A Sociologia da Infância e o conceito de culturas infantis: aspectos e implicações teóricas

Childhood's Sociology and the concept of children culture: aspects and theoretical implications

La Sociología de la infancia y el concepto de culturas infantiles: aspectos e implicaciones teóricas.

 

 

Rita de Cássia Marchi

Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil.

atoseditora@gmail.com

Nislândia Santos Evangelista

Centro Universitário Leonardo Da Vinci, Indaial, SC, Brasil.

nissevangelista@gmail.com

 

Recebido em 21 de novembro de 2021

Aprovado em 22 de agosto de 2022

Publicado em 24 de outubro de 2023

 

 

RESUMO

 

Este artigo, decorrente de pesquisa bibliográfica, tem como objetivo apresentar e discutir o conceito de culturas infantis (ou cultura de pares), na perspectiva da Sociologia da Infância, a partir de dois de seus principais formuladores: William Corsaro e Manuel Sarmento. O conceito de culturas infantis enfatiza a ideia da criança como ator social e produtora de cultura. Nesta abordagem, portanto, há formas teóricas e metodológicas de pesquisar e de se relacionar com as crianças em termos e concepções que se distanciam daqueles relacionados às teorias tradicionais de socialização (a criança vista como aprendiz passivo da cultura e a infância entendida como uma etapa natural do desenvolvimento). A atual definição do conceito antropológico de cultura, como um sistema público de signos e símbolos, é apresentada para designar a origem pública e coletiva da cultura de pares. Em conclusão, são apresentados alguns desafios teóricos e metodológicos do uso crescente do conceito de culturas infantis nas pesquisas na área da Educação e o caráter reflexivo da produção científica sobre a infância contemporânea no quadro epistêmico da “dupla hermenêutica”.

 

Palavras-chave: Culturas infantis; Educação; Sociologia da Infância.

 

 

ABSTRACT

This article, resulting from a bibliographic research, aims to present and discuss the concept of children's cultures (or peer culture), from the perspective of the Sociology of Childhood, from two of its main formulators: William Corsaro and Manuel Sarmento. The concept of children's cultures emphasizes the idea of ​​the child as a social actor and producer of culture. In this approach, therefore, there are theoretical and methodological ways of researching and relating to children in terms and conceptions that distance themselves from those related to traditional theories of socialization (the child seen as a passive learner of culture and childhood understood as a natural stage of development). The current definition of the anthropological concept of culture, as a public system of signs and symbols, is presented to designate the public and collective origin of peer culture. In conclusion, some theoretical and methodological challenges are presented regarding the growing use of the concept of children's cultures in research in the area of ​​Education, and the reflective character of scientific production on contemporary childhood in the epistemic framework of the "double hermeneutic".

Keywords: Children’s Culture, Education, Childhood Sociology

 

 

RESUMEN

Este artículo, resultado de una investigación bibliográfica, tiene como objetivo presentar y discutir el concepto de culturas infantiles (o cultura de pares), desde la perspectiva de la Sociología de la Infancia, a partir de dos de sus principales formuladores: William Corsaro y Manuel Sarmento. El concepto de culturas infantiles enfatiza la idea del niño como actor social y productor de cultura. En este enfoque, por tanto, existen formas teóricas y metodológicas de investigar y relacionarse a los niños en términos y concepciones que se alejan de aquellos vinculados con las teorías tradicionales de la socialización (el niño visto como un aprendiz pasivo de la cultura y la infancia entendida como una etapa natural del desarrollo). La actual definición del concepto antropológico de cultura como un sistema público de signos y símbolos se presenta como una forma para designar el origen público y colectivo de la cultura de pares. En conclusión, se presentan algunos desafíos teóricos y metodológicos del uso creciente del concepto de culturas infantiles en investigaciones en el campo de la Educación y el carácter reflexivo de la producción científica sobre la infancia contemporánea en el marco epistémico de la “doble hermenéutica”.

Palabras clave: Culturas infantiles; Educación; Sociología de la Infancia.

 

 

 

 

Introdução

           

A afirmação de que os pares são tão importantes quanto os adultos no processo de socialização das crianças está imbricada na ideia de culturas infantis. Outra ideia relacionada a este conceito é o de agência infantil, i.e.  a ideia da criança como ator social ou produtora de cultura. Essas ideias são afirmadas pela Sociologia da Infância e são francamente contrárias às premissas das teorias tradicionais (funcionalistas e desenvolvimentistas) da socialização. Destarte, este artigo tem por objetivo apresentar e discutir o conceito de culturas infantis tal como é definido por seus principais elaboradores: William Corsaro e Manuel Sarmento.

O conceito de culturas infantis é definido por William Corsaro como um conjunto de artefatos e valores produzido e compartilhado de forma coletiva e pública entre pares. Ele designa, portanto, a produção cultural de grupos de crianças que passam com frequência algum tempo juntas; o que costuma ocorrer, na contemporaneidade, mais regularmente (mas não somente), em instituições educacionais.

Manuel Sarmento analisa as culturas infantis por meio de um inventário dos princípios geradores dos significados que as crianças atribuem à essa produção cultural, identificando uma espécie de “gramática” - semântica, sintaxe, morfologia -na base dos pilares estruturais - interação, ludicidade, reiteração e fantasia do real – que sustentam essa construção.

Embora esses autores discordem em alguns aspectos, como veremos adiante, ambos concordam que as crianças habitam “dois mundos” (CORSARO, 2011, p.40) ou que a infância se localiza no “entre-lugar” (SARMENTO, 2004, p.03): o espaço intersticial entre o mundo habitado pelos adultos e aquele reinventado pelas crianças. As culturas infantis, portanto, são produzidas também com elementos da cultura adulta existencialmente renovados a partir da ação individual ou coletiva das crianças (SARMENTO, 2004).

É importante anunciar que este texto se coloca de modo complementar ao artigo que discute o conceito de “reprodução interpretativa” (EVANGELISTA; MARCHI, 2022). Intrinsicamente ligados, a sua discussão em separado se fez necessária devido aos limites impostos à extensão de artigos científicos e para que cada conceito seja tratado com a devida profundidade.

Considerando o objetivo deste texto, ele apresenta inicialmente a Sociologia da Infância em suas relações com a área da Educação; depois são abordadas as transformações do conceito de cultura, de modo a situar a sua vertente semiótica como aquela que fundamenta o conceito de culturas infantis; na sequência são explorados alguns aspectos teóricos, classificatórios e históricos na construção desse último conceito. Ao final, considerações complementares abordam os desafios teóricos e metodológicos do uso do conceito de culturas infantis e situam o estudo da infância no quadro da reflexividade da vida social moderna, ou naquilo que Giddens (1989, p.334) denomina de “dupla hermenêutica”.

 

Sociologia da Infância (SI) e Educação

Até os anos 1980, a criança surgia nas pesquisas científicas de forma indireta, como “fantasma onipresente” (SIROTA, 2001, p.08), a partir do olhar das instituições responsáveis por sua socialização e guarda, como a escola e a família. Contudo, em um movimento teórico mais amplo ocorrido nos anos 1970 nas Ciências Sociais (chamado de “fim do consenso ortodoxo” ou “retorno do ator” às pesquisas), o foco passa a ser as relações intersubjetivas e a inter-relação entre as macro e microestruturas sociais (MARCHI, 2009). É nesse terreno, já nos finais dos anos 1980, que brotam as primeiras sementes da SI, fazendo surgir os questionamentos aos estudos que eram informados exclusivamente pelas teorias da socialização. Trata-se, nesse movimento, de perceber a criança “em si mesma”, para além das instituições que a educam e guardam. (SIROTA, 2001; MARCHI, 2009)

                Assim, realizando uma crítica em relação à criança teórica produzida pelos paradigmas tradicionais da socialização, a SI - através de uma ótica não adultocêntrica - revela outra compreensão (ou um novo paradigma) para os estudos sociais da infância e das crianças. Esta disciplina, ao reconhecer e visibilizar as vozes das crianças, faz surgir novos conceitos e abordagens metodológicas que passam a ser realizadas com crianças (com a sua participação plena ou indireta)[i] e não mais somente sobre elas. Os estudos passam a levar em conta a capacidade de ação das crianças. O conceito de culturas infantis, portanto, torna-se central nesta nova compreensão e, nesse cenário, pesquisadores na área da Educação tendem a assimilar os novos conceitos sobre infância e criança abandonando o antigo paradigma, sem realizar – na maioria das vezes –  uma reflexão sobre esse deslocamento teórico. Fato que, a aceitarmos a hipótese de Giddens (2002) “[...] refletirá não só na produção do conhecimento acerca da realidade que tomam por objeto, mas será também parte constituinte desta realidade.” (MARCHI, 2007, p.94),  

A transição das crianças do ambiente familiar para o da educação infantil significa uma mudança nas suas vidas em termos tanto do enquadramento físico-espacial e disciplinar quanto da ampliação do seu círculo social, já que elas passam a ter que lidar com as regras do convívio e da cultura escolar (CORSARO, 2011). Pois, para que ocorram brincadeiras e outras interações (entre pares ou com adultos da instituição), será necessário realizar negociações, compartilhar, resolver disputas, aceitar ou resistir às normas do novo espaço de convivência.

A vasta difusão do conceito de “culturas infantis na área da Educação, e o crescimento das pesquisas que utilizam a SI como base teórica no Brasil (NASCIMENTO, 2013), evidencia que a maior parte dos estudos sobre o conceito foi realizado em instituições escolares, já que essas são locais de potencial encontro das crianças e, portanto, da produção dessas culturas (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010).

Contudo, há a necessidade de discutir os fundamentos e desdobramentos deste conceito de forma a que venha a ser utilizado, teórica e metodologicamente, de modo coerente, ético e responsável. Há de se cuidar para que os princípios teóricos da SI não sejam tratados como novos dogmas e, no movimento de “aplicação” da teoria, a disciplina seja (re)instituída como um novo saber pericial. Isto, considerando o efeito boomerang da reflexividade, no sentido de que novas práticas profissionais, alteradas pela teoria, também alterarão essa teoria, num constante movimento de “vai e vem”. É por isto que autores da SI têm apontado que “a infância é um fenômeno no qual se evidencia a ‘dupla hermenêutica’ das Ciências Sociais (erigir um novo paradigma para seu estudo sociológico implica envolver-se no processo de desconstrução da infância na sociedade)” e isto implica no “envolvimento ativo dos cientistas sociais na construção daquilo que a infância foi, é, e será no contexto social” (MARCHI, 2007, p. 24).Assim, pesquisadores e educadores devemos levar em conta o caráter de reflexividade do conhecimento ao teorizarmos sobre a infância, as crianças e sua educação.

As transformações do conceito de cultura

Até o momento em que a cultura, no final dos anos 1970, passou a ser considerada como um sistema simbólico, o conceito sofreu diversas transformações. Embora tenha adquirido, por intermédio dos etnólogos, status científico no século XIX, o terreno ideológico da sua definição foi lentamente construído desde meados do século XVIII através de debates filosóficos que envolviam disputas políticas (LARAIA, 2001). Tais embates se constituíram em duas vertentes que discutiam o conceito de homem (natureza e essência humanas) e as relações entre os elementos culturais que ele constrói em sociedade.

Uma das vertentes, fundamentada na França, com forte influência iluminista e concepções de racionalidade e estágios evolucionistas, evidenciava o caráter unitário da humanidade. Buscavam-se similaridades estabelecendo um padrão ou uma medida que, enquanto mensurava, também indicava o desenvolvimento contínuo e linear até o ponto de chegada: a civilização. A outra vertente teve ênfase na Alemanha e privilegiava a diversidade ou particularismos culturais em detrimento da suposta universalidade do processo de desenvolvimento humano. Essa via recusava a hierarquização de culturas e a sobreposição de umas sobre outras (CUCHE, 2002). Assim, as diferentes formas do desenvolvimento do conceito de cultura, e seus significados, são reflexos dos processos sociais e políticos internos a esses dois países no período histórico das revoluções (francesa e industrial).

A aproximação entre as duas perspectivas (particularista e universalista), foi apresentada, pela primeira vez, pelo etnólogo inglês Burnet Tylor (1832-1917), que buscava conciliar aspectos evolutivos particulares com a concepção universalista da humanidade (CUCHE, 2002). Influenciado pelo pensamento da época, Tylor estabelecia diferentes estágios nos níveis de evolução da raça, num continuum ascendente, entre os povos “primitivos” e os “civilizados”. (LARAIA, 2004 p. 14). Enquanto isto, Franz Boas (1858-1942), grande responsável pela criação da Escola Americana de Antropologia, influenciado pelo particularismo alemão, desenvolvia sua teoria para pensar a diferença. Ele não buscava medir níveis de evolução de um povo, mas compreender processos históricos captando suas particularidades. Era veementemente contra a concepção de raça e das explicações que hierarquizavam fatores (biológicos, mentais, psicológicos, genéticos) na justificativa de teorias e práticas atrozes, decorrentes do etnocentrismo (CUCHE, 2002). Boas influenciou os estudos sobre cultura em níveis metodológicos e epistemológicos, ao propor a investigação in situ, utilizando o método indutivo para compreender os processos culturais do ponto de vista dos atores.

Nesse ínterim, muitas pesquisas foram também realizadas no âmbito da chamada Escola Cultura e Personalidade[ii],a fim de desenevoar as questões sobre a dualidade natureza versus cultura, e desnaturalizar atributos tidos como inatos. Neste sentido, a mencionada Escola colocava especial ênfase na importância da educação para a construção da personalidade do indivíduo e sua integração à sociedade. Entendia-se que, em função da história pessoal, o indivíduo “reinterpreta” os elementos culturais, sendo a soma e a interação de todas as reinterpretações o que se entende por cultura (CUCHE, 2002).

Paralelamente aos estudos culturalistas, sociólogos americanos da “Escola de Chicago”, na década de 1930, usando os métodos do culturalismo começaram também a estudar os aspectos do contato ou confronto entre grupos ou povos diferentes. Eles se interessavam pela cultura através das gerações; sobre como ela atua na formação dos indivíduos, buscando mais explorar a diversidade da cultura americana do que estabelecer categorias unitárias, reflexo do caráter diverso (“terra de imigrantes”) dessa sociedade. (CUCHE, 2002). Seus estudos eram realizados em comunidades ou grupos analisados como microcosmos ou como “subculturas” que, de acordo com Schaefer (2016, p. 45),

[...] é um segmento da sociedade que compartilha um padrão singular de costumes, regras, tradições que se distingue do padrão da sociedade como um todo. De certa forma, pode-se entender uma subcultura como uma cultura existente no interior de uma cultura mais ampla e dominante. A presença de muitas subculturas é característica de sociedades complexas.

A relação entre subcultura (segmentos ou grupos) e cultura (mais ampla, i.e. nacional, global) diz respeito, portanto, aos modos plurais que diversos grupos, nas sociedades complexas, podem desenvolver para pensar, agir, se relacionar e, ainda assim, estarem integrados a um modelo mais geral de comportamento.

A conjunção desses dois conceitos, oriundos um da Sociologia e o outro da Antropologia, permitiu a formulação de perspectivas que demonstravam o efeito visceral da educação no desenvolvimento individual. No entanto, como de praxe na ciência, há discordâncias sobre como interpretar os fenômenos. As críticas ao conceito de subcultura questionam seu valor teórico porque consideram que ele aponta para uma subdivisão hierárquica do universo cultural da mesma maneira que os biólogos pensam a evolução em espécies e subespécies (CUCHE, 2002). Interessante destacar que essa crítica é realizada pela abordagem interacionista de cultura, a mesma vertente na qual se situa William Corsaro que, no entanto, utiliza o termo subcultura relacionado às culturas infantis: “Podemos conceituar culturas de pares como subculturas gerais de uma cultura ou sociedade mais ampla[...]” (CORSARO, 2011, p. 153).

Foi, portanto, no debate entre diversidade e universalidade que o terreno da teoria da cultura foi fertilizado antes mesmo do conceito ser considerado científico, e ele segue, ainda hoje, sem unanimidade em sua definição (KEESING, 1974; CUCHE, 2002; GEERTZ, 2008). Destarte, após séculos de discussões, a questão permanece em aberto e caminha mais para um refinamento do debate do que para um consenso.

Atualmente, a cultura compreendida como sistema de signos e símbolos compartilhados na modalidade pública tem como um dos seus principais representantes o antropólogo Clifford Geertz (1926-2006). De acordo com este, sendo o conceito de cultura essencialmente semiótico, à análise social interessam os fenômenos e acontecimentos triviais do cotidiano social (como “funerais ou brigas de galo”). Assim, a análise e interpretação das culturas são realizadas no nível microscópico (etnográfico). Esse atual conceito de cultura está ancorado na analogia weberiana sobre o homem estar preso a uma teia de significados que ele próprio teceu. E seu estudo busca a interpretação dos sentidos atribuídos pelos atores a essas teias (GEERTZ, 2008). Por isto, nas palavras de Geertz (2008, p.4), a Antropologia não é uma ciência experimental em busca de leis, mas “[..] uma ciência interpretativa, à procura do significado”.

Compreender os estudos culturais como interpretações – releituras – de terceiros sobre um determinado acontecimento num local e tempo muito específicos exige cuidados teóricos e metodológicos necessários para salvaguardar a teoria - e as culturas - de subjetivações excessivas, generalizações formais e forçadas, ou “profecias”, como alerta o autor. Ao discutir sobre o caráter público das trocas simbólicas entre atores sociais, Geertz (2008) se posiciona na contramão de uma visão cognitivista – subjetivista – de cultura, que partiria das mentes individuais para compreender os elementos culturais. Ele considera que os significados das trocas simbólicas se manifestam em acontecimentos, gestos ou hábitos cotidianos aos quais os atores atribuem sentidos, num movimento explícito e, portanto, público/social. Nesse sentido, Geertz adota a perspectiva interpretativa da análise social, e é nesta vertente teórica e metodológica que o conceito de culturas infantis está inserido.

 

A construção do conceito de culturas infantis: algumas reflexões

Baseadas nos modelos funcionalistas (sociológicos e psicológicos) do desenvolvimento infantil, as teorias tradicionais de socialização deixavam pouco ou nenhum espaço para as possibilidades de socialização das crianças entre si. Nelas, os grupos de pares infantis, considerados pelo viés do desvio e da delinquência, são denominados de “subculturas”. Já os estudos sobre amizade prescreviam sua importância para o desenvolvimento infantil. Essas compreensões contraditórias encontraram uma aproximação na SI, pois no enfoque da agência infantil na (re) produção da cultura é atribuído papel positivo aos grupos de pares e evidenciado que as redes de amizade facilitam os processos de (re)produção cultural, já que é com os amigos que as crianças brincam, criam e trocam ideias.

O termo “culturas infantis” é usado no plural porque existe uma diversidade na infância decorrente dos contextos sociais e das variáveis classe, etnia, gênero, etc. (QVORTRUP, 2009). Diversas culturas de pares podem ser produzidas, com significações situadas, mesmo no caso de conteúdos globalizados (brinquedos e outras mercadorias produzidas em escala mundial). No abandono das perspectivas desenvolvimentistas (de cunho funcionalista ou cognitivista), o tipo de cultura que os grupos infantis produzem é compreendido como fluido e contextualmente produzido, em vez de estruturalmente predeterminado (JAMES, JENKS, PROUT 1998).

 Corsaro (1992) apoia-se na visão contemporânea do conceito de cultura tendo como base o trabalho de cunho interpretativo de Clifford Geertz (1926-2006) e o modelo dramatúrgico de Erving Goffman (1922-1982).  A abordagem interpretativa é adequada quando se trata da cultura de pares infantis porque no curso de sua produção ela é compartilhada na participação e interação concentrada de crianças nas escolas e creches, por ex.  (CORSARO, 1992).

As crianças em fase pré-escolar constroem suas rotinas através, inicialmente, de tentativas de proteção do espaço interativo, pois é no espaço institucional das creches que elas, em geral, compreendem a noção de compartilhamento e de propriedade. (CORSARO, 2011). Nesse período de descobertas as crianças realizam estratégias de acesso a grupos de brincadeiras, o que pode gerar conflitos ou o (re)estabelecimento de relações. Assim, de acordo com este autor, no desenvolvimento das culturas infantis há uma integração entre espaço interativo, amizade, conflito, controle e compartilhamento. A negociação para compartilhamento de brinquedos, por ex., pode dar margem à criação e resolução de conflitos. Nesse sentido, “amizade significa produzir atividade compartilhada em conjunto, em uma área específica e protegê-la contra a invasão alheia” (CORSARO, 2011, p. 165)

Assim, enquanto interagem, as crianças aprendem tanto umas com as outras quanto com os adultos, (re)produzindo e reinterpretando as culturas nas quais participam e atuam. Nessa perspectiva, seus mundos sociais são construídos na interação com os pares e com o mundo adulto através das rotinas culturais e da linguagem (CORSARO, 2011)[iii]. Aqui, o conceito de “consciência prática” é fundamental, pois diz respeito a tudo que os atores sabem, de forma tácita, sobre o que fazem nos contextos dos quais participam, sem que isso seja, necessariamente, expressado ou verbalizado.

 Nesse cenário, Corsaro (2011, p.54) adota, também baseado em Erving Goffman (1922-1982), o conceito de “ajustes secundários”. Nos ambientes escolares, tais “ajustes” ou estratégias são percebidos como formas de as crianças tentarem conquistar - de diversas maneiras - algum controle sobre suas vidas, resistindo à ou desafiando as regras institucionais. Essas ações no ambiente escolar constituem-se como um elemento das culturas infantis, levando as crianças a terem uma “subvida” (CORSARO, 2011). Tais ações tornam-se mais sofisticadas à medida que as crianças descobrem interesses comuns que contribuem também, assim, para a identidade de grupo.

Corsaro (2011) classifica as culturas infantis a partir de elementos simbólicos e materiais. Os aspectos simbólicos dizem respeito ao material produzido por adultos (ou pela indústria cultural) para as crianças, como a literatura infantil, lendas e figuras míticas (como Papai Noel, Fada do Dente, Coelhinho da Páscoa), apresentadas às crianças por ocasião de rituais e festas familiares (Natal, Páscoa, a queda do 1º dente, etc). Os elementos materiais das culturas infantis dizem respeito à materialização dos elementos simbólicos; isto é, roupas, instrumentos artísticos, de alfabetização, etc., não se reduzindo, portanto, à perspectiva estreita das pesquisas que enfatizam quase exclusivamente os brinquedos como elementos materiais importantes nas culturas infantis.

 A linguagem é uma das bases das culturas infantis devido ao desenvolvimento e à aquisição dos códigos simbólicos (interpretados e reproduzidos criativamente), sendo no espaço doméstico e na escola que as crianças primordialmente as desenvolvem, através do faz de conta, ou jogo sócio dramático, que corresponde à releitura interpretativa de episódios das rotinas culturais. Portanto, é:

Através da interação com os colegas no contexto pré-escolar, [que] as crianças produzem a primeira de uma série de cultura de pares nas quais o conhecimento infantil e as práticas são transformadas gradualmente em conhecimento e competências necessárias para participar do mundo adulto (CORSARO, 2002, p. 114).

Neste sentido, Sarmento (2003) destaca que a forma e o conteúdo da linguagem infantil devem ser compreendidos como diferentes dos adultos e não como déficits.

O conceito de culturas infantis elaborado por Sarmento (2003; 2004) tem diferenças relativamente ao postulado por W. Corsaro. Em primeiro lugar, é crítico sobre a separação realizada por Corsaro entre elementos simbólicos e materiais nas culturas infantis, por considerá-la ilusória ou infundada, dado que tais elementos estão imbricados: conteúdos simbólicos como produtos cinematográficos ou literários, por ex., dão origem a bens de consumo materiais, como roupas e acessórios para crianças, a partir da globalização de conteúdos e brincadeiras infantis[iv]. Deste modo, os aspectos materiais e os simbólicos são interdependentes, sobretudo nas sociedades urbanas ocidentais que recebem ou sofrem a influência das mídias e do marketing. (SARMENTO, 2004).

Embora consideremos que a separação realizada por Corsaro seja de ordem didática, vale pontuar que, para Sarmento (2003), na discussão das culturas infantis deve antes ser levado em conta que há elementos culturais produzidos pelas crianças e elementos culturais produzidos para as crianças, sendo esta, então, para este autor, a diferença que pode ser estabelecida no interior do conceito.

Assim, as culturas produzidas pelas crianças, segundo Sarmento (2004), se constituem tanto no plano diacrônico (pela comunicação intrageracional ao longo dos tempos) quanto no plano sincrônico (relações de co-presença entre pares), ambas as dimensões escapando, em larga medida, à intervenção adulta. Das formas culturais produzidas pelos adultos para as crianças, o autor postula acerca da cultura escolar e da indústria cultural, com seu arsenal de marketing e orientação mercadológica que investe em filmes, literatura, organização de festas, pacotes de férias, brinquedos, entre outros produtos produzidos em larga escala. Esses produtos apelam para o imaginário infantil de forma a universalizar seu conteúdo ou potencial lúdico subjacente. Desta maneira, a aquisição dos produtos estaria mais para a ordem do status social do que propriamente para o ato de brincar, ou seja, o valor estaria mais no produto do que nas relações estabelecidas a partir dele.

 As culturas da infância constituem-se, portanto, no reflexo de uma produção cultural sobre a outra, não sendo redutíveis aos produtos da indústria para a infância e aos seus valores e processos, ou aos elementos da cultura escolar. Nesse sentido dialético, tais culturas tampouco podem ser analisadas exclusivamente pelas ações, significados e artefatos produzidos pelas crianças, porque estes não surgem do nada, em um vazio cultural, estando profundamente enraizados na sociedade e nos modos de administração simbólica[v] da infância (nos quais o mercado e a escola são integrantes centrais, junto com as políticas públicas para a infância).

Embora Sarmento (2003;2004) esclareça que as culturas infantis não podem ser reduzidas a termos linguísticos, sua definição do conceito está orientada em termos estruturais pois, para o autor, significados autônomos produzidos pelas crianças, na organização dos grupos e nas negociações no seu interior, criam uma espécie de “gramática” (semântica, sintaxe, morfologia) que as edificam. Esta leitura das culturas infantis dialoga com as demais vertentes da SI que se debruçam sobre fatores geracionais e estruturais que afetam o desenvolvimento e as interações das crianças. Deste modo, o estudo das culturas infantis a partir dos padrões de uma gramática comportamental implica na integração entre as abordagens interpretativa e estruturalista.

 À par desta gramática estruturante, Sarmento (2003;2004) argumenta que as culturas infantis se erigem (e podem ser compreendidas) em torno de quatro pilares: a interatividade, a ludicidade, a reiteração e a fantasia do real.

A interatividade diz respeito ao fato de a aprendizagem das crianças ser eminentemente interativa, na convivência das crianças com pessoas do seu entorno (familiares, responsáveis e pares). Ou seja, partilhando tempos, espaços, rotinas, rituais, passam a reinterpretar e reinventar o mundo do qual fazem parte. É nesse processo interativo, bem como na “criação de estratégias para evitar fazer o que os outros querem” que surge a palavra “amigo”. (SARMENTO, 2004 p.14). A interatividade, atua tanto no plano sincrônico quanto diacrônico, pois ainda que as crianças sejam contemporâneas, há também um legado das culturas infantis que é repassado entre gerações.

 A ludicidade diz respeito ao fato de as crianças brincarem “séria e abnegadamente” (SARMENTO, 2004, p.15). E, embora tal atividade possa ultrapassar barreiras etárias, o brincar está diretamente ligado à infância. A indústria cultural, no entanto, lança brinquedos estereotipados em larga escala, estando o foco mais no objeto do que no ato da brincadeira em si.

É na atividade da brincadeira que a criança transpõe o real para reconstruí-lo em seu imaginário, o que Sarmento (2003) denomina fantasia do real, um outro pilar das culturas infantis. Trata-se de uma imbricação, ou fusão, entre dois mundos de referência – o real e o imaginário – que está além de simples dicotomias. As crianças, ao reinterpretarem e reinventarem o real através de jogos de fantasia fazem-no sem literalidade, quer dizer, os significados primeiros dos eventos, objetos, palavras, podem ser transformados e colocados em outros termos, tempos ou espaços:

A estrela que transporta para o céu uma pessoa querida, a boneca com que se brinca no meio da desolação e caos provocados pela guerra ou por um cataclismo natural, a narrativa imaginosa com que se explica um insucesso, uma falha ou até uma ofensa, integram este modo narrativo de estruturação não literal das condições de existência. (SARMENTO, 2003, p.17)

Esse processo contínuo de transposição e reinterpretação do real de forma não literal também está atrelado ao processo de não linearidade temporal, denominado reiteração. As crianças relacionam-se entre si com práticas ritualizadas, de continuidade ou ruptura, de forma que o tempo é um elemento sujeito a repetição, sempre “reinvestido de novas possibilidades” (SARMENTO, 2004, p.17).

À parte as diferenças conceituais ou de concepção das culturas infantis, esses dois autores indicam a recepção ativa das crianças em relação aos elementos produzidos pela indústria cultural - desenhos, filmes, bonecos e demais brinquedos -, ou seja, o fato de que as crianças não apenas aceitam o conteúdo a que são expostas, mas também o reinterpretam, de acordo com seu contexto de entorno. Nesse sentido, a forma que uma criança se relaciona com uma boneca Barbie, por ex. está também condicionada às teias do seu entorno cultural, (geografia, classe social, etnia, etc.) e, assim, o desenvolver do brincar depende das experiências de cada criança (SARMENTO, 2004).

Aqui, nos afastando um pouco desses dois autores, temos que considerar, a partir de Brougère (2011), que a cultura produzida para as crianças e a produzida pelas crianças devem ser consideradas mais como imbricadas do que em dicotomia. Isto é, ambas se influenciam, não se devendo ressaltar apenas o efeito da cultura de massa sobre jogos e práticas sociais das crianças, e nem somente o oposto, isto é, o efeito das culturas infantis na cultura de massa. Este autor, assim, pensa na superação dessa oposição. Mas, entendemos também que, de uma maneira ou de outra, tanto William Corsaro quanto Manuel Sarmento, apesar de separarem de forma analítica (ou didática) os dois modos culturais, em última instância consideram que, tanto a cultura produzida para as crianças como a cultura produzida pelas crianças, são, na prática, mutuamente dependentes.

Se pensarmos sobre a história do brinquedo, a partir de Walter Benjamin (1984), veremos como a importância deste, em termos de tamanho, cores, material, técnica e quantidade torna-se mais expressiva a partir do século XIX. Anteriormente, o brinquedo constava como produto secundário de trabalhos manufatureiros: objetos de madeira feitos pelo marceneiro, soldadinhos de chumbo feitos pelo caldeireiro, personagens de açúcar como obras do confeiteiro. A emancipação do brinquedo ocorreu na medida em que a industrialização avançou. Para Benjamin (1984), se é adequado apresentar à criança objetos feitos de materiais heterogêneos, também se sabe que a criança é capaz de, a partir de um único material, extrapolar barreiras da praticidade e simplicidade e atribuir a um objeto uma diversidade de representações e sentidos. Assim, ao projetar brinquedos, os adultos projetam também uma interpretação sobre a infância e sobre a brincadeira, o que, nas palavras deste autor (1984, p.69), é um equívoco, já que se acredita erroneamente “[...] que o conteúdo imaginário do brinquedo determinava a brincadeira da criança quando, na verdade, dá-se o contrário.”

O binarismo brincar/trabalhar, na história das sociedades do Ocidente, tornou-se mais progressivamente mapeado em relação à dicotomia criança/adulto que serve, concomitantemente, como sintoma e causa da separação conceitual entre o mundo adulto e o infantil. No final do século XIX, na Inglaterra, por ex., as crianças foram removidas do mundo do trabalho e a diferença entre as duas esferas foi mais fortemente acentuada. No século XX essa diferença serviu para acentuar os estigmas dos status socialmente atribuídos, como o caso de um adulto desempregado ou de uma criança trabalhadora, pois ambos estariam fora da “normalidade”: adultos sem trabalhar e crianças sem brincar (PROUT; JENKS; JAMES, 1998).

Assim, seria mais interessante não avaliar ou relacionar as ações das crianças como restritas ao ato de brincar, se quisermos compreender mais diretamente suas ações e motivações como atores sociais. As brincadeiras devem ser vistas mais como um contrassenso do que como dotadas de sentido, mais sobre experimentos e transformações do que mimetismo e repetição. Além disto, se pensarmos a criança como aquela que está apreendendo as regras do mundo adulto, deve-se também pensar em formas mais inventivas desse conhecimento ser adquirido (PROUT, JENKS, JAMES, 1998).

Arce (2015) discorre sobre a atuação e competência social das crianças, tanto nas sociedades simples quanto nas complexas (urbanas e industriais)[vi]. Em relação às últimas, afirma que as crianças agem seja como assistentes (junto aos adultos), como resistentes (enfrentando os adultos) ou de maneira solidária (entre pares, independentemente da relação com adultos); e considera que elas tentam persistentemente obter controle sobre suas vidas (em um meio onde esse controle/poder é dado aos adultos), sendo esta conquista sempre compartilhada no grupo de pares. Assim atuando, as crianças alçam suas vozes em casa, colégios ou outros espaços protegidos, para criar uma “harmonia muitas vezes cacofônica” aos ouvidos adultos (ARCE, 2015, p.160-163). Devido, no entanto, ao desequilíbrio de poder intergeracional, elas nem sempre podem envolver-se em resistências ou oposição aberta a estes. Como grupo subordinado, agem nos bastidores (“tras bambalinas”) pela criação de um roteiro oculto (“guión oculto”), no que Corsaro (2011), a partir de E. Goffman, como já visto acima, denominou de “ajustes secundários”.

Nessa lógica, a ação infantil pode preocupar ou perturbar os adultos por revelar as crianças como atores capazes de controlar seu mundo através de jogos, linguagens e metáforas próprias. Neste caso, a brincadeira pode representar um “risco” ao “desenvolvimento normal” se não estiver atrelada à metáfora do progresso (ou do “futuro”), no sentido de que a brincadeira “boa” é a que promove aprendizagem, e é pensada, decidida e dirigida pelo adulto, de forma que fique cada vez mais regulada e restrita, especialmente nas escolas. Neste viés, Sirota (2001, p.14) postula que a emergência da SI se deve ao surgimento do chamado “ofício de criança”, onde se busca uma discussão sobre a infância afastada dos termos da Sociologia da Educação. O ofício de criança, nas sociedades que determinam a escolaridade como exercício obrigatório das crianças, revela o desempenho de papéis institucionalmente prescritos, validando a condição de aluno. Ou seja, “com a escola, a infância foi instituída como categoria social dos cidadãos futuros, em estado de preparação para a vida social plena”, pois ao ocupar-se essencialmente do aluno, a instituição “esquece” a “criança” como sujeito que carrega emoções, saberes e aspirações, e destaca a figura do “aprendiz”, avaliado, premiado ou sancionado tendo como meta a idade adulta. (SARMENTO, 2011, p. 588).

A produção cultural das crianças no contexto institucional das escolas está enquadrada pela chamada cultura escolar, onde já estão previamente estabelecidos uma série de horários, espaços e normas. Assim é que as crianças acabam por participar de duas teias sociais, como já referido. Ou seja, o seu pertencimento à uma rede social já definida não impede o surgimento das culturas infantis. Por outro lado, se as culturas infantis são constituídas a partir da formação dos grupos de pares, então elas também podem ser observadas a partir de contextos não relacionados aos tempos e espaços da instituição escolar. Seria o caso, por exemplo, dos grupos que se reúnem para brincar nas ruas, condomínios, festas de família ou festas comunitárias, etc. Isso viria ao encontro de um dos princípios da SI, que é o de “desescolarizar” a abordagem da infância, o que significa realizar pesquisas sobre e com crianças também em ambientes não escolares.

As possibilidades de formação das culturas infantis fora do espaço escolar, como nos grupos formados nas brincadeiras nas ruas, entre as crianças de uma mesma vizinhança, foram pioneiramente analisadas por Florestan Fernandes (2004), em estudo realizado nos anos 1940. Este autor atribuiu a esses grupos infantis o nome de “trocinhas”: grupos de crianças que se encontravam cotidianamente para brincar nas ruas e, à medida que as relações entre os pares iam se estreitando, para além da simples recreação ia se formando uma identidade de grupo, com ritos, linguagem e organização própria. Assim, as trocinhas podiam durar muitos anos, mesmo com a partida de seus membros.

Isto serve para pontuar que, embora as culturas infantis apareçam atualmente mais marcantemente (ou visivelmente) nas escolas, a sua produção não está condicionada a esta instituição. O fato é que as muitas horas diárias que as crianças passam hoje nas creches e escolas, propiciam que esses cenários sejam os locais onde as culturas infantis aparecem ou se formam de maneira mais acentuada e, por isto, também têm sido os locais onde as atuais pesquisas sobre crianças tendem a se concentrar.

Com o exposto, refletimos que, mesmo que Corsaro não represente a criança como “aluno” em suas pesquisas, o fato destas estarem sempre situadas em creches condiciona, em grande medida, devido à ordem institucional, as formas e extensão das culturas infantis. Para Prout, Jenks, James (1998) isto representa uma restrição metodológica ao mesmo tempo que evidencia a escola como instituição que contextualiza e enquadra a vida social das crianças na atualidade. Portanto, embora as relações entre pares sejam importantes para o desenvolvimento das crianças, deve-se ter também o cuidado para que não se advogue uma autonomia ou independência que são insustentáveis na vida em sociedade (PROUT, 2010).

 

Considerações complementares

A SI coloca em evidência a capacidade de ação das crianças na vida cotidiana, de modo geral, e na construção das culturas infantis, de modo particular. Trata-se, sob muitos aspectos, de um desafio teórico e metodológico, devido ao fato de que tais culturas são complexas, plurais e instáveis, considerando as inúmeras influências que sofrem além das relações intersubjetivas travadas pelas crianças, pois tem-se ainda as concepções naturalizadas sobre o que é uma criança (sua “natural” passividade e heteronomia) e sobre como ela deve ser educada, e o fato de estarem sempre em relação com outras “culturas”, a dos adultos, de modo geral, e a escolar, de modo particular. Tudo isto simultaneamente relacionado aos contextos local e global.

Outro grande desafio teórico é o fato de que, ao mesmo tempo em que o princípio da criança-ator, ou da criança como produtora de cultura, ganhava espaço na teoria sociológica, muitas críticas, tanto internas quanto externas à SI, eram realizadas ao novo paradigma. Uma crítica inicial destacava o risco do princípio da criança ator estipular um novo viés normativo (uma “nova ortodoxia”) ou o de se tornar um “slogan vazio” por sua mera repetição nas pesquisas sem a devida fundamentação empírica. Isto é, o fato de as crianças passarem a ser compreendidas pela teoria sociológica como atores sociais não obscurecia a evidência de que suas vidas são largamente determinadas pelos adultos, além de serem o grupo social que em poucas situações consegue se representar independentemente. Também o fato de as políticas educacionais e os processos legais e administrativos causarem profundos efeitos nas suas vidas enquanto elas detêm pouca ou nenhuma influência sobre estes. Outra crítica aponta que a ênfase na capacidade de ação das crianças chegou tardiamente e sem valor conceitual à SI, por reproduzir dicotomias sociológicas clássicas (ator x estrutura social, por ex.) já incapazes de dar conta do caráter instável, ambíguo e flexível dos fenômenos sociais na contemporaneidade. 

Marchi (2017), ao fazer um balanço dessas críticas no intervalo de dez anos (2005 a 2015), argumenta que as crianças são atores sociais independentemente desse reconhecimento por parte dos adultos. E isso simplesmente porque são seres sociais no presente e, como tais, se comunicam com outros seres de sua própria cultura atuando tanto na reprodução quanto na produção de sentidos compartilhados: “(..) queiram os adultos ou não, reconheçam ou não a ação social das crianças, essa ação existe mesmo quando ela não é socialmente reconhecida ou valorizada.” (MARCHI, 2017, p. 624). É também neste sentido que Delalande (2014 apud MARCHI, 2017) define as crianças como “atores nas sombras”, pois não são vistas pelos adultos como efetivas parceiras do cotidiano político, social e cultural. Destarte, esta autora enfatiza que, longe de ser algo adquirido, definir o conceito de ator social “é a tarefa de todo pesquisador que participa de uma reflexão coletiva”[vii], pois “esses dois conceitos (`ator social´ e `culturas infantis´) retiram as crianças de uma representação social em termos de `seres em devir´, reconhecendo sua capacidade de agir no mundo.” (MARCHI, 2017, p. 623 - destaques no original). 

Neste sentido, as crianças atuam, com relativa autonomia e dentro das possibilidades de seus contextos, como forma de existir e ressignificar, à sua maneira, a vida e a sociedade ao redor. Nossa responsabilidade é a de levar em consideração tanto os elementos comuns que caracterizam as infâncias quanto as singularidades a partir das ações das crianças em contextos específicos. Por isto é que o reconhecimento da agência infantil opera como um “princípio de desacoplamento” entre o desenvolvimentismo e a socialização/educação, pois a aprendizagem e o crescimento, próprios da infância, já não precisam pressupor o binarismo que subordina a infância à adultez (vir a ser), isto é, o tempo presente ao tempo futuro (ARCE, 2015).

Assim, o conceito de culturas infantis, junto ao conceito irmão de reprodução interpretativa, representa um esforço teórico e metodológico para pesquisar com crianças de forma horizontalizada, mais próxima dos seus “mundos de vida”, o que remete diretamente ao ambiente escolar, local onde se concentram as pesquisas que têm a SI como base teórica, pois ele oferece solo e cenário para seu surgimento e desenvolvimento. Isto explica o fato de a maior parte dos estudos ter sido realizada neste espaço restrito e disciplinar, apesar da implicada limitação metodológica, como tratado neste artigo.

Concordamos com Marchi (2017) quando afirma que, seja lá como for que a emancipação das crianças aconteça no plano empírico, ou seja, estando com mais ou menos intensidade presente na vida das crianças, é preciso que a relação entre o discurso científico e a realidade à qual ele se refere seja situada no quadro daquilo que Giddens (1989) chama de reflexividade da vida social moderna, ou de “dupla hermenêutica”: um “modelo de reflexividade” que diz respeito às recíprocas relações entre os cientistas sociais e seus objetos de estudo, no processo de construção do conhecimento. Operar no quadro da dupla hermenêutica significa considerar que, ao mesmo tempo que os cientistas sociais recorrem aos conceitos de senso comum para a produção de conhecimento, os atores sociais se apropriam também dos conceitos científicos, introduzindo-os nas suas ações que serão novamente analisadas pelos primeiros e assim por diante, numa “reentrada subversiva” contínua do discurso científico nos contextos que analisa: “as práticas sociais são constantemente examinadas e reformuladas à luz de informações renovadas sobre estas próprias práticas, alterando assim, constitutivamente seu caráter” (Giddens, 1989, p. 45).

 

É por isso que a “dupla hermenêutica” consta como um dos princípios na construção do novo paradigma para os estudos da infância. Se teorizar sobre ela implica envolver-se no seu processo de desconstrução/reconstrução na contemporaneidade, os riscos ou consequências do que afirmarmos sobre as crianças recairão sobre elas próprias e sobre as formas sociais de sua compreensão (MARCHI, 2017). Assim, o caminho mais indicado está na busca de uma teoria cuja reflexividade esteja na prática tanto de pesquisadores quanto de educadores. Isto para que o efeito desejado não se volte contra a ideia de renovação das práticas escolares e, em última instância, contra as próprias crianças.

Diante do fato que os conhecimentos produzidos sobre a criança e a infância refletem e modificam tanto as práticas sociais quanto as formas de fazer pesquisa, incluindo as questões éticas, a SI tem, portanto, uma responsabilidade política quanto à teoria e às práticas que produz, tendo em vista que qualquer tentativa de estabelecer categorias universais estará fadada ao fracasso. Nesse sentido, o possível viés normativo do novo paradigma é em parte afastado pela ênfase que essa disciplina dá à existência da diversidade e pluralidade das infâncias em termos etários, de classe, de gênero, etnia, etc. 

Diversidade que é refletida nos modos de constituição, compartilhamento e reprodução das culturas infantis e que cabe aos pesquisadores considerar na delicada tarefa de produção do seu conhecimento; uma análise não somente das ações, significados e artefatos produzidos pelas crianças, mas no seu encadeamento dialético  com o restante da sociedade e com os modos de administração simbólica da infância; isto é, o atravessamento das culturas infantis pelas relações de poder tanto entre gerações quanto intrageracionais, no micro e no macro contexto social e político.  Considerar, ainda, que a investigação dessa produção cultural precisa ser expandida para fora dos muros escolares, de modo a não circunscrever a SI a uma esfera da qual ela tentou inicialmente se afastar ao propor a premissa da desescolarização da abordagem da infância.

 

Referências

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Notas



[i] A participação das crianças nas pesquisas na áreas das ciências sociais é tema atual de debate como destacam Fernandes; Marchi (2020, p.4): “Desde a criança observada, a criança entrevistada ou, ainda, a criança pesquisadora, múltiplas e diversas são as formas de conceber essa participação, sendo talvez a imagem da criança como pesquisadora ou copesquisadora (Alderson, 2005) a mais improvável e menos frequente nas possibilidades de envolvimento desses atores sociais nos processos de investigação”. Sobre este tema, ver também Fernandes;Souza (2020).

[ii] A escola Cultura e Personalidade surgida na década de 1930, influenciada pelo trabalho de Boas, atribui importância à relação entre indivíduo e cultura, de forma a questionar como a cultura apresenta-se ou manifesta-se na personalidade do indivíduo, sem determinismos universais ou naturais (CUCHE, 2002). Alguns dos principais teóricos dessa escola são: Ruth Benedict (1887-1948), Margaret Mead (1901-1978), Ralph Linton (1893-1953) e Abram Kardiner (1891-1917).

[iii] Esta ideia da participação das crianças em dois mundos – o adulto e o infantil – está no cerne da compreensão do conceito de Reprodução Interpretativa, desenvolvido por Willian Corsaro, que compreende o desenvolvimento infantil a partir da interação da criança em diferentes “teias sociais” ou esferas que afetam as crianças - a partir de suas estruturas - e que são igualmente afetadas pelas crianças - a partir das ações infantis. (Cf CORSARO, 2011; EVANGELISTA; MARCHI, 2022).

[iv] Contudo, pode-se questionar esta crítica de Sarmento em relação ao modo como Corsaro “tipifica” as culturas infantis em “material” e “simbólica”, considerando que o próprio autor afirma, como visto acima, que os aspectos materiais das culturas infantis dizem respeito à materialização do simbólico. Assim, ele mesmo desfaz a separação que parece construir apenas de forma didática ou analítica. Além disto, o modelo da teia global, embora não situe os elementos materiais e simbólicos das culturas infantis, apresenta um desenho em espiral, indicando o movimento relacional entre seus elementos.

[v] Trata-se da prescrição de regras implícitas e explícitas que cerceiam ou orientam as ações das crianças e as dos adultos em relação a elas. Essa administração tem sua forma mais evidente em documentos e estatutos destinados à infância, como a Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças ou, no nível nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente -ECA, por ex., mas também inclui atitudes cotidianas consensuais (nem sempre formalizadas) sobre o que é próprio ou impróprio aos menores de idade na vida em sociedade.

[vi] Este autor disserta sobre as crianças que “desafian el modelo hegemónico: niñas e niños cazando, recolectando agua o comida, cocinando, pastoreando, cuidando a sus hermanos menores (...) aprendiendo, mas que sendo enseñados, imbuídos de um ´ethos de autossuficiencia´, de autonomia, que es reconhecido y respetado por los adultos; trabajando em el campo, em las industrias rurales y luego em las fábricas de la insdustrialización (...).” (ARCE, 2015, p.162 – destaque no original).

[vii] Isto é, o “interesse heurístico” do conceito de criança ator que deve ser avaliado por cada pesquisador (DELANDE, 2014 apud MARCHI, 2017, p.623).

 

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