Implementação de um projeto educacional envolvendo africanidades: proposta pedagógica e aplicação

Implementation of an educational project involving african culture: pedagogical proposal and applicaction

 

Fábio Leão Figueiredo

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Bahia, Brasil

fabioleao@ufrb.edu.br - https://orcid.org/0000-0003-1190-4630

 

Recebido em 14 de outubro de 2021

Aprovado em 05 de novembro de 2021

Publicado em 22 de dezembro de 2022

 

RESUMO

O presente trabalho relata e analisa as etapas de implementação de um projeto educacional original baseado em temas da africanidade. Os princípios pedagógicos de horizontalidade, legitimidade e complementaridade são introduzidos e discutidos. O projeto tem como objetivos recuperar, atualizar e difundir aspectos históricos, culturais e linguísticos das matrizes africanas diretamente relacionadas aos povos afrodescendentes do Recôncavo da Bahia e de outras localidades brasileiras. Tal iniciativa foi motivada por pesquisas de campo em território africano, durante as quais foi registrada e coletada expressiva quantidade de material atualizado, relevante e de interesse das comunidades afro-brasileiras em geral, a respeito da vida social e cultural nas regiões africanas visitadas. A metodologia de aplicação de cursos relativos a essas temáticas e abertos à comunidade é apresentada e desenvolvida. Diante do ineditismo do projeto, questões e dúvidas são levantadas e respondidas. O projeto foi bem acolhido pela comunidade e as razões para esse resultado positivo são discutidas. 

Palavras-chave: Africanidades; Educação comunitária; Recôncavo da Bahia.

 

ABSTRACT

The present paper reports and analyzes the stages of implementation of an original educational project based on themes of african culture. The pedagogical principles of horizontality, legitimacy, and complementarity are introduced and discussed. The project aims to recover, update and disseminate historical, cultural and linguistic aspects of the African matrices directly related to the people of the Recôncavo da Bahia and other Brazilian localities. Such initiative was motivated by field researches in African territory, during which a significant amount of up-to-date and relevant material was registered and collected, related to the Afro-Brazilian communities in general, regarding social and cultural life in the African regions visited. The methodology for the application of the courses related to these themes and open to the community is presented and developed. Given the unprecedented nature of the project, questions and doubts are raised and answered. The project was well received by the community and the reasons for this positive outcome are discussed.

Keywords: Afro-Brazilian Culture; Community-based education; Recôncavo da Bahia.

 

 

Introdução

            O Recôncavo da Bahia é um dos mais importantes berços históricos da cultura africana no Brasil. Região de intensa produção fumageira e canavieira durante o período colonial, o Recôncavo recebeu escravizados de várias etnias africanas ao longo de mais de três séculos (FRAGA, 2014).

A extraordinária resistência cultural dos escravizados e de seus descendentes fez do Recôncavo palco de uma cultura viva que ainda guarda semelhanças notáveis com suas matrizes africanas, ao mesmo tempo que vem desenvolvendo suas características e dinâmicas próprias. 

Entre os traços mais notáveis dessa herança, figura a construção coletiva das religiões de matrizes africanas. Dentro desse espaço, observa-se uma dinâmica complexa de transformação de algumas práticas e da tentativa de preservação de outras. Em consequência do epistemicídio perpetrado pelos colonizadores, boa parte da memória histórica do passado africano se perdeu com o tempo. Entretanto, no universo que envolve o rito e os espaços das religiões de matrizes africanas, algumas práticas permanecem como vetores de resistência e afirmação da identidade cultural dos povos constituintes do mosaico étnico afro-brasileiro (LIMA, 2003).

A vida social nas cidades que compõem o Recôncavo da Bahia é profunda e visivelmente marcada por essas características culturais e históricas, tanto na conformação fenotípica de sua população, quanto na gastronomia, na arquitetura, na maneira de ser, de vestir e de tratar, nas expressões musicais e nas tendências linguísticas. O relativo isolamento histórico e geográfico da região, derivado das transformações econômicas pós-coloniais, delimitou um espaço com características específicas exuberantes que atraem a atenção de pesquisadores, artistas, turistas e acadêmicos. 

Foi nesse cenário que, em 2019, implementamos um projeto de extensão universitária dedicado a recuperar, atualizar e difundir aspectos históricos, culturais e linguísticos das matrizes africanas diretamente relacionadas aos povos afrodescendentes do Recôncavo e de outras localidades brasileiras. Tal iniciativa foi motivada por nossas pesquisas de campo em território africano, durante as quais tivemos a oportunidade de conviver com as comunidades locais e de registrar e coletar expressiva quantidade de material atualizado, relevante e de interesse das comunidades afro-brasileiras em geral, a respeito da vida social e cultural nas regiões africanas visitadas.

Por ser um projeto de extensão universitária, o oferecimento de seus cursos era gratuito e aberto para toda a população, inclusive e principalmente para a comunidade não acadêmica, sem pré-requisitos de escolaridade. Tais cursos versavam sobre história, cultura e língua dos povos do antigo Daomé e vizinhanças, região particularmente importante para a conformação étnica e cultural da população afro-brasileira presente notadamente nos estados da Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão e Rio Grande do Sul. Por essa razão, o conteúdo desses cursos é de interesse de comunidades que extrapolam os limites do Recôncavo da Bahia e contemplam regiões de todo o Brasil.

Contudo, os desafios previstos para a implementação desse projeto na região do Recôncavo colocavam dúvidas quanto ao sucesso de tal empreitada. Dado que somos professores universitários originários de fora da Bahia, recém-chegados e até então desconhecidos na região, não iniciados nas religiões de matrizes africanas, com traços fenotípicos bastante diferentes dos da população local, como seríamos recebidos ao postular a oferta de cursos em que seriam transmitidos conhecimentos tão intimamente relacionados e pertencentes à cultura própria daquela população? Seríamos questionados quanto a nosso lugar de fala? Seríamos compreendidos em nossas intenções? Conseguiríamos espaços para divulgação? Teríamos público matriculado? 

 

No decorrer deste artigo, pretendemos expor e discutir as condições, a transcorrência e os resultados da aplicação dos cursos do referido projeto de extensão universitária, colocando em pauta a estratégia pedagógica de nossa proposta educacional e avaliando seus êxitos, seus equívocos e suas perspectivas futuras.

 

Implementação do projeto educacional

Os cursos oferecidos no projeto em discussão dividiam-se em dois módulos. O primeiro versava sobre aspectos culturais e históricos do antigo Daomé (atual Benim) e o outro consistia em uma introdução ao idioma yorubá escrito e falado. Decidimos pela determinação desse conteúdo por razões históricas.

O antigo Daomé foi o reino do povo Fon, que ao ser conduzido para o Brasil recebeu a denominação Jeje, a qual identifica um grupo sociocultural que apresenta práticas bastante específicas, tanto no aspecto cultural quanto religioso. 

Apesar de minoritário na distribuição étnica dos povos escravizados no Brasil, o povo Jeje assume um papel de particular importância na formação do Candomblé, conforme relata Parés (2007).  Segundo esse autor, a esse povo está particularmente associada uma característica fundamental observada quanto à formação cultural das populações afro-brasileiras: sua permeabilidade a culturas diferentes, isto é, sua habilidade em assimilar práticas e traços culturais de outros povos, mesmo historicamente inimigos, comportamento bastante presente na história do povo Fon.

Tal característica assimilativa foi crucial para o desenvolvimento da dinâmica social das populações não só do Recôncavo da Bahia e nem só do Candomblé, mas da vocação da cultura popular brasileira em geral, cujos traços propostos na epistemologia antropofágica de Oswald de Andrade (2017), ou sociológica de Sérgio Buarque de Holanda (2015) podem ser interpretados em parte como reverberações dessa característica assimilativa que, se não é de exclusividade dessa vertente da matriz africana citada, encontra aí um notável exemplo. 

 

 

Já os Yorubás, cuja língua foi estudada no outro módulo do curso apresentado, é um povo trazido ao Brasil mais tardiamente, em comparação a outras etnias escravizadas. Por razões históricas, a cultura Yorubá impôs sua predominância e é aquela que até hoje é mais comumente associada ao Candomblé (CAPONE, 2018), fato reforçado pela inserção dessa temática na música popular brasileira. Vizinho dos Fons em território africano e por longo tempo inimigo deles, os Yorubás transmitiram como legado sua língua, que até hoje está presente em espaços de culto de matrizes afro-brasileiras, mas que ao longo do tempo foi perdendo seu caráter de fluência, restringindo-se a um uso funcional dedicado principalmente aos ritos. 

Por todas essas razões, entendemos que os conteúdos acima descritos seriam de interesse das comunidades afro-brasileiras da região contemplada, e decidimos montar o escopo dos cursos conforme esses temas, com o objetivo de satisfazer uma demanda possivelmente existente naquelas comunidades.

A partir de nossa observação sobre a disposição das comunidades a respeito das iniciativas dos centros universitários em seus espaços, constatamos, pelo menos no que tange à nossa iniciativa, uma abertura e um interesse louváveis por parte das lideranças comunitárias em geral e particularmente das lideranças religiosas, fato que para nós era bastante relevante, pois nosso público-alvo era precisamente as pessoas adeptas dos cultos de matrizes afro-brasileiras. Quando da divulgação dos cursos, fomos muito bem recebidos nos espaços de culto, que nos abriram as portas para explicar e difundir nossa proposta.

Nessas ocasiões, tivemos a felicidade de ouvir, por parte das lideranças, depoimentos e opiniões que muito nos estimularam e favoreceram. O teor desses depoimentos consistia em louvar a iniciativa em razão da importância e dos benefícios a serem revertidos para as comunidades. Nossos interlocutores Jejes lamentavam a perda da memória de fatos históricos vividos por seus antepassados, enquanto que os de tradição yorubá compartilhavam seu parecer segundo o qual a perda da compreensão linguística do idioma yorubá representava um prejuízo considerável tanto no plano cultural, quanto social e principalmente no âmbito ritualístico, já que a palavra, dentro desses ritos, tem efeito fundamental e incontornável para o bom andamento dos trabalhos.

Nesse ponto em particular, o fato do yorubá ser uma língua tonal (OMIDIRE, 2004), diferentemente do português, torna o prejuízo ainda mais acentuado, pois a pronúncia errada da melodia da palavra falada compromete seu significado semântico, ou seja, a entonação equivocada da palavra gera um significado bastante diferente daquele que se pretende. Em nosso curso, o aspecto tonal da língua yorubá seria apreciado com a máxima atenção, o que contemplava os interesses dos nossos interlocutores. 

Após algumas semanas de divulgação presencial e midiática, abrimos as inscrições. Para nossa grata surpresa, tivemos uma procura muito acima do esperado. Nossa estimativa era que a turma fosse iniciada com cerca de vinte pessoas, porém recebemos mais de cem inscrições. Dessas, sessenta foram efetivadas. Tivemos até que mudar o local dos cursos para abrigar tamanho contingente.

Pessoas vindas de cinco cidades vizinhas, estudantes, professores, donas de casa, operários, a maioria adepta das religiões de matrizes afro-brasileira, conforme esperado. Surpreendeu-nos, contudo, a presença de algumas pessoas que ocupavam cargos da alta hierarquia nas casas de culto. O ambiente, logo nos primeiros encontros, não poderia ser mais favorável. Estabeleceu-se um clima de troca e compreensão das diversidades, mantendo-se o respeito por todos e todas em suas histórias de vida e singularidades. O projeto estava implementado e a partir daí pudemos dar início à proposta pedagógica planejada.

 

Princípios pedagógicos aplicados

Em razão das singularidades e do ineditismo em nível regional da proposta apresentada, bem como das características do público-alvo, tivemos que elaborar um plano pedagógico bastante cuidadoso, de maneira a otimizar a dinâmica de compartilhamento de conhecimentos e minimizar possíveis ruídos incidentais. Com esse intuito, baseamos nossa proposta pedagógica em três pilares fundamentais: horizontalidade, complementaridade e legitimidade. Tais princípios foram inspirados na pedagogia de Paulo Freire (1986), particularmente na obra em que o autor trata de questões africanas (FREIRE, 2003). A seguir, discutiremos cada um desses princípios, todos eles elaborados a partir da prerrogativa central de respeito mútuo. 

Horizontalidade

Em termos de nível de escolaridade, nosso público era bastante heterogêneo. Havia professores universitários com pós-doutorado e pessoas com ensino fundamental incompleto. O mesmo se dava com relação à faixa etária. Havia pessoas com mais de setenta anos, bem como jovens e até mesmo algumas crianças que participavam ativamente dos cursos, filhas de adultos inscritos. Não obstante, esses desníveis não deveriam representar um obstáculo pedagógico para o bom andamento dos encontros.

Nesses termos, fizemos por garantir o princípio da horizontalidade de tratamento: todas as pessoas tinham o mesmo direito de falar e de serem ouvidas com atenção, independentemente de sua formação escolar, de faixa etária, ou de grau de pertencimento a casas de culto religioso de matrizes afro-brasileiras. Essa prerrogativa foi colocada explicitamente desde o início do curso, e todos se mostraram de acordo com ela. Constatamos que essa iniciativa surtiu efeito. De fato, a palavra era bastante bem compartilhada entre o público, que se sentia encorajado a participar, e todos que falavam eram ouvidos com respeito e atenção. Obviamente, o professor que se colocava diante da turma também estava submetido a este princípio de horizontalidade. 

Legitimidade

 É notório que as práticas culturais afro-brasileiras passaram por processos de transformação ao longo do tempo. Expostos a variados contingenciamentos, os diversos grupos se apropriaram de maneira específica dos traços africanos herdados, o que provocou diferenças nas tradições zeladas pelas diversas comunidades, fato bastante conhecido pelos membros das próprias comunidades.

Além dessas diferenças internas entre as tradições dos diversos centros no Brasil, soma-se o fato de que o desenvolvimento dessas mesmas tradições deste lado do Atlântico fluiu de maneira bastante diferente quando comparado às derivações manifestadas por suas fontes culturais originais na África. 

Todas essas dinâmicas constituíram um cenário diversificado dentro das tradições afro-brasileiras. Em razão disso, o uso da língua yorubá, por exemplo, foi ao longo do tempo se diferenciando em seu caráter, abrangência e finalidade. A maneira como cada grupo fala e usa a língua no Brasil pode variar entre as cidades, ou mesmo entre as comunidades de uma mesma cidade, além de ser, na maioria dos casos, bastante diferente do uso corrente e atual da língua em território africano. 

Em razão desses fatos, sentimos a necessidade de se trabalhar a ideia segundo a qual tais diversidades não carregavam consigo juízo comparativo de valor, mérito ou legitimidade. Eram apenas diferenças. Dessa forma, o yorubá falado nas comunidades locais brasileiras, sendo certamente muito mais limitado que o yorubá correntemente falado na África, não era por isso menor, menos correto, ou menos legítimo. Cada comunidade cultivou seu patrimônio linguístico e zelou por ele da maneira que lhe foi possível, levando-se em conta que a transmissão das línguas africanas era desencorajada ou mesmo proibida no período colonial.

Assim, ressaltamos que a forma atual das línguas de origem africana utilizadas em cada comunidade era fruto de um louvável e extraordinário trabalho de resistência cultural empreendido pelos antepassados de cada comunidade. Isso posto, argumentamos que o yorubá que seria ensinado no curso era apenas a forma padrão da língua, não sendo melhor nem mais correto que o yorubá que cada um empregava em sua comunidade. Ou seja, respeitava-se o fato de que cada comunidade usufrui de legitimidade sobre suas práticas tradicionalmente herdadas. 

 Complementaridade

A heterogeneidade de nosso público também se dava sobre os saberes que cada um portava e que foi capaz de recolher ao longo de sua trajetória. Tão distintas trajetórias resultaram naturalmente em distintos saberes. Em consequência, havia ali acadêmicos e não acadêmicos, pessoas que nasceram e cresceram no Recôncavo da Bahia e outras pessoas que vieram de fora, adeptos e não adeptos de religiões de matriz afro-brasileira, e assim por diante. O único fator visível de homogeneidade do público era quanto ao tom de pele: quase todas as pessoas eram negras ou pardas.

Diante do público, ressaltamos que o conhecimento próprio de cada um, graças a cada trajetória de vida percorrida, constituía uma riqueza a ser compartilhada. Cada um ali sabia coisas que os outros não sabiam. Dessa forma, a responsabilidade de compartilhar conhecimento não era apenas do professor, mas de todos igualmente.

Assim, quando o assunto versava sobre costumes ou práticas realizadas antigamente naquela região, consultávamos os mais velhos presentes; quando a dúvida era sobre algum aspecto histórico da Bahia, chamávamos à palavra algum acadêmico especialista no assunto; e nas várias vezes em que a discussão era sobre práticas recorrentes no centros de culto de religiões de matrizes afro-brasileiras, os iniciados nesses cultos se manifestavam e contribuíam de maneira bastante satisfatória.

Ao professor do curso, além de expor o conteúdo de seu material bibliográfico, cabia também relatar suas experiências recentes em território africano, amparado por seu acervo audiovisual pessoal, algo que permitia comparações profícuas e interessantes com as práticas correlatas locais.

Instalou-se, portanto, uma dinâmica de complementaridade na construção do conhecimento mútuo, em que todos se sentiam autorizados e encorajados a contribuir, cientes da singularidade que sua trajetória propiciou a sua bagagem de saberes.

 

Metodologia da condução dos cursos

Os cursos oferecidos no projeto de extensão universitária em questão eram “História e cultura do povo Jeje” e “Introdução à língua yorubá”. Levando em consideração que as tradições Jeje e Yorubá são historicamente distintas, achamos por bem oferecer temáticas que contemplavam ambas as vertentes. Os formatos dos cursos eram essencialmente diferentes pelo fato de um ser um curso sobre história e cultura e outro ser sobre língua escrita e falada. 

Os cursos eram oferecidos uma vez por semana, no mesmo dia e em horários subsequentes. Desta maneira, o público era estimulado a participar dos dois cursos. Efetivamente, as turmas eram distintas, mas havia uma parcela dos inscritos que acompanhava ambos os cursos. A seguir, analisaremos algumas das estratégias adotadas em cada curso.

Curso sobre história e cultura

 Em uma de nossas viagens para pesquisas de campo no Benim, concentramo-nos em percorrer todas as cidades mais importantes do antigo Daomé, o que nos permitiu entrar em contato mais aprofundado com as matrizes culturais do povo Jeje. A ideia era compor um relato testemunhal sobre as atualidades dos lugares e de suas gentes.

Também coletamos expressivo material audiovisual de registro das ocorrências culturais que tivemos a oportunidade de presenciar. Paralelamente a esse acervo audiovisual, também decidimos formar um acervo composto por entrevistas com personalidades de interesse para os interlocutores das comunidades afro-brasileiras. O objetivo era restabelecer conexões de intercâmbio cultural entre certas comunidades no Benim e comunidades afro-brasileiras cujas histórias contemplavam uma ancestralidade em comum.

Para tanto, explicamos aos interlocutores africanos a respeito dessa herança ancestral comum e solicitamos que emitissem depoimentos acerca de suas práticas, o que possivelmente encontraria reverberação do outro lado do Atlântico. 

Dessa forma, pudemos constituir dois acervos importantes: um formado por registros audiovisuais de expressões culturais atuais, e outro a partir de depoimentos de interlocutores relevantes. Essas duas categorias de acervo configuraram a base do material trabalhado no curso de história e cultura do povo Jeje.

Esses esforços visavam elevar o grau de identificação e de interesse por parte de certas comunidades brasileiras em direção às suas raízes africanas. Tal interesse já vinha sendo publicamente manifestado pelas comunidades afro-brasileiras ao longo das últimas décadas, sendo que algumas ações de destaque ocorreram nesses últimos tempos (VATIN, 2017). Sendo assim, nossa iniciativa foi executada no sentido de se coadunar com os interesses das comunidades brasileiras, tendo sido desde o início muito bem recebida pelos grupos africanos que colaboraram com a nossa proposta.

A esse acervo pessoal somamos material bibliográfico atualizado sobre os temas a serem trabalhados. Os encontros realizados em um auditório tinham sessenta minutos de duração, e o material utilizado era um laptop, um projetor datashow com sua respectiva tela para projeção e um sistema de som constituído por microfone e caixas amplificadas. As aulas eram preparadas em apresentação de slides em que o material bibliográfico e o acervo pessoal audiovisual eram expostos de maneira equilibrada para suscitar as discussões no grupo. Em sua versão extensiva, esse curso tem uma duração de 6 meses, com um segundo módulo de igual duração. 

Tivemos ainda a felicidade de poder contar com uma participação muito especial diretamente do Benim. Um de nossos colaboradores, descendente direto de uma linhagem real do Daomé, trabalhava então como guia cultural na cidade de Abomey. Em uma ação conjunta visando enriquecer os canais de informação vindos do Benim, criamos um recurso que consistia em reproduzir áudios gravados por nosso colaborador e enviados a nós através de WhatsApp.

Nesses áudios, uma sequência de diversas emissões de cinco minutos cada, nosso colaborador, que é um especialista em história do Daomé, narrava em primeira mão a sua versão da história do seu povo.

Reservávamos os últimos momentos de cada encontro para reproduzir esses áudios com tradução em tempo real do francês para o português. A este recurso convencionamos chamar de “Rádio Daomé”. Foi a maneira que encontramos de prestigiar a oralidade africana, através da qual a história daquela região é transmitida entre suas gerações autóctones sem passar pelo viés do colonizador.

Curso do idioma Yorubá

Graças a uma vivência de dois anos seguindo regularmente as aulas de yorubá em um curso superior de um instituto em Paris, pudemos nos capacitar nas bases desse idioma africano que atualmente é falado por aproximadamente 100 milhões de pessoas (OMIDIRE, 2004) e que ocupa um lugar de destaque na história da cultura afro-brasileira.  

As notas de aula e todo o material recolhido naquela ocasião passaram a constituir a parte integral dos textos de base do curso oferecido no projeto referido no presente artigo. Dado que aquele curso foi ministrado por um professor que além de nigeriano nativo era também um acadêmico linguista, tivemos toda a segurança quanto à confiabilidade e à correção do material que utilizaríamos em nossa proposta.

Esta qualidade do material passou a ser um diferencial do nosso curso, pois hoje em dia, em um esforço compreensível para suprir a demanda de comunidades afro-brasileiras no sentido de se conhecer melhor esse idioma, encontramos algumas iniciativas que frequentemente terminam por ensinar o yorubá de forma errada, principalmente os domínios da Internet. Não obstante, no Rio de Janeiro e em Salvador, de tempos em tempos, aparecem programas conduzidos por yorubanos nativos, o que certamente configura a melhor oportunidade para se aprender essa língua.

O aspecto pedagógico mais desafiador no ensino do idioma yorubá é certamente sua característica de ser uma língua tonal, isto é, as vogais terminais de cada sílaba das palavras podem ser entoadas em três registros diferentes: grave, médio ou agudo. Esses registros são relativos, ou seja, são estabelecidos a partir da comparação audível com os registros das sílabas anteriores e posteriores emitidas. Uma mesma grafia pronunciada com entonações diferentes leva a significados completamente distintos, o que geralmente provoca situações de confusão na comunicação oral. Os cursos de yorubá oferecidos no Brasil por professores não nativos geralmente negligenciam esse aspecto fundamental do idioma, o que torna qualquer aprendizado deficitário. 

Como recurso pedagógico auxiliar ao aprendizado do aspecto tonal da língua, utilizamos nas aulas um instrumento musical yorubá que ressalta as diferentes alturas musicais das sílabas das palavras. Trata-se de um tambor que nas Américas é conhecido como talking drum, ou tambor falante. Graças a um aparato de cordas que permite alterar a tensão na pele do instrumento enquanto se toca, as alturas musicais produzidas podem variar de maneira correspondente. Dessa forma, tem-se a impressão que o tambor está “falando” enquanto é tocado.

Esse recurso, que em nosso caso foi utilizado didaticamente, é na verdade uma técnica empregada ritualisticamente na África. Os alunos relataram que o uso desse instrumento os ajudava a perceber as variações tonais das palavras faladas em yorubá, o que justificou seu uso pedagógico.

Diferentemente do curso de história e cultura, não utilizamos aparato eletrônico no curso de yorubá. Todo o conteúdo era escrito diretamente na lousa. Isso porque, na língua yorubá, tanto as marcações tonais como as aberturas das vogais são registradas graficamente por sinais diacríticos. Dessa forma, falar enquanto se escreve é um recurso pedagógico importante para a compreensão oral do idioma. Portanto, nosso aparato de aula consistia apenas em uma lousa, pincel atômico e no instrumento musical acima descrito. 

O conteúdo ministrado no módulo introdutório do curso privilegiava, na parte oral, as fórmulas de saudação e as frases simples do cotidiano, enquanto os tópicos gramaticais eram trabalhados principalmente na forma escrita. Procuramos trazer também o vocabulário sabidamente utilizado pelos adeptos das religiões de matriz afro-brasileira em suas casas de culto, numa aplicação direta da metodologia de Paulo Freire (1990).

Em sua versão extensiva de 12 meses de duração, o curso é oferecido semanalmente em sessões de 90 minutos. Paralelamente, oferecemos também versões reduzidas para as quais nos deslocamos até as comunidades que manifestam interesse em nossos cursos, e aplicamos as aulas na própria comunidade.

 

 

Resultados e considerações finais

Ao final de um ano letivo de trabalho, pudemos constatar com grande satisfação o pleno êxito da proposta executada. Apesar das dificuldades materiais de implementação e das dúvidas iniciais, a resposta do público foi a melhor possível. A seguir, discutiremos sobre as dinâmicas, os fatores esperados e inesperados, as mudanças de rumo e as trocas estabelecidas ao longo do percurso.

Nossa preocupação inicial quanto à forma como seríamos recebidos pelas comunidades e pelo público dos cursos foi atenuada logo nos primeiros encontros. O fato de termos vindo de fora da região, de sermos professores universitários e de não sermos adeptos ritualisticamente confirmados dentro dos cultos que faziam parte dos assuntos tratados nos cursos não foi absolutamente um obstáculo para a boa condução dos trabalhos. Desde o início fomos tratados com respeito e serenidade, e a própria composição heterogênea do nosso público bem como o número de inscritos configuram uma indicação objetiva desse fato.

É certo que os princípios pedagógicos de horizontalidade, legitimidade e complementaridade implementados conforme descrito neste artigo contribuíram para uma atmosfera colaborativa e prazerosa. Porém, estamos convencidos de que essas estratégias não foram o principal motivo para uma resposta tão positiva.

Na realidade, o fator que sedimentou essa resposta nos parece ser um traço cultural herdado dos africanos. Tanto na região do Recôncavo da Bahia quanto nas localidades africanas que visitamos, há um comportamento comum de profundo respeito pelo conhecimento e por seus portadores. Esse traço pode ser observado em várias situações sociais: na relação carinhosa e participativa estabelecida entre as crianças e os idosos tanto dentro de casa quanto nos espaços sociais comuns, no tratamento obsequioso a todos os presentes nos cultos de matrizes afro-brasileiras, e também na forma respeitosa como os portadores dos saberes são tratados, aí se incluindo os professores.

Observamos demonstrações desse aspecto do tratamento particularmente respeitoso para com os portadores dos conhecimentos em território africano, algumas das quais achamos por bem relatar ao nosso público. 

Em uma dessas ocasiões, estávamos sentados na calçada de uma rua junto a um de nossos interlocutores, na cidade de Porto Novo, Benim. Percebemos que recorrentemente alguns transeuntes paravam e pediam a bênção a nosso interlocutor. Não só pessoas a pé, mas também outras que estavam passando em suas motocicletas ou mesmo em carros. Chamou-nos a atenção quando vimos estacionar um veículo luxuoso, de dentro do qual saiu um cidadão muito bem vestido, parando apenas para pedir a bênção a nosso interlocutor, da mesma maneira como todos os outros fizeram.

Logo após o gesto desse cidadão, decidimos perguntar a nosso interlocutor a razão do comportamento daquelas pessoas. Estávamos imaginando que toda aquela reverência se devia ao fato de nosso interlocutor ocupar um cargo em uma das casas de culto da localidade, mas qual não foi a nossa surpresa ao ouvi-lo responder que as pessoas que estavam agindo daquela maneira eram antigos alunos dele, que por sua vez foi professor de matemática em uma das escolas públicas de ensino fundamental da região.

Segundo nosso interlocutor, e como pudemos constatar em nossas observações posteriores, era normal que sempre um ex-aluno parasse e fizesse reverência a um professor onde quer que o encontrasse. Ficamos estupefatos com aquela resposta, ao imediatamente nos lembrar de como a situação da relação entre aluno e professor havia se deteriorado no Brasil nas últimas décadas, já que recebemos com preocupante frequência relatos de agressões verbais e físicas gravíssimas de alunos contra professores da rede pública. 

O caráter civilizatório da africanidade pode ser facilmente constatado diante desse relato. Esse caráter ainda se mantém vivo e presente nas comunidades onde as tradições africanas foram zeladas e cultivadas em território brasileiro. A ética social que move as relações tendo como referencial o respeito pelo saber e por seus portadores é, a nosso ver, a razão principal pela qual fomos tão bem recebidos por um público que foi educado conforme as normas sociais dessa ética.

Por essas e outras razões, sempre tivemos como uma das metas de nossa proposta demonstrar a riqueza humana e cultural dos povos africanos (SILVA, 2015). Informações sobre tal riqueza foram e continuam sendo sistematicamente boicotadas pelos sistemas de ensino dos países ocidentais (MUNANGA, 2012), como é o caso no Brasil, fato particularmente grave em razão do enorme contingente de afrodescendentes que compõem o povo brasileiro.

 

 

Mesmo entre intelectuais ocidentais, sempre houve desconhecimento e má fé no tratamento da história e da produção cultural africanas (MACHADO; LORAS, 2017). Esse menosprezo tem como objetivo enfraquecer a autoestima do povo africano e afrodescendente. Um povo sem autoestima não busca conhecer suas raízes e sua identidade, e um grupo sem identidade não se reconhece em si nem em seus pares, e daí não se organiza socialmente para reivindicar seus direitos. Motivados por essa noção, fizemos dos nossos cursos um meio para trazer à tona um pouco dessa riqueza e apresentá-la ao público de maneira objetiva e documentada. 

No afã de nos posicionarmos com relação a essas questões diante do grupo, cometemos alguns excessos que foram gentilmente notificados por integrantes da própria turma. O tema do racismo era inevitavelmente recorrente, e por vezes os professores brancos assumiam um lugar de fala possivelmente exacerbado contra práticas racistas dos brancos para com o povo negro e os povos originários. Esse nosso lugar de fala contra o racismo jamais foi colocado em questão pelo grupo, que sempre nos viu como aliados, como bem orienta Djamila Ribeiro (2017).

Entretanto, em um dos vários questionários que entregamos ao grupo para que nos dessem devolutivas avaliando nossos procedimentos enquanto professores, uma de nossas alunas negras nos respondeu de forma sutil e educada, fazendo-nos compreender que, por mais que tivéssemos boas intenções, e que deveríamos sim, enquanto brancos, participar constantemente de debates sobre o racismo, seria importante sempre observar o protagonismo do povo negro nesse debate, e seguir suas pautas ao invés de querer conduzi-las.

Essa crítica construtiva foi prontamente assimilada por nós e a partir daí tentamos nos reposicionar de maneira mais equilibrada nas discussões que continuaram a ocorrer. Afinal, o respeito pelos portadores do conhecimento, conforme relatado acima, não significa submissão de forma alguma, e isso a nova geração de afrodescendentes está sabendo colocar muito bem em todas as suas relações.

Com o advento da pandemia, fomos obrigados a interromper a aplicação dos cursos. Nosso planejamento futuro consiste em oferecer os mesmos cursos em outras localidades acadêmicas e comunitárias, colocar à disposição novos módulos dando continuidade aos temas trabalhados, e propor um oferecimento remoto via Internet, de maneira que pessoas de outras regiões do Brasil também possam participar do nosso projeto.

 

Referências

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FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio; GADOTTI, Moacir. Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo: Cortez, 1986.

FREIRE, Paulo; NOGUEIRA, Adriano; MAZA, Débora. Na escola que fazemos: uma reflexão interdisciplinar em educação popular. Petrópolis: Vozes, 1990.

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MACHADO, Carlos; LORAS, Alexandra. Gênios da Humanidade: ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2017.


MUNANGA, Kabengele. Kabengele Munanga fala sobre História da Diáspora Africana. Memória EBC, Brasília, out. 2012. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/educacao/2012/10/kabengele-munanga-fala-sobre-historia-da-diaspora-africana. Acesso em: 25 jul. 2021.

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