Arquivos artísticos: práticas discursivas e suas visualidades    

Art archives: discursive practices and their visualities

Archives d'art : pratiques discursives et leurs visualités

      Archivos artísticos: prácticas discursivas y sus visualidades

 

Rogerio Vanderlei de Lima Trindade

Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

trindade.rogerio@ufpel.edu.br

 

Recebido em 06 de dezembro de 2021

Aprovado em 01 de junho de 2022

Publicado em 06 de fevereiro de 2024

 

RESUMO

Este artigo investiga possíveis relações entre as noções de arquivo e os conteúdos de algumas obras de arte para averiguar as possibilidades teóricas de uma aproximação conceitual entre o pensamento de Foucault, as obras de arte – que, nessa abordagem, alinham-se ao que denominaremos de arquivos artísticos – e algumas práticas discursivas. A pesquisa é eminentemente teórica, com revisão de literatura e seus operadores conceituais foram Michel Foucault, Giorgio Agamben, Nicolas Bourriaud. A reflexão discute aproximações e distinções sobre alguns artefatos africanos, arquivos de arte não europeia que foram arrancados de seus sítios-origem e transpostos para contextos distintos. A tentativa de englobar e trazer para as sintaxes visuais europeias os autos culturais estrangeiros evidenciaram as abordagens formalistas e exóticas convencionadas a partir da apropriação e do intercâmbio dos viveres e saberes africanos. Distintos artefatos africanos quando descontextualizados de sua função simbólica contribuem para um litígio conceitual presente nas discursividades e nos dispositivos de arte discutidos nessa investigação.

Palavras-chave: Arquivo; História da arte; Eurocentrismo; Diáspora africana.

 

 

ABSTRACT

This article investigates possible relations between the notions of archive and the contents of some works of art in order to investigate the theoretical possibilities of a conceptual approximation between Foucault's thought, the works of art - which, in this approach, align themselves to what we will call artistic archives - and some discursive practices. The research is eminently theoretical, with literature review, and its conceptual operators were Michel Foucault, Giorgio Agamben, and Nicolas Bourriaud. The reflection discusses approximations and distinctions about some African artifacts, archives of non-European art that have been plucked from their sites-origin and transposed to distinct contexts. The attempt to encompass and bring foreign cultural autos into European visual syntaxes has highlighted the formalist and exotic approaches conventionalized from the appropriation and exchange of African lives and knowledges. Distinct African artifacts when decontextualized from their symbolic function contribute to a conceptual dispute present in the discursivities and art devices discussed in this research. 

Keywords: Archive; Art history; Eurocentrism; African diaspora.

 

 

 RÉSUMÉ

 Cet article étudie les relations possibles entre les notions d'archive et le contenu de certaines œuvres d'art pour vérifier les possibilités théoriques d'un rapprochement conceptuel entre la pensée de Foucault, les œuvres d'art - qui, dans cette approche, s'alignent sur ce que nous appellerons des archives artistiques - et certaines pratiques discursives. La recherche est éminemment théorique, avec une revue de la littérature et ses opérateurs conceptuels étaient Michel Foucault, Giorgio Agamben, Nicolas Bourriaud. La réflexion porte sur des approximations et des distinctions concernant certains artefacts africains, des archives artistiques non européennes qui ont été arrachées à leur site d'origine et transposées dans des contextes distincts. La tentative d'englober et d'introduire des autos culturels étrangers dans les syntaxes visuelles européennes a mis en évidence les approches formalistes et exotiques qui ont été conventionnées à partir de l'appropriation et de l'échange de vies et de savoirs africains. Lorsqu'ils sont décontextualisés de leur fonction symbolique, les artefacts africains distincts contribuent à une dispute conceptuelle présente dans les discours et les dispositifs artistiques discutés dans cette recherche. 

Mots-clés: Archives; Histoire de l'art; Eurocentrisme; Diaspora africaine.

 

RESUMEN

Este artículo indaga en posibles relaciones entre las nociones de archivo y los contenidos de algunas obras de arte para indagar en las posibilidades teóricas de un acercamiento conceptual entre el pensamiento de Foucault y las obras de arte -que, en este acercamiento, se alinean con lo que llamaremos archivos artísticos-. y algunas prácticas discursivas. La investigación es eminentemente teórica, con una revisión de la literatura y sus operadores conceptuales fueron Michel Foucault, Giorgio Agamben, Nicolas Bourriaud. La reflexión analiza aproximaciones y distinciones con respecto a algunos artefactos africanos, archivos de arte no europeo que fueron arrancados de sus sitios originales y transpuestos a diferentes contextos. El intento de abarcar y incorporar registros culturales extranjeros a las sintaxis visuales europeas destacó los enfoques formalistas y exóticos acordados a través de la apropiación y el intercambio de la vida y el conocimiento africanos. Distintos artefactos africanos, cuando se descontextualizan de su función simbólica, contribuyen a una disputa conceptual presente en las discursividades y dispositivos artísticos discutidos en esta investigación.

Palabras clave: Archivo; Historia del Arte; eurocentrismo; Diáspora africana.

 

 

 

 

Introdução

O fato de que em alguns anos, por vezes, uma cultura deixa de pensar como fizera até então e se põe a pensar outra coisa e de outro modo.                                          (FOUCAULT, 2007)

 

O presente artigo investiga algumas direções emergentes sobre possíveis práticas discursivas em torno dos arquivos artísticos[1], no momento em que há uma retomada de ativação dos enunciados[2] presentes nas teorias e nas leituras pós-coloniais[3], as quais discutem outras epistemologias[4] sobre o contexto sociocultural de países colonizados ou periféricos, através de críticas ao modelo civilizatório ocidental e ao eurocentrismo, presentes nas mais diversificadas áreas do conhecimento. Embora o nosso enfoque não seja discutir os discursos pós-coloniais, mas, a seu modo e a seu turno, pretendemos examinar alguns eventos, discursos e linguagens da arte que poderiam contribuir para o debate.

Essa reflexão discute algumas aproximações e distinções entre momentos que antecederam e/ou indicaram a elaboração de um repertório visual diverso em que os arquivos de arte – artefatos e/ou bens culturais   não europeus foram arrancados de seus sítios-origem e transpostos para outros contextos distintos. O nosso olhar incide sobre como alguns discursos  a partir das linguagens da arte e na história da arte moderna ocidental foram elaborados e construídos não por aquelas etnias africanas, mas sob o olhar do outro, o que poderia ter desconsiderado as identidades sociais, suas narrativas ancestrais e seus complexos conjuntos culturais, gerando outras interpretações de seus enunciados e, com isso, estabelecendo a construção de significados apregoados que, a seu turno, naturalizariam discursos – com suas potencialidades formais e/ou de presença de sentido  enviesados – com triangulações conceituais que enevoariam aqueles conteúdos.

Bhabha (2019, p. 20) pondera

O afastamento das singularidades de “classe” ou “gênero” como categorias conceituais e organizadas básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito – de raça, gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno. O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.  Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.

 

Ao nos aproximarmos da reflexão de Bhabha (2019) recordamos que os grupos sociais e suas coletividades congregam laços de identidade que possuem representações simbólicas e podem se manifestar através de distintas linguagens, com seus repertórios visuais sendo possuidores de sentidos específicos, desta forma    tornar-se-ia possível mencionar que os discursos sobre uma arte não europeia, efetivados pelos teóricos europeus, reproduzem os vetores conceituais ocidentais para a análise, interpretação e projeção discursiva, inclusive para as manifestações artístico culturais que estavam para além daquele continente. A tentativa de englobar e trazer para si os autos culturais estrangeiros evidenciaria que, em algumas abordagens construídas sobre o complexo cultural africano elaborado por etnias escravizadas, deu-se sob uma análise formalista e sobre o exótico e, neste sentido, o intercâmbio de viveres e saberes africanos quando são tomados de posse, analisados ou descontextualizados de sua função simbólica contribuem, cada vez mais, para um litígio conceitual que acentua a fronteira cultural constituída pela história da arte europeia e oficial e suas leituras sobre a arte vinda da África, presentes em suas discursividades e nos dispositivos[5] de arte.

 

O olhar do outro: interculturalidades, enviesamentos e narrativas balizadoras

 

O paradigma da modernidade na arte e seus vetores – influência direta do continente africano - construiu outros olhares sobre o estudo da forma, trazendo ao artista europeu, por exemplo, a ideia de síntese formal, do geometrismo e da superfície plana. Eles, dentre outros vetores, transformaram uma arte canônica e acadêmica numa possibilidade de reencontro com outras formas de percepção e composição de mundos, em que os artistas que pesquisaram e analisaram os artefatos e objetos africanos atualizaram as sintaxes visuais e os sistemas representacionais,  os temas de sua arte e inscreveram-na num mundo moderno que se globalizava – fosse através da verticalização e da urbanização das cidades ou também pela diversidade humana que imigrava para os novos centros em desenvolvimento – com suas inquietações intelectuais, suas identidades  e suas proposições  artísticas interculturais.

Homi K. Bhabha (2019) considera que

O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição “recebida”. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanto possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.

 

Os novos focos de interesse de pesquisa visual construíram lugares perceptivos que compunham-se de aproximações entre aqueles artefatos, suas formas e seus enigmas e o discurso sobre o tempo presente indicado pela modernidade que estabelecia vínculos entre a arte, as alteridades e a vida cotidiana. (Bourriaud, 2011)

O termo modernidade é discutido em diversas áreas do conhecimento, em diferentes momentos, com aproximações que extrapolam os limites das ciências sociais, sendo tencionado na política, na filosofia, nas artes visuais e em tantos outros campos.

Modernidade, na área de conhecimento da arte, contudo, é tomada geralmente como um

termo abstrato, [que] designa o conjunto dos traços da sociedade e da cultura que podem ser detectados em um determinado momento, em uma determinada sociedade. A esse título, o termo “modernidade” pode ser aplicado da mesma forma à época que nos é contemporânea, agora em 1991 (‘nossa modernidade é 1991’), como poderia ser aplicado a qualquer outra época, do momento em que a adesão à cultura dessa época fosse reivindicada. Assim, há uma modernidade de 1920, de 1950 ou de 1960 etc. A única observação a ser feita aqui é sobre o emprego do termo esse de ordem sócio-histórica: foi só recentemente na história que a ‘modernidade’ passou a ser reivindicada por certos grupos de atores sociais. (CAUQUELIN, 2005, p. 25).

 

Antoine Compagnon (1996) assinala a modernidade na arte como sendo o reflexo das transformações que aconteciam na cidade de Paris –representada pelo efeito óptico do impressionismo, na produção das obras de arte da segunda metade do século XIX –, de modo a permitir com que se afirme que tais obras constituíam-se em diários do presente, uma vez que pioneiros da tradição moderna traziam para a sociedade da época produções que rompiam com a ideia romântica pautada no virtuosismo, na originalidade e na habilidade técnica.

Ao mesmo tempo, os artistas modernos incorporaram outras tecnologias e dispositivos que, naquele momento, emergiam, como, por exemplo, a fotografia, o uso do croqui aparente, a tinta a óleo em tubos de chumbo – todos esses artefatos tornaram-se ferramentas diárias que auxiliavam na elaboração de formas emergentes de um imediatismo fluido e enevoado do dia a dia, tendo outra motivação de interpretar o mundo – a imaginação.

A modernidade, compreendida como sentido do presente, anula a relação com o passado, concebido simplesmente como uma sucessão de modernidades singulares, sem utilidade para discernir o “caráter da beleza do presente”. Sendo a imaginação a faculdade que nos torna sensíveis ao presente, ela supõe o esquecimento do passado e aceitação do imediatismo. A modernidade é, assim, consciência do presente como presente, sem passado nem futuro; ela só tem relação com a modernidade. É nesse sentido que a modernidade, recusando o conforto ou o engodo do tempo histórico, representa uma escolha. (COMPAGNON, 1996, p. 25)

 

Os artistas adeptos da escolha seletiva de momentos fugazes da cidade em movimento traduziram as singularidades do imediato e do seu aqui/agora. Esses mesmos artistas produziam, pois, testemunhos de uma crise na forma de representação de imagens que transitavam sob uma linha tênue entre realidade percebida, a incorporação das alteridades, da diversidade étnica com seus repertórios de identidade e seus elementos simbólicos[6] – que entremeava a relação desses mesmos artistas inseridos em seu tempo com suas obras, agora, compostas por elementos conceituais e de sintaxe formal interculturais. 

Bourriaud (2009, p.31) considera que a interpretação de outras manifestações de modos de viver e de conceber narrativas visuais constitui relações entre a percepção que se constrói na presença do objeto e a composição discursiva que se construiria dessa experiência.

A arte visa conferir forma e peso aos mais invisíveis processos. Quando partes inteiras de nossa vida caem na abstração devido à mudança de escala da globalização, quando funções básicas de nosso cotidiano são gradualmente transformadas em produtos de consumo (incluídas as relações humanas, que se tornam um verdadeiro interesse da indústria) parece mais logico que os artistas procurem rematerializar essas funções e esses processos, e devolver a concretude ao que se furta à nossa vida. Não como objetos, o que significaria cair na armadilha de reificação, mas  como suportes de experiências: a arte, ao tentar romper a lógica do espetáculo, restitui-nos como experiência a ser vivida.

 

Desses fragmentos de mundos e de experiências, os artistas europeus criaram algumas crônicas visuais sobre outros modos de viver e conceber a realidade, construíram arquivos de arte sobre formas emergentes e possuidoras de uma complexidade simbólica que desafiava os artistas europeus a reinventarem outros modos de perceber e inscrever o seu entorno, repletas de conexões interculturais que visavam reescrever narrativas visuais e, ao mesmo tempo, transpor fronteiras culturais.

No capítulo Quem precisa de identidade, Hall (2020, p.108) destaca que o debate sobre os complexos culturais, migrações forçadas e os deslocamentos territoriais emergenciais coadunam elementos simbólicos e materiais os quais promovem a coesão grupal, coletivizam os saberes e modos de viver e enunciam sistemas representacionais que distinguem determinados grupos sociais, ao afirmar

Precisamos vincular as discussões sobre identidade a todos aqueles processos e práticas que têm perturbado o caráter relativamente “estabelecido” de muitas populações e culturas: os processos de globalização, os quais, eu argumentaria, coincidem com a modernidade (HALL,1996), e os processos de migração forçada (ou “livre”) que têm se tornado um fenômeno global do assim chamado mundo pós-colonial. As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas com daquilo no qual nos tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nós tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios”. 

 

As narrativas poderão ser entendidas como um sistema de signos[7] que possuem sentidos sociais, culturais e/ou históricos, não globais. Ainda podemos dizer que as narrativas se constituem a partir de conjuntos de signos que se movimentam no espaço e no tempo, construídos e reconhecidos por um determinado grupo social que as criou e, dessa forma, operam dentro de uma construção particular, local e transitória e poderão inscrever-se em diversas mídias através de imagens com ou sem movimento.

As narrativas são formadas a partir de sinais, de eventos, de particularidades que constituem as histórias (são os conteúdos do ato narrativo) e as circunstâncias que se depreendem delas e propagam-se através da repetição oral, visual ou textual.

Sendo assim, as discussões sobre as narrativas pós-colonialistas surgiram na década de 1970 e apresentaram, como mote conceitual, a abordagem da discursividade europeia e a subordinação intelectual deixada como legado cultural aos países colonizados.

Gilroy (2020, p. 92) argumenta que as abordagens sobre determinados temas e assuntos em torno da constituição das representatividades nos países colonizados poderiam englobar as movimentações que estivessem recompondo outras representações sociais que há muito haviam sido desconsideradas, silenciadas ou até mesmo negadas na construção das outras narrativas socioculturais.

Os temas de nacionalidade, do exílio e da filiação cultural acentuam a inevitável fragmentação e diferenciação da questão negra. Esta fragmentação recentemente se tornou mais complexa pelas questões de gênero, sexo e dominação masculina, que têm se tornado inevitáveis devido às lutas das mulheres negras e manifestações de gays e lésbicas negros. Não posso tentar resolver essas tensões aqui, mas a dimensão da diferenciação social e política à qual se referem fornece referencial para o que segue. Como indicadores de diferenciação, elas são particularmente importantes, porque os antagonismos intracomunais que se manifestam entre os níveis locais e imediatos de nossas lutas e sua dinâmica hemisférica global só podem aumentar.

 

Essa construção de diretrizes conceituais procura rever e, de certa maneira, criticar as transposições socioculturais realizadas pelo europeu em territórios e escopos culturais totalmente distintos, com suas singularidades dissemelhantes do modo de pensar e viver europeu, com ênfase na revisão e reconstrução de uma experiência histórica.

A prática discursiva, na abordagem foucaultiana (2008, p.132), reporta-se a um conjunto de enunciados, na medida em que se apoia na mesma formação discursiva. Ela não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar e explicar, se for o caso, na história, sendo constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.

O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e por quê ele pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo.

Se observarmos a noção de prática discursiva em Michel Foucault (2008), tomando-a como descontinuidade formal, constituída a partir de um conjunto de condições de existência, como premissa inicial para propor-se um discurso, percebemos que as transformações ocorridas na sociedade global, sejam elas de ordem tecnológica, científica, filosófica, artística, influenciam significativamente as intenções condicionantes para que se criem outros modos de produzir, abordar, julgar, divulgar e inscrever discursividades.

A arte produzida na Europa, mais especificamente na França, com seus arquivos e seus discursos, desde a segunda metade do Séc. XIX, entrou em contato com um aparato simbólico-cultural enigmático ao seu tempo, esses artefatos constituíam-se de elementos religiosos e votivos, objetos litúrgicos com seus fins profiláticos ou iniciáticos, repletos de significados sagrados e, em sua grande maioria, associados à religiosidade africana.

Bhabha (2019) considera que no processo de apropriação de elementos da cultura material e simbólica de um povo para a criação de narrativas a partir deles, estabelecem-se determinadas articulações cujas intencionalidades correspondem a propagar discursividades com seus conteúdos aptos a descentralizar, desviar e macular as identidades sociais e culturais, enquanto conjunto de enunciados que vetorizam alteridades enviesadas associadas a ideia do inculto, bárbaro e/ ou pagão

[...] a diferença cultural como categoria enunciativa, oposta a noções relativistas de diversidade cultural ou ao exotismo da “diversidade” de culturas. É o entre que é articulado na subversão camuflada do “mau-olhado” e na mímica transgressora da “pessoa desaparecida”. A força da diferença cultural é, como disse Barthes certa vez sobre a prática da metonímia, “violação do limite do espaço significante, ela permite no próprio nível do discurso uma contradivisão de objetos, usos, significados espaços e propriedades”. É colocando a violência do signo poético no inteiro da ameaça de violação política que podemos compreender os poderes da linguagem. BHABHA (2019, p.108)

 

Ao identificar e negar as diferenças socioculturais se estabelece uma espécie de hierarquização, em que se determina o lugar do outro e, se torna possível interpretar  o conjunto articulado de novos enunciados, que nesse caso corresponde às novas sintaxes visuais apregoadas e desconectadas de suas significações originais. Seus formatos e suas inscrições sintetizados representavam para aquelas etnias africanas as suas relações animistas com a natureza, que se constitui em suas deusas e seus deuses. Um sistema cosmogônico díspar e envolto em significações, com sua complexidade, enquanto fenômeno religioso, caracterizado pela multiplicidade de inferências com que aquelas sociedades elaboraram suas crenças, religiosidade e seus sistemas de representação sobre as coisas do mundo.

A discursividade litúrgica contida nesses objetos sagrados e suas ritualidades foi desconsiderada pela óptica europeia, pois o interesse sobre esses arquivos sagrados restringia-se ao aspecto formal e não a seus conteúdos metafísicos e/ou sobrenaturais.

Em contato com essas mirabílias africanas, os artistas europeus transitavam entre mundos e criaram, a seu tempo, algo que poderíamos categorizar como gabinetes de curiosidades[8] – nessa acepção, é que percebemos que os acervos particulares desses artistas e seus estudos em potencial negligenciaram ou até mesmo desprezaram os conteúdos valorativos, suas unidades de sentido e os signos daqueles arquivos sagrados.

Nessa direção, Bourriaud (2011, p. 13) questiona a modernidade que triunfou e alavancou o desenvolvimento cultural daquela Europa e propõe uma revisão sobre os discursos convencionados e difundidos junto à historiografia e à história da arte, ao passo de desconstruir uma abordagem do “macho branco dominante”, com suas ideias desenvolvimentistas, suas pretensões colonizadoras e as possíveis convenções herdadas e compartilhadas sobre como o europeu excetuou o outro, o não eurocêntrico ou o estrangeiro.

O filósofo francês reencontra-se com a modernidade e aponta quatro aspectos para que seus enunciados reconstruam-se, quais sejam: a) o presente – por ele, associado a uma definição histórica que pertence ao seu tempo e, nessa direção, o presente é uma elaboração momentânea que requer para si a noção de dinamismo e de atualização constante; em oposição a cristalizações temporais que refreariam sua vigência; b) a experimentação – seja na pesquisa da forma ou no intento de propor abordagens teóricas sobre um determinado evento, situação ou fenômeno. É através do experimento que se torna viável enfrentar o estabelecido e as convenções para ampliar territórios e extrapolar as barreiras constituídas pela tradição; c) o relativismo – os discursos históricos que sustentam as estruturas institucionais e ideológicas poderiam atualizar-se, na medida em que seus conteúdos extrapolariam os fatos e outras interpretações inseririam no tempo presente e; d)  a fluidez – os eventos contrapõem-se a uma leitura monumental  que tende a ser entronizada pela tradição e a instituição; o efêmero e o circunstancial inserem outras abordagens e são condicionantes para que os enunciados dinamizem-se e relacionem-se indistintamente com representações sociais do presente.

A discursividade que propagou a expansão e o domínio europeu sobre o continente africano foi composta também por um expressivo conjunto de arquivos, os quais construíram um imaginário sobre as populações africanas repleto de alegorias fantásticas, numa fusão copiosa, entremeada por representações fantasiosas de tipos humanos tenebrosos, de espécimes de fauna e flora assombrosos, indumentárias e adornos faustosos com suas conotações enviesadas sempre ressaltando as ideias – do descobridor, ou seja, daquele que desbrava, domina e condiciona – do não civilizado à faina diária e extenuante, do primitivo ao objeto de escambo, do selvagem ao ser domado, do pitoresco ao temido feiticeiro e do exótico à condição de inferioridade racial em suas profusões máximas.

Bourriaud (2011, p.33) considera que rever a modernidade na arte estabeleceria novas relações com o agora, ao passo que a abordar num estado de disponibilidade intercultural seria como transpor fronteiras entre os movimentos sociais periféricos e a cultura oficializada e categórica. Ele acrescenta:

Como ignorar, com efeito, que a luta política é hoje, mais do que nunca, uma luta de representações? Revela-se assim indispensável, (...) substituir uma história dominada pelos machos brancos mortos pelo que eles chamam de razão, de verdadeiro pluralismo histórico, a saber, a integração da voz dos vencidos ao relato monofônico da história.

 

 A ideia de exotismo e servilidade naturalizada pelo europeu, através do processo de escravidão, aniquilação de identidades e de seus valores culturais, corroborou para a divulgação de um imaginário africano sibilino e colérico, no qual aquelas etnias passaram a serem entendidas como um agrupamento único e homogêneo.  Num primeiro momento, o homem e a mulher africanos já domesticados e como se já estivessem integrados a uma sociedade adversa e pragmática que usufruiria da docilidade daqueles selvagens. No segundo, sua moralidade, religiosidade e sua capacidade intelectual seriam pouco a pouco destruídas.

A predisposição discursiva presente nos arquivos africanos –  podemos associar aos artefatos, objetos rituais, paramentos religiosos que se comporiam para além de sua materialidade por oralidades, narrativas míticas e simbólicas que justificariam a sua existência para aquele grupo social, compondo-se como arquivos valorativos com textualidades e visualidades teológicas –  extrapola a materialidade aparente e inscreve-se sobre mensagens arquetípicas sociais, votivas, espirituais e/ou morais, as quais incitam a condição propositiva de um dado enunciado presente em um determinado preceito subliminar contido.

Neste sentido, uma aproximação com o conceito de arquivo auxiliará a revermos algumas práticas discursivas, relacionadas aos dispositivos de arte, realizadas por alguns teóricos, historiadores e até mesmo por artistas europeus, quando, em suas produções, abordaram povos e etnias com suas identidades e sua cultura simbólico-material para além da Europa.

Popularmente, a noção que se tem sobre os arquivos condiciona-se ao lugar onde se guardam coisas. Documentos impressos ou digitalizados e outras fontes de informações, tais como livros, textos, registros imagéticos, exemplares de cultura material, amostras de biodiversidade, entre outros, são algumas das possibilidades materiais que compõem um arquivo. Esses documentos são guardados e servem como fonte de informação, destinados para a pesquisa ou investigação sobre um determinado assunto.

A leitura foucaultiana sobre o arquivo extrapola o banal e as associações em torno de documentos que salvaguardam a memória ou os modos de viver de uma população e, tampouco, reporta-se às instituições que o preservam.

O entendimento de arquivo, para Michel Foucault, encontra-se com os limites contingenciais de determinadas abordagens que poderiam propor a construção eventual de enunciados e, com isso, engendrar uma fração de um todo, de um enfoque sobre um tema ou evento, por exemplo, a história que poderá ser narrada encontra-se dentro de uma interpretação circunstancial da própria história. Ao passo que

as diferentes obras, os livros dispersos, toda a massa de textos que pertencem a uma mesma formação discursiva - e tantos autores que se conhecem e se ignoram, se criticam, se  invalidam uns aos outros, se plagiam, se reencontram sem saber e entrecruzam obstinadamente seus discursos singulares em uma trama que não dominam, cujo todo não percebem e cuja amplitude medem mais - todas essas figuras e individualidades diversas não comunicam apenas pelo encadeamento lógico das proposições que eles apresentam, nem pela recorrência dos temas, nem pela pertinácia de uma significação transmitida, esquecida, redescoberta; comunicam pela forma de positividade de seus discursos. (FOUCAULT, 2008, p. 144)

 

Essa positividade é apontada por Foucault como um conjunto de enunciados ocasionais que se acumulam para a proposição de outras práticas discursivas, ao ser tomada como possibilidade para a formação do discurso, poderá, por seu turno, ser relacionada a ela, analogicamente, nessa reflexão, o termo (re)contextualização sobre um tema e, dessa forma, articular e realocar “identidades formais, continuidades temáticas, translações de conceitos, jogos polêmicos (FOUCAULT, 2008, p. 144). 

É através da dispersão dos enunciados latentes em um determinado arquivo que se elucidam questões e, de certa maneira, eclodem direções circunstanciais que delineiam enfoques, os quais tangenciam a prática discursiva.

Na leitura foucaultiana, o arquivo transforma enunciados em eventos e coisas, enquanto um sistema dinâmico que determina como as coisas devem ser ditas, editadas e compostas pela história. 

A contiguidade com os conceitos prescritos pelo filósofo francês faz-se de fundamental importância, porquanto se reitere que, para dialogarmos sobre como os discursos que legitimaram a arte durante o período moderno e seus enunciados balizadores – em relação ao contato com os arquivos artísticos e/ou religiosos africanos – nem sempre correspondem ou mesmo aproximam-se, hoje em dia, dos conteúdos e das formas de tratamento que procuram explicar os diferentes enfoques e estruturas conceituais que despontaram em nossa sociedade globalizada, que requer a inclusão de representações ditas periféricas com suas ações e políticas afirmativas.

A realização de outras unidades discursivas – do presente e a iminência da inclusão de atores sociais – visa (re)conhecer, re(escrever) e/ou (re)ler alguns arquivos que poderão ser  (re)contextualizados  dialogicamente com a população atual  e, de algum modo, conscientizar e remir as máculas discriminatórias que a história construiu.

Foucault (2008) discute o conceito de arquivo observando dois elementos de sua formação – o acontecimento e as coisas.

Temos de tratar, agora, de um volume complexo, em que se diferenciam regiões heterogêneas, e em que se desenrolam, segundo regras específicas, práticas que não se podem superpor. Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo.

 

Os acontecimentos referem-se às circunstâncias sócio-temporais em que uma determinada discursividade inscreve-se e, nessa direção, observamos que as condições propositivas versam sobre um determinado ponto de vista eventual, por meio das quais é possível entender um arquivo em seu tempo.

Na abordagem de Foucault (2014), os acontecimentos adquirem duas distinções: a primeira delas recai sobre a ideia do acontecimento como algo novo e diferenciado e o acontecimento como uma atividade da história. Ainda podemos perceber que, no primeiro caso, o termo adquire uma conotação arqueológica e, neste sentido, relaciona-se com uma espécie de regra que auxiliaria a circunscrever o compasso da história e suas temporalidades; já, no segundo caso, a própria história transforma-se em objeto de estudo para propor-se a prática discursiva em torno de um arquivo.

Nessa condição enunciativa, nem sempre se busca uma composição diversificada onde não haja o predomínio de uma ideologia, posicionamento político, moral e/ou religioso e essas premissas poderiam reduzir ou até mesmo condensar abordagens distintas para uma prática discursiva congruente.

Já as coisas constituem-se, numa ordem discursiva, em uma espécie de corolário que conjuga o universo dos arquivos e instala-os sob conotações reais, simbólicas ou imaginárias. Ainda nessa composição, podemos perceber que as coisas pertencem ao universo da linguagem e, neste sentido, são e estão passíveis de interpretações.

A vasta obra de Michel Foucault apresenta três fases distintas, nas quais o filósofo detém seus estudos sobre determinados eixos epistemológicos e é sobre a primeira fase, dita arqueológica, que se situam os estudos históricos sobre a arqueologia das ciências humanas, durante os anos de 1960, quando buscamos entender sobre a constituição da prática discursiva e o conceito de arquivo. As obras são: As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969).

Nessas obras, Foucault refuta a visão linear e progressiva da história, a partir da tradicional ideia de evolução. Para ele, a cultura do pensar possui a capacidade de reinventar-se e a premência em voltar a analisar seus arquivos e, dessa forma, elaborar outros modos de discursividades, o que é  essencial, na medida em que essas mesmas sociedades transformam-se. 

São essas descontinuidades do pensar que corroboram para uma prática discursiva atualizada e, nessa direção, o (re)encontro com os arquivos poderá propor enunciados distintos inseridos no tempo presente. Ainda em Foucault (2008, p.147), percebemos que os arquivos e seus discursos se condensam como “aquilo que é dito em seu tempo e, neste sentido, dinamizam discursividades, tendo em vista que:

O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas.

 

Consideramos, de antemão, que o arquivo – com suas descontinuidades latentes – é o lugar que subsidia a prática discursiva por adição de enfoques temporais, os quais o inserem em um dado momento, criando novas teorias dialógicas com o pensamento de seus atores sociais, seja transformando os contextos geracionais, revisando questões complexas que a própria história desconsiderou ou até mesmo tencionando a pregnância de seus conteúdos. Do mesmo modo, as obras de arte articulam, em seus conteúdos, a potencialidade de suscitar interpretações pessoais, considerando o repertório individual e as possíveis relações semânticas, retóricas ou metafóricas que possam ser estabelecidas com as alteridades para a construção de outros sentidos para seus enunciados.

Com outras abordagens e (re)contextualizações sobre um mesmo arquivo, poderão surgir outros enunciados que se coadunem ao período vigente. Os arquivos configuram-se como índice conceitual sobre o pensamento de uma determinada época, com suas abordagens específicas em sua historiografia e as inquietações contextuais de seus agentes. O arquivo não é refém de seu tempo, ele constitui a geratriz de enunciados e (re)condiciona a prática discursiva.

Entendemos que os fenômenos artísticos apresentam-se como estruturas socioculturais dinâmicas e não só provocam ou questionam o estabelecido, como também requerem leituras sobre seus enunciados, de modo que, com isso, possam estabelecer-se relações que rompam a superficialidade de um procedimento analítico tradicional. E, além do mais, que possam vislumbrar outras direções suficientemente significativas para atingir atitudes, condutas e percepções humanas que se entrecruzem entre o não dito e o pronunciado, objetivando o reconhecimento da significação dos seus enunciados num sistema de compreensão, por assim dizer, “subjetivo-metafórico”.

Os arquivos e seus discursos – quando originários do campo das artes visuais – podem adquirir outras formas de expressão e comunicação, as quais se distanciariam da linguística, como seria o caso do uso das imagens como textos ou como dispositivo de textualidades visuais.

 

Travessias, escambos e discursividades: apropriações e distopias

 

A partir do século XVI, as expedições transatlânticas cruzaram os mares em direção ao Oriente e ao continente africano, onde desterritorializaram, dessocializaram, despersonalizaram e reduziram as populações negras à condição de vítimas do escravismo mercantil.

Esses povos eram de diferentes origens, línguas e culturas díspares, com graus de desenvolvimento e preocupações ocupacionais variadas. A escravidão mercantilista procurava destruir a identidade, as funções e os papéis sociais, reduzindo cada indivíduo a simples condição de mão-de-obra, com sua política deliberada de misturar os escravizados das mais variadas procedências, grupos étnicos e religiões diferenciadas, no intuito de evitar a coesão grupal e, assim, aumentar a força de uma possível revolta.

No livro O Atlântico Negro, Gilroy (2020, p. 128) assinala que a experiência estética estaria associada a uma relação entre arte e vida, desde que a mesma considere as questões de ordem social e política para que as representações se alinhem aos seus pares.

As culturas expressivas desenvolvidas na escravidão continuam a preservar em forma artística as necessidades e os desejos que vão muito além da mera satisfação dos desejos materiais. Em oposição à suposição do Iluminismo de uma separação fundamental entre arte e vida, essas formas expressivas reiteram a continuidade entre arte e vida. Elas celebram o enraizamento do estético com outras dimensões da vida social. A estética particular que a continuidade da cultura expressiva preserva não deriva da avaliação imparcial e racional do objeto artístico, mas de uma contemplação inevitavelmente subjetiva das funções miméticas de apresentação artística nos processos de luta rumo à emancipação, à cidadania e, por fim, à autonomia.

 

O deslocamento compulsório de africanos, o tráfico negreiro e a redução do homem e da mulher africanos à escravidão – para o desenvolvimento econômico dos países conquistados – trouxeram para a Europa uma espécie de haveres clandestinos com seus repertórios culturais, espirituais e artísticos que alterariam radicalmente a percepção eurocêntrica sobre a formação de seus próprios esquemas mentais, sua percepção e os modos de representar as coisas do mundo e, ainda, contextualizariam aquela arte no tempo presente, tornando-a moderna.

O historiador italiano Giulio Carlo Argan (1992) pontua que o apelo da arte ocidental por culturas orientais já teria sido feito quando os fauves[9] e os expressionistas descobriram a escultura negra, seguidos pelo exotismo e pelo primitivismo de Paul Gauguin.

 Seu enfoque circunda o fenômeno artístico sob um olhar histórico positivista, pautado com os vetores da historiografia tradicional – as fontes escritas e os arquivos históricos de um contexto anterior. A historiografia, nessa abordagem, versa como um registro sobre determinados eventos que aconteceram no passado e, neste sentido, observamos que o distanciamento temporal do autor em relação ao contexto de uma determinada época, influência sobre o enfoque dado pelo historiógrafo, é algo que poderíamos associar a versões particulares que são atribuídas e/ou articuladas sobre um evento, isentas de análises críticas.

O recorte temporal e a produção discursiva do historiador italiano estendem-se desde o período medieval até o período moderno europeu – entremeado por aproximações entre a arquitetura do medievo, da renascença ao turbilhão de tendências e movimentos artísticos modernistas do século XX –, compondo-se em um saber enciclopédico de suas histórias da história da arte, que se transformou em referência bibliográfica imprescindível para a formação de artistas nas academias de arte ao redor do mundo.

Vejamos a breve análise proposta por Argan – em seu livro Arte Moderna, publicado em 1970, na Itália – sobre o seu encontro com a pintura Les demoiselles d’Avignon (Pablo Picasso, 1907) e sua descrição sobre o que observou, quando identificou e descreveu alguns artefatos de cultura material africana. Ao ponderar sobre antagonismos culturais e, ao mesmo tempo, outorgar uma ruptura estética e histórica, pois, no quadro, a seu ver, Picasso proporia um embate entre civilidade e barbárie:

Em Les demoiselles, ocorre uma mudança visível. À esquerda, a composição se assenta numa sucessão de figuras eretas, que colocam o espaço numa rítmica tensa, fortemente retesada; à direita, a composição se subverte, os rostos das duas últimas mulheres tornam-se máscaras horríveis e absurdas, fetiches. (ARGAN, 1992, p. 430)

 

Ordinariamente o que se lê nas publicações sobre essa obra de Picasso não se distancia do seguinte expediente: “Picasso recebeu grande influência da arte africana, primitiva ou tribal”. Argan construiu esse direcionamento de olhares, ao pontuar sobre a inclinação de Picasso pelo aspecto formal dos artefatos africanos ao utilizar adjetivações desprezíveis e categóricas, ele afirma que “não é o motivo exótico, do selvagem, do aterrador que o interessa, mas a estrutura plástica que exclui as distinções entre forma e espaço”. (Argan, 1992, p.426).

Formalista em sua leitura e autocentrado em sua breve análise, o historiador parece preterir o contexto e a função das máscaras africanas, ao mesmo tempo em que profana os arquivos africanos.

Tanto Picasso com sua apropriação-descontextualização – unicamente formal –, quanto Argan, em sua análise discursiva, protelam e rompem territórios valorativos das etnias que tiveram seus bens culturais transpostos para Les demoiselles. Observamos que ao arrancar esses objetos sagrados de seus sítios-lugares, de sua própria natureza e de sua sacralidade, por assim dizer, e recontextualizá-los em um ambiente profano e espúrio, como o local de Carrer Avinyó, em Barcelona – rua reconhecida por seus bordéis e pela boemia –, Picasso violaria todo um sistema de representação de signos e símbolos que estariam inscritos sob aquelas máscaras africanas.

Esse processo de manipulação arbitrária de arquivos poderá deflagrar um fluxo corrosivo de interpretações fragmentadas, por um lado, e permite, nesse viés, a criação e veiculação sucessivas de práticas discursivas polarizadas, as quais viriam a distorcer o sentindo original de seus enunciados, condensando-os e transformando-os em discursos oficiais.

Vale ressaltar a relevância e o contributo da obra arganiana para o entendimento da arte europeia em âmbito mundial, lembrando-se que os seus escritos foram realizados para que o europeu se identificasse com os arquivos artísticos produzidos por eles mesmos, chancelando-os com seus escritos.

Ainda, neste mesmo sentido, outros autores europeus e suas sucessões de similitude sobre a história da arte construíram um peremptório historiográfico, utilizado nas referências bibliográficas, reputado como fundamental sobre a arte e seu ensino.

 Ernst Hans Josef Gombrich, historiador austríaco, escreveu um dos mais populares livros sobre o assunto, em The Story of Art, com primeira publicação nos anos de 1950, na Inglaterra, composto por analogias estéticas com um tom hierárquico e tutelar. Gombrich faz um preâmbulo a respeito de sua prática discursiva sobre os arquivos de arte trazidos com povos orientais e com os africanos:

É claro, o fato de alguma coisa ser difícil de fazer não prova necessariamente que se trata de uma obra de arte. Se fosse assim, os homens que montam modelos de barcos a vela dentro de garrafas de vidro estariam classificados entre os maiores artistas. Mas essa prova da habilidade tribal deve prevenir-nos contra a suposição de que as obras deles parecem imperfeitas porque não sabiam fazer melhor. Não é o padrão de capacidade artística desses artífices que difere dos nossos, mas as suas ideias. É cada vez maior o número de provas de que, sob certas condições, os artistas tribais podem produzir obras tão corretas na representação e interpretação da natureza quanto o mais hábil trabalho de um mestre ocidental. GOMBRICH (2008, p.44)

 

Em sua abordagem, o historiógrafo austríaco evidencia as relações de poder e conduz a sua discursividade com um olhar do antropólogo (o letrado em ciências, o civilizado, aquele que possui decoro) em oposição ao selvagem. Sua inferência procura estabelecer uma relação de causalidade entre os preceitos conceituais europeus a partir de sua arte e suas instituições, em contraposição ao criado pelas populações autóctones, com suas intuições criativas e opacas sobre suas experiências, na produção de artefatos e na sua forma de se expressar.

Sua retórica transita entre uma análise parcial sobre as aparências desses mesmos arquivos e a negação de alteridades artísticas, ao que deixa entrever ditas como menores, com potencialidades de aproximação laboral digna de mestres europeus.

Em vistas dessas discursividades apresentadas é de indagarmos por que certos discursos produzidos, na prática historiográfica, adaptam-se tão bem à análise de épocas que os geraram e por que outros já produzem incontornáveis inadequações?

De maneira geral, um discurso sobre uma obra de arte, como documento histórico, poderá conduzir a uma série de equívocos, pois esses registros textuais poderão profetizar fatos que o sucederão. As obras de arte que presumivelmente guardam um caráter documental, geralmente, podem ser alteradas até o ponto em que seus conteúdos aproximem-se de um caráter idealizado ou fracionado, tornando-as obras representativas de determinadas discursividades.

 

­­­­Compondo outros modos e outros mundos

 

Os padrões institucionalizados não abarcavam as novas formas de habitar o mundo – comunicação instantânea, a sociedade como seus novos atores sociais, apelo estético que vigora nos meios artísticos, globalização cultural etc. A miríade de novos tempos, de uma sociedade globalizada, em meio a crises de percepção sobre sua existência e entorno não encontra na história uma legitimação que envolva a complexidade desses novos enunciados.

Neste sentido, os reflexos desse descompasso entre as transformações na sociedade e o sujeito que não se reconhece nela tornam-se visíveis quando nos defrontamos com a indiferença e a falta de sentido atribuídos pelo indivíduo do presente em relação aos conteúdos latentes nos arquivos de arte e, de igual modo, no afã de reler e apresentar outras representatividades discursivas que poderiam ter ficado ocultas, neste ou naquele eventual discurso que se encontrou com outros mundos.

No livro Após o fim da arte: arte contemporânea e os limites da história, que teve sua primeira publicação no Brasil, no ano de 2006, Arthur Danto discute a produção e o pensamento sobre arte, postulando que as narrativas que legitimaram a arte por mais de cinco séculos chegaram ao fim, tendo, assim, se iniciado uma aproximação cada vez mais intensa entre a arte produzida e suas relações com o mundo globalizado.

Por sua vez, o autor aponta algumas circunstâncias que contribuíram para essa situação, como, por exemplo: a) a inexistência de uma narrativa legitimadora cujos temas se atualizassem e se instalassem no tempo presente; b) a liberdade temporal e histórica a que a arte, até os anos de 1960, estava condicionada; c) a pluralidade de tipologias sem um discurso teórico dominante.

Danto pontua, pois, que:

A questão filosófica da natureza da arte, ao contrário, algo que surgia no âmbito da própria arte quando os artistas pressionados por fronteiras e mais fronteiras, descobriram que todas elas cediam. Qualquer artista comum da década de 1960 tinha esse vívido senso de limites, todos levados por alguma definição de arte tacitamente filosófica, e a sua anulação conduziu-nos à situação em que hoje nos encontramos. [...] E quanto à arte depois do fim da arte, considerando que por “fim da arte” quero dizer “após a escalada para a autorreflexão filosófica”, em que uma obra de arte pode consistir de qualquer objeto a que se atribua o status de arte, suscitando a pergunta “Por que sou uma obra de arte?”. (DANTO, 2006, p.17).

 

Danto destaca que a categorização dos artistas firmada pela tradição da história da arte chegava ao fim e, neste sentido, os artistas estariam libertos para transitar sobre a linguagem que melhor se identificassem. Eles podiam realizar uma espécie de colagem entre as diversas linguagens de expressão artística, por exemplo. A ruptura com a linguagem purista alargou os limites conceituais, na medida em que suas territorialidades cederiam espaço para incorporar as urgências eventuais de seu tempo e, consequentemente, gerariam outras discursividades.

Em uma conferência intitulada Arqueologia da obra de arte, realizada no ano de 2012, na cidade de Scicli, na Sicília, Agamben aborda três momentos de constituição da obra de arte que repercutiram sobre um possível reencontro com a própria história e as condições que poderiam situar a obra de arte na atualidade. A questão norteadora de sua conferência voltou-se à sinalização de quais seriam os vetores historiográficos que o auxiliariam a responder, a pergunta: “Qual é o lugar da arte no presente?” (AGAMBEN 2013, p.352).

Na abertura de sua reflexão sobre os indícios da obra de arte, Agamben distingue as relações que diferentes populações mantêm com o passado, ressaltando que o indivíduo europeu atravessa uma crise em relação à sua própria história. O filósofo italiano é enfático e crítico a respeito do uso do conceito/palavra “crise” – que, na atualidade, estaria vinculado apenas a palavras de tom imperativo e supressivo, restringindo-se unicamente à ideia de obediência. Para ele, é também a crise, seja ela de ordem política ou econômica, que contribuiu velozmente para o sucateamento das instituições de ensino e o encarceramento dos bens culturais em locais oficiais de exposição, privando a população dos bens que, supostamente, seriam ou, ao menos, deveriam ser de livre acesso.

No entendimento de Agamben (2013), ao referir-se ao acesso do público aos conteúdos dos dispositivos de arte contemporânea, diz que ela tornou-se “opaca ou mesmo ininteligível”, tomando outras direções, de modo que se poderia atestar a sua materialidade em registros de toda ordem. Vejamos:

Hoje a obra de arte parece atravessar uma crise decisiva que a fez desaparecer do âmbito da produção artística, na qual a performance e a atividade criativa do artista tendem cada vez mais a tomar o lugar daquilo a que estávamos habituados a chamar de obra de arte.[...] se hoje a arte se apresenta como uma atividade sem obra – hoje, como vocês sabem, os artistas contemporâneos são artistas sem obra, que exibem documentos de uma obra ausente –, isso pôde acontecer porque o ser da obra permanecia não pensado. (AGAMBEN, 2013, p.352-353).

 

Quando Agamben afirma que “os artistas contemporâneos são artistas sem obra”, ele acaba por indicar outro vetor conceitual sobre a composição e leitura da arte e dos dispositivos do presente, uma vez que são os registros que foram realizados sobre um ato de arte compartilhado com o público, que atua como alternativa de trabalho em relação a questões de ordem enunciativa, as quais constituem uma outra forma de aproximação e relacionamento com as visualidades emergentes.

No seu estudo arqueológico da obra de arte, Agamben reporta-se a três importantes paradoxos sobre o sentido dela. Num primeiro, remonta à Grécia Antiga do séc. IV a.C., que, com Aristóteles, estabeleceu uma relação entre obra e artista de forma distinta; como já sabemos, para o filósofo ateniense, a atividade artística estaria vinculada a uma técnica que visava à produção de objetos e essa atividade de produção associava-se à obra final e não à figura do artista, que era considerado tão somente um produtor-artesão. (AGAMBEN, 2012, p. 353).

O segundo momento de acerto de contas com a história humana dá-se, no entendimento do pensador italiano, sobre os primeiros anos da década de 1920, quando o monge Odo Casel publicou um livro intitulado A liturgia como festa mistérica, cuja principal questão recaía sobre os ritos litúrgicos entendidos como um ato performático. Agamben associa a celebração religiosa com as manifestações dos movimentos artísticos de vanguarda do século, uma vez que ambos os casos são entendidos como eventos; no caso da arte, prenuncia-se, todavia, ali uma emancipação por parte do artista das atividades de produção ou apenas reprodução dos objetos. (AGAMBEN, 2012, p. 357).

O último recorte histórico discutido por Agamben, em sua conferência sobre a arqueologia da obra de arte, está voltado à cidade de Nova Iorque, do ano de 1916, que, com Marcel Duchamp e seus objetos insólitos, produzidos industrialmente, ao serem arbitrariamente escolhidos, foram retirados de seus sítios originais e transformados em emblemas de uma sociedade que se globalizava e não se reconhecia em sua tecnologia, em sua aparência e na sua própria imagem. Com seus ready-mades, Duchamp reconfigurou o cotidiano afetado e febril do início do século XX e, como um arauto maldito, trouxe para o centro da discussão a figura do espectador e o mundo que ele habita. (AGAMBEN, 2012, p. 360).

Não obstante, esta é uma síntese das ideias discutidas por Giorgio Agamben, na conferência em questão. Está composta pelos três vetores arqueológicos que configuram, cada um a seu tempo, paradoxos sobre o sentido e os caminhos percorridos pelas obras de arte em momentos distintos: as transformações ocorridas nos agentes produtores da arte; as mudanças que aconteceram no sistema de representação da arte; a legitimação de seus enunciados e seus discursos por diferentes interlocutores – aos quais a arte destinou-se e que, por transição, tornou-se independente.

 

(Re)encontros: lugares possíveis

Essa reflexão circundou algumas perspectivas teóricas que auxiliaram a alavancar questões sobre a releitura de arquivos e momentos da arte e de sua historiografia. Foi em companhia de Michel Foucault que trouxemos o conceito de arquivo e, com isso, pretendemos ampliar as possibilidades de enfoques sobre os dispositivos de arte e suas discursividades, visto que, para Foucault, o arquivo contempla um lugar possuidor de sistemas enunciativos dinâmicos e, com suas interpretações, requerem atualizações constantes. Já Nicolas Bourriaud indicou que a luta de representações na arte e a historiografia do presente requerem a inclusão de atores sociais de seu tempo, com suas formas de pensar e representar seus mundos e seus modos de viver; com Arthur Danto e sua tese sobre o fim da arte, reiteramos a possibilidade de criação de novos discursos sobre a arte, ao passo que as narrativas balizadoras da arte e da sua história não contemplariam questões emergenciais que inscreveriam o pensamento atual em seus ensaios conceituais de agora. Ademais, discutimos junto a Giorgio Agamben qual seria o lugar da arte de hoje e como as ideias do filosofo, que propõem uma espécie de inventário arqueológico, repercutiriam sobre uma crise da história que tencionaria as ações do homem branco sobre o legado historiográfico articulado por ele e que, nesse momento de crise, necessitaria acertos com os seus discursos e com o seu próprio passado, transpondo a ideia de obediência e sujeição teórica para um redimensionamento de alteridades na elaboração discursiva.

Algumas contranarrativas foram inseridas à reflexão a fim estabelecer articulações entre os lugares de pertencimento, suas significações e os arquivos de arte elaborados a partir de uma aproximação formal e aparente das sintaxes visuais africanas, aqui apresentadas e discutidas com suas enunciações e seus discursos contundentes e reveladores, para ampliar o nosso entendimento sobre questões referentes ao espaço das fronteiras simbólicas, mundo exterior a elas e algumas apropriações interculturais.   Portanto, vivemos um momento ímpar de reencontro com os arquivos e com suas historiografias e temos a possibilidade de escrever outras leituras, apontando epistemologias que visem atender olhares que correspondam ou até mesmo incluam diversas perspectivas capazes de abordar alteridades, incluir os conjuntos sociais que demandam representatividades junto às comunidades de pesquisa. Talvez, não apenas no sentido de se contrapor ao estabelecido, mas apontar perspectivas teórico-conceituais que se originassem de outros núcleos, outras discussões e com outros posicionamentos.

 

Referências

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AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

AGAMBEN, Giorgio. Arqueologia da obra de arte. Princípios – Revista de filosofia. v.20, n. 34. 2013.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFGM, 2019.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma a mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Ed, 2006.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2007.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

GILROY, Paul. O Atlântico negro. São Paulo: Editora 34, 2020.

GOMBRICH, E. H. A história da arte.  Rio de Janeiro: LTC, 2008.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da, HALL, Stuart, WOODWARD, Katryn.  Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

 

Notas



[1] Serão denominados de “arquivos”, neste artigo, os artefatos, as obras de arte e escritos que se originaram do encontro entre percepção, análise e reflexão em torno deles.

 

[2] Michel Foucault (2008, p.98) elucida os enunciados como função de existência que pertencem, exclusivamente, aos signos e, a partir da qual, pode-se decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos e que espécie de ato encontra-se realizado por sua formulação (oral, escrita ou visual). Não há razão para espanto por não ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas uma função que cruza o domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.

 

[3] Sobre leituras pós-coloniais Gilroy (2020) discute os mais distintos modos de racialização que teriam se constituído desde as travessias transatlânticas entre a Europa, África e o Novo Mundo.

Na obra Discurso sobre o colonialismo, Aimé Césaire (2020) considera sobre a desumanização do indivíduo escravizado causada durante o período colonial e a sua estreita relação com o capitalismo.

 

[4] Para Foucault, a episteme corresponde às relações circunstanciais que associam o discurso ao período histórico em que ele foi produzido.

 

[5] Por dispositivo entendemos aquilo que na acepção agambeniana designa “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar ou assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.” Dividindo todo o existente em duas grandes categorias, os viventes e os dispositivos, Agamben trata de revelar como o dispositivo atua naquilo que denomina processo de subjetivação: “Chamo sujeito o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre viventes e os dispositivos.” (AGAMBEN, 2009, p. 40-41).

[6] O termo elemento simbólico está associado, neste caso, à ideia de signo como algo que se refere ao objeto denotado em virtude de uma associação de ideias produzidas por uma convenção. O símbolo é arbitrário e reconhecido por um dado grupo social que o criou e decodifica-o. Ele não é a coisa em si, mas está no lugar dela, representando-a. Por exemplo: um desenho de uma maçã, não é o objeto maçã, mas, por convenção, está no lugar dela e, por isso, conseguimos identificá-la, porque, anteriormente, tivemos contato com o objeto maçã e, assim, relacionamos o desenho com o próprio objeto. Da mesma forma, a palavra maçã, como signo gráfico faz-nos, instantaneamente, criarmos uma imagem mental sobre o objeto maçã.

 

[7] O termo signo pode ser entendido como todas as coisas existentes na natureza e/ou criadas ou articuladas pelo homem que são passíveis de interpretação. Para lembrar Barthes, uma presença sensível com seus profundos efeitos temporais.

[8] Os gabinetes de curiosidades ou quarto das maravilhas configuravam-se como sendo um dos primeiros lugares do colecionismo. Surgiram no período das Grandes Expedições, por volta do Séc. XVI e XVII, e salvaguardavam uma diversidade de objetos exóticos, experimentos científicos, taxidermias e exemplares de flora e minerais, além de artefatos da cultura material mundial, trazidos pelos exploradores dos cinco continentes.

 

[9]  Ao contrário de outras vanguardas que povoam a cena europeia entre fins do século XIX e a 1ª Guerra Mundial, o fauvismo não é uma escola com teorias, manifestos ou programa definido. Para boa parte dos artistas que adere ao novo estilo expressivo - com forte presença na França entre 1905 e 1907 -, o fauvismo representa, sobretudo, uma fase em suas obras. Falar em vida curta e em organização informal de pintores em torno de questões semelhantes, não significa minimizar as inovações trazidas à luz pelos fauves ('feras'). O grupo, sob a liderança de Henri Matisse (1869-1954), tem como eixo comum a exploração das amplas possibilidades colocadas pela utilização da cor. A liberdade com que usam tons puros, nunca mesclados, manipulando-os arbitrariamente, longe de preocupações com verossimilhança, dá origem a superfícies planas, sem claros-escuros ilusionistas. As pincelas nítidas constroem espaços que são, antes de mais nada, zonas lisas, iluminadas pelos vermelhos, azuis e alaranjados. Disponível em https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3786/fauvismo, acesso 02/09/2021.

 

 

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