Serviço social e território: articulação de conteúdos para uma formação integral
Social work and territory: articulation of content for comprehensive training
Servicio social y territorio: articulación de contenidos para la formación integral
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil
alexandre.arbia@ufjf.br
Recebido em 23 de novembro de 2021
Aprovado em 10 de novembro de 2022
Publicado em 31 de agosto de 2023
RESUMO
Este artigo tem por objetivo resgatar a importância da incorporação categorial do território na formação em serviço social, a partir de uma dupla determinação: por sua importância em relação à formação técnica e por sua exigência em relação à formação humana, pilares de uma formação integral, em alinhamento ao projeto ético-político profissional. Para tanto, investiga os fundamentos que consolidam uma redução da educação à formação meramente técnica, problematiza o lugar da universidade nesse processo, passa em rápida revista algumas das tentativas de investigar e incorporar a teorização sobre a produção do espaço nas elaborações do serviço social e finaliza comentando sumariamente a respeito da transversalidade que o território adquire no âmbito da intervenção profissional.
Palavras-chave: Território; formação profissional em serviço social; educação; serviço social; políticas sociais.
ABSTRACT
This article aims to rescue the importance of categorial incorporation of the territory in training in social work, based on a double determination: for its importance in relation to technical training and for its importance in relation to human training, pillars of integral training, in alignment with the professional ethical-political project. To this end, it investigates the foundations that consolidate a reduction in education on merely technical training, problematizes the place of the university in this process, briefly reviews some of the attempts to investigate and incorporate theories about the production of space in the elaborations of social work and concludes commenting briefly on the transversality that the territory acquires in the scope of professional intervention.
Keywords: Territory; training in social work; education; social work; social policy.
RESUMEN
Este artículo pretende rescatar la importancia de la incorporación categorial del territorio en la formación en trabajo social, a partir de una doble determinación: por su importancia en relación a la formación técnica y por su exigencia en relación a la formación humana, pilares de una formación integral, en linealidad con el proyecto ético-político profesional. Para ello, investiga los fundamentos que consolidan una reducción de la educación a una formación meramente técnica, problematiza el lugar de la Universidad en este proceso, revisa brevemente algunos de los intentos de investigar e incorporar teorizaciones sobre la producción del espacio en las elaboraciones teóricas del trabajo social. Finaliza comentando brevemente la transversalidad que adquiere el territorio en el ámbito de la intervención profesional.
Palabras clave: Territorio; formación profesional en trabajo social; educación; trabajo social; política social.
Introdução
Paradoxalmente, os estudos sobre a construção do espaço pelo capital têm um impacto relativamente menor, no serviço social, quando comparados à importância que o problema adquire na realidade mesma. Pretendo, com este artigo, lembrar que a incorporação da dimensão territorial na formação profissional se inscreve por um duplo viés: pelas exigências da formação integral, no que diz respeito à apropriação intelectiva de um elemento da própria realidade objetiva; e, no plano da formação técnica, na incorporação teórico-metodológica de uma categoria que se impõem, sem possibilidade de exclusão, no âmbito da intervenção profissional.
Revisarei a seguir, sumariamente, os fundamentos que exigem da profissão uma formação humana, em oposição à uma formação meramente técnica, a partir dos compromissos ético-políticos historicamente assumidos, para alcançar a problematização de como a questão da construção social do espaço se interpõe à atuação profissional nos distintos espaços sócio-ocupacionais. A conclusão é de que, em qualquer dos casos, a questão do território[1] não pode ser ignorada na arquitetura de saberes e competências que compõem o patrimônio teórico-metodológico do serviço social.
1) Entre a formação técnica e a formação humana
Assim como os homens são os únicos seres que trabalham, são também os únicos que educam (SAVIANI, 2007, p. 152). As origens da capacidade humana de apreender e transmitir o conhecimento estão ligadas ao modo como intercambiam com a natureza, criando suas próprias formas de vida. No ato do trabalho, como modelo de toda a práxis, forma originária do ser social (LUKÁCS, 2013), estão inscritas in nuce algumas das determinações, em modo mais elementar, que irão compor o conjunto de atos humanos.
É um equívoco reduzir toda a atividade humana ao trabalho – e Lukács mesmo não procede desta maneira. Como resgatou acertadamente Márkus (1973), elementos como a capacidade de pensamento abstrato, linguagem, socialidade e liberdade – categorias que se apresentam já no trabalho – marcam, desde sua gênese, o conjunto de atividades humanas. Mais precisamente, a capacidade de espelhar idealmente o mundo, classificar os meios, estabelecer valores, antecipar idealmente os resultados – como momentos do pôr teleológico – e ainda de coordenar ações coletivas para alcançar o fim comum, comunicar, pela linguagem, as elaborações ideais de cada indivíduo para os demais, partilhando socialmente o ato teleológico individual, pressupõem a natureza social da atividade humana, donde a necessidade vital de transmitir o já sabido.
A divisão social do trabalho, mas, especialmente, a divisão dos homens em classes sociais distintas, possibilitou a primeira separação entre trabalho e educação. Conforme Saviani (2007, p. 155):
Introduz-se, assim, uma cisão na unidade da educação, antes identificada plenamente com o próprio processo de trabalho. A partir do escravismo antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho.
No plano da divisão social do trabalho, em uma sociedade de classes, o aprendizado das atividades essenciais à formação humana se separa das demais práticas sociais. Parte da sociedade arroga para si as atividades que dizem respeito, mais diretamente, aos processos de “humanização do homem”, relegando a outra parte a concentração praticamente exclusiva nos procedimentos funcionais, que dizem respeito às simples condições de produção social. É neste espírito que, segundo Saviani (2007), surge a escola.
A educação institucional, portanto, tem origem neste processo de alienação das capacidades humanas, manifestando-se, ainda que por variações objetivas, como “separação” posta pela divisão da sociedade em classes e por uma divisão social (e técnica) do trabalho que cinde a atividade vital de produção e reprodução da vida dos complexos que possibilitam a “humanização do homem”.
Na ordem do capital, a questão adquire ainda um elemento adicional:
A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas (MÉSZÁROS, 2012, p. 35).
Vemos, assim, que “a educação tem duas funções principais numa sociedade capitalista: (1) a produção das qualificações necessárias ao funcionamento da economia, e (2) a formação dos quadros e a elaboração dos métodos de controle político” (MÉSZÁROS, 2006, p. 275 – itálicos do original). A primeira, vinculada mais diretamente à reprodução econômica, focaliza o plano da contínua inserção dos indivíduos no processo da divisão técnica do trabalho; já a segunda, privilegiando a reprodução ideológica, centra-se no plano da contínua reprodução das camadas sociais que produzem e dinamizam os sentidos de consenso, para os indivíduos, sobre as relações de produção e reprodução social.
A educação institucionalizada na ordem do capital, sua estruturação como esfera separada da vida cotidiana, expressa os objetivos societários deste metabolismo social particular de reproduzir objetivamente uma parte substantiva dos indivíduos sociais como simples mercadoria força de trabalho. Nesta ordem, como observa Marx (2006, p. 306-7):
o trabalhador, durante toda sua existência, nada mais é do que força de trabalho, que todo o seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital. Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical, mesmo no país dos santificadores do domingo. Mas, em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho. [...] A produção capitalista, que essencialmente é produção de mais-valor [...] ocasiona o esgotamento prematuro e a morte da própria força de trabalho. Aumenta o tempo de produção do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida.
Reproduz, portanto, a força de trabalho como simples instrumento do capital, ou seja, na exata medida de seu emprego na estrutura produtiva (e reprodutiva) social. Não há espaço para o cultivo do saber, para a apropriação mais ampla das objetivações culturais como herança genérica ou para o aprimoramento espiritual como etapa da humanização dos indivíduos. Todo o esforço concentra-se na instrumentalização do conhecimento que se reduz ao aspecto meramente técnico, como transmissão pragmática do conjunto de saberes necessários à inserção em um dado espaço sócio-ocupacional específico, contribuindo assim para a produção (e reprodução) social do capital e, adicionalmente, para a internalização dos valores que procuram estruturar um sentido subjetivo de aceitação “racional” dessa forma de vida (capitalista), sua naturalização como justificação para a subjugação política.
2) Dilemas educacionais em um país de capitalismo hipertardio[2]
No que diz respeito à nossa análise, temos de observar como o mais geral se desenvolve em um país, cujo processo de formação capitalista se deu, historicamente, marcado pela heterodeterminação externa, sem rupturas violentas com o sistema de relações sociais pretérito. País onde a classe burguesa formou-se por transmutações e acordos com antigas elites agrárias dominantes e cujo capital industrial floresceu a partir de uma base agrário-exportadora. Em suma, um país que encontrou sua via para a entificação do capital pela via colonial (CHASIN, 1999), onde o nascimento do historicamente novo ficou determinado pela constante permanência do atraso, e pagando alto tributo a este último.
Processos de trabalho marcados, desde sua gênese, por uma baixa composição orgânica e apoiados em trabalho extensivo, processos de industrialização conduzidos aos saltos, que tomam permanentemente a forma de “milagres” econômicos; fragilidade democrática que se traduz na forma de bonapartismos ou autocracias abertas, como expressões políticas do realinhamento da economia brasileira com as sucessivas fases da divisão internacional do trabalho, determinadas pela evolução internacional do capital imperialista; compressão das rendas do trabalho, desvalorização e destruição da força de trabalho nacional, tomada a partir da única perspectiva de fonte de valor e, neste sentido, como sustentáculo praticamente exclusivo da produção social. Acumulação de capital heterodeterminada e, em sua vertente hegemônica, antinacional, o que marcou o processo de acumulação interna, debilitando o volume e a velocidade da expansão do capital.
A permanência das antigas classes dominantes, transmutadas na nova burguesia, deixou marcas decisivas no modo como esta última manifesta sua concepção de mundo e põe em movimento as relações sociais. Como observou Coutinho (1967, p. 142):
No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes, a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões humanistas e de tentativas – mesmo que utópicas – de realizar na prática o “cidadão” e a comunidade democrática. [...] Aqui, a burguesia se ligou às antigas classes dominantes, operou no interior da economia retrógrada e fragmentada. Quando as transformações políticas se tornavam necessárias, elas eram feitas “pelo alto”, através de conciliações e concessões mútuas, sem que o povo participasse das decisões e impusesse organicamente sua vontade coletiva. Em suma, o capitalismo brasileiro, ao invés de promover uma transformação social revolucionária – o que implicaria, pelo menos momentaneamente, a criação de um “grande mundo” democrático – contribuiu, em muitos casos, para acentuar o isolamento e a solidão, a restrição dos homens ao pequeno mundo de uma mesquinha vida privada.
Isso se refletiu, evidentemente, nas universidades. Como espaço de preservação da cultura tradicional, desde suas origens, apareceu antagonizada à realidade das massas trabalhadoras brasileiras, como um distante e excludente “mundo da excelência”, destinados aos versados em uma “alta” cultura, histórica e socialmente inacessível. Em resumo, espaço cuja apropriação sempre esteve liminarmente negada aos “de baixo”, para empregarmos uma terminologia cara a Florestan Fernandes. E é interessante observar que mesmo seu processo de “democratização” (em melhores termos de Iamamoto [2010]: “massificação”), nos últimos anos, não conseguiu eliminar decisivamente este ethos, como se observa nas tentativas de orientar a educação superior para o simples enfoque da reprodução técnica (e ideológica) da força de trabalho.
Do ponto de vista da formação técnica, como simples preparação para a inserção no mercado de trabalho (para a alocação, sem mais, da força de trabalho na divisão social e técnica do trabalho da ordem burguesa), o caminho brasileiro para o capitalismo cobrou um preço alto. Não apenas pelo fato de partirmos de uma base de trabalho de tipo escravista – onde a massa substantiva de trabalho estava completamente apartada das condições de reprodução intelectual e era vista como simples meio de produção, para o qual até mesmo a alfabetização seria algo dispendioso e “desnecessário”, o que viria a gerar, nos futuros processos de desenvolvimento do capitalismo urbano, uma enorme quantidade de força de trabalho de baixa qualificação, confrontado com um sistema nacional de ensino extremamente incipiente e inepto para responder à demanda de qualificação mínima –, como ainda a inserção industrial realiza-se sempre na retaguarda do desenvolvimento internacional da base técnica, ou seja, das indústrias às pequenas oficinas de produção de bens de consumo não duráveis (cf. OLIVEIRA, 2011), toda a inserção laboral gira, na média, em torno do trabalho extensivo de baixa qualificação. Assim, a consolidação da atividade urbano-industrial se inicia pela negação da reforma agrária (forçando os antigos escravos, agora trabalhadores livres, enquanto mão de obra voltada para o trabalho rural, a migrarem para os centros urbanos sem qualquer qualificação para o trabalho manufatureiro e/ou industrial) e pela distribuição do trabalho citadino entre as atividades de composição orgânica mais elevada (industriais), mas de baixa qualificação, e as de tipo artesanal (produção de bens de consumo não duráveis – roupas, sapatos, artigos de couro, prestações de serviços etc.), de baixa composição orgânica e ainda baixíssima qualificação formal.
Não há razões para pensarmos na reversão deste dilema, pelo menos até o fim dos anos 1970, justamente pelas características do desenvolvimento industrial brasileiro: permanentemente a reboque das alterações na divisão internacional do trabalho, condenado, pela menor densidade de seu processo de acumulação em relação aos países imperialistas, a incorporar tecnologias em obsolescência ou parques industriais de montagem (salvo raríssimas exceções de produção de ponta); sem o potencial de desenvolvimento sistemático de matrizes, a expansão tecnológica brasileira toma um caráter errático e a educação que se volta para a consolidação de uma base técnica avançada mantém seu acesso restrito a pequenos grupos, dentro da massa mais ampla de força de trabalho brasileira.
Do ponto de vista da formação cultural, a apropriação dos bens culturais historicamente produzidos pelo gênero humano não fugiu à regra. O bacharelismo, no século XIX, expressa ideais de formação de recursos humanos específicos, de círculo restrito, não apenas para a alimentação das carreiras jurídicas, como também para a formação de uma elite intelectual política e administrativa capaz de manter a direção do Império. Destacam-se os membros de uma elite branca, culta, internacionalizada, saída das universidades, de uma massa “inculta”, “grosseira”, “desumanizada”, composta majoritariamente de negros, cuja aptidão estaria não na direção da sociedade, mas na execução do trabalho manual.
Tomando por pressupostas inúmeras questões (aqui ignoradas por questão de espaço), não há como contornar que a negação hodierna de importância às “humanidades”, tomadas por conhecimento supérfluo, exemplifica não apenas a obnubilação do passado como forma de dominar o presente, retroalimentando o apartheid que afasta as camadas trabalhadoras dos bens culturais produzidos pela humanidade, como também uma luta pelo monopólio de propriedade da herança cultural e pela administração de sua distribuição. A desconexão do indivíduo da herança cultural genérica não tem outro objetivo que não produzir atomização e isolamento, potenciando os mecanismos contemporâneos de controle cultural e político. Logo, “o lugar do trabalho não é a universidade” – este não é seu “espaço natural”; se lá está, não deve apropriar-se dos conteúdos legados pelo gênero, mas apenas da dimensão minimamente técnica que lhe permita – de acordo com seu “lugar” na estrutura social – aplicar conhecimentos específicos e mínimos em sua tarefa de produção e reprodução social – a territorialização aqui é, portanto, objetiva e simbólica.
3) Educação, formação profissional e segregação espacial
Essas formas de exclusão se manifestam diretamente no espaço. A universidade, mesmo quando integrada à malha urbana – o que poderia ensejar uma facilitação da circulação – pode, pela estruturação das relações sociais, aparecer como território estranho e inapropriado, lugar do não e, desta forma, para as massas trabalhadoras periféricas, um não-lugar, reforçando a segregação espacial (HARVEY, 2004).
A definição originária do lugar desta massa de força de trabalho na cidade foi bem sintetizada por Stedile (2011, p. 24):
Com a libertação dos trabalhadores escravizados – oficializada pela Lei Áurea, de 1888 – e, ao mesmo tempo, com o impedimento de os mesmos se transformarem em camponeses [pela Lei de Terras de 1850 – acréscimo meu], quase dois milhões de adultos ex-escravos saem das fazendas, das senzalas, abandonando o trabalho agrícola, e se dirigem para as cidades, em busca de alguma alternativa de sobrevivência, agora vendendo “livremente” sua força de trabalho. Como ex-escravos, pobres, literalmente despossuídos de qualquer bem, resta-lhes a única alternativa de buscar sobrevivência nas cidades portuárias, onde pelo menos havia trabalho que exigia apenas força física: carregar e descarregar navios. E, pela mesma lei de terras, eles foram impedidos de se apossar de terrenos e, assim, de construir suas moradias: os melhores terrenos nas cidades já eram propriedade privada dos capitalistas, dos comerciantes etc. Esses trabalhadores negros foram, então, à busca do resto, dos piores terrenos, nas regiões íngremes, nos morros, ou nos manguezais, que não interessavam aos capitalistas. Assim, tiveram início as favelas. A lei de terras é também a “mãe” das favelas nas cidades brasileiras.
São estes os indivíduos, no geral e guardadas as novas determinações postas pelo devir social e histórico, que veem permanentemente sua apropriação do espaço da universidade, sua luta pelo direito a cidade (LEFEBVRE, 2001), questionado. Na teia das relações – seja pelo ataque virulento ao sistema de cotas, pelos ataques cotidianos às condições de classe, raça/etnia, gênero e orientação sexual, pelas dificuldades objetivas de transitar entre seus locais de moradia, de trabalho e a universidade, pela pequena oferta de cursos noturnos, pelo recrudescimento das políticas de apoio estudantil dentre outras –, distintos fatores contribuem para fazer da universidade um espaço de negação: elementos objetivos que confrontam estes sujeitos como estranhamento, como proibição de suas possibilidades de apropriação e fruição da universidade como espaço vivido (LEFEBVRE, 2001).
Desde o marco de 1979 (ou mais precisamente, a partir dos anos 1980 – cf. IAMAMOTO, 2010, p. 212), o serviço social brasileiro – não como corpo profissional homogêneo, mas pela explicitação de um entendimento hegemônico – deixou clara sua opção ética e política pelos valores democráticos e progressistas e pelo pluralismo, abraçando a perspectiva do trabalho no confronto entre as classes. Vários são os fatores que levaram a esta conformação: eles remontam desde os primeiros movimentos da reconceituação latino-americana, na década de 1960, cuja “ruptura com o serviço social tradicional se inscreve na dinâmica de rompimento das amarras imperialistas, de luta pela libertação nacional e de transformações da estrutura capitalista excludente, concentradora, exploradora” (Faleiros apud NETTO, 2009, p. 146) até a apropriação mais efetiva e robusta do referencial marxiano, o que possibilitou ao serviço social (brasileiro) uma interpretação mais fidedigna de sua inserção na reprodução social, sobretudo de seu lugar na estrutura das classes.
Na renovação (NETTO, 2009, p. 131) do serviço social brasileiro, destaca-se a interpretação da profissão nos quadros do trabalho assalariado, fato que “impregna o trabalho profissional de dilemas da alienação e de determinações sociais que afetam a coletividade dos trabalhadores, ainda que se expressem de modo particular no âmbito desse trabalho qualificado e complexo” (IAMAMOTO, 2010, p. 215). Compreendido como vendedor de sua força de trabalho e submetido às condições gerais (mas também específicas) de alienação, os/as assistentes sociais são localizados, no âmbito da divisão social e técnica do trabalho, como parte do trabalhador coletivo, realizando trabalho improdutivo indispensável à reprodução da força de trabalho, ao atuarem no enfrentamento das expressões da questão social. Trata-se, para Iamamoto (2010), de uma inserção contraditória e permeada de tensões que pressionam o assistente social a atender as demandas de seu empregador e, por outro lado, a dar respostas efetivas às demandas postas pela população usuária. Não é necessário maiores delongas sobre esse entendimento. De um modo geral, as interpretações produzidas a partir do referencial marxiano e marxista possibilitaram ao serviço social esclarecer, de modo mais consistente, o seu lugar na estrutura de classes.
No âmbito propriamente formativo, além das dificuldades já abordadas em relação ao enfrentamento do esvaziamento tecnicista, a profissão passa a lidar, a partir dos anos 1990, com os dilemas postos pela nova investida liberalizante do capital, dinamizada pelo capital financeiro mundializado, que passa a ver no sistema educacional um espaço de produção de lucros e valorização de ativos. Tal perspectiva alimenta sentimentos contraditórios em relação à universidade pública: enquanto possibilidade, elas podem fornecer material humano e estruturas consolidados a serem absorvidos pelos grandes conglomerados financeiro-educacionais; e enquanto entrave, a permanência de seu caráter público em sentido amplo reduz a margem para expansão das universidades privadas.
Este fenômeno recrudesce o espaço universitário como espaço de exclusão. Cite-se como exemplo o isolamento produzido pelas graduações à distância, que, orientadas pela lógica do lucro, negam a fruição do espaço universitário, a circulação pelos campi, as formas estudantis de socialização etc., com toda a heterogeneidade que a particulariza, corroborando assim o sequestro deste espaço enquanto lugar das camadas trabalhadoras; ou ainda a simples redução da vida universitária ao ensino, comprometendo a formação integral pela negação da experimentação da vida acadêmica em todas as suas três dimensões (ensino-pesquisa-extensão).
Por outro lado, o que se pretende colocar no lugar é a “subordinação [plena] da educação à acumulação do capital” (IAMAMOTO, 2010, p. 436), com nefastas consequências:
Compromete a qualidade do ensino superior e sua função pública, gera o desfinanciamento do esnino público superior, desvaloriza e desqualifica a docência universitária ante as cumulativas perdas salariais e elimina a pesquisa e a extensão das funções precípuas da universidade. [...]. O ensino universitário tende a ser reduzido “ao treinamento, à transmissão de conhecimentos e ao adestramento que marcam o ensino pasteurizado, fragmentado e parcializado” [...]. A pesquisa tende a deslocar-se exclusivamente para a pós-graduação, predominantemente situada nas universidades públicas. [...] Compromete-se assim, no ensino graduado, a formação de quadros acadêmicos e profissionais dotados de competência crítica e compromisso público com os impasses do desenvolvimento da sociedade nacional em suas implicações para a maioria dos trabalhadores brasileiros (IAMAMOTO, 2010, p. 436-7).
A subordinação do ensino à lógica mercantil, por sua ligeireza e despreocupação com a qualidade – ou seja, desprendimento de todos os elementos que não façam da mercadoria um valor-de-uso rapidamente identificável e facilmente intercambiável – compromete a própria capacidade de construir, teórica e metodologicamente, leituras críticas da realidade, tornando ainda mais difícil a intervenção profissional e enfraquecendo, no conjunto, as dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa.
Por derradeiro, cabe lembrar que as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Serviço Social[3] (BRASIL, 2002) apontam para uma formação técnica e humanacrítica e qualificada, capaz de fornecer instrumentos mínimos para que o/a assistente social consiga atuar adequadamente nos distintos espaços sócio-ocupacionais. Posso inferir que esses princípios estão em pleno acordo com o ideal mais amplo de universidade pública brasileira como o lugar da convergência entre a formação técnica e a formação humana, conforme pensou Anísio Teixeira (2010, p. 33-4):
A função da universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata, somente, de difundir conhecimentos. O livro também os difunde. Não se trata, somente, de conservar a experiência humana. O livro também as conserva. Não se trata, somente, de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas que as universidades.
Trata-se de manter uma atmosfera de saber para se preparar o homem que o serve e o desenvolve. Trata-se de conservar o saber vivo e não morto, nos livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva.
Trata-se de difundir a cultura humana, mas de fazê-lo com inspiração, enriquecendo e vitalizando o saber do passado com a sedução, atração e o ímpeto do presente.
O saber não é um objeto que se recebe das gerações que se foram; para nossa geração, o saber é uma atitude do espírito que se forma lentamente ao contato dos que sabem.
[...] A casa onde se acolhe toda a nossa sede de saber e toda a nossa sede de melhorar é a universidade (TEIXEIRA, 2010, p. 33-4).
As colocações de Teixeira abrem espaço para reivindicação de uma universidade antiexcludente e antielitista. A universidade, longe de reproduzir as hierarquias sociais, deve produzir a “reunião” “entre os que sabem e os que desejam aprender”, tornar-se um lugar do “cultivo da imaginação” como “capacidade de dar significado e sentido às coisas”.
Isso, todavia, não deve produzir ilusões. Cf. Mészáros (2012, p. 45),
Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo mera tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação formal a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no âmbito educacional, as soluções não podem ser formais; elas devem ser essenciais. Em outras palavras, elas devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida (itálicos do original).
Ou seja, subsiste uma ineliminável dimensão reprodutiva das relações sociais da ordem do capital nas estruturas de seu sistema educacional formal – algo que não pode ser extinto por simples convicção de que a simples vontade dará cabo de tendências arraigadas na própria institucionalidade educacional. Estamos frente a uma institucionalidade cuja função é reproduzir institucionalmente a alienação, a ideologia de dominação política e a parcialização dos indivíduos, preparando-os para sua inserção no mercado enquanto mercadoria “força de trabalho” dotada de maior quantidade de valor.
Mesmo que de uma perspectiva meramente técnica, resgatar o enfoque da atuação profissional dos/das assistentes sociais nos territórios, levando-se em conta sua inserção em políticas sociais territorializadas ou que se expressam em íntima conexão com a dimensão do território é um aspecto que deve ser cuidadosamente enfocado. Mas, de um ponto de vista mais amplo, da perspectiva da formação integral e da luta pelo direito à cidade, a segregação espacial, que “sinaliza as diferenças sociais, [...], revela a desigualdade entre aqueles que têm direito à cidade, aos benefícios que ela disponibiliza, dos que não têm” (CASSAB; REIS, 2009, p. 148), pode ser confrontada por ações formativas que mirem a integralidade das atividades e objetivações humanas, opondo-se conscientemente à fragmentação e à parcialização impostas tanto pela decadência ideológica burguesa quanto pela fragmentação do espaço. Para alcançar a perspectiva de Teixeira (2010), a universidade não tem outro caminho que não seja extravasar seus muros, criando pontos de conexão entre centro e periferia, fluxos de circulação e espaços de convivência onde a única medida reconhecível seja a “reunião entre os que sabem e os que desejam aprender”, reformulando, assim, as práticas espaciais.
4) O território como conteúdo integrado à formação profissional em serviço social
Tentarei chamar atenção, a partir daqui, para o modo como o exercício profissional é diretamente inflexionado pela inserção no território.
Convém lembrar de início que a formação profissional de assistentes sociais, compreendida no interior institucionalidade da política pública de educação, não escapa ao confronto entre a lógica privatista e a perspectiva universalista que tem tensionado as políticas públicas no Brasil. E como sistematicamente têm chamado atenção diversos/as estudiosos/as do tema, a herança que nos tem sido legada é o rebaixamento médio na qualidade da formação profissional, dada a hegemonia política da perspectiva privatista. Os efeitos deste rebaixamento podem ser visto em pontos sensíveis, como no “aligeiramento” da formação profissional, na formação por manuais, no esvaziamento do debate crítico, na tecnificação como focalização da formação, na extinção das dimensões de pesquisa e extensão e na focalização da dimensão do ensino e, finalmente, na precarização do trabalho docente. Iamamoto aponta para um fenômeno de “massificação” do ensino superior que, antes de conduzir-se por ideais “democráticos”, expressa na verdade a conversão da própria educação em mercadoria (IAMAMOTO, 2010, p. 432 ss.). A formação aligeirada e massificada, que não provê o/a graduando/a dos instrumentais teórico-metodológicos adequados a uma leitura crítica da realidade, reforça, no plano da intervenção, a atuação conservadora, que pautada pela simples fenomenalidade, culmina, muitas das vezes, em uma atuação baseada no mais ordinário senso comum.
De todo modo, chamo atenção ainda para uma dificuldade adicional transversal – a recortar das instituições públicas às privadas de ensino do serviço social –, a produção (e, mais do que isso, a incorporação da produção) sobre território permanece relativamente reduzida, comparada a outras problemáticas tratadas pela profissão. O que não significa a inexistência de esforços no sentido de incorporar a temática no âmbito do serviço social.
Cardoso (2013; 2011)[4], por exemplo, tem uma abordagem profundamente ancorada nas elaborações de H. Lefebvre e, subsidiariamente, de M. Santos. Em suas elaborações, o espaço aparece referenciado como estrutura da totalidade social, atuando como condição objetiva e subjetiva para a compreensão da realidade vigente. Suas análises desbordam em muito as discussões a respeito da relação entre política social e território, oportunizando a incorporação da categoria em toda a sua amplitude: como determinação real capaz de produzir alterações significativas no campo da luta de classes, nas conformações do trabalho, nos modos de sociabilidade inscritos no plano da reprodução social, na expansão do urbano e em suas consequências na vida cotidiana.
Em uma abordagem também marxista, Farage (2014) investiga a especificidade da intervenção estatal na conformação do espaço. Para a autora, o controle estatal sobre as camadas trabalhadoras nas comunidades cariocas, além de sua clara expressão coercitiva ocorre também por meio das formações consensuais mínimas. Assim, as ações do Estado buscam atender parte das demandas dessas populações através de ações de caráter assistencialista, pela repressão da política de segurança pública e pela instalação de alguns equipamentos de política pública (escolas, postos de saúde, CRASS, ações de saneamento, etc.). Aqui, para a autora, estamos confrontados com a redistribuição do fundo público toda vez que o Estado é tensionado pelas demandas dessas populações. Assim, as políticas públicas tornam-se a contribuição estatal para a reprodução ampliada, ao assumir os custos de reprodução da classe trabalhadora. Farage (2014) alerta, adicionalmente, para a dimensão ideológica de determinadas políticas públicas, que buscam reproduzir uma perspectiva assistencialista, fortalecendo laços paternalistas e eleitoreiros.
Ramos (2003) analisa o território tomando como marcos a crise do modelo fordista/keynesiano no pós-década de 70, os processos de mundialização do capital, as metamorfoses do trabalho em direção à acumulação flexível e as pressões do capital imperialista sobre os Estados Nacionais. E aqui, nas reflexões da autora, o território ganha dimensão determinante nas relações comerciais entre países centrais e periféricos, no modo como os primeiros pressionam os segundos à desregulamentação, à aceitação do neoliberalismo e à abertura comercial e financeira. Este macroprocesso é, portanto, acompanhado pela intensificação da precariedade no mundo do trabalho, em especial nos centros urbanos, a partir de um novo desenho produtivo territorial imposto pelos países de capitalismo avançado. As lacunas para a discussão dos problemas da cidade podem aparecer, para a autora, justamente a partir da instauração de políticas de enfrentamento à deterioração das relações salariais.
Os estudos de Koga (2003; 2005)[5] ocupam-se do exercício da cidadania como “vida ativa no território” e de como a construção do espaço vivido molda as relações cotidianas. A autora transita pelas determinações que a acumulação capitalista e a questão social impõem à vida cotidiana. incorpora ainda, de modo substantivo, os entendimentos de Boaventura de Sousa Santos, a respeito das desigualdades oriundas das relações de poder estabelecidas entre indivíduos, Estado e grupos de interesse organizados, e ainda parte das ideias de Robert Castel.
Sposati (2013; 2008)[6] também incorpora o território a partir das estratégias de gestão das políticas públicas. Focalizando mais estritamente a política social e sua relação com o território, a autora concentra-se no modo como a política social se operacionaliza como atendimento social – este, pois, o ponto de contato entre a política social e o serviço social com as relações cotidianas. A autora também não descura das discussões a respeito da questão social e do trabalho, mas sem maiores aprofundamentos na discussão econômica. A aproximação da questão territorial à racionalidade gerencial da política social circunscreve o problema às dimensões da política social.
Ainda que possam subsistir algumas divergências em relação às abordagens listadas – e não é este o momento para tal – é digno de nota que as autoras em tela têm se dedicado tanto a aprofundar os conhecimentos a respeito das questões da produção social do espaço e da territorialização em âmbito geral quanto a incorporar a discussão ao serviço social, lançando mão de matrizes teóricas de vários espectros[7].
5) A dimensão territorial no cotidiano do exercício profissional – os rebatimentos nas políticas públicas
Seja no serviço público, no setor privado ou ainda no terceiro setor, os/as assistentes sociais terão de lidar com refrações da questão social que se apresentam por um recorte territorial anterior a intervenção: isso é próprio da ação homogeneizadora[8] do capital na estruturação social do espaço, bem como da luta das forças diferenciadoras pelo direito à cidade. Como não podemos aqui abordar o problema em amplitude, seguiremos a praxe e trataremos da questão a partir dos elementos que podem compreender o espaço mais amplo de inserção de assistentes sociais: as políticas púbicas em seu recorte setorial.
Em abordagem recente, Abreu[9] (2016a) produziu importantes estudos críticos em relação à territorialização na concepção e execução das políticas sociais durante os governos do PT. No que diz respeito à gestão dessas políticas, sempre conforme a autora, o território comparece a partir de uma lógica tecnicista, de produção de dados e indicadores capazes de traduzir, em termos administrativos, elementos para uma gestão profissional da pobreza. A autora complementa que esta instrumentalização dos conhecimentos sobre território para a gestão da pobreza pode ser observada na própria condução das políticas setoriais.
Indo ao encontro do arrazoado de Abreu, pondero que a incorporação categorial – e não meramente positivista – do território permite compreender especificidades que se expressam nas distintas políticas setoriais e que não se dão a ver de outro modo.
Na política de segurança pública, por exemplo, a “discriminação por endereço” (Novaes apud CASSAB; REIS, 2009, p. 146) apresenta aquela determinação de “dupla condenação à pobreza” a que se referiu Santos (apud CASSAB; REIS, 2009, p. 150). A segregação espacial aparece como estigma em seus habitantes, sobretudo em relação à população negra. Em determinados territórios da cidade – onde a vida significa simples reprodução de mercadoria força de trabalho e, no mais das vezes, sob a forma de superpopulação relativa – a desvalorização desta mercadoria especial aparece sob a forma da desumanização social de seus portadores. Ali, a política de segurança pública é sinônimo de contenção violenta, violação de direitos e uso aberto e indiscriminado da força. A flagrante discrepância em relação às formas de materialização desta mesma política em outros territórios – no mais das vezes, de caráter educativo – explicita exatamente quem são as “classes perigosas”, onde “habitam” e como os demais habitantes citadinos devem fazer para “se proteger”. Assim, determinadas áreas da cidade são pronunciadas como locais de risco, de violência, cujos habitantes são “infratores”, “perigosos”, “avessos à lei e ao trabalho”. Aqui, portanto, a segregação espacial caminha pari passu às violações de direitos humanos e a interface entre as políticas de segurança pública e as violações de direitos colocam duros desafios ao trabalho do/da assistente social. Por outro lado, a constituição de espaços de fruição, lazer e gozo, reforçam um aspecto gradativamente dual. Nesses, a homogeneização de condutas socialmente aceitáveis desenvolve-se circunscrita pela apropriação privada dos espaços públicos, estiramento ao limite das relações mercantis, fluxo de capital, isolamento em relação às “classes perigosas”, política de segurança pública com enfoque educativo e colaborativo (justamente na defesa contra as ações das camadas indesejáveis da população), tendo por seu corolário a constituição dos “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000).
As políticas de habitação também seguem uma lógica territorial ditada pelo capital. Locais de valorização imobiliária, de interesse direto do consórcio capital especulativo / capital imobiliário sofrem ação sistemática das forças do Estado, sobretudo judiciário, que não demora em promover desapropriações e expulsão de famílias e comunidades inteiras[10]. Por outro lado, áreas sem interesse do capital padecem a ausência de infraestrutura e investimentos públicos, saneamento básico, equipamentos públicos e áreas de lazer, segurança etc. Parte substantiva das residências é erguida pelo sistema de autoconstrução[11]. Os projetos de “urbanização” dessas áreas, quando ocorrem, promovem no mais das vezes alterações epidérmicas do espaço, de modo a não incrementar, por investimento estatal, o valor de troca dessas residências. Para estas populações, a habitação possui unicamente valor de uso – e a política habitacional não tem por objetivo reverter essa determinação. Por outro lado, a construção de residências subsidiadas com recursos do fundo público, como ocorreu com o Minha Casa Minha Vida[12], não apenas têm como objetivo inserir no ciclo do consumo de imóveis famílias de baixa renda que, em condições normais de mercado, não poderiam adquirir tal mercadoria, como ainda impulsionar, de modo subsidiado, a indústria da construção civil, as grandes construtoras e incorporadoras. Aqui, vale relembrar a afirmação de Santos (2002 p. 154) de que “a casa própria não é a necessidade, esta é a de morar decentemente”.
Na política de assistência, conforme Pereira (2010), a territorialização na PNAS/2004 aparece como estratégia da restrição dos recursos: realizar investimentos mínimos que visam a enfrentar a pobreza pontualmente, enfocando a faixa mais vulnerável da população. Para a autora, esta proposta caminha na contramão da orientação constitucional de universalização das políticas públicas como universalização do direito, mas coaduna-se com as perspectivas privatistas que tomaram o Estado brasileiro pós-1990. Diferentemente da política de saúde, conclui a autora, a política de assistência sempre teve maior dificuldade na articulação política dos usuários, desfavorecendo a luta por ampliação e democratização. Em seu duplo caráter – amenizadora de conflitos e asseguradora de direitos – a política de assistência adotou a perspectiva de “urbanização integrada”, focalizando áreas pobres da cidade, e a “integração pelo consumo” via dos programas de distribuição de renda que, noutra ponta, favorecem o escoamento da produção de bens de consumo não duráveis. As perspectivas de urbanização integrada e integração pelo consumo não removem – ao contrário, reforçam – as características focalistas distributivas da PNAS.
Por fim, a política de saúde incorporou os processos de territorialização, sobretudo no que diz respeito à atenção primária. Definidos como atenção básica, envolvem ações de alta complexidade e baixa densidade tecnológica. Opera por meio da existência de Unidades Básicas de Saúde (UBSs) que têm como estratégia prioritária a Saúde da Família, cuja atuação é circunscrita a um território bem definido. A ideia da territorialização na saúde remonta dos anos 1990, com a institucionalização dos distritos sanitários. Posteriormente, veio somar-se a esta estratégia o programa Saúde da Família (2004). A PNAB de 2012 explicita como a dimensão territorial, quando bem incorporada, pode potenciar a efetividade das políticas públicas. Avançando em relação a PNAB de 2007, consolidou a padronização de equipes, adaptando-se às diferentes realidades brasileiras, como no caso da formação de equipes para atender unidades ribeirinhas e pessoas em situação de rua. A territorialização da saúde tem sofrido críticas, sobretudo, por sua operacionalização. Gestores locais – responsáveis diretos pela atenção básica – sem possuírem uma compreensão aprofundada do significado do território, acabam reduzindo a ação territorial ao esquadrinhamento simples do espaço – pensado mais como uma dimensão meramente física ou logística que propriamente como um conjunto de relações sociais de poder que se expressam em uma dada porção da cidade (cf. FARIA, 2013). Na operacionalização, pelos membros das equipes de saúde, os predicativos territoriais, que poderiam potenciar as ações, fortalecendo as relações com usuários, podem também passar a largo das práticas de saúde. Neste aspecto particular, os/as assistentes sociais que atuam nessa política setorial devem estar atentos ao território em sua dimensão categorial e não apenas enquanto uma exigência formal de orientação da política: eis a exigência para a própria eficiência na prestação do serviço, favorecendo os elos que facilitam as práticas de educação em saúde.
Considerações finais
Há, portanto, como argumentei, dois problemas na não incorporação categorial do território na formação de assistentes sociais.
Do ponto de vista da formação técnica, temos que os grandes riscos se concentram no fato de o/a assistente social posicionar-se, sem aperceber-se, ao lado das forças homogeneizadoras (LEFEBVRE, 2006). Este é um risco que a incorporação de território como dado físico, simples esquadrinhamento geométrico ou logístico, coloca. Neste aspecto, a incorporação esvaziada da categoria pode levar o/a profissional a simplesmente tomar parte do movimento planificador, assumindo o espaço concebido e solapando, fria e burocraticamente, “a vida que anima” (SANTOS, 2006, p. 38) a paisagem.
Esta abordagem, de cunho tecnicista, ainda que o profissional não se aperceba, reproduz a segregação espacial. Assimila, sem mais, o conceito esvaziado tal como apresentado nas políticas sociais. Como ação planificadora – em ações de desterritorialização e re-territorialização – podem destruir as formas autônomas de enfrentamento das refrações da questão social pelos usuários (habitantes de um território dado), romper laços solidários e comunitários e amplificar (em vez de arrefecer) refrações da questão social.
Mas mais que isso. A simples desconsideração da questão, além de uma mácula de cunho técnico, cujo produto será uma formação carente de instrumentais analíticos específicos para uma intervenção profissional qualitativamente diferenciada, revela déficit na formação humana, na capacidade individual de “ler o mundo”, de apreender sua estruturação e dinâmica, na exata medida em que faz da ignorância em relação a uma determinação objetiva, constitutiva da própria realidade, parte (ou modo) de seu próprio saber. Antes de uma questão simplesmente “existencial”, o problema da formação integral é justamente o aprimoramento pedagógico das capacidades individuais e coletivas de compreensão do lugar das singularidades nas classes e na própria aventura da história humana.
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Notas
[1] Dialogando com a proposição de Lefebvre, esclarece Raffestin (1993, p. 143-4): “O espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator ‘territorializa’ o espaço. [...] O território [...] é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a ‘prisão original’, o território é a prisão que os homens constroem para si”.
[2] Aqui empregamos o termo no sentido de “tardio” conferido por Chasin (1999), e não por Mandel (1985).
[3] Que conjuntamente com o Código de Ética do Assistente Social (CFESS, 2012) e a Lei 8.662 de 07 de junho de 1993 consubstanciam os direcionamentos do Projeto Ético-Político Profissional. Polêmicas à parte que possam circunscrever o debate em torno do PEP, parece, em meu ver, inegável que a perspectiva da formação integral está bem demarcada dentre os objetivos estratégicos de construção do perfil profissional no país.
[4] Cf. também Cardoso & Silva (2013).
[5] Cf. também Koga, Ramos & Nakano (2008).
[6] Cf. também Sposati, Carvalho & Fleury (2012).
[7] Cabe, pois, justamente, no interior das discussões sobre a temática, a interpelação teórica e o confronto salutar de ideias. As divergências que se possam alimentar em relação a determinadas entradas e abordagens não retiram, todavia, o mérito de suas investigações e tampouco solapam o respeito pessoal e teórico.
[8] A respeito da homogeneidade do espaço – ou, mais precisamente, da tríade homogeneidade-fragmentação-hierarquização – cf. Lefebvre (2006).
[9] Cf. ainda o trabalho mais abrangente de Abreu (2016b) sobre a temática.
[10] Cf. o relatório do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro (2015).
[11] Para uma inteligente e provocativa crítica do sistema de autoconstrução, cf. Oliveira (2006)
[12] Para considerações sobre a espacialização da pobreza pelo Programa Minha Casa Minha Vida, cf. Cassab; Pinto (2013).
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