Pensar uma educação das relações étnico-raciais na América Latina: uma reflexão a partir de Rodolfo Kusch

 

Thinking about an education of ethnic-racial relations in Latin America: a reflection from Rodolfo Kusch

 

 

Alonso Bezerra de Carvalho

Universidade Estadual Paulista, Marília, São Paulo, Brasil.

alonso.carvalho@unesp.br - https://orcid.org/0000-0001-5106-2517

 

Fabiola Colombani

Universidade de Marília,Marília, São Paulo, Brasil.

fabiolacolombani@unimar.br - https://orcid.org/0000-0003-3659-3189

 

José Alejandro Tasat

Universidad Nacional de Tres de Febrero, Buenos Aires, Argentina.

jtasat@untref.edu.ar - https://orcid.org/0000-0001-6104-1795

 

Recebido em 14 de outubro de 2021

Aprovado em 14 de fevereiro de 2022

Publicado em 22 de dezembro de 2022

 

RESUMO

O artigo apresenta uma reflexão a partir de algumas ideias do filósofo argentino Rodolfo Kusch (1922-1979), de maneira a pensar a educação das relações étnico-raciais, levando em consideração as suas noções de fagocitação, ser alguém e estar. Nesse sentido, podemos dizer que a partir de Kusch a história latinoamericana não é contada desde os povos originários, os quilombolas e as comunidades tradicionais, mas predominantemente desde do ponto de vista do colonizador, quem tem o poder de narrar, escrever e educar. O pensamento racionalista europeu ao negar ou desconsiderar por completo o pensamento americano transforma-o em um objeto sem vida e sem história, restando-nos construir um movimento de resistência e de autoafirmação, na busca da emancipação dos discursos e práticas que nos impedem de expressar nossa própria cultura de maneira integral e autônoma. De caráter teórico, e tendo em vista a noção de buen vivir, o texto tem o objetivo de contribuir no debate e na construção de novas perspectivas para o processo de implementação das políticas públicas voltadas à educação das relações étnico-raciais no Brasil e na América Latina.

Palavras-chave: Educação das Relações Étnico-Raciais; Mestiçagem; Buen Vivir.

 

 

 

ABSTRACT

The article introduces a reflection based on some ideas of the argentine philosopher Rodolfo Kusch (1922-1979), in order to think about the education ethnic-racial, taking in consideration his notions of fagocitation, be someone and being [estar]. In this direction, we can say that from Kusch`s work, Latin American history is not told by the original peoples, the quilombolas and traditional communities, but predominantly from the point of view of the colonizer, who has the power to narrate it, write it and educate them. The European rationalist thought, by denying or completely disregarding American thought, transforms it into an object without life and history, where building a movement of resistance and self-assertion is all we have left, seeking emancipation from those discourses and practices that prevent us from expressing our own culture in an integral and autonomous way. Theoretically, and bearing in mind the notion of good-living [buen-vivir], the text aims to contribute to the debate and to the construction of new perspectives for the process of implementing public policies aimed at education of ethnic-rational in Brazil and Latin America.

Keywords: Education of Ethnic-Racial Relations; Miscegenation; Good Living [Buen-Vivir].

Introdução

Embora discussões sobre a importância da educação das relações étnico-raciais tenham sido realizadas anteriormente por movimentos sociais e legisladores, desembocando em dispositivos gerais da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e da Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), a temática apenas recebeu melhor atenção com a Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), posteriormente alterada e promulgada como Lei 11.645/2008 (BRASIL, 2008). Nos dispositivos destas leis, consubstanciados em Pareceres, Resoluções e Diretrizes Nacionais (BRASIL, 2004a; 2012, 2016), ficou estabelecido a obrigatoriedade do estudo da história e da cultura afrobrasileira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, públicos e privados. Nesse sentido, os conteúdos programáticos a serem trabalhado nas escolas deverão incluir

 

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2016, p. 7)   

 

Desta forma e dada a sua importância e obrigatoriedade passou-se a estabelecer e exigir no âmbito do currículo escolar a presença de conteúdos voltados para o ensino da cultura afro-brasileira e dos povos indígenas, com o intuito de combater uma educação eugenista e racista que estimula a discriminação racial e danifica a estrutura de direitos em todas as esferas: social, política e educacional. A mudança se fez urgente e fomentou a reação de diversos grupos de militância que quiseram por meio desses conteúdos combater o racismo estrutural que, entranhado em nossa sociedade, reverbera a invisibilidade e a violência contra os discriminados

Assim, diversos grupos e instâncias governamentais se organizaram e agiram para conscientizar e pleitear, por meio de uma agenda concreta, outro tipo de educação como central no processo para a desnaturalização do racismo. (BRASIL, 2004b; 2022). Que outra via pode ir tão fundo a ponto de trazer às claras, por meio de estudos e pesquisas, a História do nosso país para compreender a cultura afro-brasileira e a cultura dos povos originários e o quanto elas têm sido negligenciadas? Se a escola é considerada uma instituição que tem o compromisso de formar cidadãos para a consciência de pólis e o respeito às diversas formas de viver, pensar a educação das relações étnico-raciais é imprescindível para combater o racismo, a discriminação e por consequência seus desdobramentos, como a injustiça e a violência. E como bem diz Castro (2021, p. A3), “o profissional da educação precisa se perceber um intelectual mediador do conhecimento para que, de fato, a educação adquira seu conteúdo político e não venha a se configurar como mera base informativa”. Na perspectiva do que propõe a Constituição Federal brasileira[1], desdobrada em leis infraconstitucionais, é fundamental que tenhamos a possibilidade de traduzir em situações concretas a superação e a transformação de um passado que, embora não precise ser esquecido, nos convoca a reelaborá-lo para que não continue se repetindo.

 

Como reflete Saviani (2006), é um movimento que age em defesa da democracia e da luta por garantias de direitos, com o ideal de igualdade, que tem como maior intuito modificar o arcabouço e os pressupostos da educação nacional. E para isso, é necessário que se faça o resgate da memória coletiva e histórica da população negra e indígena por meio da educação, ou seja, da sala de aula. Pois, “um professor antirracista é aquele que(...) entende que descolonizar mentes é mais do que um dever profissional, é um direito educacional” (CASTRO, 2021, p. A3).

Na sequência do texto nos propomos a colocar a questão no contexto latino-americano, dialogando com ideias e formulações teóricas que podem nos ajudar a compreendê-la em uma perspectiva mais ampla e, quiçá, mais profunda. Para tanto, trazemos a contribuição do filósofo e antropólogo argentino Rodolfo Kusch, fundamentalmente suas reflexões críticas sobre a influência e o predomínio do pensamento e dos valores eurocêntricos na formação do continente latino-americano a partir de categorias como ser e estar e, posteriormente, a sua noção de fagocitação, que consideramos importante e inovador para se pensar as relações étnico-raciais na atualidade, tendo em vista o buen vivir.

Rodolfo Kusch: ideias para um pensar latino-americano

Juntamente com o cientista político peruano Aníbal Quijano (1928-2018) e a socióloga boliviana Sílvia Rivera Cusicanqui (1949-), o filósofo e antropólogo argentino Rodolfo Kusch (1922-1979) se ocuparam e se ocupam em refletir, em pesquisar e dar visibilidade, por meio de suas produções, materializadas sobretudo em textos publicados e práticas investigativas e militantes, um processo histórico-cultural marcadamente colonizador, eurocêntrico e ocidental que construiu o continente latino-americano.

            Em suas produções teóricas Quijano reflete sobre a globalização e a modernidade, apresentando a noção de colonialidade do poder e de eurocentrismo como aspectos centrais na constituição de nossa América Latina. Como um dos membros fundadores do grupo de pesquisadores Modernidade/Colonialidade (BALLESTRINI, 2013), foi um dos principais pesquisadores do pensamento decolonial e ao longo de parte de seus 90 anos tornou-se referência nas ciências sociais latino-americanas pela conceituação de colonialidade do poder, buscando deixar em evidência a imagem distorcida que nos mostra o espelho eurocêntrico e, assim, encontrarmos com nós mesmos (AZEVEDO, 2018).

            Por seu lado, Cusicanqui tem protagonizado junto com outras mulheres um movimento de transformação intelectual e artístico com uma potência libertadora dos marcos de leitura da realidade social, das alternativas metodológicas de trabalho e ação, e a transformação social desde o ativismo intelectual e político. Olhando mais de perto, a trajetória dos conceitos fundamentais do seu pensamento representa a possibilidade de repensar os conflitos socioculturais, identitários e educativos da atualidade. Seu olhar feminista, com múltiplas identificações, a abertura e a reatualização permanente do modo de olhar a realidade, nos aponta elementos muito instigantes para pensar e pensarmos nesse contexto americano. (TORINELLI, 2018).

            Para os propósitos deste artigo, daremos especial atenção ao pensamento de Rodolfo Kusch, de maneira a melhor expor e compreender algumas de suas ideias, articulando-as com o tema da nossa reflexão. Kusch orientou suas investigações em direção a temáticas americanas, abarcando desde o mundo pré-colombiano à cultura popular contemporânea. Suas buscas o levaram a viajar de maneira recorrente por Bolívia, Peru e o norte argentino, realizando registros fotográficos, auditivos e crônicas, que foram as matérias-primas de suas reflexões. Foi autor, entre outros textos, de livros como La seducción de la barbárie: análisis herético de un continente mestizo (1953); América Profunda (1962); Índios, porteños y dioses (1966); El pensamento indígena y popular en América (1971); Geocultura del Hombre Americano (1976); Esbozo de Una Antropologia Filosófica Americana (1978).

Rodolfo Kusch nasceu no dia 25 de junho de 1922 em Buenos Aires e faleceu em 30 de setembro de 1979. Era filho de alemães radicados na Argentina. Graduou-se em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, em 1948. Realizou profundas pesquisas de campo sobre o pensamento indígena e popular americano como base de sua reflexão filosófica.

 

Rodolfo Kusch fundamenta na oposição ser-estar a dicotomia fundacional e mais original de seu pensamento. Esta distinção indica o traço decisivo que separa e tipifica a América em oposição à maneira de ser ocidental. Há muitas referências na obra de Kusch para explicar o ser e o estar, sendo a mais clara aquela assinalada em Índios, porteños y dioses (KUSCH, 2007b), publicado em 1966. Em “La espera en la chichería”, parte constitutiva do livro, Kusch compara a atitude de espera do índio, com sua bebida e embriaguez, à vida do portenho de setores médios que se perde na impaciência. Segundo ele, com efeito, em Buenos Aires ou em alguma cidade grande, ocuparíamos todos os espaços e nos moveríamos vertiginosamente em uma carreira para ser alguém, enquanto o índio, por seu lado, meramente está, diz Kusch.

 

Nos sentimos satisfeitos com as coisas que conseguimos nos últimos anos: algum título, alguma propriedade, alguns livros a mais, alguma roupa nova ou algum cargo. Gostamos de pensar nessas coisas. Dizemos que ao fim e ao cabo colocamos nosso esforço para ser alguém. Nos esforçamos e pensamos mal das pessoas que simplesmente se deixam apenas estar. Pensamos, inclusive, que o índio é uma pessoa indolente porque se deixa estar, porque nada faz para melhorar sua situação. E também aqui em Buenos Aires há muitas pessoas que faz o mesmo. Todo esse povo do tango, do futebol (...), todos eles se deixam estar, então, como vão progredir? E pensamos “eu, ao contrário, faço minhas coisas, estudo, trabalho, luto” (...) Gritamos para nós mesmos “eu sou alguém e essa gente só quer estar”. (KUSCH, 2007, p. 177-178).

 

            Como podemos observar, Kusch considera que o pensamento racionalista de influência europeia dominou a instauração e a interpretação de nossa cultura latino-americana, o que exigiria de nós, agora, desconstruir essa estrutura lógica que se coloca como superior, em detrimento das culturas autóctones aqui já existentes. Na base de suas reflexões está a ideia de que a racionalidade ocidental teria se fundado no ser, no ente, na coisa e nos objetos, enquanto a racionalidade indígena se fundaria no estar, no domicílio, no habitat. Adotando modos de observação próprios da ciência antropológica, foi a campo aprofundar suas intuições no sentido de se pensar e extrair uma filosofia autenticamente americana, concluindo que nos povos originários há uma situação ontológica e epistemológica única, caracterizada pelo predomínio do “estar” sobre o “ser”. O pensamento racionalista europeu, ao negar ou desconsiderar por completo o pensamento americano, transforma-o em um objeto sem vida e sem história, restando-nos construir um movimento de resistência e de autoafirmação, na busca da emancipação dos discursos e práticas que nos impedem de expressar nossa própria cultura de maneira integrada e autônoma.

            Em suas andanças investigativas, Kusch constata que, por exemplo, o medo é um sentimento que se deve levar em consideração e vivê-lo plenamente, pois ele dá a oportunidade de se sentir, de se experimentar e de se pensar sobre quem somos nós. Para o indígena não é um problema viver essa experiência, aliás ela o constitui e o define, ao contrário de uma técnica filosófica e psicológica de matriz eurocêntrica que pretende controlá-la e submetê-la aos ditames da razão, inclusive com a adoção de perspectivas e práticas pedagógicas. Em outras palavras, o pensamento originário e sua consequente ação não solicita uma técnica ou uma lógica que o levaria a um saber e a uma prática que busca captar o “quê” das coisas, a sua forma essencial, mas, ao contrário, pretende se aproximar do sentido, do significado, do conteúdo simbólico e da dinâmica vital que movimenta o solo, a natureza, as pessoas e o mundo.

 

O lugar do pensar culto e do pensar popular parece estar simetricamente invertido. Se no pensar culto predomina o aspecto técnico, no popular predomina o aspecto semântico. Em suma, se nos setores populares se diz algo, no setor culto se diz como [...] É natural que haja um algo e um como no dizer, porém não é natural que ambos de distanciem e haja uma supervalorização do como sobre o algo [...] Voltando ao filosofar, o problema intrínseco desta atividade não é de mera técnica, ou seja, do como, mas também de um algo que se constitui [...] O pensamento culto inverte a direção, em vez de apontar o algo do dizer, aponta o como. (KUSCH, 2000, p. 9-10).

 

Para Kusch, é necessário um equilíbrio entre conteúdo e forma, entre o algo e o como, de tal maneira que possamos desfetichizar a técnica e a lógica que promete o progresso como consequência e que tem marcado, inclusive, a educação burguesa, ao fundamentar o ensino na ideia do progredir, do ascender e do avançar, ou seja, em uma concepção de razão que considera tudo passível de ser dominado, controlado e previsto.

Enfrenta-se o caos para encontrar o previsto. E para garantir isso se usam as técnicas. Com isso se mata o tempo, porque a possibilidade da novidade é subtraída. O medo de que o que aparece seja outra coisa se perde. Daí nossa educação. Os jovens são educados para pre-ver, ver antes, já saber o que está acontecendo, e assim parar o tempo, evitar o fardo do sacrifício. (KUSCH, 2000, p. 12).

 

Nessa perspectiva, o que se tem visto na América seria um grande desnível entre o que este continente era e o que o Ocidente trouxe e fez dele. De um lado, o inferior, o inútil e, de outro, o superior e o útil, que tem como objetivo o progredir, o ser alguém, não importa a que custo e a que preço.

 

Ser alguém implica o afã de ser alguma coisa e esse desejo se identifica, neste contexto, com o progresso, com a substituição dos frutos por (a acumulação de) simples coisas, com a obsessão de somar objetos. Assim, a perfeição do ser, em última instância, implica ter [...] O indivíduo busca a perfeição e esta se identifica com um afã de progresso infinito relacionado com os objetos, um progresso que implica a negação do antigo desejo do mínimo que simplesmente pretendia conservar a vida, comprometido com o mero estar. (CULLEN, 2003, p. 53).

 

O homem latino-americano, formado, educado e influenciado por essa visão de mundo, de matriz europeia, não suporta o medo e o estar, pois isso o angustia, diferentemente do indígena que, ao sentir medo, recorria aos bruxos em busca de ajuda. Para eles, assumir nossa dimensão humana é viver no nível do terreno, do solo e enfrentar nossos temores. Para nós, isso não é suficiente, pois queremos tudo claro, esclarecido e passível de ser compreendido e dominado pela razão. É como se houvesse um imperialismo da racionalidade que, na verdade, revela a nossa fraqueza e a nossa impotência frente à totalidade daquilo que deveríamos pensar, viver e sentir. Somos incapazes de simbolizar ao pensarmos em termos ocidentais, pois queremos reduzir tudo a uma relação de causa e efeito e totalizador, desconsiderando que

 

 

nem mesmo o que chamamos de cultura nos dá um conhecimento total [...] A cultura, no dia a dia, supõe um conhecimento de livros e dados como no caso da ciência. O melhor exemplo é a livraria. Entrando nela sempre sentimos nossa inferioridade diante de tanto conhecimento contido no objeto livro. Seguimos vivendo a enciclopédia científica a nível cultural [...]. Pensa-se que este conhecimento cumulativo que ocorre no ensino e que se cristaliza na livraria é uma vantagem do século [...] O que no século XX se denomina cultura reduz-se, então, a um simples fetichismo. (KUSCH, 2000, p. 21-22).

 

 

 

Diante desse quadro, estaríamos acostumados a um saber acumulativo, quantitativo, competitivo e enciclopédico, mas parcial e incompleto, desconsiderando que nós, as coisas e o mundo somos mais do que aquilo que é definido conceitualmente e que nenhuma técnica filosófica, científica e pedagógica é capaz de apreender. Esta ideia, seja como uma característica da cultura americana, seja como uma crítica à razão ocidental, como propõe Kusch, nos convida a regressar à história da própria filosofia e ver nela o efeito do processo de hipervalorização da razão em detrimento de outras dimensões humanas, como a passional.

            A partir da perspectiva kuscheana podemos pensar que a postura de desconsiderar as paixões humanas, o medo, por exemplo, como um contraponto ou outro lado da razão, ou do ser, é desvalorizar um estado original que precisa ser olhado em sua singularidade e profundidade. Para tanto, temos que considerar o solo e a paisagem que habitamos, que é o lugar que sustenta a vida e é seu apoio espiritual. A cultura tem uma margem de arraigo e de enraizamento que precisa ser considerada. É do solo, não apenas geográfico, diz Kusch, que emerge toda uma cultura e toda uma maneira de ser, de pensar, de agir e de falar, enfim, um ethos. Por isso a ideia de se fazer de uma geocultura do homem latino-americano e, assim, reconhecer e valorizar a dignidade filosófica, sociológica, antropológica e psicológica das cosmovisões indígenas americanas é fundamental

 

Atrás de cada cultura está sempre o solo [...] E este solo assim enunciado, que não é uma coisa que se toca, mas que pesa, é a única resposta quando se faz a pergunta sobre a cultura. Ele simboliza a margem de arraigo que toda cultura deve ter [...]. Não há outra universalidade que não essa condição de estar caído e imerso no chão, mesmo que seja no altiplano ou na selva. Daí o arraigo, isto é, a necessidade desse enraizamento, porque senão a vida não tem sentido. (KUSCH, 2000, p. 109-110).

 

Portanto, o solo, as paixões, o medo, os sentimentos, o aqui e o agora, o devir de nossas vidas, a magia, o simbólico são as características centrais para se pensar e compreender a singularidade da cultura e do pensamento latino-americano. É reconhecer uma estrutura existencial que se define não pela essência que pretende colonizar, mas que assinala e valoriza o seu caráter condicional, o modo exterior de tudo aquilo que existe, sem preocupação com uma interioridade, universalidade e imutabilidade.

Segundo Kusch, o horizonte simbólico-cultural americano se constituiria pelo predomínio de um viver domiciliado e “prendido a um solo que se dá como inalienável” (2000, p. 238). Ao desconsiderarmos isso revelamos a nossa própria inautenticidade.

 

A nossa autenticidade não reside no que o Ocidente considera autêntico, mas no desenvolvimento da estrutura inversa dessa autenticidade, na forma de “estar sendo” como única possibilidade [...] Só o reconhecimento desta última dará a nossa autenticidade. (KUSCH, 2000, p. 239).

 

Em suma, se na América Latina houve um processo de negação do caráter arraigado da cultura dos povos originários latino-americanos, de sua dignidade, de sua história e de sua maneira de viver, de conviver e de habitar o solo, talvez caiba agora pensarmos em uma saída que assegure o reconhecimento, a valorização e visibilização daquilo que foi ocultado, explorado, oprimido e exterminado, de tal maneira que se construa a possibilidade de um equilíbrio epistêmico, ético, estético e identitário. Ainda continuando com Kusch, parece-nos que o conceito de fagocitação nos dá essa possibilidade e pode nos trazer algo novo para essa reflexão.

 A noção de fagocitação e sua contribuição para pensar a mestiçagem[2]

            Em seu livro bastante conhecido, intitulado Filosofia Mestiça (1993), Michel Serres procura problematizar a prevalência no campo da filosofia e da ciência de uma postura universalizante e geral de se relacionar com as coisas e o mundo. Segundo ele, na questão do conhecimento observa-se um receio ou medo mesmo de se viver e considerar a vida em suas singularidades prenhes de sentido, pensando e formulando conceitos suspensos no vazio e deixando de lado o caráter doloroso da existência. Hemiplégica, esta postura não consegue ver o todo em sua dinâmica e vitalidade, pois falta-lhe incluir algo que está ali, mas que é deliberadamente invisibilizado. Para Serres, por exemplo, a epistemologia e a pedagogia não podem abrir mão de se defrontar com o excluído, com a dor, com a violência, com o mal, com a sombra. Seu caráter coxo e claudicante forma-se justamente pela sua incapacidade de conhecer e reconhecer as coisas do mundo e das pessoas tal como elas são atravessadas e afetadas e que orientam suas vidas. Pensar e praticar uma ciência encarnada, em que o patético (passional) e a razão sejam considerados, pode nos conduzir a um processo de mestiçagem e de equilíbrio entre a universalidade e a singularidade, entre o centro e a periferia.

 

A ciência encontra a cultura quando ela se encarna e descobre ou produz dor, mal e pobreza. Esse tempo não acaba, pois traz consigo o mundo e a história. Primeiro foco: a razão científica universal e clara, sol faiscante; segundo foco, ardente: todo indivíduo encarnado singular sofredor e que agoniza sob a dureza dos homens, ecce homo; a filosofia não evita o centro e periferia, pessoa instruída com mestiçagem, procedente ou engendrada pela universalidade racional e pela singularidade dolorosa, pela universalidade dolorosa e pelas singularidades racionais, espírito que, ao mesmo tempo, faz ou segue a excentricidade legal do mundo e que se semeia, multiplicado, no universo. Eis o segredo do conhecimento: ele funciona como o mundo. (SERRES, 1993, p. 84).

 

            Essas reflexões de Michel Serres parecem exprimir e se aproximarem da proposta de Rodolfo Kusch quando formula e desenvolve a noção de fagocitação em seu livro América Profunda, publicado pela primeira vez em 1962. No exórdio ao livro, Kusch afirma que o seu objetivo é buscar ou construir

 

a definição exata do americano em sua dimensão humana, social e ética. Era esta uma exigência que havia ficado em aberto no primeiro livro, La seducción de la bárbarie, onde havia analisado o americano a partir de uma intuição da paisagem. Numerosas viagens ao altiplano e a investigação sobre a religião pré-colombiana, limitada às zonas quéchua e aymará, deram-me a pauta de que havia encontrado provavelmente as categorias de um pensar americano. (KUSCH, 2007a, p. 3).

 

            Entre as categorias encontradas por Kusch, além do ser e estar está, entre outras, a de fagocitação, que faz parte e contribui em seu intento de estabelecer conceitos flexíveis e que poderiam facilitar a possibilidade de fixar e compreender o sentido da América. Para tanto, realizou andanças investigativas pelas terras americanas, comendo com as pessoas, participando de festas, examinando o passado nos sítios arqueológicos bem como circulando e observando as ruas e os bairros das grandes cidades, sobretudo Buenos Aires. “Apenas assim se ganha firmeza na difícil tarefa de assegurar um fundamento para pensar o americano.” (KUSCH, 2007a, p. 5).

            Para tanto, Kusch esboça intuitivamente e põe em evidência duas perspectivas que ajudam no seu processo de investigação. De um lado, considera que na América, conforme já afirmamos acima, há o ser, como expressão da atividade burguesa que aqui se instala e, por outro lado, o estar, que seria a modalidade profunda da cultura pré-colombiana e autóctone.

 

Ambas são duas raízes profundas de nossa mente mestiça – da qual participamos brancos e pardos [pretos] – e que se dá na cultura, na política, na sociedade e na psique do nosso âmbito [territorial]. Da conjunção do ser e do estar (...) surge a fagocitação, que constitui o conceito resultante daqueles dois e que explica esse processo negativo de nossa atividade como cidadãos de países supostamente civilizados. (KUSCH, 2007a, p. 5-6).

 

            Quando trata especificamente do tema no livro III, de América Profunda, Kusch (2007) procura fazer uma distinção entre fagocitação e aculturação. Embora não seja adequado utilizá-lo para explicar o que aconteceu na América, o conceito de aculturação pode ser entendido como “o contato entre culturas”. No nosso caso, seria como se tivesse ocorrido um mero movimento de imposição e de transmissão da cultura material (vestimenta, arquitetura, etc.) europeia do século XV, baseada na cidade, para uma América ainda agrária. No entanto, não foi isso que teria acontecido, simplesmente, como pode se acreditar em um primeiro momento, sobretudo se tomarmos os discursos e os desejos dos colonizadores. A partir de suas observações e análises, na verdade, o que se passou foi um processo diferente, isto é, as culturas originárias da América Latina, souberam resistir e enfrentar o colonizador ocidental fagocitando a sua cultura. Trata-se da absorção das pulcras coisas do Ocidente pelas coisas da América, como a modo de equilíbrio ou reintegração do humano nestas terras. Sem se anularem, as duas formas de pensar, ser e estar e agir teriam se vinculado e se equilibrado, mesmo que o colonizador quisesse acreditar e difundir que sua capacidade de dominação tivesse prevalecido. A fagocitação é a absorção do ser pelo estar, própria do pensar popular, em que há uma verdadeira incorporação, em um universo simbólico, entre o sagrado e o profano, como consequências em todos os âmbitos da vida. “A fagocitação não é consciente, mas opera na inconsciência social, à margem do que oficialmente se pensa da cultura e da civilização.” (KUSCH, 1999, p. 135). É nesse processo de “síntese dialética” que podemos melhor compreender a configuração da sabedoria americana, que resiste e procura resgatar o que lhe é próprio, reexistindo, mesmo com todas as investidas destrutivas e violentas desse outro ocidental. Mas como isso seria possível?

            Para Kusch, o processo de fagocitação e de sabedoria americana é difícil de ser reconhecido e valorizado pelo “progressismo ocidental”, pois este está fundado em outras crenças e atitudes bem distantes daquelas vividas pelos indígenas, isto é, pela ideia e por uma prática de dominação, de destruição e de negação do outro. Pautado em uma espécie de verdade universal, de pureza conceitual e cultural, o progressismo classifica as coisas da América como hediondas, sujas, repugnantes, obscenas e nefastas e, por isso, precisavam ser eliminadas e negadas, em nome de um mundo limpo, técnico e objetivo.

            Kusch sustenta que na América há uma fagocitação do ser pelo estar[3]. Um exemplo disso ele expõe em seu livro Geocultura del hombre americano, publicado em 1976 (KUSCH, 2000), no qual relata um complexo ritual que se realiza por ocasião da chegada de um caminhão a uma comunidade campesina. Sacrifica-se um cordeiro, extrai-se o seu coração e se queimam os seus ossos. Depois, se veste o caminhão, paramenta-o de representações de deuses e o incorpora à cultura e à comunidade. Ou seja, onde um cético diria “caminhão, técnica e dominação”, Kusch propõe um processo de apropriação, ressignificação, isto é, de fagocitação. Porém, isso não se dá apenas no mundo indígena, ou seja, em algum lugar longínquo onde se situa alguma comunidade perdida da Bolívia ou do Peru. O estar está definitivamente instalado em nós mesmos, nas pequenas e grandes cidades.

            É nesse sentido que Kusch apresenta duas temporalidades – a da colheita e a do progresso – e duas concepções de mundo articuladas - a perspectiva ocidental e a americana. O ideário de progresso que habita na cotidianidade da cidade ocidentalizada se opõe à espera sagrada das profundezas americanas. Esta oposição permite a Kusch evidenciar a convivência de duas concepções de mundo presentes no mesmo território, que definitivamente se imbricam, se habitam e se mestiçam[4]. Falar de dois mundos aqui não faz alusão a duas crenças, mas a dois mundos estabelecidos desde o ponto de vista ético, simbólico, cultural e, inclusive, perceptivo.

            A sabedoria indígena americana que se preserva e que resiste, mesmo com as tentativas de ignorá-la, insiste em se revelar e permanecer viva em sua autenticidade. O ocidental não tem coragem e disposição para encarar o caráter profundo da cultura autóctone, entre eles o medo, preferindo se satisfazer apenas com a aparência e a superficialidade daquilo que sua consciência é capaz de suportar.

 

Por trás de nossa aparência encobrimos a sinistra projeção [e existência] de um medo primário. Isso se dá no desajuste entre aquilo que cremos ser conscientemente e o que somos por detrás de nossa consciência, ou seja, entre os instintos e os que eles revelam. [Esse desajuste] está no afã neurótico de construir um país e fingirmos ser cidadãos, quando na verdade temos consciência da falsidade desse quefazer e de nossa profunda imaturidade. É o caso dos que defendem a pulcritude obstinadamente, como fazem os que se encontram no exclusivo amparo da cidade. (KUSCH, 2007a, p. 192).

           

Nesse sentido, pensar e compreender a América a partir de um processo de fagocitação e não de aculturação nos proporciona inverter a lógica que sempre prevaleceu quando discutimos os movimentos colonizadores na modernidade. Assim, pensar a mestiçagem nestes termos não significa, portanto, apenas constatar e denunciar que houve massacres e extermínios, que é verdade, mas isso é apenas um aspecto das práticas de dominação e de tentativa de imposição de uma cultura e de um estilo vida oriundo de outro lugar, isto é, da cultura do ser. Se partirmos da perspectiva dos povos originários e, sobretudo, da noção de estar, ou seja, da cultura da serra e dos altiplanos andinos, como Kusch teve oportunidade de averiguar, o que se observa é o predomínio do estar, em sua consistência vital, sobre o ser, uma distensão e uma fagocitação do ser pelo estar, um ser alguém fagocitado por um estar aqui.

 

A fagocitação não é consciente, mas opera na inconsciência, à margem do que oficialmente se pensa da cultura e da civilização (...). [Ela] se produz em um terreno invisível (..), debaixo do umbral da consciência histórica (...). Todo esse processo se efetua dentro de um conceito peculiar de eternidade (..), uma eternidade como simples crescimento [e não vazia e imutável]. (KUSCH, 2007a, p. 197).

            A ideia de mestiçagem daí decorrente, portanto, pressupõe, sim, a tensão, mas do ponto de vista da sabedoria indígena ela se refere e se resolve não a partir de uma mirada que transcende as coisas em direção a um mundo essencial e imutável. Essa postura tensional apenas interessa e a concretiza aqueles que, ao sentir medo, não sabe lidar com ele, diante do caráter impetuoso da vida. O cidadão ocidental, civilizado, não suporta o caos e, por isso, constrói muros e muralhas para se proteger e remediar a suposta desgraça que daí pode advir. Ao saber se conduzir diante desse “hervidero espantoso”, o indígena, ao contrário, busca conviver com ele, algo próprio de uma cultura que se mantém no mero estar, que fagocita e pretende se equilibrar entre o caos e a ordem por meio de uma simples e resignada sabedoria ou de esquemas de tipo mágico e simbólico.

 

Nossa cultura ocidental, ao contrário, se diferencia naquilo que suprime dos opostos, isto é, o seu lado mal, como se pretendesse que tudo fosse ordem. Isto, que se dá na moral, também se registra na ordem técnica, quando se trata da mesma cidade, ou de seu governo, ou quando nós puros cidadãos, concebemos com uma urgência e uma gratuidade sem limites a cada instante a forma de estabelecer sempre a ordem. (KUSCH, 2007a, p. 200).

 

É neste contexto que do ponto de vista indígena se dá a fagocitação, tendo em vista que o desejo de ser alguém, pretendido pelo ocidental, é transitório e de nenhum modo imutável e eterno, embora tente dizer, acreditar e se comportar como se o fosse. A grande história – ou seja, a do estar - altera o sentido e engole a pequena história – a do ser - que, ao pretender se absolutizar, não é capaz de fincar suas raízes na vida. Feminino, o estar é passivo, profundo, reconhece, com temor, as tormentas, o raio e o trovão como a manifestação da natureza da ira divina; masculino, o ser cria coisas, como as cidades com seus objetos e utensílios, agredindo tudo aquilo que não responde aos seus fins. A grande história é a da grande maioria das pessoas simples que fazem sua própria história, embora não seja redigida e nem publicada, isto é, uma história que evidencia o estar sendo dos seres humanos que se esforçam cada dia, de forma heroica, para se constituir dentro do tempo e das circunstâncias que a eles correspondem. Por isso, o ser é fagocitado pelo estar, o masculino pelo feminino, como o filho pela mãe, porque nesta se dá a vida em maior proporção e profundidade do que naquele. O ser surge do estar; brindando-o com os elementos para sua dinâmica, que mesmo assim insiste em formar um mundo superposto ao mundo original do trovão e do granizo.

 

Por isso o ser é débil: é uma pura construção. A prova está no ocidente. O afã de lograr a eternidade uniforme [e imutável] e o mundo do absoluto e essencial, à base de um excesso de tensão, da exclusão do diabo, da criação da cidade e dos objetos, chegou à sua culminação e agora não pode retornar a seu mero estar para ser reabsorvido a fim de renovar suas forças sequer. (KUSCH, 2007a, p. 202-203).

 

            Apesar de o indígena ser submetido e qualificado de demoníaco e caótico desde o início do processo colonizador, que se colocava como superior, universal e moderno, a fagocitação que ele realiza demonstra a sua capacidade de sobrevivência, de transgressão à imposição identitária e cultural, para não esquecer o passado, de resistir, conservar, se adaptar e redefinir aspectos de suas experiências vitais, reinterpretando-as. (GUERRA & BUSTAMANTE, 2019). Atitude difícil para aqueles movidos pelo mundo do ser alguém, atravessado que é pela dinâmica do comércio, pela ficção dos objetos e de uma natureza sem deus e sem crença, o indígena não tem medo do medo e muito menos de enfrentar o terreno do imponderável, do mundo arraigado em uma paisagem e em uma natureza iracunda e ardente, como mencionara Michel Serres.

            Em suma, a fagocitação, como um processo ou a expressão cultural da mestiçagem, promove de maneira gradativa, ziguezagueante e profunda o surgimento de uma sabedoria que se encontra presente no subsolo do pensar americano. Diante disso, refletir acerca de uma educação étnico-racial nos parece que ganha em riqueza e em protagonismo se levarmos em consideração as ideias apresentadas até agora. É o que procuraremos fazer na sequência.  

Por uma educação das relações étnico-raciais para o buen vivir

O empoderamento e o reconhecimento de uma vida digna para os povos originários, quilombolas e as comunidades tradicionais parece ser uma das mais importantes saídas para construirmos uma educação verdadeiramente mestiça e dentro dos limites de uma proposta étnico-racial. Nem pretos, nem índios, nem pobres e nem comunidades periféricas devem ser anulados ou se deixar anular por um discurso e uma prática que nega e ignora a grande história à qual esses povos fazem parte e construíram. Reconhecer a riqueza e a profundidade da cultura e da ancestralidade desses povos e comunidades é um passo fundamental para que o Brasil e, quiçá, outros países latino-americanos, comecem saldar a grande dívida contraída com eles. O passado colonizador, fundado no extermínio, na exploração e na exclusão de toda ordem, deixou um legado com consequências danosas e dolorosas até os nossos dias. Na floresta, nas cidades e no campo os efeitos são evidentes e cristalinos.

Portanto, as leis 10.639/03 e 11.645/08 (BRASIL, 2003, 2008) que propõem a implementação nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados o estudo da história e da cultura afro-brasileira e indígena é um passo importante. Todavia, esse processo pedagógico não pode ser, dessa maneira, revestido e organizado como uma mera instrumentalização de um saber e de uma cultura, que ao ser trabalhado nas salas de aulas, cumpririam o mesmo papel dos outros conteúdos atualmente ministrados. Alargá-lo para além de um saber epistêmico-conceitual, transmitido, reproduzido e assimilado mecanicamente, nos parece ser o grande desafio. Falar sobre os diversos aspectos da história e da cultura negra e indígena que formaram o Brasil solicita uma nova postura didático-pedagógica de professores e professoras e de alunos e alunas. Fundamentalmente, é preciso fazê-los reconhecer que de alguma maneira são partes constitutivas dessa história e dessa cultura. Ou seja, os conteúdos exprimem mais do que um conjunto de categorias, ideias, teorias e até curiosidades a serem apenas entendidas em sua coerência lógica, metodológica e conceitual.

            Em uma perspectiva freiriana, a inserção desses conteúdos na escola só poderá ter sentido profundo e transformador se forem trabalhados em uma perspectiva ética e política. Isso significa considerar a educação a partir da dialogicidade e da problematização, da realidade, do significativo, em que o conhecimento não seja fundamentado na transmissão de conteúdos simplesmente, mas constitui-se como construção em um processo dialético. Como não há pessoa sem conhecimento, não há, portanto, processo de ensinar que não perpasse pela experiência de aprender, de escutar e reconhecer o outro.

 

 

Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, não me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível. Se a estrutura do meu pensamento é a única certa, irrepreensível, não posso escutar quem pensa e elabora seu discurso de outra maneira que não a minha. (FREIRE, 1996, p. 120-121).

 

           

            A inclusão da dimensão ética e política, nos termos propostos por Freire, em uma educação que se pretende enfrentar o preconceito, o racismo estrutural, a exclusão, a violência e as injustiças sociais, políticas, econômicas, culturais, etc., é uma tarefa à qual todo educador poderia se comprometer. Para além de uma transmissão de conhecimento sobre o outro (negros e indígenas, por exemplo), que poderá ser sempre parcial e fragmentária, uma educação das relações étnico-raciais deve assumir compromissos mais profundos e com sentido para todos os envolvidos. Para tanto, as Escolas e as Universidades, como lugares de e para práticas formativas, necessitam se ressignificar e incluir propósitos mais claros e inovadores para os conteúdos e as ações que desenvolvem.

            É nessa perspectiva que consideramos e queremos aqui defender uma proposta de educação das relações étnico-raciais arraigada e verdadeiramente fundada nos valores, crenças, símbolos, mitos, saberes e experiências dos povos originários, quilombolas e das comunidades tradicionais. As noções de estar e de fagocitação talvez possam nos dar boas indicações nesse processo. Se até o momento ainda estamos nos conduzindo, educando, nos seduzindo e produzindo a partir de concepções de mundo formuladas em outros solos e circunstâncias, a ideia aqui é propor o reconhecimento e a valorização daquilo que foi invisibilizado, soterrado e negado ao longo da história[5].

            É bastante desafiador e, diria, esperançoso, construir uma educação que se distancie, rompa e se contraponha a uma forma de pensar orientada pelo ser alguém, isto é, pautada pelo mundo dos objetos e dos utensílios e pela ideia de progresso, que marca o ocidente e que se instalou entre nós. 

 

Tudo o que se foi criando correspondia a um só aspecto da vida humana, aquele que se desempenhava na cidade e por isso a cidade foi se convertendo em um pátio dos objetos (...). Com tudo isto o homem perde a prolongação umbilical com a pedra e a árvore. Criou algo que supre a árvore, porém não é árvore. Como simples sujeito lógico que examina objetos e os cria, quer ser um homem puro, mas não é mais do que meio homem, porque perdeu sua raiz vital e então supre a ira divina pela sua própria ira (...) Um dos aspectos dessa ira humana é indubitavelmente a competência. Ela constitui o fator importante da dinâmica urbana (cidadã), especialmente no plano econômico (...), saturando o amor, as relações sociais e as diversões. (KUSCH, 2007a, p. 146).

 

            Na base dessa nova e inovadora proposta pedagógica para tratar da educação das relações étnico-raciais está a exigência de uma postura de interpelação e de resistência ao monopólio eurocidentalocêntrico e urbano, como uma maneira de reestabelecer, de reconhecer e tornar visível o que fora soterrado. A dinâmica de uma educação assim parece exigir a superação do ambiente e do espaço físico-estrutural da escola e da sala de aula, tal como temos usado até hoje. Talvez esteja no momento de observar se muitas das atitudes de negação e de aversão à escola por parte de crianças e jovens não está na sua maneira de se organizar e funcionar. Eles se encontrariam fora de seu lugar, de seu habitat, enfim, de sua vida. Fazer com que alunas e alunos, professoras e professores “se sintam em sua casa” ao abordar os diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira pode ser a porta de entrada para recuperar a história “perdida”, isto é, a riqueza de seu passado e muitas outras coisas como o espírito de comunidade, o amor, a religião e toda uma série de conceitos vitais que foram excluídos da linguagem oficial.

            Nesse sentido, ao invés de pensarmos em uma educação que se limita a tornar os indivíduos um ser que consome e se adapte ao mundo urbano com seus apetrechos, ou seja, um ser alguém, conforme nos ensina Kusch, poderíamos ir um pouco mais longe e trabalhar para construirmos um projeto pedagógico que inclua “os fatos e as experiências profundas e inconfessáveis da simples vida.” (KUSCH, 2007a, p. 159). Assim, a noção de fagocitação pode nos conduzir e colaborar nesse processo, pois nela está a ideia de uma abertura ou aceitação do outro não para ser anulado e negado. A esfera do ser não desaparece pela presença, valorização e reconhecimento do estar indígena e do estar negro. O fato de que o estar fagocite ou absorva o ser não implica a sua dissolução, mas a transformação do mundo em um lugar habitável, vivo e verdadeiramente mestiço. De uma subjetividade humana vazia, imutável e absoluta a uma existência mediada pela vida em seu sentido pleno e que responda à interpelação do outro enquanto outro - o buen vivir.

 

O buen vivir – vivir bien provêm das palavras indígenas Sumak Kawsay (em quéchua) e Suma Qamaña (em aymará), que significa vida em plenitude e equilíbrio com a natureza e em comunidade (...). É uma maneira de vida, uma cosmovisão integradora de todas as relações: com os demais, com a natureza, consigo mesmo (CROCE, 2018)

 

Portanto, uma proposta de educação das relações étnico-raciais para o buen vivir, além de incluir e trabalhar na perspectiva do estar e da fagocitação e, por isso mesmo, pode ser uma das melhores respostas no enfrentamento dos dramas e das situações de exclusão, racismo estrutural, discriminação, subalternização das culturas que contribuíram na formação do Brasil e do continente latino-americano ou, se preferir, da nossa Abya Yala: uma educação contextualizada, onde os sujeitos da aprendizagem são protagonistas que recuperam a identidade, a consciência coletiva e histórica, e os valores, os saberes, os símbolos e crenças que estão enraizados em suas existências autênticas territorialmente.

Considerações finais

Nesse texto, partimos da ideia de que a concepção ocidental do mundo o define como um espaço vazio cheio objetos que são percebidos por sujeitos que buscam o descobrimento de leis que regulam esse mundo, articuladas em um discurso científico que se pretende verdadeiro, com o objetivo fundamental de explicá-lo, predizê-lo e, finalmente, dominá-lo por meio da técnica. Daí decorre a nossa concepção de natureza, entendida como recurso natural a ser explorado. Ou seja, essa perspectiva ocidental é uma realidade que se dá desde fora, ou seja, a construção de um conhecimento que busca agir sobre a realidade a fim de dominá-la. Os desdobramentos dessa posição, nós já conhecemos: de um lado, estão os que conhecem e dominam; de outro, estão aqueles que são dominados e, por isso, não precisam ser reconhecidos e nem valorizados. Trazendo para os objetivos deste texto, quisemos indicar outras alternativas e maneiras de se tratar e enfrentar a questão.

A educação das relações étnico-raciais precisa estar aberta a receber contribuições e inspirações de outros lugares e de outras formas de vida. Mais do que uma proposta curricular, ela pode ser um excelente espaço para promover estratégias que favoreçam a vida em todas as suas dimensões; que possibilite o acesso e o reconhecimento de um saber mais amplo e profundo e que não separe a cultura popular da cultura escolar, mas que se integrem, se equilibrem e nos convoque a viver em comum com equidade, respeito às diversidades e a todos os direitos de todas as pessoas. Esse novo sentido pode ser um caminho a seguir e a criar, aliás, talvez seja o único que nos resta em vista de um futuro que garanta a vida, o que implica rupturas com visões de mundo e de vida que estabeleceram classificações e distinções étnico-raciais como civilizados-primitivos, superiores-inferiores, desenvolvidos-subdesenvolvidos. Para concluir, deixamos que as palavras inspiradoras de Dominga Vásquez, indígena Maya, da Guatemala, nos diga o que deve ser feito:

 

Desejaria que voltasse o tempo de antes, porém eu sei que isso não vai acontecer; mas de alguma maneira creio que podemos, sim, viver o que já vivemos: o respeito, o compartilhar, que a dor de um era a dor do outro, e a fome de um era a fome do outo (...). Eu sei que vai haver, sim, uma mudança muito bonita, e isso depende de cada um de nós. Porque o poder está em nossa mente e é isso que move tudo. Então, está em cada um de nós a maneira de colaborar para que as coisas sejam diferentes. (VANDENBULCKE, 2017, p. 38-39) 

 

Referências

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Notas



[1] Vide: Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216.

[2] A noção de mestiçagem trabalhada neste texto se diferencia daquela tratada por pensadores e pesquisadores brasileiros, que a considera, por exemplo, como um dispositivo de poder, ou seja, “um conjunto de saberes e de estratégias de poder que atua sobre nossa identidade nacional, tendo por objetivo integrar e tornar dóceis as etnias que estão na raiz de nossa nacionalidade (no caso os indígenas do continente e os negros africanos). (TADEI, 2002, p. 3). Outros a considera como uma ideologia de Estado brasileiro, visando a construção nacional, sobretudo a partir dos anos 30, “na medida em que revela a possibilidade de convivência dos diferentes grupos socioculturais então residentes dentro das fronteiras político-geográficas brasileiras.” (COSTA, 2001, p. 144). Por sua vez, Abib (2022), enfatizando a questão do branqueamento e se contrapondo à tese da miscigenação como fator preponderante da diversidade social e cultural que caracterizam nosso país, como defendia Darcy Ribeiro (1995) e comentado por Giarola (2012), aponta que “a mestiçagem, que aparentemente aproxima e une, vem ferir o indivíduo negro e o índio que não corresponde ao tipo ideal, que, despido de semelhanças, supõe a exclusão e a denegação da identidade.” Como podemos ver nessas poucas referências, o tema é polêmico e exige uma discussão mais aprofundada, tarefa para outro texto.

[3] “Sabemos que estar provêm de stare, latino, estar em pé, o qual implica uma inquietude. Ao contrário, ser enquanto provêm de sedere, estar sentado, conota um ponto de apoio que conduz à possibilidade de definir. Um mundo definível é um mundo sem medo e, ao contrário, um mundo submetido ao vaivém das circunstâncias é um mundo temível.” (KUSCH, 2007a, p. 529)

[4] A socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui usa a expressão aymará ch’ixi para explicitar essa experiência. Segundo ela, a palavra ch’ixi tem várias conotações: é uma cor produto da justaposição, em pequenos pontos ou manchas, de duas cores opostas ou contrastantes: o branco e o preto, o vermelho e o verde, etc. É esse cinza jaspeado resultante da mistura imperceptível do branco e do preto, que se confundem para a percepção sem nunca se misturar de todo. A noção ch’ixi, como muitos outros obedece à ideia aymará de algo que é e não é ao mesmo tempo, ou seja, a lógica do terceiro incluído.” (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 75)

[5] Depois de 20 anos da promulgação das Leis 10.630/03 e 11.645/08 temos consciência que o desafio para a sua implementação ainda permanece. Apesar de alguns avanços e do reconhecimento da importância do debate no cenário político-educacional e social brasileiro, são necessárias muitas transformações para que elas se revistam de consciência programática e prática no cotidiano escolar. (GONÇALVES; SILVA, 2019; SOUZA, 2016)