Educação de jovens e adultos – uma educação da resistência
Educación de jóvenes y adultos – una educación
de resistência
Education of youth and adults - an education
of resistance
Secretaria de Educação do Estado do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.
larasouza71@yahoo.com.br
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.
edivanibarbosa@ufc.br
Recebido em 09 de março de 2022
Aprovado em 06 de janeiro de 2023
Publicado em 08 de janeiro de 2024
RESUMO
Este escrito objetiva realizar um levantamento sobre a história da Educação de Jovens e Adultos (EJA) vinculada aos processos de formação dos direitos no Brasil, em especial, o direito político e o direito civil, direito ao voto e o direito à educação, respectivamente, configurando uma pesquisa qualitativa, do tipo documental e bibliográfica. Nessa trajetória, a legislação brasileira foi analisada a fim de verificar as diretrizes a respeito da EJA; e para auxiliar na análise desse conteúdo, os estudos foram respaldados pelas obras de Poubel, Pinho e Carmo (2017), Pierro (2008), Leite (2013), Feitosa (2012, 1999), Carneiro (2018) e Freire (2005, 1979). Como resultado, constata-se que, no processo da constituição do Brasil como um Estado Nacional Moderno, o direito à educação transformou-se em um campo de luta e resistência por aqueles que sempre tiveram sua cidadania negada em decorrência da sua condição social, de sua classe, raça e gênero. A Constituição de 1988 e a LDB de 1996 são consideradas uma vitória no que se refere ao reconhecimento e regulamentação da Educação de Jovens e Adultos (EJA) como modalidade de ensino, haja vista o amplo histórico de negação de direitos que foi imposto justo àqueles(as) que a procuram. Destacam-se os movimentos sociais e o trabalho de Paulo Freire como caminhos que trouxeram consciência aos trabalhadores(as) sobre a sua condição em uma sociedade dividida pelas classes sociais.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Direito Político; Direito Civil.
RESUMEN
Este escrito tiene como objetivo realizar un recorrido por la historia de la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) vinculada a los procesos de formación de derechos en Brasil, en particular, el derecho político y el derecho civil, el derecho al voto y el derecho a la educación, respectivamente, configurando una investigación cualitativa, documental y bibliográfica. En este camino, se analizó la legislación brasileña con el fin de verificar las directrices relativas a la EJA; y para ayudar en el análisis de este contenido, los estudios se apoyaron en los trabajos de Poubel, Pinho y Carmo (2017), Pierro (2008), Leite (2013), Feitosa (2012, 1999), Carneiro (2018) y Freire. (2005, 1979). Como resultado se puede ver que en el proceso de consolidación de Brasil como un Estado Nacional Moderno, el derecho a la educación se convirtió en un campo de lucha y resistencia para aquellos a quienes siempre se les había negado la ciudadanía debido a su condición social, clase, raza y género. La Constitución de 1988 y la LDB de 1996 se consideran una victoria en lo que respecta al reconocimiento y regulación de la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) como modalidad de enseñanza, dada la extensa historia de negación de derechos que se impuso justamente a quienes buscan él. Los movimientos sociales y la obra de Paulo Freire se destacan como caminos que concientizaron a los trabajadores sobre su condición en una sociedad dividida por clases sociales.
Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos; Derecho Político; Derecho Civil.
ABSTRACT
This rehearsal has as a goal the accomplishment of an investigation about the history of education of youngs and adults (EJA) linked to the processes of creation of rights in Brazil, especially the political rights and the civil rights, the right to vote and to education, configuring a qualitative, documental and bibliographical research. In this trajectory, the Brazilian legislation has been analyzed in order to check the directives about the education of Young and adults. In order to auxiliate the analysis of this content, this study has been based on the Works of Poubel Pinho e Carmo (2017), Pierro (2008), Leite (2013), Feitosa (2012, 1999), Carneiro (2018) e Freire (2005, 1979). The results were verified in the process of the brazilian constitution as a modern national state. The right to education has been transformed into a field of struggle and resistance for those who have Always had their citizenship denied as a consequence of social conditions without full access to school. The constitution of 1988 and the LDB of 1996 are considered a victory concerning the acknowledgement and regulamentations of EJA as a modality of teaching. The Works of social movements and Paulo Freire have been emphasized as a way for literacy and has also brought a consciousness to the workers about their own condition in a divided society of social groups.
Keywords: Education for Young and adults; Political rights; Civil rights.
Introdução
A Educação de Jovens e Adultos (EJA), regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n.º 9.394/1996, é uma modalidade de ensino dirigida a segmentos da população que não tiveram acesso ou continuidade dos estudos no Ensino Fundamental e Ensino Médio na idade regular. Essa Lei é parte de extensa luta pela conquista de uma educação para adultos, e tem como funções principais reparar uma dívida social, ao garantir o direito à escola (função reparadora), reduzir as desigualdades (função equalizadora) e assegurar a possibilidade de educação ao decorrer da vida (função qualificadora). Ainda está muito longe, no entanto, para que a EJA concretize as funções que deveria cumprir.
O problema é que ainda há um longo caminho para que seja amplamente reconhecida a importância social dessa modalidade de ensino - relevância social que se evidencia quando examinamos a persistência do histórico da negação de direitos no Brasil. Por isso, é preciso considerar que, se o País demorou muito tempo para implementar a universalização de uma escola gratuita para crianças em idade escolar normativa, o que dizer dos segmentos que ficaram à margem desse processo em razão da sua idade, ou mesmo aqueles que foram obrigados a abandonar a escola e não puderam concluir os estudos? Afinal, quem são esses sujeitos da EJA, esses(as) que não se escolarizaram no tempo regular? Em seus estudos, Pierro (2008) assevera que estes são os(as) trabalhadores(as), os(as) migrantes rurais, os(as) imigrantes transfronteiriços(as), a juventude urbana pobre e as mulheres com mais de sessenta anos; e acrescentamos, os sujeitos da EJA são majoritariamente pertencentes a população negra do Brasil.
Compreender a história da educação de adultos no Brasil, e como esta se relaciona com a história da formação dos direitos, em especial, os direitos políticos, é que torna claro o porquê de a EJA ser uma questão de dívida social, e de que a sua importância social está em asseverar direitos historicamente negados a uma classe de trabalhadores(as) e outros(as) excluídos(as), vítimas de segregação socioespacial, do racismo, do sexismo; que procuram não simplesmente um diploma para galgar uma posição empregatícia melhor no mercado de trabalho, mas também superar as desigualdades educativas do passado, contribuir para a escolarização de seus(as) filhos(as), que procuram a escola como um espaço de sociabilidade e liberdade, e de um viver mais digno e justo.
Objetivamos, com efeito, realizar um levantamento sobre a história da formalização dessa modalidade de ensino vinculada aos processos de formação dos direitos no Brasil, em especial, o direito político e o direito civil, direito ao voto e à educação, respectivamente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho documental e bibliográfico sobre a educação de jovens e adultos. Nessa trajetória, a legislação brasileira foi analisada a fim de verificar as diretrizes a respeito daqueles que não tiveram acesso à escola: Decreto Imperial de 1881, as Constituições Brasileiras (1824,1934, 1937,1946,1967,1988) e a Lei n.º 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira - LDB). Para auxiliar na análise desse conteúdo, os estudos foram respaldados pelas obras de Poubel, Pinho e Carmo (2017), Pierro (2008), Leite (2013), Feitosa (2012, 1999), Carneiro (2018) e Freire (2005, 1979).
Nesse sentido, reafirmamos, neste artigo, a importância social da EJA, motivo por que contextualizamos sua história no âmbito da luta pelos direitos políticos, como o direito ao voto dos(as) analfabetos(as), correlacionado com a luta pelo direito à educação pública para todos(as) e com as questões de classe, raça e gênero. O trabalho se divide em três partes: na primeira, é realizada uma breve discussão sobre a história dos direitos no Brasil, dando relevo aos direitos políticos e civis, com ênfase ao direito à educação, analisando as constituições do País. No segmento imediatamente posterior, exprimimos a história da criação de uma educação para adultos, situando em evidência a importância dos movimentos sociais e do Método Paulo Freire, até a sua formalização com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996. Por fim, no terceiro módulo, destacamos em visão ampla a situação atual da EJA e dos sujeitos que a procuram.
Breve histórico sobre os direitos e a educação no Brasil
A primeira Constituição do Brasil, promulgada em 1824, sob um regime monárquico e uma sociedade escravocrata marcada pelo latifúndio, compreendia a existência de dois tipos de cidadãos: os cidadãos passivos, que não possuíam direitos políticos, segmento no qual se enquadravam as mulheres, os soldados, os religiosos e os mendigos; e os cidadãos ativos, homens livres e libertos, maiores de 25 anos, com renda mínima de 100 mil réis (BRASIL,1824). Obviamente, os escravizados não eram cidadãos, uma vez que não possuíam direito a ter qualquer direito e eram considerados como propriedade material, um bem econômico do escravagista.
A Constituição de 1824 garantia o ensino elementar gratuito para os cidadãos ativos e passivos, e não proibia o voto dos analfabetos nas eleições primárias, se estes, livres ou libertos, pudessem comprovar renda de 100 mil-réis. De acordo com Carvalho (2008), a limitação de renda era de pouca importância, uma vez que a maioria da população trabalhadora ganhava mais do que 100 mil réis por ano, de modo que os mais pobres não estavam excluídos de votar, tampouco os analfabetos. Foi com a chamada Lei Saraiva, de 1881, considerada a primeira reforma eleitoral no País, no âmbito da qual foi excluído o direito ao voto dos analfabetos, juntamente com o estabelecimento de um aumento da renda de 100 mil-réis por ano para 200 mil-réis. Dessa maneira, se estreitou, consideravelmente, o contingente daqueles habilitados como eleitores, portanto, possuidores de direitos políticos.
Após abolida a escravidão, às vésperas do fim do Império, em 1888, o Estado não realizou qualquer reparação aos séculos de escravidão imposta a população negra, que foi abandonada à própria sorte. De acordo com Haddad & Di Pierro apud Poubel, Pinho e Carmo (2017), ao final desse período histórico, existia um percentual de analfabetismo gigantesco, pois mais de 80% da população acima de cinco anos era analfabeta, de acordo com os Censos de 1872 e de 1890.
Com a Proclamação da República, em 1889, foi promulgada, em 1891, a segunda Constituição do País, e a primeira de caráter republicano. A Carta de 1891 versava apenas sobre a educação pública regular, excluindo os(as) adultos(as) analfabetos(as) da escolarização. Assim, com a maioria da população formada por negros(as) recém-libertos(as) e com o crescente fluxo de imigrantes pobres com intuito de promover um embranquecimento no País, a taxa de analfabetismo continuou enorme e com ela a negação à participação política na sociedade por todos(as). Como nos informam Haddad e Di Pierro, apud Poubel, Pinho e Carmo (2017), "O censo de 1920, realizado 30 anos após o estabelecimento da República no país, indicou que 72% da população acima de cinco anos permanecia analfabeta ". (P.128).
A Carta de 1891 teve vigência até 1934, quando foi promulgada a terceira Constituição do País, que representou, na época, um avanço no que concerne à educação e aos direitos políticos, por ter trazido em seu texto a educação como um direito de todos e todas, sendo dever do Estado oferecer ensino primário integral, gratuito e de frequência obrigatória, extensivo, inclusive, aos adultos e por ter garantido às mulheres o direito ao voto. Esta Carta Grande teve validade de apenas três anos, por ter sido revogada com o golpe de Estado em 1937. (BRASIL, 1934)
Com o golpe de Estado, foi outorgada a Constituição de 1937, que teve vigência durante nove anos, durante a fase do chamado de Estado Novo (1937- 1945), caracterizado como um período no qual um regime autoritário e antidemocrático se estabeleceu. Esta Constituição representou grande retrocesso em distintas esferas, inclusive quanto à educação. À União foi estabelecida a competência sobre as diretrizes e bases da educação; à família, foi delegado o "primeiro dever e direito natural" (BRASIL, 1937) de se responsabilizar pela educação integral da prole; a gratuidade do ensino primário foi flexibilizada, de modo que foi exigida "[...] aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar". (BRASIL, 1937)
Em decorrência das grandes transformações econômicas e políticas na sociedade brasileira, desde os anos de 1930, que se deu início uma mudança de visão sobre o analfabetismo. Já nos anos de 1940, essa mudança se intensificou e o analfabetismo começou a ser visto como um grave problema social, como uma "doença" que precisa ser erradicada. Com a redemocratização, outra Carta Magna foi promulgada, no entanto, ao analisarmos a de 1946², esta pode ser considerada um retrocesso, se comparada com a de 1934. Nela, apesar de ter sido permitido o direito ao voto às mulheres, ficaram excluídos(as) os(as) analfabetos(as), e, também, a questão da educação de adultos deixou de ser mencionada. De qualquer modo, consoante Leite (2013), é possível afirmar que, com o término da ditadura do Estado Novo, o Governo Federal passou a adotar um pouco mais de responsabilidade quanto ao ensino de adultos, disponibilizando recursos que até então eram apenas aplicados na educação regular.
De acordo com Feitosa (2012), um grande avanço na educação aconteceu em janeiro de 1964, quando o governo de João Goulart instituiu o Programa Nacional de Educação, por meio da aplicação do Método Paulo Freire, constituído por ideias emancipadoras que tinham como meta criar inúmeros Círculos de Cultura por todo o País com o intuito de alfabetizar a população mais carente. Tal programa, no entanto, nunca chegou a ser implementado. Três meses após, em abril de 1964, foi instalado um golpe militar e o País mergulhou num período de exceção que vigorou por vinte e um anos. A Constituição (outorgada) de 1967 e as sucessivas emendas realizadas por intermédio dos atos institucionais, serviram como mecanismos de legitimação e legalização das práticas políticas dos militares. A educação e as experiências alfabetizadoras que se seguiram congelaram as ideias de uma educação libertadora.
Durante o período ditatorial, novas reformas educacionais aconteceram. Paralelo a elas, houve um grande incentivo do Estado para a expansão da iniciativa privada, no que toca à educação, tornando-a um negócio rentável. Quanto às reformas a respeito da educação de adultos, as seguintes leis se destacam: a Lei 5.379, de 1967, que criou o Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos (MOBRAL), e a Lei 5.692, de 1971, que, além de reorganizar o sistema de educação oficial, também regulamentou o ensino supletivo para os adultos. (ASSIS, 2012). Leite (2013) assevera que nesse momento ocorreu uma mudança quanto à interpretação do ensino de adultos, de maneira que o Ensino Supletivo não se resumia mais a erradicar o analfabetismo no País, mas também impendia oferecer ao adulto uma formação suplementar, isto é, uma suplência da educação fundamental da escola formal, com objetivo de formar uma mão de obra de forma emergencial, sem muito aprofundamento científico e tecnológico.
Com o fim do governo civil-militar e o processo de redemocratização, houve uma reorganização dos movimentos sociais em prol da defesa e da garantia dos direitos. Com a Promulgação da Constituição de 1988, os direitos e garantias políticas foram reassegurados, o direito ao voto foi permitido a todos(as), inclusive aos analfabetos(as) pela primeira vez, assim como o direito à educação pública e gratuita, inclusive aos adultos.
Dessa maneira, no Brasil, o último país da América a abolir a escravidão, em 1888, por muitos séculos, vigorou uma ampla massa de analfabetos(as), formada majoritariamente por negros, pobres, mulheres, cuja universalização do direito à educação, inclusive a educação de adultos, só iria ser assegurada e garantida apenas há pouco mais de 30 anos, com a promulgação da chamada "Constituição Cidadã", em 1988.
A criação da EJA
No Brasil, o problema do analfabetismo e as medidas adotadas para sua erradicação sempre estiveram atreladas à educação de adultos e esta, ao largo da história, foi ganhando novas interpretações e significados. No subtópico anterior já descrevemos os principais marcos legais concernentes ao ensino de adultos no Brasil promovidos pelo Estado. O propósito agora é nos aprofundar nessas medidas, mas também descrever o papel dos movimentos sociais em sua atuação a respeito desse tema. A segunda consideração fundamental corresponde ao marco na história da pedagogia das ideias revolucionárias de Paulo Freire quanto à educação de adultos. Arrimadas na concepção de uma educação popular, isto é, de um projeto de educação libertadora, baseado no compromisso com uma formação crítica aos oprimidos, o Método Paulo Freire é considerado um verdadeiro divisor de águas e tem importância fundamental para entendermos a história da EJA e sua atualidade.
De acordo com Leite (2013), foi nos anos de 1940, em pleno processo de industrialização e urbanização do País, que uma nova concepção sobre o analfabetismo emergiu - a de que este precisava ser erradicado. Para esse propósito, o governo começou a empreender uma série de campanhas. Na época, já era clara a organização dualista do rudimentar sistema de ensino do Brasil vigente, ou seja, existiam duas escolarizações: para as classes populares havia o ensino primário, delegado às administrações regionais com poucos recursos e as escolas profissionalizantes; para as classes médias e ricas, havia o ensino secundário, que, em sua maioria, era privado, e os cursos superiores.
A maior parte dos anos de 1940 esteve sob a vigência de um governo autoritário, caracterizado pela ausência de direitos civis e políticos. Mesmo com o fim do Estado Novo e com uma abertura democrática, a Constituição de 1946, que vigorou até 1964, não garantiu o direito à educação de adultos, nem o direito dos(as) analfabetos(as) ao voto. Negar ambos os direitos foi uma maneira deliberada de manter as classes populares, em sua maioria negra, alijadas das decisões políticas e econômicas, uma vez que o Censo demográfico de 1940 indicava que o percentual de 55,9% da população com quinze anos ou mais era composto de analfabetos. Por isso a importância da emergência dos movimentos sociais e da educação popular.
De acordo com Braga e Mazzeu (2017), no fim dos anos de 1950, em diversos lugares do País, surgiram mobilizações sociais, movimentos estudantis, ligas camponesas e movimentos sindicais, que tinham como propósito fomentar uma consciência política nas classes populares e lutar pela realização das reformas de bases; propunham mudanças sociais e denunciavam a desigualdade e as injustiças da sociedade. O Nordeste realçou-se como uma região que reuniu muitos desses movimentos, dentre as quais se destacam: 1960, o Movimento de Cultura Popular (MCP) no Recife; em 1961, o surgimento do Método Paulo Freire, o Movimento de Educação de Base (MEB), a Campanha Pé no Chão Também se Aprende a Ler. Segundo Feitosa (1999), a última ocorreu em três cidades, Natal e Angicos, no Nordeste e, Osasco, no Sudeste; ela também destaca a Campanha de Educação Popular da Paraíba (CEPLAR), em João Pessoa. Todas essas ações citadas tinham em comum a utilização o Método Paulo Freire. Os resultados iniciais obtidos com o trabalho de alfabetização de Paulo Freire renderam a ascensão popular dos(as) trabalhadores(as), que, conscientes de sua condição de oprimidos(as), passaram a organizar-se na luta contra a opressão e exploração. Citamos como exemplo a experiência em Angicos, no Rio Grande do Norte, no Nordeste em 1962:
[...] Os resultados obtidos, 300 trabalhadores alfabetizados em cerca de 45 dias, impressionaram profundamente a opinião pública e a ampliação do sistema pôde estender-se, já agora sob o patrocínio do governo federal, a todo o território nacional. Assim, entre junho de 1963 e março de 1964, desenvolveram-se cursos de capacitação de coordenadores em quase todas as capitais dos estados (...). O plano de 1964 previa a instalação de 20.000 círculos que já se encontravam capacitados para atender, durante este ano, a aproximadamente 2 milhões de alfabetizados (30 por círculo, com duração de 3 meses cada curso). Tinha início assim uma campanha de alfabetização em escala nacional que envolvia, nas primeiras etapas, os setores urbanos, e deveria estender-se imediatamente depois aos setores rurais. (FREIRE, 1979, p. 10,11).
Como consequência desse esforço de alfabetização, destacamos a busca pela organização sindical dos trabalhadores: “[...] Durante 12 meses foram criados cerca de 1.300 sindicatos rurais. Pode-se tomar como índice da significação deste trabalho as grandes greves de trabalhadores rurais em Pernambuco no ano de 1963, a primeira com 85.000 grevistas e a segunda com 23.000”. (FREIRE, 1979, p. 10). Em sua obra, Freire (2005) esclarece que a educação é um ato político; que o ato de ensinar não está descolado do ato de aprender; critica a visão bancária de educação; denuncia a relação opressor-oprimido; defende a necessária criticidade dos(as) educandos(as), entre outros aspectos: Paulo Freire ressalta que “[...] a educação pode contribuir para que as pessoas se acomodem ao mundo em que vivem ou se envolvam na transformação dele”; assim, a educação será conservadora ou transformadora da realidade. (CARNEIRO, 2018).
Feitosa (2012) evidencia que a proposta pedagógica do Método Paulo Freire foi e continua sendo revolucionária, justamente por sua concepção libertadora. Para Freire, quando o(a) educador(a)não tem clareza sobre a quem está servindo ou opta pela neutralidade, está, mesmo que inconscientemente, optando por um dos lados, neste caso, pela conservação. Ao escolher uma educação transformadora, ela deve ser essencialmente problematizadora, pressupondo criatividade e reflexão sobre a realidade, de modo a assumir o compromisso com sua mudança. (BRASIL, 2002)
Na compreensão de Feitosa (2012), por intermédio do método Paulo Freire, os(as) educandos(as) aprendem não apenas a ler as letras, mas também a ler o mundo; os(as) educandos(as) partem da sua realidade para compreender a sua situação de oprimidos(as), realizando um processo de emancipação, em que se tornam sujeitos de sua alfabetização e passam a ocupar outro lugar, na condição de sujeitos críticos e atuantes na sociedade. Por isso, o Método Paulo Freire é considerado um divisor de águas na educação de adultos, pois ele rompe com o paradigma do ensino compensatório e o caracteriza de maneira política, como um campo de direitos, e de modo metodológico, como modalidade com especificidade.
Os métodos de alfabetização até então empregados não eram adaptados para a especificidade de ensino necessária por esse segmento, sendo que os materiais e metodologias utilizados eram os mesmos para alfabetizar crianças. Existia uma visão preconceituosa dos(as) analfabetos(as), como incapazes, ignorantes, vazios de saber. Essa óptica era focada na ausência e excluía uma cultura rica baseada na oralidade, como, nesses exemplos, a literatura de cordel, os repentistas, as festas populares e religiosas e o teatro popular, riqueza que passou a ser reafirmada pelos movimentos de cultura popular. O Método Paulo Freire, por sua vez, também contribuiu para superar essa visão preconceituosa e subjugar a metodologia então existente do ensino de adultos, ao reconhecer que o saber não há que ser assentado, exclusivamente, no saber escolar.
Com efeito, o Método Paulo Freire foi capaz de ressignificar conceitos, criar categorias e uma nova visão para o ensino de adultos. Em 1963, em Angicos, no Rio Grande do Norte, não aconteceu a primeira ação com utilização do Método Paulo Freire, mas foi a que mais se fez conhecida, contribuindo para a divulgação dessa metodologia no Brasil inteiro, conforme destacamos. A quadragésima aula contou com o comparecimento do presidente João Goulart, que convidou Paulo Freire para coordenar a Campanha Nacional de Alfabetização, dando continuidade ao projeto na contextura nacional. Com o Método Paulo Freire, surgiu uma renovada abordagem de interpretar o analfabetismo como consequência de uma sociedade desigual e injusta. Sob esse ponto de vista, a educação de adultos deveria contribuir para a transformação da sociedade, de sorte que a educação de adultos começou a ser vista como um instrumento de ação política (FEITOSA, 1999).
Passados apenas oitenta dias, contudo, a Campanha Nacional de Alfabetização foi revogada com o golpe empresarial-militar de 1964, pois, afinal, um método que era capaz de realizar a alfabetização de iletrados em tempo tão rápido e de promover uma compreensão crítica sobre o mundo foi considerado perigoso pelo seu potencial em alterar a correlação de forças políticas numa sociedade em que os direitos políticos estavam submetidos ao letramento. De tal sorte, o golpe de 1964 produziu uma enorme ruptura política, mudando os caminhos que se delineavam na trilha para democratizar a educação e sob uma visão emancipadora do ensino, interrompendo as conquistas desses movimentos sociais. Em virtude do seu ideal político, os projetos de alfabetização de adultos e educação popular foram condenados e reprimidos como ameaça à ordem do regime. Paulo Freire foi exilado.
Com toda a repressão transportada pelo regime militar, o analfabetismo continuava sendo um problema, classificado como "vergonha nacional" e obstáculo para o desenvolvimento econômico almejado pelo regime, de maneira que essa visão configurava o analfabetismo como a causa dos problemas econômicos, políticos e sociais e não como seu efeito. Por essas circunstâncias, em 1967, foi criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) com a Lei 5.379, e alguns anos mais à frente, em 1971, a Lei 5.692, que oficializou o Ensino Supletivo. Durante os anos de 1970, o MOBRAL se expandiu consideravelmente, atingindo praticamente todos os municípios brasileiros. Ele era composto por dois programas: o Programa de Alfabetização Funcional (PAF), que tinha duração de cinco meses e o objetivo de instruir os jovens e adultos na leitura, escrita e cálculo; e o Programa de Educação Integrada (PEI), que condensou o primário em poucos anos e abriu a perspectiva de continuidade dos estudos ao recém alfabetizado(a) para que esse(a) fosse mais bem integrado(a) ao mercado de trabalho.
É importante destacar que o MOBRAL foi responsável por estabelecer um estigma negativo no imaginário da sociedade brasileira acerca do ensino de adultos e sobre o(a) educando(a) que o procura. Feitosa (2012) assinala que o MOBRAL tinha um grande desprestígio social, e que a consequência disso era que a ineficiência e a incompetência que estigmatizavam a instituição acabavam por atingir também os sujeitos. Sobre o MOBRAL, é interessante conhecer o relato de Feitosa (2012) sobre sua experiência nos anos em que ensinou no órgão. Segundo a autora, o Programa não exigia uma formação específica para magistério, tampouco realizava qualquer curso de formação para os que ingressavam como professores. Em seu relato, Feitosa assevera que tinha apenas o segundo grau incompleto quando foi aceita para trabalhar como professora em condições estruturais precárias, falta de material pedagógico e baixa remuneração.
Já o ensino supletivo, oficializado com a Lei 5.692, de 1971, correspondeu mais a uma mudança quanto à interpretação do ensino de adultos. Esta passou a não se restringir mais apenas à alfabetização, mas a abranger também uma escolarização que pudesse suprir os adultos que não conseguiram completar sua escolarização na idade regular dos conhecimentos elementares do ensino básico. Dessa forma, foram implementados os Centros de Ensino Supletivo (CES) para atender os adultos, inclusive aqueles egressos do MOBRAL que desejassem completar seus estudos de 1° e de 2° graus. O Parecer n.º 699/72 destaca quatro funções do então ensino supletivo: a suplência, ou seja, a substituição compensatória do ensino regular pelo supletivo via cursos e exames com direito a certificação de ensino de 1º grau para maiores de 18 anos, e de ensino de 2º grau para maiores de 21 anos; o suprimento, ou complementação da escolaridade inacabada por meio de cursos de aperfeiçoamento e de atualização; a aprendizagem; e a qualificação. (BRASIL, 2002a, p.16)
O Ensino Supletivo consolidou a ideia de uma escolarização de adultos compensatória e aligeirada, caracterizada de acordo com Vieiro (2008) como uma educação funcional, isto é, uma educação vinculada ao processo socioeconômico, de acordo com um projeto de educação que visa a formar uma mão de obra mais produtiva e que nega "[...] a possibilidade de acesso ao processo que desenvolve as potencialidades humanas em todas as suas dimensões". (VIEIRO, 2008, p.294).
Com o fim do período militar, o MOBRAL foi extinto em 1985 e foi criada a Fundação Educar, que se tornou responsável pelos programas para erradicação do analfabetismo, mas, de acordo com Feitosa (1999), na prática, não houve grandes mudanças, os mesmos problemas encontrados no MOBRAL persistiram. Cinco anos mais tarde, em 1990, a Fundação Educar também foi extinta, o que significou a descentralização do ensino dos adultos, de forma que a responsabilidade por este deixou de ser competência da União e passou a ser dos municípios. Foi apenas no final de 1996 que, com a Lei de Diretrizes Básicas da Educação no Brasil (LDB), o ensino de adultos foi reiterado e compreendido como modalidade do ensino básico, substituindo a expressão Ensino Supletivo para a dicção Educação de Jovens e Adultos - EJA (LEITE, 2013).
Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada aqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria. § 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames. § 2º O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si.
Art. 38. Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular. § 1º Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão: I - no nível de conclusão do ensino fundamental, para os maiores de quinze anos; II - no nível de conclusão do ensino médio, para os maiores de dezoito anos. (BRASIL, 1996)
De acordo com Bezerra e Machado (2016), para atender às disposições da LDB, foi elaborado o Plano Nacional de Educação (PNE), isto é, um conjunto de metas, planos, diretrizes, objetivos e estratégias estabelecidas com função de regular o Sistema Nacional de Educação. Este foi aprovado em 2008 com a Lei 10.172, que teve vigência até o ano de 2010; em 2014, com a Lei 13.005, foi aprovado o PNE atualmente em curso, até o ano de 2024. Em ambos os documentos, no que concerne à EJA, entre as diretrizes, constavam a erradicação do analfabetismo e de todas as modalidades discriminatórias, a superação das desigualdades educacionais por meio da melhoria da qualidade da educação e da promoção da cidadania e a valorização dos profissionais que trabalham com essa modalidade.
A EJA na realidade atual
Após a LDB/1996, a educação de adultos procura se reconfigurar, tentando superar seu estigma negativo, de ensino aligeirado, baseado no paradigma compensatório, e atingir seu objetivo de reparação social desses longos séculos de analfabetismo e exclusão. Nesse sentido, Feitosa (2012) contribui com uma reflexão importante, pois ela evidencia que, embora o texto da lei da LDB garanta a educação para aqueles que não realizaram o ensino na "idade própria", ela chama a atenção para a ideia de que não existe idade própria para a aprendizagem, uma vez que toda idade é própria. Sob essa óptica, visa-se a substituir o paradigma de ensino compensatório para a concepção de uma educação ao longo da vida, reafirmando a responsabilidade do Estado em assegurar o direito à educação em qualquer idade. Assim, com a Lei 13.632, de 2018, a LDB foi alterada para que essa concepção fosse acrescida ao texto. Dessa maneira, o art. 37 foi reescrito:
Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fundamental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida. (BRASIL, 2018).
Nos anos 2000³, o Conselho Nacional de Educação Básica elaborou um parecer sobre a EJA e auxiliou a estabelecer as diretrizes curriculares nacionais para essa modalidade no mesmo ano. Segundo esse parecer, a EJA possui uma função reparadora de restaurar um direito negado à extensão dos séculos no País, considerado como um direito humano fundamental, essencial para a constituir a cidadania; uma função equalizadora, baseada no princípio da igualdade perante a lei e equidade na distribuição dos bens sociais; a equidade retifica a lei quando esta se revela insuficiente em razão do seu caráter universal. Assim, para corrigir as desigualdades, é necessário prover os desfavorecidos de mais oportunidades, visando à igualdade; e, por último, uma função qualificadora cuja tarefa é propiciar a todos(as) a atualização dos conhecimentos no decurso da vida.
Vista a trajetória histórica da EJA, a reflexão fundamental a se fazer, portanto, é pensar em que ponto ela se encontra após os mais de vinte anos de aprovação da LDB. Nítido está o fato de que, mesmo com a redemocratização do País, a afirmação dos direitos na lei, os planos de educação, as conferências e declarações internacionais etc; a democratização do ensino de adultos, o projeto de uma educação emancipadora e as funções reparadora, equalizadora e qualificadora, constituem ainda um horizonte distante a ser alcançado. Leite (2013) corrobora, ao expressar que ainda hoje a EJA não superou seu histórico marcado por políticas públicas em forma de campanhas ou de programas que se propõem a resolver questões pontuais de maneira compensatória:
A EJA tem necessidade de políticas públicas que visem o atendimento permanente e não simplesmente de campanhas e ações com prazos determinados que não criam raízes com as reais demandas do público a qual se destinam. A EJA vem sendo privada de uma política que verdadeiramente lhe dê condições efetivas de trabalho. Ainda não lhe é respeitada a condição de portadora de um direito e são muitas as precariedades. Na busca da garantia do direito à educação ainda há muito a se fazer. Os implementadores das políticas públicas precisam se atentar para suas responsabilidades em viabilizar o Estado a instituir de fato o direito à educação para jovens e adultos da modalidade EJA. ( P.299).
Dessa maneira, malgrado sua relevância social ser indiscutível, essa modalidade ainda continua ocupando uma posição secundária perante a educação dita regular, seja no âmbito da academia, de maneira que existem poucas pesquisas na área, poucos autores(as) se debruçando sobre essa temática, e, ainda, nos cursos de licenciatura é facultativa sua discussão e aprendizagem; seja na agenda política pública, de modo que a EJA ocupa uma posição marginal nessa agenda, com o financiamento dos organismos internacionais e o FUNDEB voltados à educação básica regular; e pelo fato de que, apesar de possuir reconhecimento formal no ordenamento jurídico, a legislação não atribuiu obrigação aos empregadores(as), não concedeu incentivos a(os) trabalhadores(as), nem criou condições materiais (escolas, creches) para facilitar e viabilizar o retorno aos bancos escolares, o que limita, portanto, um acesso efetivo destes (as) à escola (PIERRO, 2008).
Assim, apesar das conferências, das leis, dos planos, há ainda um grande descaso do Poder Público em relação à EJA. Apesar do declínio do analfabetismo ao largo das décadas, é problemático o fato de o Brasil haver entrado no século XXI ainda com altos índices de analfabetismo, quando comparamos esses índices com o de outros países, e se consideramos as exigências impostas pelas mudanças e inovações dos processos produtivos que têm provocado transformações na sociedade, tornando-a cada vez mais grafocêntrica, tecnológica e globalizada. Ademais, somado ao analfabetismo, ainda existe um enorme contingente de adultos e jovens que não conseguiram concluir na idade normativa sua escolarização, como os(as) jovens que acumularam muitas reprovações, configurando os altos índices de defasagem idade-série e que, por esse pretexto, procuram a modalidade EJA, e mesmo aqueles(as) que possuem os certificados, mas não dominam o mínimo da leitura e da escrita, o que os(as) faz retornar aos bancos escolares.
Quando observamos os dados estatísticos, fica evidente nossa afirmação sobre a EJA ser tratada de forma secundária, de modo que os baixos níveis de escolarização da população não tivessem muita relevância. De acordo com o IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD contínua), desde 2012, levanta informações sobre as características básicas para a educação, classificadas em três grupos etários: (I) população de cinco anos ou mais; (II) quinze anos ou mais; e (III) sessenta anos ou mais. A PNAD contínua de 2019 concluiu que o quantitativo total de jovens de 14 a 29 anos corresponde a 50 milhões. Entre estes, 20,2% não terminaram o Ensino Médio, o que equivale a 10,1 milhões de jovens que abandonaram a escola. Desse conjunto, 27,3% de jovens eram brancos(as) e 71,7% pretos(as) ou pardos(as).
Ao analisar a idade em que estes jovens de 14 a 29 anos deixaram a escola, é importante observar que os maiores percentuais de abandono se deram na faixa a partir dos 16 anos de idade (de 15,8% a 18,0%). Por outro lado, o abandono precoce, ainda na idade do ensino fundamental, foi de 8,5% até os 13 anos e de 8,1% aos 14 anos. Esse padrão se mantém semelhante entre homens e mulheres e entre as pessoas de cor branca e preta ou parda. Vale destacar o fato de que o grande marco da mudança foi a idade de 15 anos que, em geral, é a de entrada no ensino médio. Nessa idade, o percentual de jovens que abandonaram a escola quase duplica ante os 14 anos de idade (BRASIL, 2019, p.10).
Entre os motivos que levam os(as) jovens a abandonarem a escola, a pesquisa aponta que a necessidade de trabalhar é o fato prioritário. Além disso, também foram apontados: falta de interesse em estudar, outros motivos, e, no caso das mulheres, foram apontadas a gravidez e a obrigação com os afazeres domésticos como motivos de abandono escolar. Quanto ao analfabetismo, a pesquisa revela os seguintes dados: a taxa de analfabetismo para a população de quinze anos ou mais no ano de 2016 correspondeu a 7,2%, em 2017, a 6,9%, em 2018, a 6,8%, e, em 2019, a 6,6%; e a taxa para a população de sessenta anos ou mais correspondeu, em 2016, a 20,4%, em 2017, a 19,2%, em 2018, a 18,6%, e, em 2019, a 18%. Isto significa dizer que, em 2019, o total de analfabetos(as) no Brasil atingia 11 milhões de pessoas; ao classificar esse número de acordo com a idade, a raça e a região, fica evidente que a maioria está concentrada geograficamente no Norte e Nordeste do País, possui mais de sessenta anos e se constitui de pretos(as) e pardos(as).
No mesmo relatório foi constatado que, entre os(as) analfabetos(as) com quinze anos ou mais, 3,6% eram brancos(a) e 8,9% eram de pretos(as) e pardos(as); e entre os(as) analfabetos(as) com sessenta anos ou mais, 9,5% eram brancos(as) e 27,1% eram pretos(as) e pardos(as). A PNAD contínua também revelou que, em 2019, 9,8 milhões de jovens de 14 a 29 anos haviam abandonado a escola, sendo que, entre estes, mais de 7 milhões eram de pretos(as) ou pardos(as). Já o Censo Escolar de 2019 indicou que o número de matrículas da EJA totalizou quase 3,3 milhões de pessoas. Entre estas, 62,2%, ou mais de dois milhões de pessoas matriculadas possuíam menos de 30 anos, sendo que, dentro dessa mesma faixa etária, 57,1% eram do sexo masculino. Já nas matrículas de pessoas com sessenta anos ou mais, a predominância é do sexo feminino, com 58,6%. Entre as quase 3,3 milhões de pessoas matriculadas no EJA, mais de 2,3 milhões são pretas ou pardas.
Em síntese, em decorrência das raízes de ordem histórica e social, que atravessaram séculos de escravidão, uma abolição meramente formal, sem qualquer reparação, décadas de marginalização e negação de direitos, e grandes hiatos de regimes de exceção autoritários e violentos, é que chegamos ao século XXI com um grande contingente da classe trabalhadora, a maioria negra, ainda sem acesso aos bens sociais e ao domínio da leitura e da escrita. Em 2019, dos mais de 20 milhões de pessoas, entre estas analfabetas ou em situação de abandono escolar, apenas três milhões haviam se matriculado na EJA. Desse modo, essa modalidade de ensino continua não sendo reconhecida pela sua importância e dever social, e enfrentando grandes desafios: as infraestruturas precárias, não adaptadas, distantes e insuficientes para acolher esses sujeitos; na prática, a permanência de um paradigma compensatório em detrimento de uma visão da educação ao longo da vida; a precária formação dos educadores dessa modalidade, os problemas de evasão e grande número de faltas configuram um quadro atual bastante dramático.
Outro problema significativo se encontra no âmbito da educação inclusiva. São as salas de EJA que acabam acolhendo as pessoas com necessidades especiais, desde aqueles(as) com problemas de visão graves aos com problemas de aprendizagem, déficits cognitivos e variados espectros de autismo. Ademais, como a LDB reduziu as idades mínimas para a submissão dos exames supletivos, uma nova dinâmica ocorreu em razão da entrada de muitos(as) jovens nesse ambiente onde antes predominavam apenas adultos(as), fenômeno chamado de juvenilização da EJA. Como foi visto, o Censo Escolar de 2019 indicou que 62,2% daqueles(as) matriculados tinham idade inferior a 30 anos. Esse aumento da diversidade dos sujeitos que procuram essa modalidade de ensino acarreta novos conflitos, chamados intergeracionais.
Considerações finais
Como vimos, no processo da constituição do Brasil como um Estado Nacional Moderno e nas promulgações/outorgações de suas Cartas Constitucionais, os direitos políticos sempre estiveram, em geral, condicionados ao letramento, constituindo uma verdadeira marginalização cívica-política dos(as) analfabetos(as). Essa marginalização, de caráter histórico, teve início com o Decreto Imperial de 1881 que proibiu os(as) analfabetos(as) de votarem; permaneceu nas Cartas de 1891, 1934, 1937, 1946 e de 1967. Somente na última Constituição, de 1988, essa praxe foi quebrada, permitindo aos analfabetos(as) se alistarem como eleitores(as). É imperioso destacar que ainda hoje o perfil racial, não apenas dos analfabetos(as), mas também daqueles(as) que se encontram nas estatísticas de abandono escolar e nas matrículas da EJA, se compõe por uma maioria negra. Fato que é expressão do racismo estrutural, isto é, entender que o racismo como estrutura “é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade” (ALMEIDA, 2019, P. 20-21)
Num contexto de redemocratização, após os 21 anos de ditadura empresarial-militar, com o advento da Constituição de 1988, os direitos civis e políticos foram reassegurados e os direitos sociais reconhecidos e ampliados. Nesta Constituição foram garantidos, pela primeira vez, tanto os direitos políticos aos analfabetos(as), como o direito à educação pública e gratuita para todos(as), inclusive para os adultos. Quando contemplamos a história da Educação no Brasil, é notório observar haver sido a passos lentos, e com muitas lutas, assegurada a universalização do ensino para todos(as)os brasileiros(as)4, em especial, o direito ao ensino dos(as) analfabetos(as). É por isso que, com a Constituição de 1988 e com Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, foi considerado uma vitória o reconhecimento/regulamentação da Educação de Jovens e Adultos (EJA) como modalidade de ensino, haja vista o amplo histórico de negação de direitos que foi imposto aqueles(as) que a procuram.
Apesar disso, quando observamos a caracterização do quadro atual da EJA, fica evidente que a baixa escolarização das classes populares continua sendo de pouca importância para o Poder Público. Ainda hoje minguam as políticas públicas que garantam o financiamento, o acesso, a permanência, um quadro docente capacitado e um currículo adequado a estes jovens e adultos trabalhadores excluídos dos bancos escolares. Entendemos que o que melhor caracteriza a maioria desses sujeitos da EJA é a inclusão prematura no mundo do trabalho, justamente em decorrência das condições socioeconômicas familiares. Estes ou nunca entraram na escola (situação mais encontrada na faixa etária de sessenta anos ou mais), precisaram abandonar a escola (jovens e adultos) ou acumularam muitas repetições que tornaram a defasagem idade-série muito ampla (jovens) e precisaram recorrer à EJA para conclusão dos estudos.
É por isso que a categoria que melhor define os sujeitos do EJA é a da exclusão (PIERRO, 2008), por serem eles a categoria mais explorada e silenciada no contexto de uma sociedade de classes desigual, segregada e racista. Por esse motivo, entendemos a EJA como uma modalidade da resistência. Se, no Brasil, desde sua fundação, sempre existiram dois projetos para a educação - um projeto que visa à reprodução das classes dominantes e outro que procura constituir uma educação para a emancipação - é com o segundo projeto que nos alinhamos. Assim, afirmamos que defender a EJA e lutar pelo reconhecimento de sua importância social é postular os direitos dos(as) trabalhadores(as), dos(as) negros(as) e das mulheres à educação, e que esta esteja voltada para uma formação cidadã crítica para esses(as) educandos(as).
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Notas
¹ A análise de Marshall versa sobre o processo de formação de direitos na Inglaterra e sua concepção é cumulativa e progressiva. Utilizamos sua concepção tipológica (direitos civis, políticos e sociais) mas não corroboramos uma visão linear e cumulativa dos direitos. Entendemos que a formação dos direitos compreende uma mistura heterogênea entre elementos progressivos e regressivos e que não são distribuídos igualmente a todos os cidadãos.
² De acordo com o Censo de 1940, o analfabetismo da população de cinco anos ou mais era de 61,2% e da população de quinze anos ou mais de 55,9%.
³ Nos anos 2000, a taxa de analfabetismo para a população com cinco anos ou mais era de 16,7%, e, para a população com quinze anos ou mais, de 13,6%.
4 Importante pontuar que, em nossa percepção, o único avanço expressivo concernente a democratização da educação se encontra no âmbito do gênero; uma vez que as lutas empreendidas pelos movimentos feministas, a partir da metade do século XIX, permitiram às mulheres a conquista de muitos direitos, inclusive ao direito à educação.
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