Prescrições para o ensino remoto emergencial:

análise de parecer do CNE


Prescriptions for emergency remote teaching:

analysis of the opinion of the CNE

 

Prescripciones para la enseñanza remota de emergencia:

análisis de dictamen del CNE

 

Denise Lino de Araújo

Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB, Brasil

denise.lino@professor.ufcg.edu.br

 

Diego Andrade Silva

Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, PB, Brasil

diego.andrade@estudante.ufcg.edu.br

 

Recebido em 19 de novembro de 2021

Aprovado em 08 de setembro de 2022

Publicado em 20 de junho de 2023

 

 

RESUMO

O ensino remoto emergencial na educação básica foi adotado, no Brasil, no ano de 2020, devido à suspensão das aulas presenciais, como decorrência da pandemia por COVID-19. Essa modalidade de ensino foi regulamentada por pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE) e das secretarias estaduais de ensino. Este artigo tem como objetivo analisar prescrições para o funcionamento de escolas desse nível da educação, tendo como foco os conceitos de ensino remoto emergencial e currículo. Para isso, foi realizado um estudo documental do parecer 05/2020 do CNE. A análise de dados revelou que do documento emana um currículo de perspectiva tradicional, voltado para a aplicação BNCC, desconsiderando o contexto pandêmico. Além disso, as prescrições apontam para dois movimentos – ancoramento e afastamento – que tentam, de um lado, aproximar do cotidiano escolar novos elementos, como plataformas e redes sociais, ao mesmo tempo que indicam a manutenção de práticas e rotinas próprias da modalidade presencial de ensino, como planejamento focado no cronograma e a realização de atividades de avaliação.

Palavras-chave: Ensino Remoto Emergencial; Currículo; Educação Básica.

 

ABSTRACT

Emergency remote teaching in basic education was adopted in Brazil in 2020, due to the suspension of in-person classes, as a result of the COVID-19 pandemic. This teaching modality was regulated by recommendation from the National Council of Education (CNE) and from the state education secretariats. This article aims to analyze prescriptions for the functioning of schools at this level of education, focusing on the concepts of emergency remote teaching and curriculum. For this, a documental study of the opinion 05/2020 of the CNE was carried out. Data analysis revealed that the document emanates a curriculum with a traditional perspective, aimed at the BNCC application, disregarding the pandemic context. In addition, the prescriptions point to two movements - anchoring and distancing - that try, on the one hand, to bring new elements closer to everyday school life, such as platforms and social networks, while at the same time indicating the maintenance of practices and routines typical of the presential modality teaching, such as schedule-focused planning and carrying out assessment activities.

Keywords: Emergency Remote Learning; Resume; Basic education.

 

RESUMEN

La enseñanza remota de emergencia en la educación básica fue adoptada, en Brasil, en el año de 2020, en razón de la suspensión de las clases presenciales, debido a la pandemia provocada por el COVID-19. Esa modalidad de enseñanza fue reglamentada por informes del Consejo Nacional de Educación (CNE) y de las secretarias estatales de enseñanza. Este artículo tiene como objetivo analizar prescripciones para el funcionamiento de escuelas de ese nivel de educación, con énfasis en los conceptos de enseñanza remota de emergencia y currículo. Por ello, fue realizado un estudio documental del informe 05/2020 del CNE. El análisis de datos reveló que el documento emana un currículo de perspectiva tradicional, direccionado para aplicación de la BNCC, desconsiderando el contexto pandémico. Además, las prescripciones apuntan a dos movimientos – anclaje y distanciamiento – que intentan, por un lado, acercar a la rutina escolar nuevos elementos, como plataformas y redes sociales, al mismo tiempo que indican la manutención de prácticas y rutinas propias de la modalidad presencial de enseñanza, como la planificación enfocada en el cronograma y la realización de actividades de evaluación.

Palabras-clave: Enseñanza Remota de Emergencia; Currículo; Educación Básica.

 

INTRODUÇÃO

O ensino remoto emergencial na educação básica no Brasil decorreu da suspensão das aulas presenciais em todo o país, em março de 2020, provocada pela pandemia da COVID-19. Esse modelo vigorou de março a dezembro de 2020 e ao longo de todo o primeiro semestre de 2021. No segundo semestre daquele ano, as aulas presenciais foram sendo retomadas, aos poucos, em todo o país.  

    A migração para a modalidade ensino remoto foi, de fato, uma necessidade para que a educação básica não tivesse as atividades paralisadas por muito tempo. De um lado, significou a manutenção das funções sociais da escola, entre elas a sociabilidade; de outro, significou do ponto de vista do empregador, seja ele o Estado ou a iniciativa privada, o modo pelo qual se justificava o pagamento de salários de professores.

Nesse processo de mudança forçada para a modalidade remota, um fato importante a ser considerado diz respeito ao(s) currículo(s), pois todos documentos para a educação básica no Brasil estavam pensados para a modalidade presencial.

Com objetivo de normatizar a situação, os órgãos gestores da educação expediram portarias e pareceres. Dentre os vários publicados, focalizamos o parecer 05/2020 emitido pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), em 28 de abril, tomado como referência pelos órgãos estaduais na emissão de seus pareceres internos.  

Importa considerar que a mudança ocorrida afetou o lugar onde aconteciam e as aulas, assim como afetou as ferramentas que mediavam as interações entre professor/aluno, conhecimento e os materiais didáticos disponibilizados. Além disso, essa mudança que decorre de uma muito maior -  atravessar um período pandêmico -  afetou não apenas o currículo prescrito, mas também o currículo oculto.  

Esse cenário de transmutação das atividades de ensino, com novas resoluções, suscitou a pergunta que norteia a pesquisa à qual a este artigo se vincula, a saber: Que currículo emerge da documentação oficial sobre educação remota para as escolas da educação básica, no contexto do distanciamento social decorrente da COVID-19? 

   Para obter a resposta à pergunta em tela, temos como objetivo analisar as prescrições para o funcionamento de escolas da educação básica, no período pandêmico, com foco no currículo. Para alcançá-lo, estabelecemos (cf PENNA, 2015) uma sequência cronológica de ações dentro do processo de pesquisa, a saber: (1) fazer curadoria no site do CNE em busca de documentos relativos ao ERE; (2) identificar nos documentos selecionados o que diz respeito ao currículo na modalidade ERE; (3) relacionar a(s)proposta(s) de currículo às perspectivas de estudo do currículo. No âmbito deste trabalho, documento está sendo entendido à luz da perspectiva de documento-monumento apresentada por Jacques Le Goff (1996). 

Este artigo está composto de quatro seções estruturantes além desta introdução. Na fundamentação teórica, discorre sobre os dois principais conceitos tratados – ensino remoto emergencial e currículo. A segunda versa sobre a metodologia de análise dos dados documentais. A terceira apresenta a análise de dados. Por fim, expõem-se as considerações finais.  

 

Ensino remoto e currículo: definições para encaminhar a leitura dos dados

A expressão ensino remoto emergencial (ERE) parece ter se popularizado no Brasil a partir da entrevista de Priscila Cruz para o programa Roda Vida, da TV Cultura, em 13 de abril de 2020. Na entrevista, afirma-se que ensino remoto não é educação à distância, que é uma modalidade de ensino estruturada e, no Brasil, usada basicamente para o ensino superior. De acordo com a entrevista, ERE é a modalidade de ensino que surgiu como alternativa à impossibilidade de oferta do ensino presencial, e se faz através da comunicação do professor com os alunos via whatapp, envio de lista de atividades, uso da televisão e do rádio. 

Segundo Alves (2020: 352),

Educação Remota [é um processo de ensino-aprendizagem], isto é, práticas pedagógicas mediadas por plataformas digitais, como aplicativos com os conteúdos, tarefas, notificações e/ou plataformas síncronas e assíncronas, como o Teams (Microsoft), Google Class, Google Meet, Zoom

 

Conforme definem Médici et al ( 2020: 141),

é importante ressaltar que o ensino remoto não é sinônimo de aula online. É uma ferramenta que pode ser utilizada pelos professores, a fim de estimular a aprendizagem a distância. Por meio de atividades bem estruturadas, podem cumprir mais do que uma função puramente acadêmica. O momento requer uma reflexão acerca de inovação.

Esses mesmos autores (op cit. 140) advertem:

A tecnologia digital tem seu uso indicado como alternativa para suprir as lacunas deixadas diante da impossibilidade de realizar aulas presenciais, ou seja, a educação pode ser mediada pelos recursos de multimeios e o ensino remoto se constitui em uma possibilidade de ensinar e aprender. Blikstein (2020), apresenta o ensino   remoto   como   uma   alternativa   para   mitigar   os   efeitos   da   pandemia  do coronavírus na educação, a exemplo do que tem sido feito em diversos países do mundo.

 

Como se pode observar, o ponto em comum diz respeito ao ERE como modalidade de ensino que surgiu em resposta à impossibilidade de aulas presenciais e que se utiliza de plataformas digitais, aplicativos e meios comunicação de massa. Todas essas possibilidades já eram usadas, mas de forma não institucionalizada em muitas experiências de ensino antes da pandemia, como possibilidades de comunicação professor/aluno.

É comum a ocorrer a associação sinonímica entre ERE a ensino a distância, porém essa interpretação não encontra sustentação na literatura, tendo em vista que essas duas modalidades foram idealizadas para atender a finalidades diferentes.

Uma importante distinção, do ponto de vista jurídico, é a de que essas duas modalidades de ensino obedecem a duas regulamentações diferentes. Começando pelo ERE, ele é regulamentado pelas portarias 343, 345, 395, 544 do Ministério da Educação (MEC), todas do ano de 2020, mais a medida provisória 924/2020 que foi convertida na Lei nº 14.040/2020. A primeira portaria do MEC que visou a regulamentação do ERE foi a nº 343/2020 e data do dia 17 de março do referido ano, cujo objetivo era:

 

Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017. (BRASIL, 2020)

 

Nessa portaria, é possível identificar algumas delimitações que são próprias da modalidade ERE. A primeira delas é o caráter excepcional da medida, marcado pelo adjetivo “emergencial”. Nesse sentido, o ensino é considerado a partir de uma situação inesperada e imprevista (cf. PAIVA JÚNIOR, 2020). Cabe destacar ainda que esta medida tem o caráter provisório, o que a aproxima da definição dada por Bozkurt e Sharma (2020), quando se referem ao ensino remoto de emergência, caracterizando-o como uma solução temporária para uma problemática que se instala de modo imediato. Outra delimitação própria da modalidade ERE é a transferência da situação presencial para os meios digitais.

Diante disso, conforme destacado por Charczuk (2020, p. 5) “não existe planejamento ou modelos teórico-conceituais específicos e prévios para sua prática; há apenas a transposição do trabalho presencial para um espaço digital ou impresso.” Essa transferência surge como uma adaptação da comunidade escolar diante do distanciamento social, em função da pandemia por COVID-19, na tentativa de não cessar as atividades educacionais. O ensino é considerado remoto porque os professores e alunos estão impedidos de frequentar instituições educacionais para evitar a disseminação do vírus (cf. PAIVA, 2020). 

Quanto à EAD, temos o seguinte:

Art. 1º Para os fins deste Decreto, considera-se educação a distância a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos. (BRASIL, 2017) 

 

Fica evidente que, diferentemente do ERE, o modelo de educação a distância não possui um caráter provisório de adaptação em face de uma situação imprevista. Podemos destacar como o principal fator que difere o EAD do ERE, a presença de um modelo didático-pedagógico próprio. Esse modelo, como pontuado por Paiva (2020, p. 49) “deve constituir uma proposta que trabalhe os aspectos organizacionais, conteúdos, metodologias e tecnologias”. Dessa forma, a existência prévia de um modelo didático-pedagógico, que irá reger as atividades de ensino, no que se refere a organização, conteúdo, metodologia e tecnologia, é a principal diferença entre ensino a distância e ensino remoto emergencial.

Isto posto, podemos pensar em currículo, partindo da premissa que independente da modalidade, presencial, à distância ou remota, toda experiência de ensino, organiza-se em função de uma proposta de aprendizagem com certa validação social, no sentido de que uma proposta para uma rede passou pela etapa de avaliação com consultores ou foi chancelada por alguma instância.   

De acordo com Silva (2010), os estudos sobre currículo podem ser organizados didaticamente em três grandes correntes teóricas: teorias tradicionais, teorias críticas e pós-críticas. Todas elas refletem concepções de currículo segundo as demandas educacionais e econômicas da sociedade em um determinado momento histórico, visando como “produto” final a identidade do sujeito que passa pelo processo educacional. 

De acordo com o autor (2010 p. 15), “se quisermos recorrer à etimologia da palavra 'currículo', que vem do latim curriculum, ‘pista de corrida', podemos dizer que no curso dessa ‘corrida’, que é o currículo, acabamos por nos tornar o que somos”. Vemos nessa concepção, a ideia de currículo como percurso, que permite, de certa forma, uma compreensão parcial do que é o currículo enquanto processo. Para reforçar essa análise situada, o autor (op. cit) aponta que: 

Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é. A abordagem aqui é muito menos ontológica (qual é o verdadeiro "ser" do currículo?) e muito mais histórica (como, em diferentes momentos, em diferentes teorias, o currículo tem sido definido?). (SILVA, 2010, p.15). 

 Para compreender os conceitos de currículo, vamos discorrer brevemente a partir do ponto de vista das três concepções já citadas, a partir da descrição de Silva (2010).  Sobre a primeira dessas contribuições que têm o currículo como objeto de estudo e pesquisa, o autor (2010, p. 12) afirma que:

Provavelmente o currículo aparece pela primeira vez como um objeto específico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos dos anos vinte. Em conexão com o processo de industrialização e os movimentos imigratórios que intensificavam a massificação da escolarização, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas sobretudo à administração da educação, para racionalizar o processo de construção, desenvolvimento e testagem de currículos. As ideias desse grupo encontram sua máxima expressão no livro de Bobbitt, The curriculum (1918). 

 

Essa concepção pode ser melhor entendida se tivermos em mente o fluxo migratório da zona rural para os centros urbanos em razão dos postos de trabalho oferecidos pelo processo de industrialização, que teve como reflexo a necessidade de massificação da escolarização para atender a demanda de mão de obra minimamente qualificada. E pode também ser compreendida se pensarmos o fluxo migratório das periferias para o centro, dos bairros de operários para os centros de trabalho.  A observação desses fluxos deu origem às primeiras teorizações sobre currículo, conhecidas como tradicionais.

Fruto de uma noção mais administrativa do que educacional, o modelo tradicional pretendia especificar resultados a serem atingidos, estabelecer métodos para obtê-los de forma precisa e formas de mensuração que permitissem saber com precisão se eles foram realmente alcançados. A noção de currículo que resulta dessa sistematização prioriza questões de natureza técnica e que se referem às habilidades necessárias para a ocupação na vida adulta. As teorias tradicionais tratam a pergunta "o quê ensinar” como óbvia, uma vez que aceitam o status quo, assim sendo, buscam responder outra questão "como ensinar”. Dessa forma, tratam como foco principal quesitos de organização e transmissão do conhecimento. Para Silva (2010, p. 16), “as teorias tradicionais pretendem ser teorias neutras, científicas e desinteressadas”.

Essa perspectiva teórica deu conta de uma parte dos problemas no campo do currículo, excluindo várias outras, sobretudo aquelas relacionadas ao que ensinar e para quem, levando em consideração que as migrações trouxeram para a escola pública, em especial, públicos distintos, com experiências, saberes, referências e linguagens distintas. A observação dessas questões levou às teorias críticas, em cujo âmbito nasceu uma expressão muito cara aos estudos aqui focalizados: o currículo oculto. De acordo com Silva (2010:30), “as teorias críticas são teorias de desconfiança, questionamento e transformação radical.”

O foco que antes se preocupava em como organizar e transmitir o conhecimento, passou a ser direcionado para entender o quê é o currículo e quais suas implicações na construção da identidade do sujeito. Em busca de respostas para essa nova pergunta, o movimento de teorização crítica do currículo discute a categoria poder para responder a questão do conhecimento considerado válido e eleito para o currículo.

Segundo as teorias críticas, a transmissão da ideologia vigente se divide em dois “canais”, são eles: o conteúdo escolar e as relações sociais. Essa relação entre conteúdo e ideologia é explicitada no seguinte trecho: “a escola contribui para a reprodução da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as crenças que nos fazem ver os arranjos sociais existentes como bons e desejáveis.” (SILVA, 2010, p. 32).

A análise de Silva (2010) reconhece que o funcionamento da escola incorpora à psique dos alunos atitudes de comando ou obediência. Esse trato diferenciado ao aluno se dá a partir do entendimento de que há escolas direcionadas aos filhos dos trabalhadores subordinados e escolas direcionadas aos dos trabalhadores nos níveis mais altos da escala ocupacional.

Esse segregacionismo reforça, de maneira condicionante, as relações sociais do local de trabalho. Para subordinados, essas relações demandam atitudes como: obediência às ordens, pontualidade, assiduidade e confiabilidade. Já para os situados hierarquicamente acima daqueles, as demandas são outras: capacidade de comandar, formular planos e se conduzir de maneira autônoma. Nesse sentido, essa correspondência nas relações sociais entre a escola e o ambiente de trabalho contribui para moldar, de maneira enviesada, o perfil do sujeito de acordo com sua classe.

De modo mais radical do que as teorias críticas, as pós-críticas têm como foco observar, de maneira pormenorizada, os chamados grupos culturais minoritários por suas características étnicas, raciais, culturais e de gênero – envolvidos nesse processo. Trata-se de uma tentativa de compreender detalhadamente as dificuldades e diferenças sociais particulares a cada um desses grupos e de como o currículo contribui, a partir de sua composição, para o surgimento de obstáculos que os impeça de ascender socialmente. 

O currículo multiculturalista, segundo Silva (2010), amplia as noções de desigualdade para além das questões de classe, uma vez que evidencia outras dinâmicas como as de gênero, raça e sexualidade também como produtoras de desigualdades. O surgimento do multiculturalismo acontece a partir de críticas desses grupos culturais subordinados – mulheres, negros, mulheres e homens homossexuais - ao cânone curricular, assim como da ampliação das perspectivas humanista e crítica, na proposição curricular.

O estudo de Lopes e Macedo (2011) contribui para acrescentar à descrição acima um aspecto fundamental e central para as teorias críticas e pós-críticas, qual seja o cotidiano no currículo.  De acordo com as autoras, o aspecto mais marcante dos estudos nos/ dos/ com os cotidianos é a sua compreensão de que escola e os demais contextos da vida do sujeito estão interligados.  É com base nessa interligação que se constitui o sujeito e suas redes de subjetividades, e isto interessa as duas últimas teorias citadas.

Para as autoras, as noções de contexto são pensadas a partir da noção de prática social, o que permite perceber a prática como fato cultural e como espaço de composição de conhecimentos que obedece a uma lógica própria e diversa da científica, a lógica do cotidiano. Essa noção de currículo partindo da prática social é denominada de em rede e justifica-se “na medida em que as relações contemporâneas tendem a maior fluidez, horizontalidade, criatividade e coletivização, a centralidade do conhecimento científico cede espaço para outros saberes relacionados à ação cotidiana.” (LOPES e MACEDO, 2011, p. 161). Essa justificativa tem respaldo no modelo epistemológico de rizoma, proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Partindo desse referencial teórico, Lopes e Macedo descrevem um dos principais argumentos dos estudos nos/ dos/ com os cotidianos:

 

Os conhecimentos, em sentido amplo, são tecidos em redes constituídas na inter-relação complexa de diferentes contextos. Qualquer acontecimento que se passe na escola, e os eventos curriculares são alguns deles, não é produzido apenas na escola nem fica a ela restrito. Ele intercepta um enorme contingente de contextos trazidos para a escola pelos diferentes sujeitos que a frequentam e passa a fazer parte dos outros contextos em que esses sujeitos se constituem. (LOPES e MACEDO, 2011, p. 161).

 

O entendimento de currículo, aqui, é identificado como uma rede que é composta simultaneamente por diversas ramificações.  Isto posto, assume-se neste artigo que, assim como o ensino presencial, também para o ensino remoto, o contexto no qual se dá o ensino, os contextos dos sujeitos e o contexto da sociedade influenciam recursiva e conjuntamente o currículo prescrito, construído, ensinado e vivenciado na escola.

Isto posto, passamos a descrição dos procedimentos metodológicos.

 

METODOLOGIA

A presente pesquisa está situada no campo da Linguística Aplicada, tendo como foco de investigação o currículo emergente no contexto do ensino remoto, a partir de documento oficial. A abordagem utilizada é de natureza qualitativa que, de acordo Penna (2015:102), trata-se de “uma abordagem sistemática, cujo objetivo principal é compreender as qualidades de um fenômeno específico, em um determinado contexto”. Essa abordagem se mostra pertinente e alinhada aos objetivos da pesquisa, uma vez que o fenômeno investigado (currículo emergente) se deu em decorrência de um contexto específico (pandemia da COVID-19). Quanto ao tipo, esta é uma pesquisa documental, pois focaliza a análise de documento normativo de domínio público.

Documento é entendido neste trabalho a partir do conceito de documento/monumento defendido por Le Goff (1997):

 

Documento é antes de mais o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das sucessivas épocas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (p. 103)

 

Essa compreensão é fundamental para a interpretação do documento estudado, que é o Parecer CNE/CP nº: 5/2020[1] aprovado em 28/4/2020. Este é um documento de âmbito federal, que trata da reorganização dos calendários escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da COVID-19.

O procedimento de análise consistiu em (re)ler o documento à luz de categorias emanadas da revisão teórica, a saber: (1) conceito de ensino remoto, (2) currículo, (3) planejamento e (4) avaliação. Essas duas últimas foram presumidas a partir do enfoque teórico, pois estão atreladas ao conceito de currículo e, tal como este, variáveis em função do aporte de fundamentação.  

 Assim, o processo de geração de dados consistiu em buscar pistas linguísticas das definições desses conceitos, tendo em vista coligi-las para, por fim, identificar que currículo emerge do documento focalizado. Durante esse processo, surgiu uma categoria inicialmente não prevista – (5) calendário/cronograma – que se mostrou importante na análise do Parecer do CNE. Nenhum indício relacionado a cotidiano foi identificado, sobre isso nos posicionaremos nas considerações finais.

Os dados foram organizados em excertos temáticos compostos por mais de um trecho, tendo em vista triangulação das informações ao longo do documento, como se poderá constatar na seção a seguir.

 

ANÁLISE DE DADOS

  Tendo em vista os objetivos da pesquisa que deu origem a este artigo, realizou-se inicialmente a curadoria no site do CNE para a seleção do material. Das várias portarias publicadas, entre março a maio de 2020, tendo em vista regulamentar o ensino remoto, destacamos o parecer CNE/CP5/2020, sobre a “reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da Pandemia da COVID-19” (BRASIL, 2020: 1). O procedimento de busca de outros pareceres não apresentou dados relevantes, visto que esse documento se tornou referência para redes estaduais. Desse modo, o objetivo de compilação de material foi alcançado com a coleta desse documento, cujo valor histórico deve ser preservado, por ter sido o primeiro no qual o CNE tematizou o ERE no país.

Para responder à questão de pesquisa, a análise dos dados foi organizada tendo em vista as categorias já citadas, que nos remetem a ideia de uma pirâmide invertida, focalizando do mais geral ao mais específico, de modo recursivo, conforme a ilustração a seguir:

Imagem 1 – Categorias de análise entendidas como recursivas

Fonte: Os autores (2021)

 

É importante destacar que as orientações apresentadas no documento resultam de discussões muito provisórias, em função do curto espaço de tempo entre a constatação da situação pandêmica, a suspensão das atividades presenciais nas escolas e a adoção do regime de ensino remoto.

Focalizando o documento em busca de pistas sobre a definição de ensino remoto emergencial, não identificamos uma definição explícita sobre essa modalidade de ensino.  Porém, ao longo do documento, consegue-se inferir seu conceito, conforme demonstrado a seguir, a partir das definições de atividades não presenciais, modo através do qual realiza-se o ERE.  

 

Excerto 1 – Características de ERE Parecer CNE/CP5/2020

Por atividades não presenciais entende-se, neste parecer, aquelas a serem realizadas pela instituição de ensino com os estudantes quando não for possível a presença física destes no ambiente escolar. (BRASIL, 2020, p. 6)

Cabe salientar que a realização das atividades pedagógicas não presenciais não se caracteriza pela mera substituição das aulas presenciais e sim pelo uso de práticas pedagógicas mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação que possibilitem o desenvolvimento de objetivos de aprendizagem e habilidades previstas na BNCC, currículos e propostas pedagógicas passíveis de serem alcançados através destas práticas. (BRASIL, 2020, p. 8)

Por atividades pedagógicas não presenciais entende-se o conjunto de atividades realizadas com mediação tecnológica ou não a fim de garantir atendimento escolar essencial durante o período de restrições para realização de atividades escolares com a presença física de estudantes na unidade educacional da educação básica ou do ensino superior. (BRASIL, 2020, p. 21)

 

Observando os trechos, temos, no primeiro, uma definição resumida que dá a entender que ensino remoto se caracteriza apenas pela substituição das aulas por “atividades não presenciais” (CNE, p.6). O segundo destaca que não se trata apenas da substituição das aulas presenciais por atividades não presenciais, mas que essas podem ser mediadas ou não pelas TDIC e devem estar alinhadas aos objetivos de aprendizagem previstos na BNCC. O terceiro, assim como o primeiro, faz menção ao contexto macrossocial, às medidas de distanciamento social, que estão ligadas de maneira causal à adoção de tal modalidade de ensino. Em síntese, para se chegar à definição de ensino remoto emergencial é necessária uma espécie de amálgama interpretativo por parte do leitor.

Observa-se que o documento apresenta uma denominação diferente, isto é, “atividades pedagógicas não presenciais” para ERE.  De acordo com a fundamentação teórica, a primeira portaria do MEC (nº 343/2020) a regulamentar a adoção do ER visa: “Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor[...] (BRASIL, 2020)”. Essa definição contém dois pontos que se alinham a algumas características do Excerto 1, são eles: o caráter excepcional e a mediação por tecnologias digitais.

Com base na fundamentação teórica, o primeiro ponto a ser entendido pode ser observado em dois trechos do primeiro excerto em que há as seguintes demarcações temporais: “quando não for possível a presença física” (1º trecho) e “período de restrições” (3º trecho). Dessa forma, o documento está comunicando a excepcionalidade do fenômeno, previsto por tempo indeterminado.

Já o segundo trecho diz respeito ao uso de tecnologias digitais da informação e comunicação para mediar as relações pedagógicas. Os trechos 2 e 3 do Excerto 1 citam o uso dessas tecnologias, porém, diferentemente da portaria, o parecer destaca que o uso dessas é facultativo, como pode-se observar nos trechos “práticas pedagógicas mediadas ou não por tecnologias digitais” e “atividades realizadas com mediação tecnológica ou não”.

Passando as demais categorias (currículo, planejamento, calendário e avaliação) subjacentes a esta, começamos por currículo.  Compreendendo-o como um produto da necessidade histórica da sociedade, isto é, como um artefato variável em função das demandas sociais vigentes e tendo em vista a excepcionalidade da COVID-19 e seu grau de impacto sobre a convivência presencial de toda a sociedade, supomos adaptações em virtude do distanciamento social, sobretudo a migração para os meios digitais, conforme já previsto na definição de ERE.

 A seguir, o excerto sobre currículo.

 

Excerto 2 – Currículo Parecer CNE/CP5/2020

Elaboração de sequências didáticas construídas em consonância com as habilidades e competências preconizadas por cada área de conhecimento na BNCC;[2] (BRASIL, 2020, p. 12)

Utilização, quando possível, de horários de TV aberta com programas educativos para adolescentes e jovens; (BRASIL, 2020, p. 12)

Distribuição de vídeos educativos, de curta duração, por meio de plataformas digitais, mas sem a necessidade de conexão simultânea, seguidos de atividades a serem realizadas com a supervisão dos pais; (BRASIL, 2020, p. 12)

Realização de atividades on-line síncronas de acordo com a disponibilidade tecnológica; (BRASIL, 2020, p. 12)

Oferta de atividades on-line assíncronas de acordo com a disponibilidade tecnológica; (BRASIL, 2020, p. 12)

Estudos dirigidos, pesquisas, projetos, entrevistas, experiências, simulações e outros; (BRASIL, 2020, p. 12)

Realização de testes on-line ou por meio de material impresso, entregues ao final do período de suspensão das aulas; (BRASIL, 2020, p. 12

Utilização de mídias sociais de longo alcance (WhatsApp, Facebook, Instagram etc.) para estimular e orientar os estudos, desde que observadas as idades mínimas para o uso de cada uma dessas redes sociais. (BRASIL, 2020, p. 12)

 

Os trechos que compõem esse segundo excerto revelam as mudanças típicas que o momento de distanciamento físico impôs às atividades pedagógicas. Dentre elas: atividades síncronas e assíncronas on-line; hibridização dos materiais de testes, sendo esses impressos ou digitais; utilização de mídias sociais como WhatsApp, Facebook e Instagram; vídeos educativos por meio de plataformas digitais; roteiros de atividades a serem supervisionadas pelos pais e até utilização de horários de TV aberta com programas educativos. 

Observando-se o primeiro trecho, identificamos um alinhamento entre as sequências didáticas a serem construídas para as aulas no ERE e a BNCC. Ou seja, as aulas deverão trilhar um caminho, cujo norte é determinado pelo documento parametrizador do ensino básico. Nesse ponto, o parecer sinaliza que, apesar das diversas mudanças inerentes ao período de distanciamento social, todo o ensino continua sendo regido pela BNCC, que foi elaborada pensando-se em ensino presencial e em contexto não pandêmico.

O segundo trecho remete aos recursos didáticos presentes na mídia tradicional, nesse caso a programação educativa da TV. A recomendação é para agregá-los, quando pertinente, ao currículo/planejamento. Nesse sentido, o parecer leva em consideração o novo “ambiente escolar”, já que a escola está agora dentro de casa. Sugere-se a exploração dos recursos didáticos disponíveis nesse novo ambiente e, nesse sentido, a TV é um recurso presente na maioria dos lares no país. A recomendação aponta para uma inclusão eventual, uma vez que o texto se utiliza do aposto “quando possível”. 

 No terceiro trecho do excerto, verificamos a orientação para o uso de recursos digitais disponíveis na web como ferramentas de ensino, nesse caso, vídeos de curta duração. Esses recursos serão compartilhados através das plataformas digitais e associados a atividades a serem realizadas pelos alunos com a supervisão dos pais. Há nesse trecho a inclusão dos pais como sujeitos diretamente ligados ao processo de ensino. 

O trecho seguinte refere-se às atividades on-line síncronas, que preveem o encontro on-line e simultâneo entre alunos e professores, por meio de ambientes virtuais, a fim de efetivar as atividades pedagógicas em tempo real. Dada a presença dos participantes nesse tipo de atividade, supõe-se a interação entre professor e aluno em salas de videoconferência e transmissões ao vivo. 

Já no trecho de número cinco, o documento alude a atividades on-line, porém, desta vez sem a necessidade de acesso simultâneo dos sujeitos e, portanto, sem a necessidade de interação em tempo real. Essa condição permite aos estudantes que as atividades sejam acompanhadas independentemente de horário ou local, a exemplo de videoaulas e webinários. 

O sexto trecho engloba diversas formas de atividade como estudos dirigidos, pesquisas, entrevistas e etc, já relativamente comuns à dinâmica escolar, porém desafiadores para o ERE, na sua primeira fase, quando os recursos digitais eram um universo a ser conhecido pela maior parte dos professores e alunos.

O sétimo trecho versa sobre a realização de testes on-line ou impressos, sendo prevista a entrega desses testes ao final do período de restrições. Ao disponibilizar esses testes na forma on-line ou impressa, revela-se a preocupação do documento com questões de inclusão, uma vez que são contemplados tanto os que têm acesso à tecnologia quanto os que não tem. Fica subentendida também a ideia de que o período de distanciamento social e de ERE seria breve. Considerando-se o prolongamento da pandemia, parece não mais haver sentido em testes que sejam entregues no retorno às aulas.

O último trecho deste terceiro excerto sinaliza a utilização de redes sociais como WhatsApp, Instagram e Facebook, indicados como ferramentas para estimular e orientar os estudos, obedecendo a idade mínima para utilização de cada uma delas. De certa forma, o documento leva em consideração a função socializadora da escola que, em face da impossibilidade da interação com presença física, pode explorar os recursos disponíveis para as interações sociais via web e, com isso, manter vínculos e orientar os estudantes.

Passemos, a seguir, à categoria planejamento, aqui, entendido como um conjunto de ações pedagógicas distribuídas em função do tempo. A análise de dados revela que o planejamento e a reorganização do calendário escolar se mostram intimamente associados no documento em tela, conforme demonstram os excertos a seguir:

 

Excerto 3 – Planejamento Parecer CNE/CP5/2020

O ponto chave ao se discutir a reorganização das atividades educacionais por conta da pandemia situa-se em como minimizar os impactos das medidas de isolamento social na aprendizagem dos estudantes, considerando a longa duração da suspensão das atividades educacionais de forma presencial nos ambientes escolares. (BRASIL, 2020, p. 4)

Cabe lembrar que a organização do calendário escolar se dá de maneira a serem alcançados os objetivos de aprendizagem propostos no currículo escolar para cada uma das séries/anos ofertados pelas instituições de ensino. (BRASIL, 2020, p. 4)

É necessário considerar propostas que não aumentem a desigualdade ao mesmo tempo em que utilizem a oportunidade trazida por novas tecnologias digitais de informação e comunicação para criar formas de diminuição das desigualdades de aprendizado. (BRASIL, 2020, p. 3)

 

O primeiro trecho desse excerto destaca que a reorganização das atividades escolares deve ser realizada no sentido de diminuir os impactos das medidas de isolamento social sobre os estudantes. Nesse sentido, o planejamento se dá como uma espécie de salvaguarda, no sentido de minimizar os impactos da suspensão das aulas sobre o processo de aprendizagem dos estudantes, a exemplo de possíveis dificuldades no acesso à tecnologia.

Já o segundo trecho destaca a relevância de alcançar os objetivos de aprendizagem presentes nos currículos escolares das instituições de acordo com séries/anos. Temos, então, uma preocupação acerca dos conteúdos a serem apresentados que estejam alinhados aos objetivos de aprendizagem previstos para cada série/ano, de maneira que sua execução e assimilação seja viável dentro do período de tempo disponível. 

O último trecho destaca uma preocupação em priorizar propostas que levem em consideração as tecnologias, mas não aumentem as desigualdades que ficaram ainda mais evidentes neste período.  O acesso à tecnologia, diferentemente da TV aberta, não é uma realidade para a maioria dos discentes no país. Ao mesmo tempo, esse trecho sugere que as oportunidades trazidas pelas novas tecnologias digitais sejam utilizadas para diminuir as desigualdades, todavia não especifica sobre como isso deve ser feito. Assim sendo, as soluções para traduzir essa proposta em ações exequíveis ficam a cargo dos professores que, por sua vez, já estão sobrecarregados e atuando fora do seu espaço natural de trabalho, ministrando as aulas das suas próprias casas.  

A categoria calendário, a quarta nesta análise, exerce um papel fundamental na proposta apresentada pelo documento focalizado, posto que todas as mudanças para o ERE estão vinculadas à reorganização do calendário escolar. Desta forma, calendário e planejamento são duas categorias complementares, uma vez que o planejamento supõe distribuição de atividades ao longo do tempo.  A seguir, o excerto que destaca os trechos em que calendário e planejamento estão imbricados. 

 

Excerto 4 – Calendário e Planejamento Parecer CNE/CP5/2020

Qualquer limitação que se fizer no formato da reposição/ajuste dos calendários deve considerar que será aplicada não apenas para as escolas públicas, mas também para as escolas particulares que possuem uma dinâmica completamente diferente. (BRASIL, 2020, p. 20)

Que a reorganização do calendário escolar deve assegurar formas de alcance das competências e objetivos de aprendizagem relacionados à BNCC e/ou proposta curricular de cada sistema, rede ou instituição de ensino da educação básica ou superior por todos os estudantes; (BRASIL, 2020, p. 21)

Que a reorganização do calendário escolar deva levar em consideração a possibilidade de retorno gradual das atividades com presença física dos estudantes e profissionais da educação na unidade de ensino, seguindo orientações das autoridades sanitárias; (BRASIL, 2020, p. 22)

Para reorganização do calendário escolar, os sistemas de ensino deverão observar, além do disposto neste parecer, os demais dispositivos legais e normativos relacionados a este tema. (BRASIL, 2020, p. 21)

 

O excerto demonstra que o calendário é transpassado por aspectos de diversas ordens, como a isonomia entre a escola pública e particular quanto ao formato da reposição/ajuste dos calendários; a relação com um currículo, seja a BNCC ou proposta curricular de cada sistema; a retomada das atividades presenciais e, ainda, outros dispositivos normativos relacionados ao tema. 

O primeiro trecho supõe o mesmo calendário para as duas redes de ensino básico e o segundo aponta para relação indissociada entre tempo escolar e implementação/desenvolvimento de uma proposta curricular, seja esta BNCC ou uma outra elaborada pela rede ou sistema, de modo a assegurar o alcance dos objetivos de aprendizagem e/ou as competências relacionadas à proposta do sistema, rede ou instituição de ensino. 

No trecho seguinte, temos considerações que estão ligadas à possibilidade do retorno às aulas presenciais. Neste caso, o calendário deve prever que o retorno aconteça de maneira gradual, e levando em conta as orientações das autoridades sanitárias. 

Do ponto de vista legal, o quarto trecho explicita que, além do próprio Parecer 05 do CNE, os sistemas de ensino deverão observar outros dispositivos legais e normativos ao compor a reorganização do calendário. Isso implica dizer que o documento assume não ser a única voz de autoridade na abordagem do tema.

A análise dos dados nos leva a considerar que o planejamento parece ser uma ação subordinada mais a prescrições advindas do calendário – tempo, relação com o currículo do sistema, presencialidade das aulas e dispositivos normativos – do que uma planificação de trabalho a ser desenvolvido em função das necessidades diagnosticadas junto aos alunos.

A quinta categoria a ser descrita é a avaliação, imprescindível ao fazer pedagógico, posto que possibilita tanto o diagnóstico de dificuldades, lacunas de aprendizagem, quanto pode apontar para possíveis reformulações no projeto didático do professor.

A seguir, temos o excerto que versa sobre como essa ação foi concebida no Parecer 05 do CNE.

 

Excerto 5 – Avaliação Parecer CNE/CP5/2020

Criar questionário de auto avaliação das atividades ofertadas aos estudantes no período de isolamento; (BRASIL, 2020, p. 20)

Ofertar, por meio de salas virtuais, um espaço aos estudantes para verificação da aprendizagem de forma discursiva; (BRASIL, 2020, p. 20)

Elaborar, após o retorno das aulas, uma atividade de sondagem da compreensão dos conteúdos abordados de forma remota; (BRASIL, 2020, p. 20)

Criar, durante o período de atividades pedagógicas não presenciais, uma lista de exercícios que contemplam os conteúdos principais abordados nas atividades remotas; (BRASIL, 2020, p. 20)

Utilizar atividades pedagógicas construídas (trilhas, materiais complementares etc.) como instrumentos de avaliação diagnóstica, mediante devolução dos estudantes, por meios virtuais ou após retorno das aulas; (BRASIL, 2020, p. 20)

Utilizar o acesso às vídeo aulas como critério avaliativo de participação através dos indicadores gerados pelo relatório de uso; (BRASIL, 2020, p. 20)

Elaborar uma pesquisa científica sobre um determinado tema com objetivos, hipóteses, metodologias, justificativa, discussão teórica e conclusão; (BRASIL, 2020, p. 20)

Criar materiais vinculados aos conteúdos estudados: cartilhas, roteiros, história em quadrinhos, mapas mentais, cartazes; (BRASIL, 2020, p. 20)

Realizar avaliação oral individual ou em pares acerca de temas estudados previamente. (BRASIL, 2020, p. 20)

É possível observar no excerto acima diversos instrumentos de avaliação para o período de restrições de aulas presenciais, por exemplo, questionário de auto avaliação das atividades, sondagem, avaliações diagnósticas, orais e de participação. Nesses, observamos as funções diagnóstica e formativa da avaliação.

No primeiro, o terceiro e o quinto trechos do excerto acima, evidencia-se a função diagnóstica. Esta se mostra através da indicação da criação de questionário de auto avaliação das atividades propostas aos estudantes, no período de ensino remoto, e elaboração de atividade de sondagem, a fim de verificar a compreensão dos conteúdos que foram abordados na forma presencial.

Já no segundo, quarto e sétimo, oitavo e nono trechos verifica-se a função formativa da avaliação, através da sugestão de um espaço, em salas virtuais, para a verificação da aprendizagem dos estudantes de maneira discursiva. Esta função se evidencia também quando se propõe a criação de uma lista de exercícios, cuja resolução contemple os principais conteúdos tratados nas atividades remotas. O documento recomenda ainda, no trecho de número sete, a elaboração de uma pesquisa sobre um tema a ser determinado com objetivos, hipóteses, metodologias, justificativa, discussão teórica e conclusão.

De certo modo, esse excerto sete não apresenta novidade, posto que projeto de pesquisa já é um gênero que integra as práticas escolares, porém, demanda laboratórios e bibliotecas para ser realizado.  Assim sendo, cabe destacar que não se observou a adaptação de gêneros às novas condições de trabalho de professores e de alunos; em outras palavras, podemos dizer que a concepção de ensino não mudou. Seria possível que professores e alunos levassem adiante projetos de pesquisa no ensino remoto, desde que tivessem bastante autonomia para lidar com os meios de interação não presencial.

Depois, o documento aponta uma finalidade prática para a sistematização dos temas estudados, ao sugerir, no oitavo trecho, a criação de materiais que estejam relacionados aos conteúdos estudados, por exemplo cartilhas, roteiros, história em quadrinhos, mapas mentais, cartazes e etc.  

Por fim, o documento leva em consideração a avaliação não só da aprendizagem internalizada, mas também da capacidade de externá-la através da exposição oral, ao sugerir, no nono e último trecho do excerto, a avaliação oral, individual ou em dupla, focalizando temas previamente estudados.  

Cabe salientar a finalidade de mera constatação da presença dos alunos nas aulas remotas. Essa consiste em listar a participação dos alunos, a partir dos indicadores de presença nas salas virtuais.

Em suma, o documento do CNE parece manter as funções da avaliação já estabelecidas antes do período de aulas não presenciais, ficando como novidade apenas o meio pelo qual essa é realizada, isto é, o seu funcionamento através das plataformas digitais. Dentre as funções, apenas a somativa não foi evidenciada, ficando a cargo, de alguma forma, do encaminhamento dado pelos professores ao resultado dessas atividades.

Considerando-se a descrição desses dados, a análise nos leva a inferir que que dois movimentos de (re)orientação se mostram para dinâmica escolar no período pandêmico. Estes são aqui denominados de ancoramento e afastamento, e serão explorados na seção a seguir.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Como resposta a questão de pesquisa apresentada na introdução, a análise de dados aponta que no parecer do 05/2020 do CNE encontram-se indícios de um currículo prescritivo, em função das orientações focadas no repasse de conteúdos alinhados à BNCC, num planejamento focado no calendário e na previsão de atividades de avaliação. Não foram encontradas orientações relativas à contextualização da pandemia, que era, no momento da publicação do parecer, o cotidiano dos alunos de professores. Portanto, a proposta de (re)organização curricular que emana do documento em tela alinha-se à perspectiva tradicional de currículo.

Quanto aos movimentos de (re)orientação da dinâmica escolar aludidos na seção precedente, verificamos que o primeiro deles – ancoramento - consiste na indicação de itens constitutivos da dinâmica escolar antes do período pandêmico, tais como: a existência de uma proposta curricular, como a BNCC - que estava para ser implementada ao longo do ano de 2020 -, atividades impressas, estudos dirigidos, pesquisas e projetos. Esse movimento parece ter em seu cerne no objetivo de não descaracterizar a atividade escolar, que deixou de ser realizada de modo presencial e, por isso mesmo, realizando-se no modo remoto já era em si uma grande novidade, não apenas para a comunidade escolar, mas para toda a sociedade brasileira. Por outro lado, esse movimento reforça uma perspectiva tradicional de currículo, ao não ensejar ou sugerir que um outro currículo, atrelado à situação pandêmica, ao cotidiano, com seus desafios e desdobramentos, fosse construído local e situadamente por cada rede/sistema de ensino ou cada escola.

Cabe destacar ainda que atividades impressas, estudos dirigidos, pesquisas e projetos precisaram ser adaptados. No caso das atividades, num primeiro momento, sequer puderam ser entregues/recebidas, em face dos períodos de lockdown ou pela falta de acesso à internet e impressoras por parte dos professores/alunos. No caso dos estudos dirigidos, pesquisas e projetos, estes também precisaram ser adaptados às possibilidades técnicas do ensino remoto e as habilidades de docentes e discentes. Assim, do ponto de vista pragmático, esse movimento parece ter com função tornar o novo, o desconhecido e o inusitado próximo ou semelhante ao que é conhecido.

 O segundo movimento – afastamento –  pode ser identificado na indicação do uso sistemático de recursos tecnológicos com função didática, por exemplo programas educativos na TV aberta, webinários, aulas on-line (síncronas e assíncronas), redes sociais e vídeos educativos em plataformas digitais. Estes, por sua vez não são recursos novos, nem na sociedade nem na escola, entretanto, dadas às restrições das aulas presenciais, esses dispositivos são legitimados, no âmbito do documento, como potencialmente pedagógicos e tal indicação sinaliza um novo modo de funcionamento do ensino básico.

Isto posto, observamos que ancoramento e afastamento são, no documento em tela, dois movimentos indissociados de (re)orientação da dinâmica escolar, no período pandêmico. O primeiro reforça características dessa dinâmica e o segundo suscita que ela se mantenha/reinvente em modo remoto. O movimento de ancoramento parece indicar que o novo seja associado ao que já conhecido; por sua vez, o movimento de afastamento parecer apontar novos usos e novas funções para o que já é conhecido, numa relação de reforço de um currículo pensado para a modalidade presencial de ensino. Essa percepção que emana dos dados parece indicar que, na ausência de uma memória, uma literatura e/ou experimentos sobre ensino remoto, o documento reforça a modalidade presencial de ensino, que se equilibra entre os movimentos descritos, alheia ao cotidiano vivenciado no período pandêmico.

Imagem 2 – Movimentos identificados nas orientações do parecer do CNE sobre a modalidade de ensino remoto 

Ensino remoto emergencial

Fonte: Os autores (2021)

 

Em síntese, o documento mescla a indicação de recursos/formas de organização do cotidiano escolar já conhecidos com novos recursos/formas tecnológicas. Essa mesclagem pode significar, por um lado, uma união de esforços, sobretudo no momento inicial da pandemia, em face do desconhecido, não só a respeito da duração do período de restrições, mas também no acerca do fazer pedagógico não presencial. Por outro lado, pode significar um reforço ao currículo prescrito à luz da perspectiva tradicional, com pouca sensibilidade para os sujeitos e seus contextos.

 

Referências

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BOZCURT, Aras; SHARMA, Ramesh C. Emergency remote teaching in a time of global crisis due to CoronaVirus pandemic. Asian Journal of Distance Education, v. 14, n. 1, p. i-vi, 2020. Acesso em: 28 set. 2020.

 

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CHARCZUK, Simone Bicca. Sustentar a Transferência no Ensino Remoto: docência em tempos de pandemia. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 45, n. 4, p. 56-70, 2020. FapUNIFESP (SciELO). Acesso em: 04 nov. 2021.

 

GOFF, Jacques Le. Documento/Monumento. In: GOFF, Jacques Le. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990. Cap. 11. p. 462-473

 

LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011. 279 p.

 

MÉDICI, Mônica Strege Tatto; Everson Rodrigo; Leão, Marcelo Franco. Percepções de estudantes do Ensino Médio das redes pública e privada sobre atividades remotas ofertadas em tempos de pandemia do coronavírus.  Revista Thema18(ESPECIAL), 136-155. Acesso em: 04 nov. 2021

 

PAIVA JÚNIOR, Francisco Pessoa de et al (org.). Ensino Remoto em Debate. Belém: Rfb, 2020. 154 p. Disponível em: https://www.rfbeditora.com/ebooks-2020/ebook-76. Acesso em: 10 mar. 2021.

 

PENNA, Maura. Construindo o primeiro projeto de pesquisa em Educação e Música. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2020. 199 p.

 

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 156 p.

 

TV CULTURA. Roda Viva entrevista Priscila Cruz. Youtube, 13 de abril de 2020.

 

Notas



[1] http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=14511-pcp005-20&category_slud=marco-2020-pdf&Itemid=30192

[2] Usa-se ponto e vírgula após o trecho do excerto e antes da referência dado que no texto original esses trechos fazem parte de uma enumeração.

 

 

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