Tecendo algumas razões para o uso da Insubordinação Criativa como ação de resistência na formação inicial do professor de matemática

Tejiendo algunas razones para utilizar la Insubordinación Creativa como acción de resistencia en la formación inicial de profesores de matemáticas

Weaving some reasons for the use of Creative Insubordination as a resistance action in the initial formation of the mathematics teacher

 

Wguineuma Pereira Avelino Cardoso

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
wguineuma@ifesp.edu.br

 

Liliane dos Santos Gutierre

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.
liliane.gutierre@ufrn.br

 

Recebido em 11 de novembro de 2021

Aprovado em 20 de julho de 2022

Publicado em 06 de outubro de 2023

 

 

RESUMO

Este estudo identifica historicamente, na trajetória de consolidação da Educação Matemática, alguns conflitos e tensões entre professores de matemática quanto ao reconhecimento e à demarcação de um campo de formação e pesquisa. De modo que, no enfrentamento dos conflitos e tensões, há a necessidade de gerar ações como forma de resistência para defender o espaço profissional e acadêmico. Nesse sentido, este artigo evidencia parte de uma pesquisa de doutorado e tem o objetivo de apresentar as razões e o papel da Insubordinação Criativa como ação de resistência na formação inicial do professor de matemática. Busca discutir a resistência ao campo da Educação Matemática. Como questão norteadora, elege: quais as razões e o papel do uso da Insubordinação Criativa como ação de resistência? Nessa perspectiva, esta pesquisa é de cunho qualitativa com estudos bibliográficos quanto aos conceitos de Insubordinação Criativa e campo científico, bem como suas relações com ações de resistência na Educação. Os resultados são iniciais. Este estudo aponta que as ações de Insubordinação Criativa podem ajudar a melhorar a formação e, consequentemente, o Ensino de Matemática. Indica essa discussão para fortalecer, reconhecer e legitimar o campo de formação de futuros professores de matemática.

 

Palavras-chave: Educador matemático; formação inicial; conflitos; tensões.

 

RESUMEN

Este estudio identifica históricamente, en la trayectoria de consolidación de la Educación Matemática, algunos conflictos y tensiones entre profesores de matemáticas en torno al reconocimiento y demarcación de un campo de formación e investigación. Por lo tanto, frente a conflictos y tensiones, es necesario generar acciones como forma de resistencia para defender el espacio profesional y académico. En este sentido, este artículo destaca parte de una investigación doctoral y tiene como objetivo presentar las razones y el papel de la Insubordinación Creativa como acción de resistencia en la formación inicial de profesores de matemáticas. Se busca discutir las resistencias al campo de la Educación Matemática. Como pregunta orientadora, elige: ¿cuáles son las razones y el papel del uso de la Insubordinación Creativa como acción de resistencia? Desde esta perspectiva, esta investigación es de carácter cualitativo con estudios bibliográficos sobre los conceptos de Insubordinación Creativa y el campo científico, así como sus relaciones con las acciones de resistencia en Educación. Los resultados son iniciales. Este estudio señala que las acciones de Insubordinación Creativa pueden ayudar a mejorar la formación y, en consecuencia, la Enseñanza de las Matemáticas. Indica esta discusión para fortalecer, reconocer y legitimar el campo de formación de los futuros docentes de matemáticas.

 

Palabras clave: Educador matemático; Formación inicial; conflictos; tensiones.

 

ABSTRACT

This study historically identifies, in the trajectory of consolidation of Mathematics Education, some conflicts and tensions between mathematics teachers regarding the recognition and demarcation of a field of formation and research. So, in facing conflicts and tensions, there is a need to generate actions as a form of resistance to defend the professional and academic space. In this sense, this article highlights part of a doctoral research and aims to present the reasons and the role of Creative Insubordination as an action of resistance in the initial training of mathematics teachers. It seeks to discuss the resistance to the field of Mathematics Education. As a guiding question, it chooses: what are the reasons and the role of the use of Creative Insubordination as an action of resistance? In this perspective, this research is of a qualitative nature with bibliographic studies regarding the concepts of Creative Insubordination and the scientific field, as well as their relations with resistance actions in Education. The results are initial. This study points out that Creative Insubordination actions can help improve training and, consequently, Mathematics Teaching. Indicates this discussion to strengthen, recognize and legitimize the training field of future mathematics teachers.

Keywords: Math educator; Initial formation; conflicts; tensions.

 

 

Introdução

É nessa tensão entre a realidade social, marcada pela opressão, e narrativas de lutas históricas e contemporâneas que o terreno da resistência é produzido e trabalhado. Pois, é dentro da dialética de opressão e transformação que o discurso de esperança e possibilidade, como pré-requisito para a resistência, pode ser aprendido e praticado, no contexto do desenvolvimento e da vida da pessoa. (Giroux, 1986, p. 11)

Iniciamos este artigo com uma reflexão a partir do que aponta Giroux, que se relaciona com a pretensão de uma pesquisa que está em andamento, para qual queremos discutir ações de resistência fundamentada na esperança e na possibilidade de uma Educação ética e solidária. Ressaltamos que esta pesquisa faz  parte de uma Tese que está em andamento, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECM), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Dentre os referenciais teóricos e metodológicos, , destacamos o conceito de Insubordinação Criativa (IC) para se discutir ações de resistência que possam fortalecer a formação do professor de matemática[1], a fim de que possa ser mais consciente e reflexivo quanto ao seu campo acadêmico e profissional. Como D’Ambrósio e Lopes (2015a),  consideramos que um professor reflexivo é aquele que busca superar os paradigmas, toma decisões com visão crítica e investigativa do seu contexto. Nesse processo, ele procura ter consciência da realidade, de suas crenças, sente-se inconcluso e inacabado, em permanente mudança (Freire, 1996).

Ainda de acordo com D’Ambrósio e Lopes (2015a, p. 2),  a IC pode ser utilizada para redimensionar a prática docente no sentido de “promover uma aprendizagem na qual os estudantes atribuam significados ao conhecimento matemático.” Corroborando as autoras citadas,  buscamos o conceito de IC, com destaque para D’Ambrósio e Lopes (2014, 2015a, 2015b, 2015c), que foram as pioneiras em utilizá-lo nas pesquisas de EM, no Brasil. Além delas, citamos D’Ambrósio (2017), Gonçalves Junior (2016) e Guia (2020).

 

Segundo D’Ambrósio e Lopes (2015b),  a IC se relaciona com ações conscientes da necessidade de agir de forma contrária a uma autoridade que, com ou sem intenção, determina alguma forma de exclusão e/ou de discriminação. Portanto, entendemos que a IC pode ser usada como fio condutor de comportamentos críticos e reflexivos, necessários a ações de resistência por um campo científico que historicamente vem demarcando seu espaço acadêmico e de pesquisa. Neste sentido, as ações de resistência pelo campo da EM no contexto de formação inicial que propomos neste artigo dialoga com as concepções de autores que se relacionam com uma perspectiva crítica da Educação, como: Giroux (1986), Freire (1967 e 1979), e Freire e Shor (1986). Ademais, por se tratar de um campo científico, tomamos os pressupostos teóricos de Bourdieu (1983) para campo científico.

De acordo com Bourdieu (1983, p. 122), o campo científico é definido como um: “sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial.” Neste espaço de lutas e disputas existe interesses diferentes entre grupos por uma produção científica que representa o lucro simbólico e confere prestígio e legitimidade para aqueles que outorgam a autoridade científica. (BOURDIEU,  Mais do que um espaço lutas, o campo da EM representa um ambiente de formação e reflexão de futuros professores de matemática e, historicamente, identificam-se conflitos e tensões para legitimar-se como um campo epistemológico dos saberes necessários e essenciais ao docente de matemática. Os conflitos e as tensões que se imprimem no espaço de formação estão entre a promessa e uma formação profissional do conhecimento escolar. Essa dicotomia entre intenções e discussões entre professores de matemática que atuam em Cursos de Licenciatura em Matemática coloca em jogo questões de poder e hierarquia por um campo disciplinar.

  Em  meio a divergências e resistências entre professores, a formação inicial do professor de matemática passa a ser  um ponto de discussão e questionamentos. Para D’Ambrósio (2005, p. 2), desde o fim século XIX que se têm as mesmas propostas de formação do docente de Matemática, a “mesmice”, alerta o autor, ou seja, essas propostas têm como foco: “aquisição de competências que são, em grande parte, irrelevantes, obsoletas e desinteressantes na nossa sociedade.”

O autor aponta que é necessário discutir uma nova Educação Matemática que tenha a coragem e a liberdade de remover o caráter propedêutico que predomina na formação inicial fazendo com que haja a integração das especialidades da Matemática com  as demais disciplinas do currículo de forma transversal, mas isso não se discute, pois há muita resistência entre os professores de matemática, no geral. (D’Ambrosio, 2005).

Em face do exposto, é necessário que os professores dos Cursos de Licenciatura em Matemática tenham vontade para discutir esse assunto, se não iremos manter a “mesmice”, como disse D’Ambrósio (2005). Nesse caso, qual o interesse ou o que impede as discussões?  As divergências e os conflitos em meio educacional são sempre minimizados ou ignorados pelo discurso “político de integração e consenso”, encoberto pela ideia de se oferecer aos alunos um bem maior que é o conhecimento institucionalizado neutro, livre de lutas concorrenciais (Giroux, 1986, p. 103). Assim, o silêncio se faz e fortalece àqueles que subjugam a autoridade científica do campo de formação.

Por tudo que já foi exposto, justifica-se a relevância desta pesquisa, que tem por  objetivo apresentar as razões e o papel da Insubordinação Criativa (IC) como ação de resistência na formação inicial do professor de matemática, por entendermos  que ainda há resistência ao campo da Educação Matemática (EM), principalmente no contexto de formação inicial. Assim, queremos responder a seguinte questão norteadora: quais as razões e o papel do uso da IC como ação de resistência

Nessa perspectiva, apontamos pelo menos duas razões: uma associada a concepções epistemológicas e culturais que, muitas vezes, gera preconceito entre os professores que ensinam matemática, e  outra a um modelo de formação que ainda continua preso a metodologias centradas no conhecimento específico de cada disciplina, ficando o futuro professor de matemática com uma compreensão fragmentada do conhecimento. É sobre essas razões aliadas às ações de resistência na Educação e a luz da IC que iremos tratar nas próximas seções deste artigo. Discutiremos, a seguir, acerca do percurso metodológico deste estudo.

Percurso metodológico

Utilizamos os procedimentos metodológicos na perspectiva de uma pesquisa qualitativa. Esse tipo de investigação:

 

[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundos das relações, dos processos e dos fenômenos, que não podem ser reduzidos às operacionalizações de variáveis (Minayo; Deslandes; Cruz Neto, 2002, p. 22)

 

 

Observamos, no processo de desenvolvimento da EM, os conflitos e tensões que, de alguma forma, convergiram para obstáculos epistemológicos e discriminações de diferentes natureza no campo acadêmico e profissional do professor de matemática. De modo, que realizamos uma pesquisa bibliográfica relacionada com a formação do professor de matemática na perspectiva crítica e reflexiva, com um olhar para a IC como ação de resistência. Considerando que: o,

 

[...] a pesquisa bibliográfica não é mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras.” (Marconi; Lakatos, 2003, p. 183).

 

          Considerando o que apontam as autoras, a investigação histórica proporcionou a identificação de que, mesmo antes de ser institucionalizado, o campo da EM já enfrentava algum tipo de resistência.

 

Aproximações da Insubordinação Criativa (IC) com a Educação Matemática (EM)

 

De acordo com Lopes, Peres e Grando (2017), o conceito de IC tem origem nas ideias de Robert King Merton, sociólogo americano que publicou um texto Reader in bureaucracy, no livro Estrutura burocrática e personalidade, no ano de 1963, nos Estados Unidos da América (EUA).Em 1971, esse  livro foi traduzido e publicado no Brasil. Em seu texto, o autor informava que os sistemas de autoridade burocrática necessitam muitas vezes que sejam desobedecidos em prol de um bem maior, e que se trata de uma questão moral agir contra burocracias que imprimem alguma dificuldade ou impedimento de algo realmente justo para determinado grupo ou sociedade.

Em 1989, as ideias do sociólogo foram usadas por pesquisadores da Educação, na cidade de Chicago, nos Estados Unidos da América (EUA) e se relacionavam com os diretores de escolas públicas que, em suas gestões, muitas vezes desobedeciam de forma responsável algumas normas do sistema escolar. Para isso, utilizaram alternativas criativas que possibilitassem, para professores e alunos, melhores oportunidades de se desenvolverem dentro da comunidade escolar (Lopes;Peres;Grando, 2017).

No Brasil, as pesquisadoras brasileiras pioneiras em usar o conceito de IC  na Educação Matemática foram Beatriz Silva D’Ambrosio e Celi Espasandin Lopes, no ano de 2014:

[...] trouxeram ao contexto brasileiro seus diálogos com as ideias  da  insubordinação  criativa,  assumindo  a  subversão  responsável  como  sinônimo, e buscaram potencializar as  ações  de  professores  e  pesquisadores que  se  opõem a  regras estabelecidas, ao  entenderem  que seu  trabalho,  seja  na  escola  ou  na  universidade,  assume compromisso explícito com o respeito humano, a solidariedade, a equidade, a justiça social e a ética (Lopes; Ferreira, 2019, p. 6).

Além de trazerem essa discussão,  o conceito explicitado pelas pioneiras brasileiras se relaciona com:

[...] ações de ruptura assumidas diante às normas ou regras institucionais visando um melhor atendimento às necessidades das pessoas às quais se prestam um serviço. No caso da educação são considerados subversivamente responsáveis os gestores e professores que criam alternativas criativas para obterem melhores resultados para o bem comum da comunidade escolar (D’ambrosio; Lopes, 2015a).

No que dis respeito a essas rupturas,  a partir da difusão do conceito de IC pelas pesquisas das autoras no Brasil, muitos professores de matemática reconheceram   em sua prática um agir insubordinado, sendo socializado pelos próprios docentes em suas pesquisas ou por outros pesquisadores do campo da EM. Nesta perspectiva, várias narrativas de professores compõe uma obra organizada pelas autoras citadas. Trata-se de uma coleção de livros que expõe os modos como a IC está presente na prática do professor.  Entre essas narrativas, temos a história de três professoras que:

 

[...] mostram-se competentes, ao administrar conflitos oriundos dos diferentes entendimentos dos gestores, dos colegas e dos pais sobre o ensino e a aprendizagem das crianças e dos jovens. Estas relações exigem delas um empoderamento expresso em ‘manobras’ de negociação com todos os envolvidos no processo (D’Ambrosio; Lopes, 2014, p. 44).

 

As autoras explicam que professoras agem com “empoderamento expresso em manobras”(D’Ambrosio; Lopes, 2014, p. 44). , Mas o que isso quer dizer na prática? De acordo com Skovsmose (2011), existem diferentes interpretações para o empoderamento, entre elas, ele aponta a perspectiva abordada na obra de Paulo Freire, que se relaciona com o fortalecimento para a justiça social por meio do processo de conscientização da realidade.

Segundo Freire (1979, p. 15) essa realidade não está aparente, é necessário “que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica”. Sob essa ótica, Freire (1979) defende uma Educação como prática da liberdade, que significa um ato de conhecimento por meio de uma reflexão crítica.Assim, com consciência, será possível mudar (manobrar) essa realidade.

            Muitos autores da EM desenvolveram estudos e pesquisas com a intenção de mudar essa realidade e contribuir com o desenvolvimento de uma Educação mais significativa e solidária. Sob esse viés,  a pesquisa de Guia (2020) destaca algumas ideias de pesquisadores e professores que se relacionam com a IC, mas consideramos que essas ideias se transformaram em ações de resistência quando implementadas pelos próprios criadores ou por outros pesquisadores e/ou professores, vejamos: I) A Etnomatemática como um modo de agir insubordinado criativamente; II) A Educação Matemática Crítica permite a subversão responsável; III) O uso de tarefas exploratórias e investigativas no ensino é uma ação de insubordinação criativa aos atuais programas e metas curriculares (GUIA, 2020).

            Segundo a autora essas ideias ou ações são consideradas uma Insubordinação Criativa, pois cada uma delas, para serem criadas ou implementadas, precisou utilizar alguma estratégia como a ruptura com leis estabelecidas. subversivamente responsável, por parte dos professores e pesquisadores.  Nessas ações, identifica-se, de modo geral,  o rompimento com currículos impostos pelo sistema burocrático de ensino, promoção de uma educação crítica e reflexiva, propostas curriculares diferenciadas que imprimem posturas e novas metodologias para os professores e, consequentemente, levam à quebra de regras e normas de condutas que são inculcadas e exigidas em algumas instituições de ensino público ou privado.

Dessa forma, podemos notar que a IC já faz parte de alguns contextos  da EM, confirmando a importância do seu uso como ação de resistência na formação do professor de matemática. Portanto, é possível construir um processo de resistência com intenção de se ter uma formação inicial mais próxima da realidade educacional escolar e de suas problemáticas, rompendo, se preciso for, com regras e normas impostas.

Educação e resistência

 Como se materializa essa resistência no contexto educacional? Para isso, é preciso entender  a relação entre resistência e  Educação, de modo que buscamos saber qual o significado de resistência. De acordo com o dicionário Houaiss[2], trata-se de “ação ou efeito de resistir, de não ceder nem sucumbir”.  Em outro dicionário específico de Estudos Sociais, a resistência tem o sentido de “estar”, “tomar uma posição” um “(re)existir” (Capinha, 2012, p. 185). Assim, ao estabelecer uma relação dos significados expostos com o contexto que queremos imprimir neste estudo, entendemos que as ações consideradas de IC têm a função de empoderar e fortalecer a tal ponto que se crie uma força para resistir a algo ou a alguém que está em oposição, no sentido de aversão.

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Consideramos  que essa oposição se relaciona com o preconceito ao campo da EM, em parte devido a concepções e visões que não se adaptam à realidade escolar de um  conhecimento matemático muito formalista. Ademais, normalmente se acredita em uma Matemática “autossuficiente”, por isso, defende-se  que a Matemática escolar precisa ser  “pura e abstrata” (Ponte, 1992 p. 16). Para exemplificar as ações de resistência na Educação, nós investigamos alguns autores que falam de resistência em diferentes contextos, mas que agregam uma ideia valorativa de uma ação que queremos difundir neste artigo. Para isso, vamos nos colocar na história do tempo presente.

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A história do tempo presente pode ser definida como uma história imediata, contemporânea, recente e atual. Cada uma com suas especificidades, mas todas tem em comum objeto de estudo como sendo um passado recente que aponta diversas dificuldades de interpretação dos limites temporais e da proximidade do historiador em relação aos acontecimentos. As experiências, devido à proximidade temporal, estão vivas. Assim, o historiador precisa ser cuidadoso para não supervalorizar esses acontecimentos. (Delgado; Ferreira, 2013).

 Quando se fala em resistência, é impossível não comparar com alguns fatos ocorridos no fim da segunda década dos anos 2000. Foram vários acontecimentos no país que implicaram no sentido de resistência. Em resumo, tomamos como referência as colocações das autoras no livro intitulado de “Trabalho Docente Sob Fogo Cruzado”:

 

Temos uma sociedade aturdida pelo vírus e pelas mortes, desorganizada pelo distanciamento social, pelo negacionismo e pelo (des)governo nos vários níveis administrativos. Enquanto isso, os problemas são tratados nos níveis da aparência modelada pelos interesses do mercado. O discurso oficial do Estado e das empresas não chega ao ponto nodal da opção de muitos homens e mulheres de existirem como professores, apesar do não reconhecimento social de sua profissão. Mas eles são aqueles que tentam superar as questões de renda, de condições de vida, aqueles que continuam insistindo em atuar e reconhecer nos alunos o complemento de sua própria existência. (Algebaile; Tiriba; Ciavatta; Ramos, 2021, p. 29).

 

 

            Como mostram as autoras,  muitos conflitos se configuraram no cenário nacional: O negacionismo em relação à  Ciência foi usado pelo Governo Federal desde o início da Pandemia da Covid-19 que assolou o mundo, , como uma forma de manobrar o uso do capital financeiro do país. Com isso, professores  foram  atacados e tornados culpados pela falta de condições básicas para desenvolver o ensino remoto; foram estimuladas políticas públicas neoliberais com abertura para empresas privadas prestarem serviço à Educação Pública; avançou-se no sucateamento do serviço público com o  processo de privatização dos órgãos educacionais; intensificaram-se os ataques ao meio ambiente, com  usurpação dos direitos indígenas sobre as terras e uma crescente onda de racismo e feminicídios por todo o país. Não iremos nos debruçar sobre essas questões, mas elas também nos motivam a buscar fortalecimento em nossa área de atuação e nos preparar para o enfrentamento de questões que interferem no contexto educacional.

 

            O cenário colabora com a criação de frentes de resistência que lutam contra ações de poder que destroem os direitos da população advindas do Governo Federal, que, por sua vez, para combater as resistências, tenta impor mecanismos de controle, como a Escola sem Partido, a militarização da Educação e a revogação de leis vigentes em troca de  promulgação de decretos e resoluções construídos de modo obscuro e com ideais liberais de mercado. Nesse contexto, questionamos: como enfrentar essas questões sem estarmos fortalecidos em nosso campo profissional e acadêmico?

 

            Nesse espaço, , mais especificamente no setor educacional, destacamos algumas entidades que têm feito algumas ações de resistência, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação[3] (Anped), e a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação[4] (Anfope). As ações das entidades giram em torno de discussões, elaboração de documentos que reivindicam direitos e garantias ou notas públicas de convocação das entidades interessadas em participar de movimentos de resistência, com mobilização nas ruas Ademais, há  difusão de lives que abordam  essas  temáticas.

As políticas públicas educacionais têm imprimido cada vez mais aos docentes a necessidade de empoderar e fazer resistência frente a determinações legislativas que dificultam ou prejudicam principalmente  aqueles que precisam da Educação Pública Nesse caso, qual a relação desses acontecimentos com a resistência de que este texto trata?

 

 

Consideramos que este é o momento de olhar para a formação inicial, pois em meio a muitas mudanças que estão sendo implementadas em todo país, em especial na Educação, temos novas diretrizes para cursos de Licenciatura, como exemplo, a Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que instituiu a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Esse documento destaca a necessidade de um alinhamento dos saberes profissionais docentes com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), da Educação Básica, isso nos alerta que é preciso redimensionar a formação inicial com um olhar mais próximo dos saberes escolares.

Por isso, é importante defender ações de resistência que irão fortalecer os futuros professores de matemática, estimulando-os a colocar em prática seu campo identitário de formação e pesquisa em defesa dos direitos de uma Educação Básica mais humanizada e mais próxima das necessidades educacionais dos jovens e crianças que enfrentam diversos tipos e riscos e problemas sociais no Brasil.

Educador matemático e a IC nas ações de resistência pelo campo da EM

            Diante de uma nova realidade imposta na  reforma educacional que vem sendo implementada em todo país, com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica; e a Base Nacional Comum para Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC – formação), faz-se urgente um repensar na formação inicial do professor de matemática como uma forma de resistência. Se o professor de matemática não tiver consciência reflexiva do seu campo acadêmico e profissional, que tipo de professor formaremos? Qual a visão de conhecimento é preciso desenvolver na formação do professor de matemática? Como os professores de matemática veem os saberes pedagógicos na sua formação? Será que existe resistência aos saberes pedagógicos em detrimento dos saberes específicos da matemática? O que está em jogo neste momento de mudanças nos cursos de formação docente é o perfil profissional do professor.

Nossa preocupação vai ao encontro das bases históricas de formação do professor que ensinava matemática: no século XIX,  eram os engenheiros que ensinavam matemática nas escolas;  no século XX, foram criadas algumas faculdade de Filosofia que tinham a função de formar professores em diferentes especialidades, inclusive para ensino de Matemática. Desse modo, temos dois modelos de professores de matemática: enquanto um tinha uma visão de ensino relacionada com uma Matemática mais aplicada e método de ensino voltado para a resolução de problemas; o outro era formado em uma concepção de ensino mais formalista da Matemática, em que se enfatiza o rigor e a linguagem (Fiorentini, 2009).

  Desse ponto em diante, houve muitos conflitos entre engenheiros e professores de matemática, e ainda um novo problema se formou, pois as faculdades brasileiras da década de 1950 eram chefiadas por especialistas estrangeiros que formavam não um professor de matemática , mas um matemático, porque , naquela época: 

O objetivo principal da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo não era formar professores secundários, mas formar um novo tipo de cientista especializado, o matemático profissional, cuja função primordial seria a pesquisa matemática, mas que circunstancialmente poderia também atuar no magistério secundário (Dias, 202, p. 9).

Como mostra o autor,  essa mudança gerou um desentendimento quanto ao que seria uma formação para ensinar Matemática nas escolas. Assim, dificuldades de aprendizagem aliadas a uma formação distante dessas problemáticas demandaram várias reformas educacionais. 

Pesquisas internacionais dos autores, Furinghetti, Matos e Menghinia (2013), apontaram que as mudanças curriculares para as escolas, com vistas à  melhoria educacional, impulsionaram o aumento de pesquisas  relacionadas com o currículo da matemática escolar, e promoveu investigações dos problemas na Educação Matemática. Isso gerou reconhecimento para esses pesquisadores que se tornaram especialistas.

Assim, a EM passou a ter espaço nas universidades, reconhecimento e legitimidade como campo acadêmico de especialistas que precisavam ser reconhecidos.  Essas mudanças deflagaram, ainda:

O repensar sobre o papel e os métodos de educação matemática realizados nas décadas de 1950 e 1960 levaram a uma discussão global que incluiu repensar sobre a relação entre matemáticos e educadores matemáticos e um plano para novas formas de comunicação entre educadores matemáticos (Furinghetti; Matos; Menghinia, 2013, p. 289).

Corroborando o que apontam esses autores, o fato é que, em instituições de ensino, temos perfis de professores de matemática que divergem quanto a concepções de ensino de Matemática. Não estamos julgando quem está certo ou errado, queremos apenas combater qualquer tipo de preconceito ou discriminação ao campo da EM e reafirmamos que essa é uma razão forte para o uso da IC em ações resistência.

 

 

Segundo Matos (2020, p. 23-24professores de matemática se interessam em investigar os “processos de ensino e da aprendizagem da matemática”. Isto é, o campo da EM representa um espaço científico de formação e investigação, o qual podemos considerar como:

 

[...] um campo de reflexão que desenvolve teorias, modelos, paradigmas a cerca do seu objeto e que também repousa na combinação dos resultados  de outras disciplinas, integrando perspectivas que permitam uma visão conexa dos problemas de ensino e da aprendizagem da Matemática (Matos, 2020, p. 22).

Embora,  nem sempre se tenha tido  essa visão,  houve muitas disputas entre grupos que pensavam diferente. Para os matemáticos, a EM era uma forma de Arte, um  passatempo sem um corpo de conhecimentos teórico (Kilpatrick, 1996). Por isso, e por outros fatores[5] nota-se, na historiografia da EM, que entre diferentes grupos de professores do ensino da Matemática havia desconfianças quanto a sua validade e identidade como campo de formação profissional e científico.

No final da década de 1990, pesquisas internacionais, entre elas a de Kilpatrick (1996) já apontavam que o campo da Educação Matemática tinha seu espaço bem sedimentado pela produção de um capital científico significativo. No Brasil, segundo Miguel et al. (2004) foi bastante similar a institucionalização do campo. No final da década de 1980:

Por todo o país era crescente a organização de núcleos de pesquisas em educação matemática nos programas de pós-graduação em educação, além da consolidação dos programas de pós-graduação específicos em educação matemática, como o da UNESP/Rio Claro e o da PUC (Miguel, 2004, p. 74).

Os autores vão ao encontro do que explica  Bourdieu (1983, p.127), para quem houve crescimento na produção de pesquisas com uma grande acumulação de  capital científico, que representa:  “A luta pela autoridade científica, espécie particular de capital social que assegura um poder sobre os mecanismos constitutivos do campo”. Todavia, mesmo com a conquista da autoridade científica do campo, o estatuto epistemológico da sua disciplinarização[6] ainda  se encontra fragilizado por divergências entre pesquisadores e professores de matemática de IES da rede pública quanto ao  lócus epistemológico da Educação Matemática. Desse modo:

Há os que acreditam e defendem que o seu estatuto epistemológico estaria melhor definido se a situássemos no interior do campo da Educação, aqui concebida como uma prática social de investigação. Já para outros, ela estaria melhor situada e definida no interior do campo da Matemática, aqui igualmente concebida como campo de investigação. Há, finalmente, os que acreditam e defendem a independência e autonomia da educação matemática em relação tanto à Matemática quanto à Educação, encarando-a, portanto, como uma nova disciplina ao lado das demais já constituídas e consolidadas (Miguel, 2004, p. 7).

Sob essa ótica,  acreditar em um campo autônomo da Educação Matemática seria cair no erro da pré-existência de um campo disciplinar, e estaríamos conceituando a Educação Matemática como um conjunto de conhecimentos desarticulados da prática social. O pesquisador Dorier (2008) apresentou em um evento de comemoração de um século de funcionamento da Comissão Internacional de Instrução Matemática, conhecida como ICMI ou IMUK, uma importante organização internacional de Educação Matemática, no qual se comemorava um século de funcionamento da organização um dossiê que refletia sobre o desenvolvimento da EM como campo acadêmico, que informava o seguinte:

[...] parece que a virada do século 21 foi mais pessimista, e agora estamos enfrentando esse paradoxo que, embora a pesquisa em educação matemática nunca tenha sido tão desenvolvida e nos permite saber muito mais sobre o ensino e aprender matemática, é politicamente atacada e acusada de ser irrelevante em muitos países. Pontos de vista conservadores estão se tornando cada vez mais populares: ‘um bom professor é alguém com um dom, uma vocação e (eventualmente) um bom treinamento em matemática (não há necessidade de toda a bagunça teórica que os professores se alimentam de pedantes estudiosos)’ ‘uma criança precisa, acima de tudo, conhecer seus fundamentos, como algoritmos para operações’; ‘Calculadoras de bolso deveriam ser banidas’; e assim por diante. Devemos ver aqui sinais de fracasso em tornar a educação matemática um socialmente campo acadêmico eficiente? Ou esses comentários negativos são apenas um efeito colateral de uma desconfiança na intervenção acadêmica, juntamente com uma crise global afetando o status social da escola e da educação? A educação matemática não pode responder a esta pergunta, mas o desenvolvimento deste campo acadêmico é de alguma forma dependente de sua capacidade de reagir aos novos desafios. Esta não é apenas uma questão demagógica, mas realmente epistemológica (Dorier, 2008, p. 2).

 Considerando os argumentos expostos é necessário analisar o desenvolvimento do campo da EM e os obstáculos epistemológicos que foram se formando ao longo do tempo. Segundo Bachelard (1996), os obstáculos muitas vezes nascem do nosso próprio “eu” histórico e social. De acordo com o autor, é preciso  fazer uma imersão profunda para buscar as interrogações necessárias ao desenvolvimento de qualquer ciência. Ao mesmo tempo, corremos o risco de não conseguir ver, e nem mesmo conseguir superar (rupturas) os obstáculos que, em sua maioria, fazem parte da nossa própria natureza humana.

Bachelard (1996) afirma que, para evoluir, é necessário destruir o espírito não científico cercado de erros, valores e preconceitos. E a partir de um pluralismo filosófico, tem-se a liberdade de estruturar o progresso epistemológico da ciência. Assim,  poderemos encontrar o lócus da Educação Matemática.

A pesquisa de Vianna (2000) identifica resistência e preconceito nas relações profissionais dos professores de matemática. Com isso, o autor defende:

[...] a tese de que professores atuando dentro de departamentos de matemática que optam por exercer atividades predominantemente no campo da Educação Matemática sofrem resistências de fundo preconceituoso por parte de seus colegas. Essa resistência acarreta dificuldades para a realização de seus trabalhos que não decorrem da natureza do objeto acadêmico de estudo, e sim da transformação do preconceito em ações discriminatórias (Vianna, 2000, p. 6).

Nessa perspectiva,  se o preconceito não é gerado pela natureza do objeto acadêmico, isso nos leva a refletir que a desaceitação e o descrédito dado  ao campo está muito mais associado aos obstáculos epistemológicos construídos ao longo do tempo. Não é uma tarefa fácil, romper com esses obstáculos, ainda mais para aqueles que defendem um sistema matemático hegemônico a despeito de outro sistema que está mais próximo as necessidades sociais.

Partindo da tese de Vianna (2000), entendemos que ficou comprovada a existência de discriminação e de resistência ao campo da EM. Isso nos levou para além da existência e da comprovação desse fato. Observamos que, para ir contra uma resistência de fundo preconceituoso, é preciso também fazer uma resistência de fortalecimento do campo. Nesse caso, por onde começar? A fragilidade do campo pode estar no processo de formação inicial quando o futuro professor começa a conhecer o campo epistemológico da Matemática e EM.

O professor de matemática precisa ser formado em uma perspectiva de ação e reflexão do seu campo e se permitir cometer atos de IC para romper com dogmas de um conhecimento matemático que não é construído pelas pessoas, mas que é dado pronto e acabado de modo a ser inacessível para aqueles que não têm o dom para a Matemática. Tomar consciência do seu campo epistemológico, defendê-lo ao ponto de considerar a IC, poderá fortalecer a sua prática profissional.

Nesse contexto de tensões, conflitos e obstáculos, é necessário buscar caminhos que possibilitem mudanças na formação inicial do professor de Matemática. Um bom ponto de partida é conduzir ações para uma formação mais consciente com reflexões críticas e aproximações da práxis do professor da Educação Básica, e, se possível, tomar a liberdade de agir com ações de IC.

             

A esse respeito, D’Ambrosio e Lopes (2015a) explicam que raramente os professores de matemática conseguem absorver e colocar em prática as contribuições do campo da Educação Matemática, pois:

Esses profissionais vivem imersos em tensões que ora decorrem de sua formação, que teve como modelo de aprendizagem matemática o domínio de técnicas e algoritmos, a reprodução, a memorização e a formalização excessiva. E, ora, derivam de processos de formação de pesquisadores restritos a determinados referenciais teóricos e metodológicos. A superação dessas tensões requer um distanciamento emotivo, analítico e crítico (D’Ambrósio; Lopes, 2015a, p. 12)

Como ressaltam as autoras,  superar as tensões que no dia a dia são refletidas no trabalho docente exige um professor de matemática com sensibilidade para perceber o momento em que é necessário transgredir e agir de forma a contribuir com o desenvolvimento pessoal dos estudantes que estão sob a sua supervisão, mas sempre com muita responsabilidade, pois a transgressão irresponsável que possa oferecer algum tipo de prejuízo a alguém, não seria uma IC.

Então, pelos motivos já expostos, temos duas opções, continua-se a fazer de conta que não existe preconceito, rejeição ou descrédito ao campo da EM, e se repete a “mesmice” no ensino de matemática, ou se busca discutir tudo isso e transformar as discussões na promoção para ações de resistência com vista a construir um novo modelo formativo com:

[...] menor ênfase na matemática tradicional e nas teorias de aprendizagem convencionais e maior ênfase em sociologia e antropologia, em história, na nova matemática e nas ciências atuais, incluindo as novas ciências da mente e da cognição e um novo conceito de aprendizagem, com muita tecnologia (D’Ambrósio, 2005, p. 6).

            Dessa forma, compreendemos que os professores de matemática  ganhariam mais identidade, contribuindo com o  status do campo da EM e  ratificando a autoridade científica  de  grupos que pesquisam e trabalham nessa perspectiva. Além disso, suas ações podem gerar bons resultados e influenciar de forma positiva as concepções dos colegas de trabalho, podendo ser uma ação refletida e repetida até tornar-se uma tradição.

 

O papel da IC como ação de resistência pelo campo da EM

Na formação inicial do professor de matemática, começa a se formar uma identidade docente. Nesse processo, é importante desenvolver  a sua autonomia, dando-lhe liberdade para se expressar. (Freire; Shor, 1986).  Isso ajudará a formar práticas pedagógicas de uma Educação libertadora. Segundo Feire (1967):

Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e as entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto. (Freire, 1967, p. 43).

 

Como postula o autor, é preciso libertar os comandos que estão implícitos em nosso ser. Na maioria das vezes, o professor nem percebe que está agindo fora do seu eu, da sua vontade de fazer uma Educação humanizada. Uma Educação humanizada é o mesmo que lutar contra a desumanização, que significa uma humanidade roubada ou alienada por aqueles que se colocam na condição de opressores. Em nosso caso, o professor de matemática precisa lutar contra a desumanização de sua prática profissional e isso faz parte de sua conscientização de ser inconcluso, que está sempre em processo de construção (Freire, 1987).

O professor de matemática inconcluso significa uma (re)construção da sua identidade profissional. O docente, de acordo com D’Ambrosio e Lopes (2014, p. 42) “constrói e (re)constrói a sua identidade profissional, atendendo a novos contextos, novos conhecimentos, estudantes diversos, reflexões variadas, pensamentos e ideias múltiplos.”

A construção da identidade é um processo complexo, pois está em jogo a sua autoimagem, sua visão de si e dos outros sobre si mesmo, influências sociais e cognitivas, motivação, coragem, autoestima, condições de trabalho. (D’Ambrosio; Lopes, 2014).  Desse modo,  nem sempre o professor irá querer arriscar sua imagem em defesa de um campo de conhecimento que ainda é visto por seus colegas de forma hierárquica, isto é, um campo subordinado a outro. De acordo com Bourdieu (1983, p. 99), as hierarquias entre disciplinas estão relacionadas com a ordem de “inculcação dos saberes” que as instituições de ensino mantêm para controlar o domínio simbólico de um saber considerado dominante.

 É difícil para o professor ter a percepção dos domínios simbólicos impostos em um sistema de ensino.  Entretanto,  reconhecer-se, fazer reflexões dos processos educativos é uma forma de se fortalecer  para poder reagir, mudar e até ser insubordinado. Nessa direção, questionar sobre o que fazemos  dá  pistas para nossas ações, assim:

Se nosso foco é a aprendizagem matemática de toda e qualquer pessoa, que práticas teremos que assumir para que este objetivo seja alcançado? Seremos ousados em pensar sobre qual matemática se deseja aprender? Confrontaremos o currículo prescrito e a realidade de nossas turmas? Criaremos alternativas avaliativas que dialoguem mais com o processo do que com o produto? Que ações insubordinadas assumiremos para formar pessoas que utilizem o conhecimento matemático em prol da dignidade humana? (D’Ambrosio; Lopes, 2015, p. 14).

            As interrogação são como guias para a tomada de consciência crítica da práxis docente e uma motivação para transformar a realidade educacional. Por isso, é necessário  aprofundar as discussões para assumir uma prática contestadora de domínios simbólicos criados culturalmente ou por sistemas dominantes.

           

Concluímos que o papel da IC é ser uma referência para tomada de decisões com vista a praticar ações de resistência pelo campo da EM na formação inicial do professor de Matemática. Assim, ações insubordinadas com bases éticas e solidárias significam a busca, no processo formativo, por uma maior aproximação do conhecimento escolar, por atitudes contra o preconceito e a discriminação das práticas profissionais.

Considerações finais

 

As pesquisas iniciais nos levam a considerar a existência de fortes razões para usar a IC como ação de resistência pelo campo da EM na formação inicial do professor de matemática. A esse respeito,  afirmamos que agir com ações de IC  é uma forma de se empoderar contra as tensões e conflitos que afloram nas instituições de ensino, principalmente contra o preconceito às práticas e pesquisas relacionadas com o campo da Educação Matemática.

Nessa direção, quebrar o silêncio dentro das instituições para falar sobre tensões e conflitos que alguns professores enfrentam diariamente é uma atitude de IC, pois isso leva a caminhos que rompem com regras e normas impostas. Além disso, ações insubordinadamente criativas empoderam e dão voz a sentimentos e ideias que muitos professores de matemática guardam para si por medo ou receio de ser excluídos entre seus pares.      

A IC pode e deve ser usada como ação de resistência pelos professores em prol de um bem maior, e de uma Educação mais justa e de qualidade. Consideramos que seu conceito possa também fazer parte como conhecimento a ser desenvolvido nas disciplinas pedagógicas da formação inicial do professor de matemática, com intenção de desenvolver uma consciência política, reflexiva e crítica de sua práxis profissional e do seu campo de formação. Por fim, indicamos essa discussão para fortalecer, reconhecer e legitimar o campo de formação de futuros professores de matemática.

 

 

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[1]Neste artigo nos referimos ao professor de matemática como aquele que é formado em Cursos de Licenciatura em Matemática e irá atuar profissionalmente na Educação Básica.

 

[2] Disponível em: https://www.dicio.com.br/houaiss/. Acesso em: 07 set de 2021.

[3] https://www.anped.org.br/.

[4] http://www.anfope.org.br/cartas-e-manifestos/

 

[5] Para saber mais sobre os fatores ver em Kilpatrick (1996).

[6] complexo processo histórico-social de constituição, de segmentação e de institucionalização do conhecimento que não está necessariamente orientado e nem é explicável pelas noções de progresso linear, de institucionalização universal e democrática para todas as práticas sociais disciplinares ou mesmo de critérios epistemológicos fixos de admissão institucional, mas sim pelas noções de poder e de valorização social (MIGUEL, 2004, p. 6).