Oficinas literárias: as estratégias de compreensão como possibilidade para a formação de atitudes leitoras na infância

 

Literary workshops: comprehension strategies as a possibility for the formation of reading attitudes in childhood

 

Talleres literarios: estrategias de comprensión como posibilidad para la formación de actitudes lectoras en la infancia

 

Geuciane Felipe Guerim Fernandes

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

geuciane@uenp.edu.br

 

Katia Luciane de Katia Oliveira

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

katyauel@gmail.com

 

Recebido em 17 de novembro de 2021

Aprovado em 29 de julho de 2022

Publicado em 20 de junho de 2023

 

RESUMO

Este artigo busca apresentar os resultados de uma proposta interventiva em estratégias de compreensão, com foco na estratégia de “Inferências” para a Educação Infantil. Os resultados são frutos de uma pesquisa de Pós Graduação em Educação, Stricto Sensu (Doutorado), que teve como objetivo geral compreender as possibilidades das estratégias de leitura para a formação de atitudes leitoras desde a infância, a fim de desenvolver práticas mediadas, impulsionadoras da formação do pequeno leitor na Educação Infantil.  Participaram da pesquisa 36 crianças integrantes de duas turmas de Educação Infantil (Pré II), com idade média de 5 e 6 anos. Uma turma (16 crianças), constituiu o grupo controle e, a outra turma (20 crianças), o grupo interventivo, que participou de oficinas literárias.  A pesquisa percorreu as seguintes fases: avaliação inicial das estratégias de compreensão, oficinas literárias e avaliação final das estratégias de compreensão. O conjunto de Oficinas intituladas “Pequeno Leitor” teve como suporte teórico uma abordagem de ensino das estratégias leitura estadunidense. Os resultados foram apresentados articulando as dimensões qualitativas e quantitativas na busca por uma inter-relação dinâmica. Os resultados apontam os benefícios da interação com os livros literários e da organização de situações de leitura compartilhada na Educação Infantil, nas quais a criança pode se apropriar e internalizar elementos iniciais, para o posterior uso pleno e individual da leitura. Assim, cabe à escola criar condições para que as crianças vivenciem a leitura de forma significativa e façam uso de suas atitudes leitoras em desenvolvimento.

 

Palavras-chave: Estratégias de leitura; Educação infantil; Formação de atitudes leitoras.

 

ABSTRACT

This article seeks to present the results of an intervention proposal in comprehension strategies, focusing on the “Inferences” strategy for Early Childhood Education. The results are the result of a Stricto Sensu (Doctoral) Graduate Studies in Education research, which aimed to understand the possibilities of reading strategies for forming reading attitudes from childhood to develop mediated practices, boosting the formation of the small reader in Early Childhood Education. Thirty-six children from two classes of Early Childhood Education (Pre II), with an average age of 5 and 6 years, participated in the research. One group (16 children) constituted the control group, and the other group (20 children), the intervention group, participated in literary workshops. The research went through the following phases: initial evaluation of comprehension strategies, literary workshops and final evaluation of comprehension strategies. The set of workshops entitled “Little Reader” had as theoretical support an approach to teaching American reading strategies. The results were presented, articulating the qualitative and quantitative dimensions in the search for a dynamic interrelationship. The results point to the benefits of interaction with literary books and the organization of shared reading situations in Kindergarten, in which the child can appropriate and internalize initial elements for later full and individual use of reading. Thus, it is up to the school to create conditions for children to experience reading meaningfully and use their developing reading attitudes.

 

Keywords: Reading Strategies; Early Childhood Education; Formation of reader attitudes.

 

RESUMEN

 

Este artículo busca presentar los resultados de una propuesta de intervención en estrategias de comprensión, centrándose en la estrategia “Inferencias” para Educación Infantil. Los resultados provienen de una investigación de posgrado en Educación, Stricto Sensu (Doctorado), que tuvo como objetivo general comprender las posibilidades de las estrategias lectoras para la formación de actitudes lectoras desde la infancia, con el fin de desarrollar prácticas mediadas, dinamizadoras de la formación de el pequeño lector en Educación Infantil. Participarón 36 niños de dos clases de educación infantil (Pre II), con una edad promedio de 5 y 6 años. Un grupo (16 niños) constituyó el grupo de control y el otro grupo (20 niños) el grupo de intervención, los cuales participaron en talleres literarios. El estudio tuvo las siguientes fases: evaluación inicial de estrategias de comprensión, talleres literarios y evaluación final de estrategias de comprensión. El conjunto de Talleres titulado “Pequeño Lector” estuvo sustentado teóricamente en un enfoque de enseñanza de estrategias lectoras americanas. Los resultados fueron presentados articulando las dimensiones cualitativa y cuantitativa en la búsqueda de una interrelación dinámica. Los resultados apuntan a los beneficios de la interacción con los libros literarios y la organización de situaciones de lectura compartida en Educación Infantil, en las que el niño puede apropiarse e interiorizar elementos iniciales, para el posterior aprovechamiento pleno e individual de la lectura. Por lo tanto, corresponde a la escuela crear las condiciones para que los niños experimenten la lectura de manera significativa y hagan uso de sus actitudes lectoras en desarrollo.

 

Palabras llave: Estrategias de lectura; Educación Infantil; Formación de actitudes lectoras.

 

Introdução

Do ponto de vista legal, a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica e tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de zero a cinco anos de idade em seus aspectos físico, afetivo, intelectual, linguístico e social, complementando a ação da família e da comunidade (Lei nº 9.394/96, art. 29). O parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil, aponta a necessidade de considerar as especificidades da infância e destaca as formas como as crianças constroem conhecimentos, se expressam, interagem, manifestam desejos, curiosidades e vivenciam o mundo, de modo bastante peculiar. Neste caminho, o documento apresenta uma visão de criança como um sujeito histórico e de direitos, que se desenvolve na interação e relações estabelecidas com os adultos e com crianças de diferentes idades (BRASIL, 2009).

Destaca-se, assim, a responsabilidade da pré-escola na ampliação de saberes e conhecimentos das crianças pequenas, por meio do acesso a bens culturais e possibilidades de vivência da infância. Neste caminho, defende-se nessa pesquisa que o trabalho com as estratégias de leitura a partir da literatura-infantil, constitui-se uma possibilidade de mobilizar as diferentes dimensões da infância e viabilizar o direito da criança de: experimentar, observar, questionar, fazer de conta, aprender, conversar, construir sentidos sobre o mundo e sobre si mesmo, tornando-se produtora de cultura, conforme estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009).

Tendo como base uma abordagem de ensino das estratégias de leitura estadunidense, que se propõe apresentar de forma explícita as estratégias de leitura, com o objetivo de que o leitor iniciante pense sobre seu próprio pensamento para entender como se lê, realizou-se uma proposta interventiva com crianças da Educação Infantil, com idade média de 5 e 6 anos, a fim de estudar as possibilidades das estratégias de leitura em “Oficinas Literárias” para o desenvolvimento de atitudes leitoras na infância. Realizou-se uma avaliação inicial para o diagnóstico de estratégias de compreensão, em seguida Oficinas Literárias com as estratégias: conhecimento prévio, visualização, conexão, perguntas ao texto, previsão, inferência, sumarização e síntese, e por último a reaplicação do instrumento de estratégias de pensamento, a fim de avaliar o uso das estratégias de leitura pelas crianças antes e depois das oficinas. A entrevista diagnóstica teve como objetivo mensurar a compreensão e o uso de estratégias que a criança demonstra em relação ao texto que foi lido. O questionário e rubrica de pontuação de autoria de Keene e Zimmermann (2007), foram traduzidos do inglês para o português por tradutor público juramentado.

Harvey e Goudvies (2017) defendem o trabalho com as estratégias de compreensão leitora desde a educação infantil e afirmam que “O ensino eficaz sempre envolve modelar, orientar e dar tempo às crianças praticar”. (HARVEY, GOUDVIES, 2017, p. 59, tradução nossa). Para isso, sugerem que as estratégias sejam apresentadas uma de cada vez, porém todas as estratégias devem ser apresentadas em um curto período de tempo para que as crianças construam um repertório de estratégias e possam incorporá-las na compreensão de um texto. Assim, ao apresentar uma nova estratégia, as crianças continuarão utilizando as que já foram apreendidas. Nesse texto especificamente, serão apresentados os resultados da Oficina literária que teve como objetivo o desenvolvimento da estratégia de “Inferência”.

 

Estratégias de leitura

Uma das características mais evidente em um leitor proficiente é sua capacidade de ativar diferentes estratégias para produzir sentidos frente a um texto. Assim, ler é um processo cognitivo complexo, que envolve percepção, memória, atenção, em um processo interativo (KLEIMAN, 2002). Compreender nesse sentido implica que os sujeitos sejam capazes de ir para além dos fatos expostos, “[...] mas em direção ao desenvolvimento de uma capacidade de pensar sobre os próprios pensamentos” (BORUCHOVITCH, 1999, p.361). Consequentemente, as estratégias de aprendizagem surgem como possiblidades de apoiar este processo. 

              As estratégias de aprendizagem são comportamentos, ações, atitudes e procedimentos ativos que contribuem para o aprendizado. Elas podem ser classificadas como estratégias cognitivas e metacognitivas. As estratégias cognitivas operam diretamente sobre o material a ser apreendido, como aquelas que se utilizam para organizar os estudos, armazenar e elaborar informações, como por exemplo citar cópias de pequenos textos, realizar sempre uma primeira leitura, ler grifando palavras-chave, resumir conteúdos, entre outras ações que levam o sujeito a alcançar um objetivo. Já as estratégias metacognitivas são procedimentos para planejar, regular e monitorar o próprio pensamento, envolve o pensar o próprio processo de aprendizado, decidindo quando e como utilizar cada estratégia (BORUCHOVITCH, 1999; MOREIRA; OLIVEIRA; SCACCHETTI, 2016). Algumas vezes “[...] procedemos a uma leitura lenta, simplesmente para aprender o conteúdo (estratégia cognitiva); outras vezes, lemos rapidamente para ter uma ideia acerca da dificuldade ou facilidade da aprendizagem do conteúdo (estratégia metacognitiva)” (PORTILHO; DREHER, 2012, p. 184). Entre as estratégias metacognitivas, podemos citar como exemplo a avaliação da compreensão durante uma atividade de leitura ou escolher uma estratégia adequada para solucionar um problema.

 

Em outros termos, a metacognição é todo o movimento que a pessoa realiza para tomar consciência e controle de seus processos cognitivos. Ela diz respeito, entre outras coisas, ao conhecimento do próprio conhecimento, à avaliação, à regulação e à organização dos próprios processos cognitivos (PORTILHO; DREHER, 2012, p.183)

 

A metacognição ou o pensamento sobre os processos cognitivos envolvidos na leitura tem sido o foco principal da pesquisa em compreensão leitora, que articula os processos cognitivos utilizados por leitores eficazes (RANDI; GRIGORENKO; STERNBERG, 2008). Os leitores proficientes precisam ter consciência se um texto está sendo compreendido ou não. Para isso, precisam constantemente tomar decisões que afetarão a compreensão de um texto, como: quando deve reler uma parte, que inferência deve fazer, qual a informação mais relevante para se reter na memória, o que pode ser descartado, ativando diferentes recursos cognitivos. (GRIFFITH; RUAN, 2008; PRESSLEY, 2002).

Uma leitura experiente necessita de interação entre o macro (organização e sumarização da obra como um todo) e micro processos (unidades de ideias) com os conhecimentos prévios do leitor, possibilitando a construção de uma representação mental coerente do texto. Ao conectar as informações do texto com os conhecimentos prévios, o leitor pode fazer inferências e elaborações que fazem sentido. Assim, os leitores utilizam informações metacognitivas para monitorar sua compreensão e ativar os recursos cognitivos necessários. Neste sentido, incorporamos os processos cognitivos de leitura dentro do quadro da metacognição, pois a leitura habilidosa só é possível com o monitoramento contínuo dos processos cognitivos (GRIFFITH; RUAN, 2008).

Os estudos de Pearson, Roehler, Dole e Duffy (1992), Pressley (2002) e Harvey e Goudvis (2017) demonstram que bons leitores monitoram os processos cognitivos durante a leitura e estão cientes que o pensamento é essencial para o processamento da leitura. Para isso, buscam compreender as características do texto, sua organização, sua relevância para o objetivo da leitura, bem como monitorar suas experiências durante a leitura, como por exemplo quando está lendo um texto desafiador, a necessidade de concentração, caso não esteja compreendendo, a necessidade de ativar outras estratégias de leitura, relacionando ideias, construindo imagens, resumos, afetando assim o processamento do texto.

A metacognição, na forma de consciência, sempre está sendo gerada em leitores ativos, que são aqueles que buscam por conexões entre o seu próprio conhecimento e a nova informação, monitoram sua compreensão ao longo do processo de leitura, tomam medidas para reparar falhas na compreensão, aprendem desde muito cedo a distinguir as ideias importantes das menos importantes, sintetizam informações através dos textos e das suas experiências de leitura, fazem inferências durante e depois da leitura para obter uma compreensão integral do que leem, fazem perguntas sobre si mesmos, sobre os autores e sobre os textos que leem. Leitores ativos, atenciosos e experientes possuem estas características.

Um leitor, metacognitivamente sofisticado, sabe que para além de fluência e conhecimento prévio, é necessária uma leitura ativa que envolva: previsão, questionamento, geração de imagens, esclarecimento e resumo, ou seja, estratégias de compreensão. Essas estratégias incluem processos que ocorrem antes, durante e depois da leitura. Antes de ler, pode estabelecer objetivos de leitura e fazer previsões com base em seu conhecimento prévio. Durante a leitura, pode fazer perguntas, construir imagens mentais representando e interpretando o texto. Após a primeira leitura, bons leitores continuam refletindo sobre o texto, revisando, relendo e compreendendo.

              A defesa pela ampliação de repertórios de leitura ao longo dos anos poderá resultar em leitura habilidosa, metacognitivamente sofisticada. A capacidade metacognitiva não parece seguir um padrão puramente desenvolvimentista (ou seja, à medida que envelhece, se percebe mais ou melhor). Os estudos de Vosniadou, Pearson e Rogers (1988) descobriram que três fatores diferentes – modo de apresentação, familiaridade do tópico e explicitação textual – influenciam na capacidade dos estudantes de diferentes idades de detectar inconsistências durante a leitura. No experimento realizado, quando o assunto era familiar, até mesmo as crianças do primeiro ano conseguiram detectar inconsistências. Quando não era familiar, era improvável que as crianças deste período detectassem a inconsistência, mesmo quando explicitamente contrariada em outra parte do texto. Uma hipótese levantada é que muitas vezes faltam conhecimentos prévios na memória para formar uma representação mental adequada.

              Os entraves para a compreensão na criança têm menos a ver com sua capacidade de comparar proposições do que com seu conhecimento de mundo. Está cada vez mais aparente que as inconsistências na compreensão das crianças estão muitas vezes relacionadas à dificuldade de reestruturar o conhecimento existente, que é incompatível com a informação apresentada pelo texto. Quando as crianças leem informações que são inconsistentes com o que sabem, elas tendem a assimilar as informações apresentadas no texto nas estruturas de conhecimento já existentes. Este processo de assimilação geralmente resulta em distorções e equívocos do texto. Essas distorções de texto não se restringem às crianças, eles também ocorrem em adultos.

              Em síntese, leitores ativos usam de forma consciente as estratégias de compreensão enquanto leem. A literatura experimental tem avaliado os efeitos instrucionais e muitas evidências demonstram que quando os leitores são ensinados a usar estratégias de leitura, sua compreensão de fato melhora. Assim, quando leitores em desenvolvimento aprendem estratégias de compreensão leitora, estão sendo ensinados a ler como bons leitores fazem.

O professor necessita ter clareza sobre a importância dos momentos de leitura na escola e principalmente que leiam livros de qualidade e, ainda, que a compreensão leitora não se desenvolve sozinha, sendo que as estratégias de compreensão leitora podem ser apresentadas desde os primeiros anos da criança (PEARSON; ROEHLER; DOLE; DUFFY, 1992). Sabemos que na infância tais processos ainda estão em formação, por isso, é necessário esclarecer, que a proposta não é transformar a criança pequena em escolar, mas promover possiblidades que contribuam para a formação de atitudes leitoras, respeitando as especificidades da infância, tendo em vista que, “[...] ao longo da idade pré-escolar vão se criando as condições para que a criança vá se tornando paulatinamente mais consciente de sua própria conduta e dos motivos de suas ações, até que se opere o salto qualitativo na transição ao estágio seguinte de desenvolvimento.” (PASQUALINI, 2014, p. 105)

 Desde cedo, na pré-escola, torna-se necessário organizar situações que criem na criança a necessidade de “ser leitor”, de produzir sentidos e atitudes concernentes com a função e uso social da leitura, contribuindo assim para a formação de um leitor capaz de ativar diferentes estratégias para a compreensão daquilo que se lê (GIROTTO, 2016).  Ao optar pelo termo estratégias de compreensão, os autores compreendem que ultrapassam a concepção de uma sequência de habilidades acopladas, mas uma possibilidade em que todos os leitores, de todas as idades, possam se envolver e participar desta prática em algum nível de sofisticação. A partir das experiências, a compreensão leitora pode ampliar e as estratégias poderão ser utilizadas em diferentes tipos de textos e situações. Contrário às visões mais passivas de instrução, nas quais as crianças eram expostas a práticas repetitivas de exercícios constantes para desenvolver determinadas habilidades, nesta visão o professor é mediador de interações recíprocas que contribuem para o desenvolvimento da compreensão.

 

Metodologia

A amostra da pesquisa quase-experimental contou com a participação de 36 crianças regularmente matriculadas em duas turmas de Educação Infantil (Pré II) em uma escola pública do estado do Paraná. Os participantes, com idade média entre 5 e 6 anos (M=5,6 meses; DP=5,504): 20 meninas e 16 meninos. Destas, 16 com cinco anos de idade e 20 com seis anos de idade. Um grupo de 20 crianças constituíram o grupo experimental (GE) que participou das oficinas e o outro grupo de 16 crianças o de controle (GC). Os participantes não foram aleatoriamente distribuídos, ou seja, uma turma se constituiu grupo controle e a outra turma como grupo interventivo.

A coleta de dados para esse estudo foi realizada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, conforme parecer nº 3.543.432[1]. O roteiro de entrevista adaptado de Keene e Zimmermann (2007), aplicado com os dois grupos antes e depois das oficinas teve como objetivo mensurar a compreensão que a criança demonstra em relação ao texto que está sendo lido. A criança é convidada a expressar em voz alta o que está pensando, a fim de verificar as possíveis estratégias que estão sendo mobilizadas. Para esse diagnóstico, foi utilizado o livro: “O monstro que adorava ler[2]”, de autoria de Lili Chartrand (2015). Quando por algum motivo a criança não compreendia determinada questão, o enunciado era repetido ou esclarecido, utilizando sinônimos.

Tendo em vista que o instrumento foi aplicado oralmente com crianças de 5 e 6 anos, foram realizadas supressões e adaptações no questionário. As palavras/trechos adaptados/alterados estão indicados em negrito e as supressões em [...]. 

Quadro 1: Questões referentes à estratégia de Inferências

Instruções: Responda algumas perguntas sobre o que você pensa enquanto leio para você.

 

1. Se você estiver lendo uma história, romance ou um texto narrativo (memórias, biografia etc.) responda a estas perguntas:

  1. O que você sabe, sente ou acredita dessa passagem que não está escrito diretamente no texto ou mostrado em alguma ilustração?
  2. Você consegue adivinhar o que está prestes a acontecer nesta passagem?
  3. Por que você fez essa previsão?

[...]

2. O que você me disse faz você pensar em outros livros, pessoas ou ideias? Se fizer, de que forma eles lhe ajudam a entender melhor esse texto?

3. Escolha uma das perguntas abaixo para questionar as crianças (perguntas alternativas podem ser utilizadas conforme necessário para encorajá-los a seguir adiante conforme respondem):

a.             [...]

b.             Por que leitores compreendem melhor quando tentam adivinhar? [...]

c.              [...]

d.             [...]

Fonte: Elaborado com base em Keene e Zimmermann (2007).

 

As respostas da entrevista diagnóstica individual de estratégias de pensamento foram analisadas com base na “rubrica de pontuação”, utilizada na íntegra (KEENE; ZIMMERMANN, 2007). Para análise dos resultados, elaborou-se tabela comparativa entre o grupo de 16 crianças, considerado grupo de controle (GC) e o grupo de 20 crianças, que constituíram o grupo experimental (GE), bem como um comparativo do mesmo grupo nos dois tempos distintos.

As Oficinas intituladas “Pequeno Leitor” foram planejadas em três momentos principais “Antes, durante e depois da leitura”. Em cada um desses momentos foram organizadas diversas ações, por exemplo: recepção, apresentação do livro, leitura compartilhada, perguntas e atividades relacionadas com as estratégias de compreensão, que pudessem promover atitudes leitoras nas crianças participantes, por meio da mobilização de diferentes estratégias de pensamento. Cada Oficina foi apresentada com um título temático. A Oficina de “Inferências” teve como título “Oficina do Adivinhar”, referindo-se às ações mobilizadas pelas crianças e privilegiadas na oficina.

Para apresentação dos resultados da oficina de “Inferências”, foram realizadas transcrições de alguns trechos de falas registrados em vídeo. Nesse momento, utilizou-se itálico para indicar o diálogo entre os participantes, relacionando as crianças identificadas com a letra “C” em suas falas individuais, com “Cças” em suas falas coletivas e a mediadora apresentada com a letra “M”

 

Inferências com o Livro “Viviana, a rainha do pijama” de Steve Webb

 

Realizar inferências permite uma leitura nas entrelinhas, perceber as informações que não estão explícitas no texto e elaborar significados a partir do contexto, palavras, imagens, conhecimentos prévios, criando uma interlocução com o texto. As inferências estão estreitamente relacionadas aos conhecimentos prévios, pois as crianças podem usar pistas do contexto para descobrir o significado das palavras, tirar conclusões, obter informações do texto, prever resultados, eventos, ações e criar interpretações a partir da visualização e audição. As crianças usam conhecimentos prévios, ilustração de capa e/ou texto para prever o que pode acontecer em uma história (BARONE, 2011; HARVEY; GOUDVIS, 2017).

A Oficina ADIVINHAR (inferência), objetivou viabilizar situações e perguntas para que as crianças pudessem criar hipóteses a partir do texto verbal e visual. Ao inferir, a criança aprende construir significado mesmo na ausência de informações explícitas (HARVEY; GOUDVIS, 2017). A seleção do livro “Viviana, a rainha do pijama” de Steve Webb (2016) se deu pela possibilidade de a narrativa trazer pistas para que as crianças pudessem criar hipóteses para além do que está explícito no texto.

 

Figura 1: Capa do Livro “Viviana, Rainha do Pijama.

Fonte: Weeb (2006)

 

O livro traz em suas páginas diversas cartas convites que Viviana envia aos animais selvagens, convidando-os para uma incrível festa do pijama. Com um texto divertido, cada personagem responde à carta de Viviana revelando o seu pijama. No dia da festa muita expectativa e um prêmio para o melhor pijama de todos (WEBB, 2006). Para essa Oficina, o ambiente foi preparado com diversas imagens de pijamas para que as crianças pudessem perceber o contexto da história. Ao entrar na sala elas foram convidadas para uma brincadeira de roda com a música “Ciranda dos bichos” do grupo Palavra cantada. Em seguida, conversou-se sobre a história que seria lida e sobre a Oficina do adivinhar, em que as crianças fariam inferências a partir das imagens. A partir das imagens de pijamas, dispostas no ambiente, as crianças já puderam inferir (C1: Uma história sobre pijama?). 

 

M: Essa história está com a capa tampada, “mas vamos ver o que está escrito aqui: Viviana a rainha do pijama. No que esse título me faz pensar?

M: O que é uma rainha? Como será a rainha do pijama? Podemos tentar adivinhar?

C1: Ela é uma gracinha.

C2: A rainha reina nos reinos.

C3: A rainha também fica encantada com o príncipe encantado.

[Crianças falam ao mesmo tempo]

M: Vamos ver aqui. Alguém conhece alguma Viviana?

C4: Meu pai trabalha lá na casa dela.

[Crianças continuam interagindo]. (Trecho retirado da gravação de vídeo).

 

Com as inferências iniciais apresentadas pelas crianças foi preenchido o “Quadro do pensar” com as informações as quais as crianças já sabiam (Cças: A história da Viviana, a menina do pijama) e com aquilo que gostariam de saber (Cças: Vai ter uma festa do pijama? Ela vai convidar as amigas?). O “quadro do pensar”, também denominado gráfico organizador, mapa mental, mapa conceitual, cartaz âncora, são formas de possibilitar que a criança visualize seu pensamento e suas experiências de leitura para melhor compreender o texto (FLÓRIDA, 2002; HARVEY; GOUDVIS, 2017; MCLAUGHLIN, 2003).

Por meio de perguntas (M: Vamos ver as dicas que o livro traz sobre o pijama de Viviana? Podemos imaginar e desenhar? “Ela tem o pijama mais fantástico que já se viu, do alto das árvores aos picos ensolarados, das profundezas do mar aos espaços gelados, do fundo das matas aos abismos medonhos, os animais mais fantásticos que só vemos em sonhos [...]”) as crianças foram convidadas a ilustrar o pijama de Viviana. Foi entregue uma imagem de silhueta[3]  de um pijama para que pudessem registrar suas hipóteses, conforme a leitura da história e as dicas sobre o pijama de Viviana. Foram disponibilizadas canetinhas coloridas, lápis de cor, giz de cera para produzirem o pijama.

Durante a leitura, elas se aproximavam constantemente do livro e elaboravam inferências sobre o pijama de cada personagem. Após a pergunta que a personagem principal sempre fazia ao final de suas cartas: “Quando você vai para a cama dormir, que tipo de pijama gosta de vestir?”, as crianças iam criando suas inferências.

 

M: O Leão disse ser o rei da floresta. A história diz que o pijama é coisa de rei, coberto de coroas...isso faz vocês pensarem que é um pijama como?

C1: Tia, minha vó já matou um leão.

C2: De coroas. [...]

M: Quem mais será que vai ser convidado para essa festa?

Cça: O coelho

[...]

M: E do jacaré?

C3: Cheio de dentes ou de escova de dente.

M: Quem será o próximo convidado?

M: E como é o pijama do polvo?

C4: Todo enroladinho, por que ele é enrolado.

M: E do macaco?

C5: Eu acho que é de banana [...]

M: E do urso? O que ele gosta de comer?

C6: Eu acho que é cheio de ursinho, o mais bonintinho.

M: E quem será o vencedor? O que será que irá acontecer? Por que acham isso?

Cças: Urso, Leão, girafa [fazem torcida]. (Trecho retirado da gravação de vídeo

 

Figura 2 - Crianças visualizando os detalhes da história para inferir ou confirmar suas hipóteses.

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Fonte: arquivo pessoal da autora, 2021.

Após a leitura, as crianças puderam confirmar suas hipóteses sobre o pijama de Viviana, que é revelado na última página em um formato de envelope que se abre, trazendo muita expectativa para elas. Ao final da história, foi preenchido o “quadro do pensar” com as apropriações e com a síntese final realizada pelas crianças coletivamente (Cças: Viviana convidou os animais: Leão, urso, jacaré, girafa, pinguim, polvo. Viviana venceu o concurso).

 

Figura 3 - Quadro do pensar: “Oficina do Adivinhar”.

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Fonte: arquivo pessoal da autora, 2021.

 

Como proposta de atividade para ampliar seu repertório de experiências, as crianças foram surpreendidas na última página do livro com uma carta da Viviana endereçada a elas. As crianças ficaram encantadas com a possibilidade de receber uma carta da personagem e ver que na carta havia uma foto da turma e um convite para confeccionar máscaras coloridas para uma festa.

 Figura 4 - Carta elaborada para as crianças participantes da Oficina.

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Fonte: elaborado pela autora, 2021.

 

A partir da leitura da carta, foi proposto às crianças que elaborassem suas máscaras. Assim, disponibilizou-se diferentes materiais e após a confecção das máscaras, as crianças propuseram que fizéssemos uma festa com música e brincadeiras.

 

Figura 5 - Crianças dançando e tocando instrumentos com as máscaras produzidas por elas.

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Fonte: arquivo pessoal da autora, 2021.

 

Figura 6 - Brincadeira Musical.

20191113_154531

Fonte: arquivo pessoal da autora, 2021.

 

 

Inferências: entrevista diagnóstica de Estratégias de Pensamento para Compreensão e Rubrica de pontuação com base em Keene e Zimmermann (2007)

 

              Para avaliar a estratégia “Inferência” foram propostas questões durante a leitura em voz alta do livro, nas quais a criança poderia tentar adivinhar os próximos acontecimentos da narrativa: “O que você sabe, sente ou acredita que não está escrito diretamente no texto ou mostrado em alguma ilustração? Você consegue adivinhar o que está prestes a acontecer? Por que? O que você me disse faz você pensar em outros livros, pessoas ou ideias? Se fizer, de que forma eles lhe ajudam a entender melhor esse texto?  Por que leitores compreendem melhor quando tentam adivinhar?”. Ressalta-se que em alguns momentos da entrevista tornou-se necessário refazer as perguntas utilizando-se de sinônimos ou esclarecendo a questão. Para analisar as respostas, utilizou-se a rubrica destacada no Quadro 1.

 

Quadro 2 – Rubrica de pontuação “Inferências”.

NÍVEL

RUBRICA DE PONTUAÇÃO INFERÊNCIA

1

Sem resposta/inferência.

2

Tenta fazer uma previsão ou chegar a uma conclusão imprecisa, minimamente relacionada ao texto ou não substanciada com informações de texto.

3

Chega a conclusões ou faz previsões sobre conteúdo não diretamente declarado no texto, usando algum esquema; compreende a essência do texto, mas as inferências são razoavelmente seguras (óbvias).

4

Desenha a conclusões, faz previsões, interpreta, especula e/ou editorializa de forma a aprimorar o significado do texto ou que vão além do texto, e consegue explicar a origem da inferência tanto no texto quanto no esquema.

5

Faz previsões, interpretações e tem outros pensamentos originais acerca do texto, os quais incluem [e] aprimoram o significado geral do texto e o tornam mais memorável para o leitor. Pode extrapolar para outros textos e contextos e consegue explicar a forma como as inferências ajudam a aprofundar a compreensão.

Fonte: Elaborado pela autora com base em Keene e Zimmermann (2007).

 

Destaca-se que o primeiro grupo participou somente do questionário diagnóstico, em dois momentos, com intervalo médio de tempo de 1 mês, enquanto o segundo grupo participou do questionário diagnóstico em dois momentos e das Oficinas Literárias. As respostas foram organizadas em Tabela na qual é possível observar os dois momentos (diagnóstico inicial e final), bem como a frequência (F) e porcentagem (%) de cada grupo. A partir da Rubrica apresentada, as respostas foram categorizadas nos níveis 1, 2, 3, 4 e 5.

 

Tabela 1 Resultado das respostas a partir da rubrica de pontuação “Inferências”.

EL3 Inferência

Grupo controle

Grupo intervenção

Momento 1

Momento 2

Momento 1

Momento 2

Níveis - Rubrica de respostas

F

%

F

%

F

%

F

%

1

2

12,5

6

37,5

7

35,0

0

0

2

10

62,5

4

25,0

8

40,0

5

25,0

3

3

18,8

6

37,5

4

20,0

5

25,0

4

1

6,3

0

0

1

5,0

8

40,0

5

0

0

0

0

0

0

2

10,0

Total

16

100,0

16

100,0

20

100,0

20

100,0

Fonte: elaborado pela autora, 2021.

 

No que se refere à estratégia de Inferências, no indicador 1, as respostas que mais tiveram destaque foram “Não”, “Não sei”, “Não lembro”, demonstrando ausência de inferências. Já na pontuação 2, destaca-se respostas que apresentam previsões iniciais e explícitas no texto como: “O monstro vai pegar a criança (C4.1); A menina vai correr do monstro” (C.4.2), “O olho que a gente viu azul deve ser dele. Eu acho que ele vai pegar o intruso (C.6.1), “Eu acho que o monstro vai achar uma vovozinha loba, por que você já tinha lido essa história pra mim” (C21.2).

 No que se refere ao nível 3 as crianças já conseguiam fazer previsões para além do conteúdo declarado no texto usando alguma estratégia, como por exemplo: “Essa página não dá pra ler [aponta para ilustrações], aqui dá [aponta para as palavras]. Eu tô achando que ele vai ser bonzinho, por que eu acho que ele vai ser bonzinho com as pessoas. Se a gente tentar adivinhar a gente presta muita atenção” (C13.2), “Que ele ficou muito bravo com o livro e até jogou o livro no chão. Que não tinha gosto de nada, daí eu lembrei que ele tava com fome. [...]. Daí vai vir uma vovó dragão explicar pra ele, aí no final ele gosta de livros [...] por que você já contou pra eu” (C16.2).

No Grupo Controle a maioria das crianças ainda se encontram no nível 1 e 2. Já no Grupo Interventivo no nível 4 que inicialmente havia 1 única criança (5,0%), após a intervenção 8 crianças (40,0%) atingiram esta pontuação ao conseguir ampliar suas previsões para além do que estava explícito e justificar o uso das hipóteses, em respostas como:

 

“Ele fez uma careta assim [faz careta]. Tia sabe por que ele tem olho vermelho? Por que ele é muito malvado. Eu acho que o monstro vai devolver o livro da menina e deixar uma pedra de coração. É por que voce leu pra mim essa história outro dia” (A6.2).

“É que o livro que ele assustou a menininha está diferente, por que ali o peixe está de ponta cabeça e agora tá em cima. [...] Eu penso que ele vai deitar no chão e vai começar a ler e vai vir uma velha lobo que vai ensinar ele ler. [...] Por que eu guardei na minha imaginação.” (C1.2)

 

(Trechos retirados das entrevistas diagnósticas).

 

No nível 5, após as oficinas duas crianças ampliaram ainda mais seus pensamentos e interpretações, demonstrando previsões originais, aprimorando o significado geral e ampliando seus pensamentos para outros contextos. “Eu tô lembrando daquela história do pijama, é que o monstro está com uma calça igual um pijama.[...]. Eu acho que ele vai lá na casa do jacaré saber ler, outro dia você já leu com a gente. A gente fez a oficina do lembrar aí a gente lembra tudo” (C11.2), “Quando eu estava lendo isso aqui [mostra imagem], eu lembrei disso aqui [aponta o título do livro], está escrito o monstro que adorava ler né? O monstro vai pegar o livro e ler né? Você leu o outro dia, por isso eu consigo lembrar. Tem uma outra história que roubou um livro de alguém [...]. A vovó dele vai ler um livro para ele. Eu lembrei. Eu acho que se ler bastante o livro, as pessoas aprende ler (A5.2).

É importante destacar uma breve relação entre os dados obtidos por meio dos testes e dados complementares de caráter qualitativo obtidos por meio de depoimento da professora responsável pelo grupo interventivo. Os dados ressaltados pela professora, em termos do desenvolvimento da turma após a realização das Oficinas corroboram com os acima mencionados.

 

Com o início do projeto “Pequeno Leitor”, percebi que meus alunos desenvolveram muito a oralidade, espontaneidade em expressar seus pensamentos [...] depois das oficinas eles ficaram com a percepção visual melhor, fazendo assim observar detalhes nas imagens das histórias. Na hora do reconto eles estavam sempre demonstrando interesse em recontar e sempre com riqueza nos detalhes e ainda com repertório de vocabulário mais rico, porque eles tiveram mais contato com a leitura [...]. O projeto também contribuiu muito para eu melhorar minhas leituras desde as escolhas dos livros, o modo de ler e explorar ao máximo esses materiais - Os livros. (Trecho do depoimento da professora responsável pelo grupo interventivo).

 

Observa-se que os elementos destacados pela professora como “oralidade, pensamento, percepção visual, interesse e ampliação de vocabulário” são constitutivos de uma ação comunicativa, aspecto fundamental na formação de atitudes leitoras. A partir dos resultados apresentados, pode-se afirmar que as práticas pedagógicas com as estratégias de pensamento se constituem possibilidades para a formação de atitudes leitoras desde a Educação Infantil.

 

Análises e discussões

As oficinas literárias “Pequeno Leitor” se revelaram como possibilidade de aproximação das crianças com a literatura e com as estratégias de leitura. Os resultados do instrumento de avaliação de estratégias de compreensão revelaram diferenças significativas entre o grupo experimental e grupo controle, sendo que as crianças que participaram da proposta interventiva ativaram diferentes estratégias em suas respostas. As transcrições de trechos das oficinas, evidenciam ainda, a relevância de uma proposta interventiva que respeite o tempo da infância e as atitudes leitoras em formação.

A prática de leitura em voz alta, planejada com a finalidade de apresentar e mobilizar estratégias de compreensão, constitui-se possibilidade de contato com o universo dos livros e desenvolvimento de atitudes leitoras. Antes, durante e depois da leitura é possível utilizar diferentes estratégias para a produção de sentidos frente ao texto (SOLÉ, 2012). Harvey e Goudvies (2017) afirmam que o ensino de estratégias envolve sempre modelar, orientar e dar tempo para as crianças praticarem. O adulto, como modelo experiente para criança, demonstra como usa as estratégias, criando necessidades para que as crianças ativem seus próprios pensamentos. As crianças podem ainda realizar desenhos ou compartilhar suas ideias por meio de um diálogo com o grupo.

Para criar um ambiente de leitura estratégico, precisamos garantir interações respeitosas nas quais as crianças não tenham medo de falar, mas que possam expressar suas opiniões e pensamentos (HARVEY; GOUDVIES, 2017). Para isso, precisamos garantir que as crianças tenham oportunidades diárias de ler, ouvir histórias, manipular materiais escritos (ARENA, 2010a; 2010b; GIROTTO; SOUZA, 2016; VALIENGO; SOUZA, 2016).

Na Educação Infantil destacamos como possibilidade a leitura compartilhada, em que todos podem coletivamente se conectar com o texto, ativar conhecimentos prévios, fazer perguntas, inferências, visualizar, destacar as ideias importantes e sintetizar. As estratégias de compreensão caminham em conjunto, pois o leitor ativa uma variedade de estratégias para produzir sentidos frente ao texto. O professor, como leitor experiente, vai conduzindo por meio de perguntas que promovem o pensamento. Todas as crianças podem participar ativamente e ampliar seus pensamentos nas Oficinas de Estratégias (HARVEY; GOUDVIS, 2017). Pouco a pouco as crianças podem responder às imagens, recursos e ideias do texto, mobilizando diferentes estratégias.

Para isso, podemos entre outras ações, apresentar o título do livro, a capa e questionar o que a criança já sabe, qual seria o assunto da história, ou ainda relacionar o título com uma música, com outros livros, com o ambiente preparado, com as vivências, cores e sabores, mobilizando ao longo da leitura tudo que for possível para produzir sentidos (FOUCAMBERT, 1994). 

Em conjunto com as estratégias mencionadas, as crianças podem ir além do texto explícito ao ativar a estratégia de inferência, pois ao relacionar seus conhecimentos com a narrativa textual e visual, as crianças constroem hipóteses e tiram conclusões. Os quadros âncoras construídos a partir das hipóteses levantadas nos dão pistas sobre os pensamentos das crianças (FLÓRIDA, 2002; HARVEY; GOUDVIS, 2017; MCLAUGHLIN, 2003) e permitem ao professor apresentar questionamentos para ampliar suas ideias, como por exemplo: O que vai acontecer agora? Por que acha isso? O que te faz pensar essa história? Desta forma, se constrói um caminho que viabiliza tempo para as interações e o levantamento de hipóteses que poderão ser ou não confirmadas ao longo do texto.

Depois da leitura, as Oficinas tiveram como objetivo re/visitar o objeto livro, retomar o quadro pensar para analisar as hipóteses levantadas e destacar os aprendizados, realizar recontos e sínteses das narrativas, compartilhando com os demais colegas. Ao final, as propostas de brincadeiras ou outras atividades produtivas, buscaram conectar às crianças novamente com a narrativa e proporcionar experiências para que pudessem se expressar, ampliando seus repertórios de vivências.

Desse ponto de vista, se os leitores experientes realizam previsões, perguntas, são seletivos, esclarecem dúvidas ao longo da leitura, relacionam informações, destacam ideias principais e podem sintetizá-las (PRESSLEY, 2002), acreditamos que as crianças podem fazer este mesmo movimento em algum nível. Assim, ao final de cada leitura compartilhada, percebemos que é possível usar um repertório de estratégias de pensamento que se complementam simultaneamente. Uma prática pedagógica que se preocupa com a formação de atitudes leitoras desde a pequena infância, mobiliza tudo quanto é possível para a produção de sentidos frente ao texto escrito.

 

Considerações Finais

Acreditar nas potencialidades das crianças da Educação Infantil, no seu processo de aprendizado e na possibilidade de ações respeitosas para a formação de atitudes leitoras são princípios dessa pesquisa. Pensar o desenvolvimento de atitudes leitoras na criança pequena, nesta perspectiva, é vislumbrar a leitura como ato de compreender a intenção de comunicação do outro.

Buscamos a partir dos estudos da teoria cognitiva compreender as estratégias que são mobilizadas por leitores experientes antes, durante e depois da leitura. Essas estratégias têm como base os estudos da metacognição, ou seja, o movimento que se realiza para se tomar consciência dos processos cognitivos e assim, monitorar a própria compreensão. Assim, a partir da metodologia norte-americana que se propõe em apresentar as estratégias de leitura para o leitor iniciante, buscamos ressignificar esta prática para pequenos leitores, aqueles que ainda não realizam a leitura de forma convencional.

Sabemos que a criança pequena ainda não tem o domínio consciente dos próprios processos psicológicos (metacognição), porém acreditamos que as práticas pedagógicas de leitura podem contribuir para o desenvolvimento da atenção, memória, pensamento, imaginação, bases fundamentais para a formação de atitudes leitoras. Para isso, contamos com as contribuições da teoria histórico-cultural, que vai nos indicar que antes de ser interna, qualquer atitude é vivida coletivamente e à medida que a criança experimenta vai internalizando e se apropriando.

Pensar na formação de atitudes leitoras na infância em uma perspectiva desenvolvente é mobilizar o pensamento das crianças de forma cada vez mais elaborada, e para isso concordamos com Harvey e Goudvis (2017) ao afirmarem que as perguntas abrem portas para o pensamento e compreensão. Nesse caminho, lançamos mão das estratégias de compreensão para direcionar todo o trabalho proposto com as crianças ao longo dessa pesquisa, a fim de contribuir para o envolvimento ativo das crianças antes, durante e depois da leitura compartilhada, criando necessidades de pensamento por meio dos conhecimentos prévios, conexões, inferências, perguntas, discussões, já que ler, é mobilizar tudo que se conhece.

Explorar com as crianças os caminhos percorridos ao longo da história contribui para que progressivamente utilizem seus pensamentos para criar sentido e compreensão do texto, isso pode ser efetivado por meio do reconto, da roda de conversa e de perguntas que possibilitem que a criança realize inferências, retome elementos da narrativa, dê sua opinião, relacionando diversos elementos do texto para a compreensão.

Nas entrevistas diagnósticas realizadas antes e depois das oficinas literárias, as crianças que participaram da intervenção apresentaram médias superiores na avaliação do uso de estratégias de compreensão. A professora da turma relata ainda o desenvolvimento da fala, expressão dos pensamentos, percepção visual e necessidades de dialogar com os livros, aspectos observados por ela durante e após a realização das oficinas. Mesmo com um período curto de duração, as Oficinas com as crianças demonstraram o quanto as trocas e os processos vividos coletivamente podem promover o desenvolvimento de atitudes leitoras na pré-escola.

Avaliar as estratégias de compreensão não teve como intuito divulgar ações com fins em si mesmas, como tornar a criança “mais inteligente” ou mais “competente”, mas observar as atitudes leitoras em desenvolvimento desde a infância. Defendemos assim, que as ações coletivas antes, durante e depois das práticas de leitura literária, formam atitudes leitoras e criam necessidades de ler individualmente. Assim, cabe à escola criar condições para que as crianças experimentem e façam uso de suas atitudes leitoras em desenvolvimento.

Esperamos que esta pesquisa se constitua como um convite para outros estudos, propostas e trajetos possíveis. As questões que nos moveram e nos conduziram a esse encontro pousam aqui de alguma forma, mas já com o desejo de alçar novos voos.

 

Alheias e nossas as palavras voam.

Bando de borboletas multicores, as palavras voam

Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas, as palavras voam.

Voam as palavras como águias imensas.

Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.

Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em

redor de nós as palavras voam.

E às vezes pousam. (Cecília Meirelles, 2013, p. 99)

 

 

Referências

 

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Notas



[1] Para a participação das crianças, foi realizada previamente uma reunião com os responsáveis e entregue uma cópia do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), solicitando a autorização dos pais/responsáveis para a participação das crianças na pesquisa, bem como o uso das imagens fotografadas nas Oficinas.

 

[2] A história se constrói a partir de uma narrativa muito próxima do universo infantil. Tem como personagem principal um monstro que vive em uma floresta encantada, onde adora assustar os visitantes. Um dia, uma menina deixa cair um objeto esquisito que o desperta muita curiosidade e estranhamento. Sem saber que é um livro o monstro é ajudado pela vovó Dragão e a partir dessa descoberta, ele conhece um mundo repleto de histórias, capaz de transformá-lo e contagiar todos.

[3] Após análise da atividade proposta, considerou-se importante destacar que uma outra possiblidade seria a entrega de uma folha em branco sem a silhueta, para que as crianças pudessem criar o pijama a partir de suas próprias percepções, mobilizando inclusive seus conhecimentos prévios.

 

 

 

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