Dois olhares sobre diferença: um ensaio sobre curtas-metragens educacionais

Two views on difference: ensay about educational short films

Dos miradas sobre la diferencia: un ensayo sobre cortometrajes educativos

 

Vitor Gomes

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitoria, ES, Brasil.

vitorgomes76@hotmail.com

 

Larissa Ferreira Rodrigues Gomes

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitoria, ES, Brasil.

larirodrigues22@hotmail.com

 

Recebido em 25 de novembro de 2021

Aprovado em 17 de julho de 2023

Publicado em 10 de outubro de 2023

 

 

RESUMO

 

Trata-se de artigo, derivado de atividade avaliativa, na qual, alunos de curso de licenciatura em pedagogia elaboraram curtas-metragens sobre a temática da diferença. O objetivo é, alimentados por referenciais teóricos da fenomenologia e da filosofia da diferença, realizar suas descrições e apresentar reflexões sobre as concepções de diferença apresentadas em suas criações.  A metodologia de elaboração está baseada numa descrição detalhada dos curtas com o intuito de sua apresentação para os que não realizaram sua expectação. Os passos constituintes deste trabalho foram edificados pela seleção dos curtas, diversas telespectações e suas compreensões e análises. Em termos de resultados, o primeiro curta apresenta série de estímulos sensoriais que envolvem: sons estridentes e/ou graves, o silêncio, a ausência de imagem e/ou sua apresentação de forma embaçada; numa mescla de privação e/ou potencialização de sentidos. O segundo: revela o universo interno de um jovem com autismo, com vivências discriminatórias e outputs, que lhe servem como auxilio na interiorização e/ou vazão ao excesso dos estímulos audiovisuais assimilados por conta de sua condição. O terceiro: (Trans) verso, evidencia imagens de jovens transgêneros que almejam o direito de exercer a diferença.  A guisa de conclusão compreende que as três produções estabelecem relação objetiva em termos de abordagem da diferença expondo-a em cenas desnudantes que sublinham, relativizam, ou simplesmente a descrevem. Assim, suas questões não são colocadas debaixo do tapete, mas expostas com sensibilidade e ao mesmo tempo firmeza.

Palavras-chave: Curtas metragens; Diferença; Reflexões.

 

 

ABSTRACT

 

This is an article, derived from an evaluation activity, in which undergraduate pedagogy students created short films on the theme of difference. The objective is, fed by theoretical references of phenomenology and philosophy of difference, carry out their descriptions and present reflections on the conceptions of difference presented in their creations. The elaboration methodology is based on a detailed description of the short films with the aim of presenting them to those who did not fulfill their expectations. The constituent steps of this work were built by the selection of short films, several telespections and their understandings and analyses. In terms of results, the first short film presents a series of sensory stimuli involving: strident and/or low-pitched sounds, silence, the absence of an image and/or its presentation in a blurry way; in a mixture of deprivation and/or enhancement of the senses. The second: reveals the internal universe of a young person with autism, with discriminatory experiences and outputs, which serve as an aid to interiorization and/or an outlet for the excess of audiovisual stimuli assimilated due to their condition. The third: (Trans) verse, shows images of transgender young people who crave the right to exercise difference. By way of conclusion, it is understood that the three productions establish an objective relationship in terms of approaching difference, exposing it in bare scenes that underline, relativize, or simply describe it. Thus, your questions are not placed under the rug, but exposed with sensitivity and at the same time firmly.

 

Keywords: Short films; Difference; Reflections.

 

RESUMEN

Este es um artículo, derivado de uma activdad evaluativa, em la que estudiantes de la carrera de pedagogía produjeron cortometrajes sobre el tema de la diferencia.El objetivo es, nutridos de referentes teóricos de la fenomenología y la filosofía de la diferencia, realizar sus descripciones y presentar reflexiones sobre las concepciones de diferencia presentadas en sus creaciones. La metodología de elaboración se basa en una descripción detallada de los cortometrajes con la intención de presentarlos a aquellos que no cumplieron con sus expectativas. Las etapas constituyentes de este trabajo se construyeron a partir de la selección de cortometrajes, varias telespectaciones y su comprensión y análisis. En cuanto a resultados, el primer cortometraje presenta una serie de estímulos sensoriales que involucran: sonidos estridentes y/o graves, el silencio, la ausencia de una imagen y/o su presentación borrosa; en una mezcla de privación y/o mejora de los sentidos. El segundo: revela el universo interno de un joven con autismo, con experiencias y salidas discriminatorias, que le ayudan a interiorizar y/o desahogar el exceso de estímulos audiovisuales asimilados por su condición. El tercero: (Trans)verso, muestra imágenes de jóvenes transgénero que buscan el derecho a marcar la diferencia. A modo de conclusión, se entiende que las tres producciones establecen una relación objetiva en cuanto a abordar la diferencia, exponiéndola en escenas de desnudo que la subrayan, relativizan o simplemente la describen. Así, sus preguntas no quedan ocultas debajo de la alfombra, sino expuestas con sensibilidad y firmeza al mismo tiempo.

Palabras-clave: Cortometragens; Diferencia; Reflexiones.

 

 

Introdução

Ao longo da carreira docente é usual o emprego de dinâmicas disciplinares compostas por provas escritas, trabalhos, seminários, relatórios e outros. Contudo, é imprescindível depreender que seu uso como meios exclusivos (e mais eficazes) para verificações de aprendizagem provocam certos automatismos. Ainda que utilizadas com alternância, pressupõem (numa linguagem coloquial), que os mesmos chapéus cabem indistintamente em quaisquer cabeças.  

Neste sentido, se o aluno não consegue expressar-se de forma inteligível na escrita e/ou em sua oralidade, sejam por questões de motivação, seja pela inaptação aos modelos “tradicionais” de avaliação, pode ser compreendido e/ou rotulado como indivíduo com problemas de aprendizagem.

Contudo, mesmo admitindo a existência deste cenário, é necessário reconhecer que a aplicação de avaliações desconstrutoras(ou criativas) de modelos enraizados é guerra diária contra um adversário complexo: o si mesmo. Oponente historicamente constituído na formação profissional e que se torna tão íntimo como “parte de nossos corpos.

Entretanto, se nossa opção for pelo caminho confortável da rotina, a consequência pode ser a observação de rostos desmotivados e que expressam no estar ali (em sala-de-aula) um calvário para si e, consequentemente também, para o docente.

Quando isto ocorre, se ensejamos uma transformação de atitudes, é momento para reorientações de práticas didáticas; uma vez que somos com o outro e, portanto, só existem aprendizagens por meio da alimentação pelos atores envolvidos neste processo.

O contexto descrito corresponde a vivência particular que nos incitou a pensar sobre alternativas em termos de atividades avaliativas. Desta forma, surge a iniciativa de produção de mostra de curtas metragens aberta ao público, em que, a partir de conteúdos audiovisuais, alunos de uma disciplina de pesquisa, extensão e prática pedagógica (dos períodos finais de um curso de pedagogia) apresentaram sua compreensão acerca da temática da diferença.

Sua proposta era possibilitar que os discentes inicialmente imergissem em leituras de dissertações, teses e artigos que versavam sobre a questão da diferença (servindo como conhecimento e inspiração) para posterior construção de uma produção audiovisual sobre a temática (que consistia na atividade final do semestre).

Mas eles não estavam sozinhos nesta empreitada, neste sentido, eram auxiliados na produção dos roteiros(nos trinta minutos finais de cada aula), nos quais, atuamos como mediador[i], e devemos dizer, observador entusiasta.

Em sua primeira edição, os formatos predominantes dos vídeos foram de: videoaulas, documentários e rodas de conversa.  Com ganho de proporção e repercussão positiva, o evento ganhou duas edições posteriores, com cobertura da mídia local, bem como, predominância de produções que expressaram linguagem teatral e cinematográfica.

O resultado desvelou o universo particular dos educandos, num entrelaçamento de sensibilidade artística e suas vivências acadêmicas. Sendo possível testemunhar durante o processo: motivação, interesse e engajamento em oposição aos comportamentos vivenciados com atividades avaliativas usuais.

Ao fim de suas exibições realizávamos rodas de conversa compostas com professores/as de referenciais teóricos dessemelhantes que dialogavam sobre a temática das produções. O intuito era simples: se ensejávamos abordar a questão da diferença, por que não promover sua discussão por concepções distintas?

Alicerçados pelo entendimento da relevância didática, artística e transdisciplinar deste recurso audiovisual, edificamos neste trabalho, a sistematização e compreensão do que foi criado por estes. Para isto, apresentamos inicialmente a metodologia de construção deste artigo, na sequência, a descrição detalhada dos curtas-metragens e, por último, reflexões (com características ensaísticas) realizadas pelos/as autores deste artigo acerca da apresentação da diferença nestes curtas-metragens.  

Metodologia

 

A metodologia de elaboração está baseada numa descrição detalhada dos curtas com o intuito de sua apresentação para os que não realizaram sua expectação. A partir disto, oferta-se sua compreensão a partir das análises de dois professores (com inspiração em matrizes teóricas distintas). Ou seja: tratam-se de reflexões sobre a diferença expostas na dissemelhança teórica.

O foco de suas análises é a investigação pode ser convertido na seguinte questão: como a diferença é apresentada nestes curtas metragens?

Falando dos contextos, os autores deste artigo participaram dos encontros de exibição de todos os vídeos. O primeiro deles, como professor dos alunos(com inspiração da fenomenologia), e a segunda como expectadora(com inspiração do referencial teórico da filosofia da diferença).

Em termos dos passos constitutivos para construção deste trabalho (realizados pelos autores deste artigo), este iniciou pela: seleção dos curtas, nos quais, foram escolhidos (03)três, compreendidos[ii] como de maior profundidade em termos de discussões acerca da temática da diferença.

Diversas telespectações[iii]: a primeira delas realizada de forma ininterrupta. A segunda com pausas para anotações com foco em seus aspectos de linguagem e som. Em terceira, observaram seus aspectos visuais e, na quarta realizam sua descrição detalhada.

Compreensões e análises: com reflexões com características ensaísticas realizadas por professores inspirados/as pela fenomenologia e filosofia da diferença acerca de como se apresenta a diferença nos curtas criados por estes jovens produtores.  Este terceiro passo realizado em separado. Ou seja: cada autor só teve conhecimento das análises realizadas pelo/a outro/a após sua conclusão.

Os curtas-metragens

Apresentados os aspectos introdutórios, é momento de descrição visual dos vídeos em suas histórias, cujo intuito se cristaliza em sua apresentação da forma mais fiel que a percepção proporcione, ainda que compreendendo seu caráter humano, imperfeito e carnal (MERLEAU-PONTY, 2011).  Neste sentido, a intenção é de que os curtas metragens, intitulados: Sensações, Output! e (Trans)verso, sejam desvelados em sinopses detalhadas, cujo propósito pode ser sistematizado pelo intento do desnudamento audiovisual diante ao leitor, que diante da impossibilidade de sua expectação, poderá visualizá-los sem tê-los visto(DELEUZE, 2007).

Sensações

 

Uma sirene de escola ecoa forte e estridente aparecendo na tela como sinal de despertar. Um título é desvelado: Sensações. O curta-metragem apresenta série de estímulos sensoriais que envolvem: sons estridentes e/ou graves, o silêncio, a ausência de imagem e/ou sua apresentação de forma embaçada; numa mescla de privação e/ou potencialização de sentidos.

Por essa lógica, carros são filmados na altura do meio fio com sonidos destacados, em que, segundos depois, suas imagens são desfocadas, numa tela totalmente sem nitidez, numa privação instantânea da visão.

Iniciando com a tela totalmente escura, se revela gradualmente um semáforo. Logo depois, o áudio é suprimido e a câmera filma pessoas de costas atravessando a faixa de pedestres num ângulo em que seus corpos são desvelados por inteiro apenas ao fim.

A câmera focaliza contagem regressiva de semáforo e, se ouve de forma destacada o som de motor veicular. Logo após, num trecho sem áudio, cinco mulheres aparecem no vídeo simulando gestualmente a icônica imagem dos macacos sábios. De costas e distantes da tela, num mural e da esquerda para a direita, a 1ª não vê, a 2ª não ouve, a 3ª não fala, a 4 ª não vê e a 5 ª não ouve.  Depois de corte na cena, aparecem próximas a tela e de costas para fundo branco simulando o gesto de não ver, sendo sucedido do não ouvir.

Numa imagem totalmente desfocada é possível ouvir a conversa de vultos caminhando em direção à tela. Logo depois, agora, de forma nítida é possível visualizar que se trata de pessoas cruzando passarela térrea. A cena permanece por segundos. Num corte cru de edição, outras pessoas são evidenciadas, mas desta vez o destaque é para o som de pássaros. A cena inicia de forma nítida sendo desfocada no final.

Ainda, dentro dos aspectos de transição bruta de sentido, as três cenas a seguir se iniciam com imagem nítida e são concluídas em tela preta. Na primeira delas, um senhor vestido com uniforme profissional transporta duas lixeiras com destaque para o barulho do atrito de suas rodas no chão.

Na segunda, em trecho sem áudio, pessoas andam sobre folhas e depois de alguns segundos (e com áudio) é possível ouvir o barulho desta ação que permanece até o fim da cena.

Quanto à terceira, cinco jovens adentram numa sala, sendo a partir do barulho de carteiras arrastadas a identificação de que se trata de escola. 

Em trecho totalmente sem áudio, uma jovem de preto observa a capa de livro cujo título é: professores surdos. Logo após, em sua manipulação, observa sua 4ª capa, em que, em gesto de leitura, balbucia sua descrição, sendo sucedido de sua abertura(do livro).

A cena posterior começa com a exibição de um ventilador de teto. Ele inicia seu funcionamento e, a medida que toma propulsão, seu ruído e velocidade se tornam gradualmente maiores, até que o processo inverso ocorre com sua paulatina desaceleração. Agora em tela completamente preta, o aparelho repete mesma atividade.

Em seus momentos finais o vídeo apresenta sua única fala, na qual, jovens se sucedem completando o seguinte discurso:

 

Antes de existir o computador, existia a tv. Antes de existir a tv, existia a luz elétrica. Antes de existir a luz elétrica, existia a bicicleta. Antes de existir a bicicleta, existia a enciclopédia. Antes de existir a enciclopédia, existia o alfabeto. Antes do alfabeto, existia a voz. Antes de existir a voz, existia o silêncio. O silencio! (SENSAÇÕES, 2016).

 

 

Por último, a sequência, apresenta o ruído de uma janela ao ser trancada, seguido de trecho final (sem áudio) com jovens com a mão na boca simulando o não falar.  Após, o vídeo é concluso com legenda FIM. E assim, com 6min e 34seg de duração, Sensações, oferta ao seu espectador, a vivência de distintos estímulos audiovisuais provocativos.

Output!

 

Com fundo musical dramático ao piano e violino, o vídeo se inicia com a legenda: cerca de 1% da população mundial apresenta algum transtorno do espectro do autismo. Esse valor é equivalente a 1(uma) a cada 68(sessenta e oito) crianças. Essa condição neurológica tem aumentado.

A câmera evidencia a cidade pela janela de carro em movimento. Alguns segundos depois, outra mensagem aparece: O autismo acomete pessoas de todas as classes sociais e etnias. Atingindo mais os meninos que as meninas, possui sintomas, que podem aparecer nos primeiros meses de vida, mas de difícil detecção.

Desta vez, a visão se alterna para a parte frontal do veículo, que espera uma chancela se elevar para continuar seu caminho. Novamente a imagem é interrompida com uma informação: Autistas de bom rendimento podem apresentar desempenho (em determinadas áreas do conhecimento) com características de genialidade.

Alguns segundos depois, exibe o título do curta-metragem: Output!

Trata-se da história fictícia de Richard, jovem com Transtorno do Espectro Autista, apresentado na primeira cena em interação com pai e irmão, protestando de forma incisiva com a frase: parem de gritar!  Reação as manifestações de euforia (dos parentes) derivadas da telespectação de jogo de futebol.

Seus pilares estão baseados na apresentação do universo interno do protagonista, vivências discriminatórias e outputs, práticas que superficialmente denotam agressividade, mas que na verdade, possuem o aspecto de auxilio na interiorização e/ou vazão ao excesso dos estímulos audiovisuais assimilados por conta de sua condição.

O universo interior de Richard é desvelado na seguinte narrativa:

Por mais que as provocações das meninas e de outras pessoas(dentro e fora da escola) venham me prejudicar e sejam determinantes para que minha vida seja mais difícil... Não é a única coisa que tira a minha paz. A verdade é que quase tudo tira a minha paz, por mais calmo que eu pareça estar. Até mesmo o silêncio está cheio de ruído, porque ele chama a atenção dos meus outros sentidos. Se eu não ouço nada, começo a prestar a atenção no que sinto, no que vejo. E quando começo a absorver tudo isso, é um tormento sem fim... como é ruim! Eu não sei como é ser diferente disso, mas imagino que seja bem mais fácil para os outros.  Porque não vejo gente gritando o tempo todo. Na verdade vejo, mas é porque eles querem, não é uma reação... um reflexo como em mim. E eles conseguem conversar rapidamente, tocar as pessoas. Eles não acabam machucando (quem eles gostam) acidentalmente! Talvez propositalmente... mas não acidentalmente... não o tempo todo. Eu não me comporto assim por querer, eu faço para aliviar essa pressão dentro da minha cabeça... Esses movimentos involuntários... Essas ações involuntárias acontecem porque eu absorvo tudo que é visual ou auditivo de uma vez só. E mesmo que não fosse assim, já seria complicado. São muitas coisas! vendo, sentindo ouvindo. Olhar para o rosto de alguém é fotografar infinitas vezes essa face. É por isso que evito contato visual. Então, me concentro nas pequenas coisas, mantendo meu foco ali. Tentando compreender algo mais daquilo. Por que tentar absorver tudo em volta, me destrói, mesmo quando não tento, me destrói (OUTPUT!, 2016).

 

 

No que se refere às relações interpessoais, o curta evidencia duas colegas: Ana e Gaby, que nutrem com Richard relação de maus tratos, incompreensão e desconhecimento de seu transtorno. Tais comportamentos são desvelados verbalmente a partir rótulos como: idiota, retardado e biruta, bem como, nas ações cruéis, em que, jogam bexigas molhadas, derrubam-no e escondem sua gaita, objeto favorito do jovem.

Ao final, existe a apresentação da culpa de Gaby, por ter escondido sua gaita, bem como, movimento de compreensão quando percebe efeito da ausência do instrumento musical no menino, que o descontrola de tal maneira que nem seus outputs são capazes de compensar. Por último, numa cena final, se desvela os motivos do apego em relação ao objeto pelo jovem. Trata-se de presente ganho de Maria, moça falecida e que Richard nutria amor.

Em meio a narrativa final com temática sobre a perda, a cena apresenta imagem do passado (com efeito de tom sépia), em que, Richard abre a caixa entregue pela menina (Maria) num ato de exploração minuciosa, porém, sem dar importância ao seu conteúdo.

Quando a gaita cai, a jovem, num gesto de cuidado, tira a caixa de sua mão e a entrega ao jovem, sublinhando sua importância em detrimento de seus invólucros. Assim, o protagonista observa o instrumento e, gestualmente, pede para Maria retirar sua última proteção. 

Por alguns segundos e, com a harmônica na mão, desvelando comportamentos de seu espectro autista, observa seu estojo, demonstrando maior interesse maior pelo embrulho, do que pelo objeto em si.  Notando isso, a moça conduz seu braço e leva-a até sua boca, delineando assim, o que ele deve realizar. É quando em seu primeiro uso, e assustado com som extraído, deixa-a cair. Em meio ao sorriso da menina, segura novamente o instrumento e começa a utilizá-lo de maneira adequada.

Assim, Output!, ao longo de seus 18’ 52’’, evidencia narrativa poética, quando desvela o universo interno do garoto, e realista, quando apresenta suas vivências de discriminação. Neste sentido, os outputs aparecem em diversos momentos como possibilidades de assimilação, vazão e auxílio involuntário para lidar com os diversos estímulos audiovisuais.

 

(Trans)verso

 

Eu sei que sou diferente ... assim inicia o curta metragem de 10’55’’.  Nele jovens transgêneros narram suas percepções e experimentações da diferença, questionando as apropriações, as reformas de si e a escolha do ser “o que se é”, fazendo emergir, na tela, o título de (Trans)verso. Ao som enérgico de rock, cenas da vida cotidiana dos jovens apresentam seus modos de ser e exercer a diferença.

As cenas do curta dão pistas para a problematização sobre sexualidade e diferença. Questionam que seus desejos de brincar, de experienciar a vida, desde a infância não se enquadravam nas organizações impostas e esperadas pela sociedade, indagando sobre o papel da escola como lugar para ser aceito e não como espaço para normatividades de orientação sexual. Trazem em suas vozes, inquietações do tipo: E aí? ou você é ou você finge ser padronizado.

A interrupção da imagem, o bloqueio da imagem-movimento, com a tela escura, provoca com a seguinte fala: “Vocês não entendem! Vocês nunca vão entender. Vocês não vão saber o quanto me recriminei. O quanto me sabotei só para ser aceito num lugar que nunca foi meu. Mas agora acabou, chega de ir mal na vida só para agradar vocês” (TRANS-VERSO, 2016).

As imagens do filme vão se encadeando com a exibição da vida em práticas do dia-a-dia, das relações estudantis, acadêmicas, maternal, esportes, amizades. Quanto as imagens sonoras, provocadas pelas vozes de seus personagens, emitem denúncias como: angústia,  insegurança,  medo e a memória das violências sofridas: “Não consigo imaginar minha filha vivendo nesse lugar. E não consigo viver nesse lugar! Meu sonho é viver num mundo onde eu possa ser livre ... Livre para ir e vir, livre para viver, livre para ser!” (TRANS-VERSO, 2016).

O curta traz imagens de jovens almejam o direito de exercer a diferença, com respeito e dignidade, com a necessidade do reconhecimento de poder possuir uma família e exercício de ofícios. São imagens de momentos de lazer, de estudo, de bate papo sobre suas vidas, histórias e expectativas acerca do futuro, apostando na quebra de preconceitos como possibilidades de exercer a diferença.

O som do rock convida aos expectadores a conhecerem seus modos de vida, seus locais favoritos como praias, praças, parques, universidade; seus modos de vestir, falar, pensar, namorar. Ou seja: de ser e estar em suas escolhas cotidianas, já que conforme a frase conclusiva: “No final, é você quem atravessa a vida, atravessa a escola, atravessa a família... em rima, em prosa, em poesia e, em verso. Atravesse o verso. Transverse. Transverso!” (TRANS-VERSO, 2016). Em imagens, falas e sons, o curta convida ao espectador a atravessar preconceitos e compreender a diferença como natural.

Resultados e discussão

 

Apresentada as produções, é momento de seu desnudamento por dois olhares distintos(expressas pelo/as autores/as deste artigo) que numa perspectiva que se aproxima de um ensaio,  desvelarão interpretações e compreensões acerca de como a diferença é exibida nestes curtas-metragens.

Expressando lugares de fala, os títulos seguintes exibem análises respectivamente de autores/as que são inspirados pela fenomenologia e pela filosofia da diferença, o que justifica uma construção textual e análises que evocam elementos de tais escolas de pensamento. Contudo, ressaltamos que indicação de que se trata de uma perspectiva com aproximações de um ensaio possui o intuito de auto consentimento de maior liberdade teórica.

 

Um olhar sobre a diferença inspirado pela fenomenologia

 

Nossa proposta é o desvelamento de Sensações, Output! e (Trans)verso em seus prismas acerca da diferença, ilustrada pela pessoa dita “diferente” em suas interrelações e vivencias, num construto de histórias, aliadas aos aspectos técnicos compostos por fotografia e sonoplastia. Mas é preciso destacar o caráter pessoal de nossa análise, uma vez que, cada compreensão está ligada a “experiência de interioridade ligada a um corpo, do qual jamais se separa, numa existência que se desdobra por meio da faculdade perceptiva(ANDRADE, 2014, p.42)”.

Em termos da apresentação do indivíduo “diferente”, Sensações evidencia-o perpassado por sensações incompreensíveis/provocadoras para os olhares externos dos “ditos normais”, em que, realidade, vida e seu ato de viver é desafiante. Assim, não apresenta a diferença como possibilidade, mas pelo contrário, a sublinha e, em gesto afirmativo a pontua, contrariando as perspectivas cristalizadas em frases do tipo: ser diferente é normal, mas pelo contrário, apresenta que ser diferente é ser (diferente!). É viver corpos diferentes(MERLEAU-PONTY, 2011).

Destarte, o olhar sobre a diferença se dá a partir de quem: vê, ouve e enxerga. Por essa via, o observador vivencia sentimentos e sensações numa perspectiva não empática da realidade; que é completamente distinta a sua, estabelecendo assim, prováveis sentimentos de desconforto e/ou angústia em seu espectador. Desta forma, aqui se apresenta o que Merleau-Ponty evidencia como característica nômade da diferença, na qual, cada indivíduo experiencia a realidade dentro da unidimensionalidade de num corpo, mediado pela percepção(RAMOS, 2011). Em qual, o nomadismo se estabelece a partir da compreensão de que diversos corpos produzem entendimentos particulares na vivência na relação com outros corpos e o mundo.

Em termos de fotografia e sonoplastia, na alternância voraz entre suas imagens embaçadas, tela escura, nitidez, ou ainda, pela oscilação entre o silêncio, confortavelmente audível e áudio destacado (forte), apresentam permanente mutação e imprevisibilidade.

Diante da impossibilidade de ser o outro, Sensações pontua a diferença de maneira evidente e provocativa, na interrelação entre opostos expressos em som e imagem; numa relação nas  quais figuras de fundo instigam o desconforto perceptivo (MERLEAU-PONTY, 2011) num ziguezague de sensações, cujo sentido induz ao entendimento de que a compreensão, aceitação e convívio com a diferença deve ser alimentada pela atitude proativa da fuga dos locais de conforto.

Em Output! o próprio título manifesta em ponto de exclamação a intenção de  mensagem  centrada nos mecanismos de vazão às informações assimiladas audiovisualmente(inputs), numa reação corporal  (auto)protetiva.  Expressa em fala:

Eu não sei como é ser diferente disso, mas imagino que seja bem mais fácil para os outros[...] não me comporto assim por querer, eu faço para aliviar essa pressão dentro da minha cabeça...[..] porque eu absorvo tudo que é visual ou auditivo de uma vez só(OUTPUT!, 2016).

 

O vídeo desnuda indivíduo com espectro autista  dentro da compreensão dos autores acerca do que é ser/sendo alguém com este espectro, cuja realidade vivenciada é atravessada pela incompreensão, discriminação e exclusão ilustrada pelos personagens Ana e Gaby. Aqui os autores desvelam o espacializar, que “ consiste no modo como vivenciamos o espaço em nossa existência(FORGHIERI,1993 p.44)”.

A proposta é a de imersão dentro do universo particular e introspectivo de Richard, em que, para além dos aspectos limitadores comunicativos, desvela pensamentos, compreensão de mundo em falas impossíveis de serem pronunciadas por palavras ou gestos.

Output!  despe a mente da prisão corporal, numa viagem ao fundo do eu; em seu âmbito pessoal, cuja linguagem poética do protagonista, evidencia a percepção de si e do outro entrecortada pela crueza realista interrelacional que funciona como lâmina.

A produção enfoca o ser uma pessoa no espectro autista e indica sua interrelação com o indivíduo preconceituoso; do que não compreende e, que, em princípio, não deseja compreender. Desta forma, num duelo inflexível, se estabelece a luta entre diferença e normalidade com armas sectárias da intolerância que edifica muros ao invés de pontes.

A fotografia do curta, evidencia imagens da cidade, sala-de-aula, jardim e residências do mundo real, com vivências realistas, bem como, efeito de envelhecimento na tela (em tom sépia) para realçar momento de memórias afetivas (quando recebe a gaita). Nos aspectos sonoplásticos salienta linearidade ilustrada por trilha sonora suave e homogênea.

Por fim, na exposição do universo introspectivo do menino, estimula a necessidade da empatia (ROGERS, 1995) como movimento de compreensão da diferença. Assim, em Richard poderia se desvelar a possível fala não dita: eu sou o outro, aquele perto de você que precisa ser compreendido, mesmo com as limitações impostas pelo meu corpo.

 Na fala: Eu sei que sou diferente... (Trans)verso aborda a questão  da diferença nas vivências diárias de quatro jovens (homens trans), desvelando-os em seus atravessamentos do dia-a-dia. Com características de documentário, o vídeo se evidencia pelo caráter predominantemente descritivo/expositor.

Os protagonistas são apresentados em aspectos experienciais comuns a quaisquer outras pessoas, independente de cor, raça, credo ou outras características; Numa lógica de desconstrução a mitos interiorizados (no senso comum) quanto às questões relativas à sexualidade e/ou orientação sexual.

O desnudamento dos rapazes (no ato de viver e interagir no mundo) se dá com olhar externo, entretanto, no que se refere às vivências de preconceitos e/ou discriminações são evidenciadas em (auto)narrativas.

Quanto a fotografia e sonografia, apresenta linearidade em suas escolhas, optando por imagens claras em alta definição.

Com fotografia cinematográfica, evidencia visibilidade que delineia os quatro meninos, em que, o outro é plano de fundo, personagem sem fala, cuja função exclusiva é de destaque aos protagonistas. A trilha sonora, composta de instrumental de rock pesado(com compasso lento), evidencia acordes que retratam a seriedade em sua abordagem do tema.

Em termos de concepções e intenções (Trans)verso denota a diferença como fragmento (LUNARDI, 2004), expressão parcial, que não reflete o sujeito em sua totalidade. Neste sentido, retrata os indivíduos (trans)homem, antes de tudo,  como rapazes, cuja identificação de gênero, é apenas fração de composição com inúmeros outros aspectos constituintes.

Por fim, compreendemos que as três produções estabelecem relação objetiva em termos de abordagem da diferença expondo-a em cenas desnudantes que sublinham, relativizam, ou simplesmente a descrevem. Assim, suas questões não são colocadas debaixo do tapete, mas expostas com sensibilidade e ao mesmo tempo firmeza.

 

Um outro olhar sobre a diferença inspirado pela filosofia da diferença

 

Sensações, Output! e (Trans)verso provocam pensamentos que nos inquietam a conversar sobre a diferença, fazendo indagar: que concepção de diferença uma imagem cinematográfica pode assumir? Diferença carregada de clichês, mas também, de potência de vida. E, é dessa diferença, como aposta afirmativa de vida e de múltiplas existências, que os três curtas convidam a pensar.

Pensar a vida pelo viés da filosofia da diferença implica um exercício de força para que não nos deixemos enganar pelos jogos de oposições ou por um reducionismo à contradição que se colocam pela lógica excludente da representação. O filósofo Gilles Deleuze, em seu livro “Diferença e repetição”, afirma que a filosofia da diferença recusa a alternativa geral da representação infinita

“[…] ou o indeterminado, o indiferente, o indiferenciado, ou então uma diferença já determinada como negação, implicando e envolvendo o negativo (assim, recusa também alternativa particular: negativo de limitação ou negativo de oposição)” (DELEUZE, 2006, p.89).

Neste contexto, a partir da recusa de uma representação geral que nega a diferença aprisionando os diferentes modos de existências sobre a imagem de inferioridade, limitação ou de oposição, trazemos um olhar para os filmes de curta metragens Sensações, Output! e (Trans)verso com a aposta de que “[…] diferença é objeto de afirmação, ela própria é afirmação” (DELEUZE, 2006, p.89).

Assim, cabe-nos indagar: que concepção de diferença suas imagens cinematográfica podem assumir? Diferença enviesada por clichês, mas também, transmutada por potências de vida que não cabem na lógica da representação universal. E, é dessa diferença, como aposta afirmativa da singularidade da vida e das múltiplas existências, que os três curtas convidam a pensar.

O agenciamento promovido pelos três filmes de curta metragens se dispõe a colocar em xeque a tentativa de enquadramento e esquadrinhamento do sujeito à representatividade de “normalidade” e “heterossexualidade” da universalidade pretendida pela modernidade. Como Deleuze, os curtas deslizam entre fluxos existenciais outros, entre imagens de vida que resistem, mas que recusam um representante que diz: “[…] Todo mundo reconhece que ...”, mas há sempre uma singularidade não representada, que não reconhece, por que precisamente ela não é todo mundo ou não é o universal”.

 

É possível aprender com Henri Bergson (2006) que as imagens deslizam umas sobre as outras e, com as imagens dos curtas não poderia ser diferente, assim, movem o universo material e imaterial, ao buscar lembranças e ao atualizá-las em experiências e práticas de conhecimento e vida.

As imagens que se movimentam nos curtas trazem as marcas dos clichês sobre o diferente comumente rotulado de anormal, doido, gay e tantos outros estigmas, que mantém imobilismos e alienações , já que, no sentido de Deleuze (2006, p.88) “[…] a infelicidade de se falar não está em falar, mas em falar pelos outros ou representar alguma coisa”. Mas Sensações, Output! e (Trans)verso, deslocam também imagens de tempo que enseja manter-se intocável e potente pelo desejo de exercer a diferença, ou seja, “[…] a diferença é leve, aérea, afirmativa, Afirmar não é carregar, mas, ao contrário, descarregar, aliviar” (DELEUZE, p. 91).

 

Em conversa cinematográfica, buscam romper com pensamentos dogmáticos, endurecidos, autoritários e fascistas. A articulação entre os três filmes de curta metragem, remetem ao debate que se apoia na filosofia da diferença, expressos nos pensamentos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, vontade de potência, vontade de ser outro. De ser sempre outro e outro e …

A vontade de potência expressa no filme Sensações destaca o desaparecimento do corpo orgânico e individual, livre para as experimentações da diferença que dura e perdura no tempo (DELEUZE; GUATTARI, 2007). A alternância entre sons e imagens amplia os sentidos para ética e estética da existência que não é vivenciada por todos da mesma maneira.

Sons e silenciamentos, imagens ou telas opacas que dizem as possibilidades do sensível como intensas e capazes de ir além dos clichês que aprisionam entre as classificações de normais e anormais. A tentativa da fixação dos sujeitos em imagens clichês de a-normalidade, fulgura para Deleuze e Guattari (1995, p. 55)  como uma difícil tarefa de ruptura de pensamento, pois,

“[...]não é fácil conservar minha posição; na verdade é muito difícil mantê-la, por que este seres não param de se mexer, seus movimentos são imprevisíveis e não correspondem a qualquer ritmo. Às vezes eles giram, às vezes vão em direção ao norte, depois, bruscamente em direção ao leste e nenhum indivíduo que compõe a multidão permanece num mesmo lugar em relação aos outros”.

 

Assim,Sensações rompe com lugares estabelecidos para os modos de ser e estar no mundo, já ao dar pistas que “Não são mais as personagens que têm voz, são as vozes, ou melhor, os modos vocais do protagonista (murmúrios, respiração, gritos, arrotos…) que se tornam as únicas e verdadeiras personagens da cerimônia […]” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 229), e por que não acrescentar, são as pisadas no chão, o arrastar de lixeiras, com suas imagens óticas e sonoras, tão evidentes nas cenas do filme que produzem efeitos no exercício da diferença daqueles que não podem ver ou ouvir, mudando bruscamente de direção e sentido.

Efeitos e imagens que convidam à diferença… a voz off da imagem (aquela que apresentam sons que antecedem a imagem e já remete para o objeto, como o barulho de carros …disparam pensamentos): O que veem aqueles que não podem nos ouvir? O escutam aqueles que não podem ver?

Com a filosofia da diferença é possível colocar em questão a necessária e urgente inversão do olhar e do pensamento quanto às subjetivações e singularizações, visto que, Deleuze (2018) ajuda pensar que é preciso extrair da diferença o seu estado de maldição, possa sair de sua caverna e deixar de ser um monstro que tanto ameaça a sociedade.

 

Em Sensações que afloram o diferir em sua singularidade, atravessam os sentidos de vida pelo convite feito pelo cinema do corpo, já que “[…] o corpo é sonoro, tanto quanto visível. Todos os componentes da imagem reagrupam-se por sobre o corpo” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 232).

A câmera de Sensações capta o sinal da diferença, sua voz off, seu “[…] som off prefigura aquilo de onde provém, algo que logo será visto, ou que poderia ser visto na imagem seguinte”(DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 279). A fonte da diferença não é vista, não é o foco de suas imagens, mas convida a mudança e à duração das sensações que se exprimem no espaço. Convida os corpos a viverem tempo que dura e perdura, convoca seus sons e cores a se constituírem como outros modos possíveis de vida que faltam na composição espaço-temporal da sociedade.

Sensações traz aposta na diferença como expansão de vida que desliza entre outras e outras, uma diferença e mais outra, no sentido de Deleuze; Guattari (2007, p. 254): “Em vez de uma imagem depois da outra, há uma imagem mais outra”.

Em Output!, essa imagem da diferença parece estar desligada, mas continua intensamente pulsar, sentindo à flor da pele todas as sensações, as indiferenças, os medos, angustias, a incompreensão e inconformismo de toda uma sociedade que se quer apenas um, apenas uma norma, um normal. Output! provoca em uma fala: “Acho que foi ele que colocou o autismo em mim!(OUTPUT, 2016)”.  E vai incomodando o pensamento, a história e as experiências cotidianas de aprendizagens com a concepção da diferença como marca do exercício da vida no mundo, ressaltando perspectiva de indiferença que é criada e sustentada pela violência da padronização.

O curta remete à análise feita por Deleuze sobre a diferença e a repetição, como um círculo do eterno retorno, que busca em Nietzsche, capaz de desfazer o idêntico e o contraditório, o que leva o autor a afirmar que “A natureza é contingente, excessiva e mística, essencialmente … As coisas são estranhas … O universo é selvagem ...O mesmo só retorna para trazer o diferente” (DELEUZE, 2006, p. 95).

 

E, assim, em Output!, a violência da padronização é posta em xeque quando as vozes do personagem autista ousam a expressar: “Eu sou uma força ilimitada, constituída de outras menores” … (OUTPUT, 2016)  se entrelaçando com questão lançada por Deleuze e Guattari (1995): gostaria de ser um lobo? Questão, que em Mil Platôs, logo é respondida pelos autores (na perspectiva que a diferença que se exerce como matilha) ao apontarem que não se pode ser um lobo, mas sempre oito ou dez lobos, seis ou sete.

A diferença que Output! expressa é a que se compõe com outras, mesmo que aparentemente o autista não reaja como o esperado, outras forças estão movimentando seus pensamentos, provocando seus sentidos, e por isso, um autista ou qualquer outra pessoa, não é apenas um, mas uma composição de forças menores, que no sentido de Deleuze e Guattari (1995) se torna uma matilha de lobos, uma multiplicidade.

Output! traz os clichês da diferença, os estigmas, os jeitos e os trejeitos de diferença que é recusada e amaldiçoada pela lógica dominante da padronização da vida. Mas suas imagens apresentam as linhas de fuga da dureza de ser e estar sendo um mongol, retardado, maluco, idiota, diferente no mundo de iguais.

Ao apontar para o fato da diferença presente em seu corpo arder por dentro e por fora e de agir tanto ou mais que a mente (a prisão que a gente se encontra). Lembrando que Deleuze e Guattari (1995) argumentam que é essa força que constitui a multidão fervilhante, ao estarmos sempre na borda dessa multidão, “na periferia; mas pertenço a ela, a ela estou ligado por uma extremidade de meu corpo, uma mão ou um pé ”(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.55).

As imagens cinematográficas dos curtas convidam para a tarefa do exercício cotidiano da diferença, pois os personagens trazem em suas vozes, corpos e histórias, narrativas que não são sempre lineares, indicando, como em Output! ou no texto: Um só ou vários lobos, de Deleuze e Guattari, que não é fácil viver na multidão fervilhante que a diferença desloca, pois “não é fácil conservar minha posição; na verdade é muito difícil mantê-la, por que estes seres não param de se mexer, seus movimentos são imprevisíveis e não correspondem a qualquer ritmo(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.55). A filosofia da diferença agencia outros olhares e lançam Outupt! Para o desafio da tessitura de uma filosofia de vida do desfazimento, filosofia da multiplicidade e da desconstrução dos pré-conceitos.

O curta (Trans)verso apresenta a diferença pela concepção de outrem que atua como provocador para o modo dominante de pensamento ao anunciar: “meu corte de cabelo era diferente do que eu imaginava... meu corpo refletia curva onde deveria estar reto”(TRANS-VERSO, 2016). A diferença que se expande nas imagens de (Trans)verso traz clarão sobre “[…] um universo de objetos situados à margem de nossa atenção(DELEUZE; GUATTARI 2011, p. 315).

A diferença pode ser pensada como destaca Deleuze, como inexplicável e não há que se espantar com isto. Para o autor,

A diferença se explica, mas ela tende a anular-se no sistema em que se explica. Isto apenas significa que a diferença é essencialmente implicada, que o ser da diferença é a implicação. Para ela, explicar-se é anular-se, conjurar a desigualdade que a constitui. (DELEUZE, 2006, p. 321)

 

Portanto, as imagens capazes de desconcertar sem cessar, pois ao aparecer, outrem é capaz de iluminar outras imagens do pensamento, fazer aparecer outros objetos e signos de aprendizagem até então ocultos no campo de percepção. Fazem aparecer a diferença em si. O que (Trans)verso porta como potência para pensar sobre diferença é o sentido do outro como mundo de possibilidades, como ensina Silvio Gallo (2012, p.177): “[…] o outro é a própria condição da vida e da convivência”.

É nesse movimento que os três filmes podem ser vistos e lidos em qualquer posição. Fazem parte de composição que não é linear. Por isso, o cinema é considerado modo de pensamento; por ser capaz de inquietar e atravessar o corpo deslocando os sentidos e os significados da diferença para o que é ser (Trans)verso. Ou seja: para o que permite versar e trans(versalizar) a vida. Escrever outros caminhos possíveis em processos contínuos de reformas, os quais o ser eu é atravessado por vários outros, mas não determinado ou fixado por eles, como apontado num fragmento de narrativa do curta em que personagem destaca que em suas histórias e lembranças de infância era o príncipe, o vilão e o marido das bonecas que ganhava.

Nesse emaranhado de imagens, as concepções de diferença latentes em Sensações, Output! e (Trans)verso são as que evocam processos de composição, de multiplicidade e não de falta ou inferioridade, pois a ausência do outro traz a imagem da ausência de si próprio. Falar e vivenciar a diferença é duplo movimento, se constituir e ser constituído pelo outro/com o outro, pois como ensina Deleuze (2011, p. 329): “O mundo do perverso é um mundo sem outrem, logo, um mundo sem possível”. Em contraposição, as imagens dos curtas lançam possibilidades, trazem, como Deleuze (2006) o eterno retorno do Outro que aparece como potência própria da diferença, capaz da afirmar a dessemelhança e o díspar, o acaso, o múltiplo e o devir.

Considerações finais

 

Em gesto de conclusão deste artigo três palavras surgem à tona, desvelando possibilidades de compreensão da diferença nos curtas metragens: desconforto, que em Sensações se personifica na exacerbação do sonoro e visual como produtor do sentimento de incômodo, delineando o quão é incompreensível ser o outro, o distinto de si.

Empatia, que em Output! na apresentação do universo particular do jovem com espectro autista oferta ao expectador sua compreensão pelo viés imersivo. E fragmento, que em (Trans)verso indica a diferença em aspecto relativizador de fração, dentre tantas outras que compõe o indivíduo.

As imagens apresentadas nos curtas metragem deslocam, movem o pensamento a se incomodar com os sentidos e expressões da diferença que a teimosa e excludente lógica dominante traz sobre o ‘outro que difere de mim’. O outro que é invisibilizado na sua existência, é negado e desconfigurado enquanto ser em si e no mundo.

Os estudos de Gilles Deleuze questionam a fixação de verdades e de identidades impostas ao outro. Neste sentido, realizam aposta na expansão da vida pelo intermédio das múltiplas linguagens, afetos e conhecimentos que tecemos nos encontros com o outro, ou seja: com a diferença. Assim, as imagens dos curtas e os estudos de Deleuze (2007; 2011) vão potencializando a produção de múltiplos sentidos e de expressões para o desvelamento da diferença como potência de vida.

Ao questionar se o cinema nos dá a ilusão do mundo, o pensador abre o campo de experimentações e de afecções para o encontro com o outro do pensamento, para vislumbrar outras imagens, outros modos de ser e estar no mundo, novas relações, conflitos, olhares e sensações sobre a existência e sobre a produção de conhecimentos possíveis de se atualizar por intermédio das imagens cinematográficas com estudantes de graduação.

As imagens dos filmes indicam que o cinema nos restitui a crença no mundo com o outro, que o diferente de mim, me habita, compõe e movimenta meu pensamento, pois como ensina Deleuze e Guattari (2011, p. 329): “O mundo do perverso é um mundo sem outrem, logo, um mundo sem possível”.

Ainda que, por caminhos distintos, concluímos que o papel destes artistas do cotidiano foi deflagrador de outros movimentos, não testemunhados por estes autores, mas provavelmente impactantes e reconstrutores, nascidos do/no movimento de compreensão da diferença. 

E neste momento com o distinto, não abrem mão de suas individualidades, das experiências, dos afetos, num ato de produção de saberes que, de forma deliberada (ou não), se expressam nos fazeres que, pela via condutora artística, são partilhados aos olhos que queiram enxergá-los.

São elos de visão do mundo que transformam arte e ciência como complementares, trazendo a segunda aspecto digerível, flexível e prazeroso(NIETZSCHE,1992). Arte, sobre este viés, é meio e diálogo, não veredicto. Desta forma, criadora/ produtora, não acessória.

Por último, a análise/compreensão dos curtas metragens evidenciam possibilidades que tornam singulares a compreensão dos dizeres do/a outro/a como ser-no-mundo (HEIDEGGER, 1995). Tratam-se dos olhares acerca do olhar, do movimento que almeja a apreensão dos sentidos desvelados numa ponte entre o eu e o tu.

 

Referências

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BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia fenomenológica: fundamentos, método e pesquisas. São Paulo: pioneira, 1993.

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HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.

LUNARDI, Márcia Lise. Pedagogia da diversidade: normalizar o outro e familiarizar o estranho.  In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED: SOCIEDADE E EDUCAÇÃO, 27, 2004, Caxambu. Anais da 27ª Reunião Anual da Anped. Caxambu: Anped, 2004. p. 1-15.

MERLEAU PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

RAMOS, Silvana de Souza. Deleuze, Merleau-Ponty e os desafios da diferença. Dois pontos, Curitiba, v. 8, n. 2, out.2011. Disponível em:http://dx.doi.org/10.5380/dp.v8i2.21930. Acesso em: 7 jun. 2023.

 

ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

OUTPUT. Direção: Stefano Pinto Rogério et al. In.: 2ª Mostra de curtas metragens do Centro de educação/Ufes. 2016. Produção: Stefano Pinto Rogério. Vitória: Centro de educação/UFES, 2016.  1 DVD, v.1 (18min 52seg), AVI, color.

SENSAÇÕES. Direção: Bárbara Horrana Santos Euzébio et al. In.: 2ª Mostra de curtas metragens do Centro de educação/Ufes. 2016. Produção: Bárbara Horrana Santos Euzébio et al. Vitória: Centro de educação/UFES, 2016.  1 DVD, v.1 (6min 34seg), AVI, color.

(TRANS)VERSO. Direção: Danillo Rocha e Nina Rocha. In.: 2ª Mostra de curtas metragens do Centro de educação/Ufes. 2016. Produção: Nina Rocha. Vitória: Centro de educação/UFES, 2016.  1 DVD, v.1 (6min 34seg), AVI, color.



[i] Primeiro autor do artigo.

[ii] Pelos autores do artigo.

[iii] Visualizadas na tela do computador.

 

 

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