design

1

1,7%

Design, tecnologia e inovação

1

1,7%

Educação

16

27,6%

Educação agrícola

1

1,7%

Educação profissional e tecnológica

1

1,7%

Engenharia de produção

3

5,2%

Engenharia e gestão do conhecimento

1

1,7%

Ensino tecnológico

1

1,7%

Finanças

1

1,7%

Gestão do desenvolvimento local sustentável

1

1,7%

Gestão educacional e desenvolvimento local

1

1,7%

Gestão estratégica de organizações

1

1,7%

Gestão social, educação e desenvolvimento social

1

1,7%

Gestão, tecnologias e processos organizacionais

1

1,7%

Políticas públicas e desenvolvimento local

1

1,7%

Psicologia

1

1,7%

Serviço social

1

1,7%

Sociologia política

1

1,7%

Tecnologia para inovação

1

1,7%

Tecnologias da informação e comunicação

1

1,7%

Tecnologias da inteligência e design digital

1

1,7%

Total

58

100%

Fonte: Dados da pesquisa.

 

A mesma característica da produção encontrada nas teses e dissertações foi percebida nos artigos publicados na Scielo, pois a prevalência de estudos acontece na Educação e na Administração e Gestão. Essa vinculação já era esperada, já que parte expressiva das publicações de artigos é resultado da produção acadêmica na pós-graduação stricto sensu. O Brasil é um país em que a produção científica ocorre em universidades, dada a limitada existência de centros de estudos e pesquisa fora desse âmbito. Conforme é possível visualizar na tabela 2, além dessa tendência, há um número expressivo de trabalhos na área da Enfermagem. Neste caso, não se identificou uma correspondência com a produção na pós-graduação stricto sensu.

 

Tabela 2 – Distribuição dos artigos por área no Scielo (2000-2019)

Área

Quantidade

Percentual

Administração

13

28,88%

Comunicação

1

2,22%

Economia

1

2,22%

Educação

18

40%

Educação Física

1

2,22%

Enfermagem

6

13,33%

Engenharia

1

2,22%

Psicologia

2

4,44%

Sociologia e política

2

4,44%

Total

45

100%

Fonte: Dados da pesquisa.

 

No caso da Anped, a grande área é a Educação, já que se trata de um evento direcionado especificamente para a socialização e discussão das questões educacionais. Foram localizados três estudos com foco na temática educação e empreendedorismo nos anais das reuniões anuais da entidade. Os trabalhos das reuniões regionais não foram considerados, pois abarcam pesquisadores em um espectro situado do evento.

Tabela 3 – Distribuição dos artigos por área nos Anais da Anped (2000-2019)

Área

Quantidade

Percentual

Educação

3

100%

Total

3

100%

Fonte: Dados da pesquisa.

 

            No levantamento da produção para a realização deste estudo, não foi usado um recorte temporal, o que permitiu a realização de uma revisão abrangente e completa. A busca inicia no ano de 2000 e se estende até 2019.  A limitação a 2019 ocorreu porque todo o processo de elaboração do banco de dados e de sistematização da pesquisa ocorreu no ano de 2020. As primeiras produções que relacionam empreendedorismo e educação ocorrem na primeira década do século XXI.

O primeiro artigo localizado na Scielo é do ano de 2000, de autoria de Alessandro de Melo, intitulado A educação básica na proposta da Confederação Nacional da Indústria (CNI) nos anos 2000, publicado no periódico Educação e Pesquisa. Os dois primeiros estudos realizados na pós-graduação stricto sensu foram as dissertações de Renato Fonseca de Andrade, intitulada Empreendedorismo em Instituições de Ensino Superior: a concepção de docentes e alunos do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos,  desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Produção da UFSCar e defendida em 2003; e de Eber Luis Capistrano, intitulada A educação de jovens da classe média para o empreendedorismo, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Mato Grosso, também defendida em 2003.

            O gráfico 1 auxilia a compreender esse movimento da produção acadêmica. Na primeira década ainda é uma produção tímida, mas que cresce quantitativamente na segunda década do século XXI.

 

 

Gráfico 1 – Distribuição da produção sobre educação e empreendedorismo (2000-2019)

Fonte: Dados da pesquisa.

 

            Nos primeiros dez anos analisados (2000-2009), foram encontrados 8 estudos de pós-graduação, 9 artigos e 1 texto publicado em anais, perfazendo um total de 18 estudos. Isto significa que essa primeira década concentrou aproximadamente 17% da produção sobre empreendedorismo e educação. Os dez anos seguintes foram responsáveis pela realização de 88 estudos, ou 83% da produção. Esse é um indicador de grande relevância nesta pesquisa, pois revela o lugar crescente que o tema passa a ocupar na política educacional no país.

            O lugar que determinados temas ocupam na produção científica em Educação expressa a capacidade de influência que possuem na organização das políticas educacionais, a penetração que conseguem ter nas instituições educacionais, e o alcance que obtêm entre os sujeitos que constituem as unidades escolares. O interesse disseminado pela análise de um tema, nas mais diversas regiões do país, é revelador da expressiva presença do tema empreendedorismo na área da Educação.

Um elemento de análise do conjunto de estudos, que constituiu o corpus desta investigação, foi o recorte espacial da pesquisa. Com o propósito de identificar a delimitação geográfica da investigação, uma das colunas da planilha deveria ser preenchida com esse dado. Em estudos com foco na revisão conceitual ou nos pressupostos da formação empreendedora não se aplicaria essa análise, já que, obviamente, não constaria essa informação.

 

 

Tabela 4 – Dados do recorte espacial dos estudos sobre educação e empreendedorismo

 

Base de busca

Com informação de recorte espacial

Sem informação de recorte espacial

Não se aplica

Total

Capes

36

18

4

58

Scielo

23

15

7

45

Anped

 0

  1

2

  3

Total

59

34

13

106

               Fonte: Dados da pesquisa.

 

Como pode ser observado na tabela 4, não foi localizada a informação referente ao recorte espacial em 34 estudos. A omissão desse dado pode ser uma opção da autoria, justamente para evitar a identificação da localidade, da instituição ou dos sujeitos investigados, algo realmente desnecessário em muitos estudos. Porém, em algumas pesquisas, parece ter sido um descuido na redação do relatório de pesquisa ou do artigo, já que o nome de um Programa ou de um Projeto era mencionado, sem o uso de uma denominação fictícia. Isso permitiria à equipe desta pesquisa fazer uma busca mais detalhada para garimpar essa informação, correlacionando o nome do Programa a algumas pistas presentes no texto analisado, mas foi feita a opção por não adotar esse procedimento, pois poderia apresentar falhas, já que, para cada estudo sem a informação de localização geográfica, seria adotada uma estratégia diferente de busca desse dado.

Nos 59 estudos com a informação do recorte espacial, 13 foram realizados fora do país, 1 dissertação e 12 artigos. Portugal foi o país mais estudado entre essas pesquisas, o que sugere que o tema está fortemente presente no sistema educacional português. Esse dado pode também indicar uma maior facilidade linguística para os pesquisadores portugueses publicarem os resultados de suas investigações ou ainda sugerir que pesquisadores brasileiros tenham realizado formações (como estágios doutorais) naquele país. Os demais (43) foram realizados no Brasil, com absoluta predominância de investigações nas regiões sudeste e sul. Este é um dado importante, já apontado em outras pesquisas, quando se discute a produção científica em um país com as dimensões continentais do Brasil e com as acirradas desigualdades regionais, que também se expressam na produção científica (SANTOS; AZEVEDO, 2009; MENDES; PERRELLA; CRUZ, 2019).

A variedade de temas e enfoques é significativa na produção que articula educação e empreendedorismo. Para organizar os focos de investigação dos estudos foi feito um agrupamento dos dados, conforme pode ser visto n tabela 5.

Tabela 5 – Focos das investigações sobre educação e empreendedorismo

Tema

Capes

Scielo

Anped

Análise de um Programa de Educação Empreendedora (percepção dos envolvidos, ou o conteúdo da proposta)

5

4

1

Desenvolvimento de competências e de comportamentos empreendedores

11

4

 

Formação empreendedora em uma instituição de ensino (organização dos cursos, inserção de disciplinas sobre empreendedorismo, resultados de aprendizagem, percepção de estudantes e docentes sobre a formação empreendedora)

21

16

1

Aplicação dos conceitos aprendidos em uma instituição de ensino em empresas ou na iniciativa individual

5

4

1

Organização de propostas de ensino de empreendedorismo para empresas, instituições educacionais e organizações

3

 

 

Educação empreendedora em uma empresa

2

6

 

Análises de estudos e de pressupostos teóricos da Educação Empreendedora

4

7

 

Mulheres que se tornam empreendedoras

1

1

1

Mídia e educação empreendedora

 

1

 

Sem informação ou outros temas

5

2

 

  es sobre educação e na tabela 5eiros teham realizado formaçcarem os resultados de suas ivestigaFonte: Dados da pesquisa.

 

A preocupação com a formação empreendedora em uma instituição de ensino foi o tema que predominou entre os estudos levantados nesta investigação, constituindo objeto de pesquisa de 37 produções. Nessa categoria estão as análises sobre a organização dos cursos e acerca da forma de inserção das disciplinas sobre empreendedorismo nos diferentes níveis de ensino; sobre as percepções de estudantes e docentes a respeito do lugar e a relevância da formação empreendedora; e sobre os resultados das aprendizagens nas disciplinas e cursos que versam sobre o tema. Silva (2018) buscou, em sua dissertação, analisar a inserção do empreendedorismo nos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede pública do município de Alcantil, na Paraíba. Nos artigos de Lobato (2009) e Lima et al. (2015) são destacados como objetivos, respectivamente, “Verificar o potencial empreendedor dos acadêmicos dos acadêmicos do sétimo período de educação física da UFV [...], verificando o potencial empreendedor” e “Identificar formas de se melhorar a educação superior em empreendedorismo, focando o caso dos estudantes brasileiros interessados em ser seus próprios patrões”. A dissertação de Souza (2006) teve como propósito analisar os desafios que os professores enfrentam para ensinar o empreendedorismo.

O segundo tema que mais reuniu estudos, com 15 análises, foi o desenvolvimento de competências e comportamentos empreendedores. É um foco de análise muito próximo do anterior, centrado nos aspectos da formação empreendedora, mas que foi organizado separadamente porque reúne especificidades que são particularmente relevantes nesta pesquisa. Trata-se de um conjunto significativo de trabalhos que se volta para a análise da incorporação de comportamentos e valores que devem ser assimilados pelos sujeitos. Nessa categoria está o estudo de Silva (2018), cujo propósito é analisar a influência que o comportamento empreendedor causa na vida dos discentes, no aspecto comportamental, refletindo no campo profissional e pessoal. O desenvolvimento de competências para alcançar o sucesso e para a criação do próprio emprego são apresentados como instrumentos de inclusão social. Esse é o propósito de dois estudos, de Itelvino et al. (2018) e Cortez e Veiga (2019), que têm como objetivo defender o aprimoramento de habilidades empreendedoras para alterar as condições de existência. O estudo de Amaral (2016) tem como “objetivo a utilização do jogo de xadrez como forma de proporcionar o desenvolvimento de habilidades, procurando identificar relações entre as capacidades de um enxadrista e um empreendedor, bem como incentivar o uso do jogo de xadrez nas escolas como ferramenta pedagógica”.

Em 13 estudos prevaleceu a preocupação com a aplicação dos conceitos do empreendedorismo aprendidos em uma instituição de ensino, em empresas ou em iniciativas individuais (de criação de uma empresa). Nesses casos, as análises relacionam as aprendizagens obtidas em programas de capacitação profissional e as características empreendedoras aprendidas em um curso com o sucesso obtido no mercado. Há, inclusive, estudos cujo foco é a intervenção direta, com a proposição de oficinas para estudantes de Educação Básica. É o caso da dissertação de Silva (2017), que tem como objetivo propor uma oficina para alunos concluintes da Educação Básica para fomentar a atitude empreendedora, utilizando a tecnologia e conceitos do Design Thinking. O artigo Rocha e Freitas (2014) tem como objetivo analisar um instrumento que tem como função mensurar a aprendizagem do ensino de empreendedorismo e verificar a alteração do perfil empreendedor entre 407 estudantes universitários participantes e não participantes do processo de formação empreendedora. O estudo de Erdmann et al. (2009, p. 3), que correlaciona educação e empreendedorismo na área da saúde, tem como objetivo “analisar e discutir conceitos e características relacionadas ao empreendedorismo, a partir de visitas de observação realizadas a empresas de caráter social e privadas, apontando ideias e\ou novas possibilidades para o seu desenvolvimento na área de enfermagem” e “construir o relato de experiências, com base nos levantamentos e discussões que emergiram nas oficinas de ideias, a fim de estimular o processo de pesquisa e divulgação do conhecimento”.

A análise de programas de educação empreendedora foi alvo de 10 produções. São estudos que se debruçam sobre o conteúdo e sobre as características das propostas, contemplando aspectos como abrangência geográfica das ações e do público-alvo, relação com a o sistema formal de ensino, fundamentação teórica, e percepção dos envolvidos no programa sobre a participação nas ações. É o caso do estudo de Katrein e Marcana (2019), que tem como objetivo analisar o conteúdo pedagógico, político e ideológico dos Programas de Aprendizagem Profissional para a formação e inserção da juventude no mercado de trabalho a partir do marco da Lei de Aprendizagem de 2000.

A educação empreendedora na empresa foi estudada em oito produções. São estudos que analisam o processo de formação para o empreendedorismo que é realizado na empresa, mesmo que em articulação com alguma unidade de ensino formal ou informal, como Sesi ou Sebrae. É o caso do estudo de Chaves (2006), que tem como objetivo entender como são desenvolvidas, no empreendedor, as competências de configuração e posicionamento de negócios.

Alguns estudos apresentam como objetivo a organização de propostas de ensino de empreendedorismo para empresas, instituições educacionais e organizações. Foram localizadas três produções com essas características. São casos de trabalhos de pesquisa realizados já com a intenção de desenvolvimento de um conjunto de ações. Esses três estudos pertencem ao banco de dados de dissertações e teses da Capes. Trata-se de uma forma de inserção na pós-graduação stricto sensu focada na aplicabilidade da educação empreendedora. A dissertação de Mello (2018, p. 23) tem como objetivo “apresentar uma proposta de ensino de empreendedorismo para organizações”.

A análise das bases epistemológicas da educação empreendedora esteve presente em 11 estudos.  Foram quatro trabalhos do banco de dissertações e teses da Capes e sete artigos na Scielo. São estudos que buscam a interpretação dos alicerces teóricos que fundamentam as propostas de educação empreendedora ou que, a partir de referências teóricas antagônicas a essas, questionam e criticam a adoção da lógica do mercado na formação, tanto dentro quanto fora da escola. O estudo de Krein e Colombi (2009) tem como propósito evidenciar a reforma trabalhista enquanto um instrumento de desconstrução de direitos, e analisar a disseminação da lógica da empregabilidade e do empreendedorismo em detrimento da proteção social. O estudo de Zouain e Torres (2005, p.1), intitulado A suposta modernização das relações de trabalho nas incubadoras de empreendimentos, tem como objetivo “conceber novas formas de organização que respondam às características do modelo de desenvolvimento do país, baseadas em modelos americanos de empreendedorismo social e econômico, mas apropriando-se desse modelo de forma crítica”.

Em três estudos, o foco principal está nas mulheres que se tornam empreendedoras. O estudo de Lemos et al. (2015) tem como objetivo analisar práticas de governo de mulheres pela UNESCO e UNICEF a partir da perspectiva histórica e documental. A relação entre a mídia e a educação empreendedora foi alvo de um estudo. O estudo de Lima Jr. (2011, p. 6) tem como propósito realizar “uma leitura crítica das inúmeras propostas curriculares e matérias de mídia relativas ao empreendedorismo na educação”.

Sete estudos não foram inseridos nas categorias temáticas aqui apresentadas por realizarem discussões difusas sobre o tema. É o caso da dissertação de Hora (2018), que teve como objetivo analisar manifestações do design emergente na zona sul de Osasco.

Com o agrupamento dos estudos por foco de investigação, apresentado na tabela 5, foi possível identificar algumas características da produção acadêmica sobre empreendedorismo e educação. Um aspecto que chamou a atenção da equipe de pesquisa foi a prevalência de análises sobre o tema afinada com uma adaptação dos sistemas educacionais aos propósitos de uma educação empreendedora. O interesse na análise de programas, nos processos de formação em instituições de ensino, no desenvolvimento de competências, e na aplicabilidade dos conceitos são objetos da maior parte das investigações que compuseram o escopo desta pesquisa, sem, entretanto, um tratamento crítico dessa relação entre educação e empreendedorismo.

            A ausência de tratamento crítico, inclusive nas produções (dissertações e teses) que resultaram da realização de pós-graduação stricto sensu na área da Educação, suscitou questionamentos sobre essas produções. Pelas características das formações e das linhas de análise presentes na área da administração, já havia a hipótese de que a produção nessas áreas não se debruçasse sobre a problematização da relação entre educação e empreendedorismo e sobre as implicações da adoção desses preceitos para a formação em todos os níveis e modalidades de ensino. Entretanto, na área da Educação seria esperada[2] uma presença mais acirrada desse questionamento, que não se confirmou, já que grande parte dos estudos estabelece uma relação promissora entre os processos formativos e a educação empreendedora.

            A busca de respostas no campo científico para problemas e situações decorrentes das demandas do mercado colocam as universidades a serviço das exigências do capital, a cumprir os propósitos de reprodução do metabolismo social vigente. Ainda que a produção do conhecimento goze de certa autonomia nas universidades públicas, “responde à dominância da produção industrial” (BERGAMO; BERNADES, 2006, p. 182). Assim, os processos de formação e de produção do conhecimento só terão sentido se servirem à produção da força de trabalho e tiverem utilidade como mercadoria.

            Diante dessa constatação, voltamos para o banco de dados para olhar com mais atenção para as autorias das produções que resultaram da realização de mestrados e doutorados na área educacional, o total foi de 19. Foi feita, então, uma busca na Plataforma Lattes sobre a formação inicial de cada um dos autores desses 19 trabalhos. A busca desse dado ocorreu após a organização das categorias temáticas na planilha de análise dos estudos, mas permitiu algumas interpretações relevantes nesta investigação. Foi possível perceber que a formação inicial dos autores dos 19 estudos ocorreu predominantemente na área da administração, conforme pode ser visto na tabela 6.

 

Tabela 6 – Formação inicial dos autores das dissertações e teses sobre educação e empreendedorismo da área da Educação

Formação inicial

Total

Administração

Economia

9

1

Filosofia

Filosofia e Teologia

História

Jornalismo

Matemática

Pedagogia

Pedagogia e Administração

Pedagogia e Artes

Psicologia

1

1

1

1

1

1

1

1

1

 

 

Total

19

Fonte: Elaborada a partir de busca na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

 

            Após a busca da formação inicial dos autores dos 19 estudos produzidos na área da Educação, que indicou prevalência de graduação na área da Administração, realizou-se a mesma busca nos currículos dos 12 autores que realizaram a formação stricto sensu na área da administração. Essa segunda busca teve como propósito identificar se o movimento observado de oriundos de áreas diversas para a da Educação também aconteceria na Administração, área que reuniu o segundo grande de blocos de estudos sobre educação e empreendedorismo.

 

Tabela 7 – Formação inicial dos autores das dissertações e teses sobre empreendedorismo e educação da área da Administração

Formação inicial

 

Total

Administração

Administração e História

Administração, Administração Pública, Sociologia, Artes Visuais

Ciências Contábeis

 

7

1

 

1

1

Engenharia de Minas

 

1

Direito

 

1

Total

 

12

Fonte: Elaborada a partir de busca na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

 

            Como pode ser percebido na tabela 7 a formação inicial na Administração também prevaleceu entre aqueles que realizaram a pós-graduação stricto sensu nessa área. Não se observa, nessa tabela, uma migração como ocorre na área da Educação, de uma formação inicial em uma área com características bem diversas daquela constituída na pós-graduação.

            Essa busca da formação inicial somente foi realizada em relação aos dados extraídos do Banco de Dissertações e Teses da Capes, em que a relação entre as características do estudo, a área de realização da pós-graduação e a formação inicial poderiam ser bem observadas.

            Dessas duas tabelas, muitas análises podem ser depreendidas. Para os propósitos deste estudo, interessa observar as características da produção acadêmica sobre a educação e empreendedorismo. Em outras palavras, interessa entender quem produz, onde produz e como ocorre essa produção, para quem são endereçadas e que tipo de sociedade desejam formar e formatar.

            Os programas de pós-graduação em Educação reúnem acadêmicos com formações iniciais muito diversas. Por ser uma área com um leque de temáticas de investigação bastante ampla, é capaz de absorver propostas de investigação de naturezas variadas. No caso da pós-graduação stricto sensu, por ser condição para ingresso na docência universitária, o maior interesse pela realização de formação na área da Educação pode ter relação com essa exigência e com as características do trabalho em uma instituição de ensino, que demanda o conhecimento sobre as questões de ordem pedagógica.

            Para verificar se há movimento semelhante na área da administração, foi realizado o mesmo movimento de análise com as autorias dos trabalhos nas pós-graduações na área da Administração. Conforme pode ser percebido na tabela 7, a área da pós-graduação em Administração também absorve profissionais oriundos de formações diversas, mas com dispersão menos expressiva que na Educação. Também é importante ressaltar que a maior parte dos autores tem formação na área da Administração; ou seja, a formação inicial na mesma área da formação stricto sensu.

 

Considerações finais

Os resultados encontrados nesta pesquisa ratificam o entendimento de Vosgerau e Romanowski (2014) sobre a importância e a necessidade dos estudos de revisão para indicar as prevalências, as tendências e as fragilidades da produção científica em uma determinada área. Do ponto de vista metodológico, é importante ressaltar a necessidade de produzir alterações e ajustes nos procedimentos no decorrer da pesquisa, na medida em que percebemos que seria limitada a revisão da produção apenas centrada na área da Educação. Nos estudos de revisão, mesmo que os procedimentos sejam definidos a priori, é preciso atenção às características dos materiais levantados para produzir possíveis alterações nos caminhos da pesquisa.

 Foi possível identificar, em duas décadas, crescimento acentuado na produção acadêmica que articula a discussão entre educação e empreendedorismo. Um crescimento certamente impulsionado pela inserção acentuada do tema nos documentos educacionais produzidos em todas as esferas de governo. Duas grandes áreas, Educação e Administração, produzem o maior número de estudos.

A hipótese inicial da pesquisa, de que os estudos realizados na área da Educação assumiriam uma postura problematizadora, questionadora e crítica sobre a relação entre educação e empreendedorismo não se confirmou. A prevalência absoluta de estudos afinados com a indicação de caminhos para a adoção da educação empreendedora em diferentes níveis e modalidades de ensino foi um achado importante nesta pesquisa. A produção na área da Educação segue a mesma tendência.

A larga presença de grupos que defendem um projeto educacional não atrelado aos interesses do mercado e de ampliação da acumulação do capital em programas de pós-graduação, especialmente na stricto sensu, parece não reverberar na produção científica sobre o tema aqui analisado. O foco no desenvolvimento de comportamentos e habilidades necessárias ao empreendedor coloca a formação cada vez mais voltada para a subordinação do trabalho ao capital e, por consequência, para a conservação da exclusão, da desigualdade, da competição e da hierarquização, elementos que deveriam ser combatidos em projetos educacionais que busquem a emancipação.

 

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Notas



[1] Essa busca não foi realizada com o filtro apenas para o Brasil.

[2] Expectativa decorrente do acúmulo de pesquisas produzidas no país, cujo foco é o questionamento ao atrelamento do sistema educacional aos valores do capital. São estudos produzidos a partir de perspectivas teóricas que colocam em posições antagônicas a formação empresarial e a formação educacional. 

 

 

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