Ministério Público e Gestão Democrática em cena: tessituras sobre o processo seletivo de diretores escolares em Duque de Caxias (RJ)
Public prosecutor's office and democratic management: selection of public school principals in Duque de Caxias (RJ)
Ministerio Público y Gestión Democrática: el proceso de selección de directores de escuela en Duque de Caxias (RJ)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
pamelamota23@yahoo.com.br
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
efelisberto@yahoo.com.br
Recebido em 03 de outubro de 2021
Aprovado em 16 de janeiro de 2023
Publicado em 04 de julho de 2023
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma análise da atuação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, MPRJ, durante a regulamentação da gestão democrática na cidade de Duque de Caxias, região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, foi realizada uma análise documental das diligências instauradas pelo órgão entre os anos de 2014 a 2017 a respeito do processo seletivo de diretores escolares no município pesquisado. Sob a perspectiva teórico-metodológica do ciclo de políticas (BALL, 1994; BOWE; BALL; GOLD, 1992), os resultados parciais da pesquisa em andamento apontam que o referido órgão público pode influenciar a ampliação da gestão democrática de políticas públicas educacionais, além de estimular a produção textual de legislações locais mais perenes. Ao observar como os contextos de influência corroboraram na tessitura de políticas educacionais mais participativas de seus usuários, apresentamos a importância de se edificar um panorama sobre o que vem ocorrendo nos sistemas municipais de educação acerca da meta 19 do Plano Nacional de Educação de 2014 quanto à gestão democrática.
Palavras-chave: Gestão democrática; Processo seletivo de diretores escolares; Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
ABSTRACT
This paper aims to discuss the route of the recruitment of public school principals in Duque de Caxias, city located in the metropolitan region of the state of Rio de Janeiro, based on the idea that the Public Prosecutor´s Office of Rio de Janeiro, with its actions, may have contributed to the regulation of democratic management in public educational system. The contributions of the “policy cycle approach” formulated by Stephen Ball and Richard Bowe (1992; 1994) were as a theoretical and analytical framework to examine educational policies in Duque de Caxias. This paper presents partial results based on the documentary analysis of the extrajudicial and judicial instruments examined by Public Prosecutor´s Office in 2014 at 2017. As parcial result of the research, we suggest the Public Prosecutor´s Office of Rio de Janeiro can be an influence on the writting of educational policies aimed at democratic management more enlarge in the city investigated and it guids more perennial local legislations. By observing how the contexts of influence can corroborate on the construction text of more participatory educational policies for their users, we present the importance of building an overview of what has been happening in the municipal education systems regarding goal 19 of the 2014 National Education Plan about democratic management.
Keywords: Democratic management; Selection of public school principals; Public Prosecutor’s Office of Rio de Janeiro.
RESUMEN
El studio analizó la actuación del Ministerio Público del Estado de Rio de Janeiro, MPRJ, a través de la regulación de la gestión democrática en la ciudad de Duque de Caxias, región metropolitana del estado de Rio de Janeiro. La investigación utilize un análisis documental de las gestiones realizadas por la dependencia entre 2014 y 2017 en cuanto al proceso de selección de directores escolares en el municipio investigado. Bajo la perspectiva teórico-metodológica del ciclo de política (BOWE; BALL; GOLD, 1992; BALL, 1994), los resultados parciales apuntan que el MPRJ puede incidir en la ampliación de la gestión democrática de las políticas públicas educativas y estimular la producción textual de legislación local con más durabilidad. Al observar cómo los contextos de influencia pueden corroborar con las políticas educativas más participativas para sus usuarios, presentamos la importancia de construir un panorama de lo que ha venido ocurriendo en los sistemas educativos municipales en torno a la meta 19 del Plan Nacional de Educación 2014 en materia de democracia.
Palabras clave: Gestión democrática; Selección de directores de escuela; Ministerio Público.
Introdução
“A escola não foi inventada para ser democrática” (LIMA, 2017). Essa frase, proferida por Licínio Lima a uma entrevista em 12 de abril de 2017 para o Jornal do Comércio, mostra como a organização tradicionalmente resiste à democracia e como ela é posta em xeque por grupos de interesse e pela circunstância histórica e política de países marcados por práticas autoritárias permeadas por um contexto de ações neoliberais e tecnocráticas.
O processo histórico de construção e institucionalização da escola, inspirado em organizações religiosas, militares ou fabris, rompe o ideal utópico de gestão democrática legalizada e empiricamente assegurada. A fúria gestionária (PARO, 2015) limita a democracia a concepções procedimentalistas em prejuízo da substantividade dos objetivos e da participação nas decisões educativas. A adoção de empresas privadas seria o arquétipo institucional e de organização racional de gestão inovadora e eficiente (LIMA, 2018) cuja educação acaba por ser arena política disputada em cenários arraigados pelo patrimonialismo, no qual o discurso de eficiência e eficácia empresarial somado a uma suposta ausência técnica dos gestores da escola serve de justificativa para reformas de estado e de gestão pública baseadas em princípios gerencialistas.
Todos esses aspectos mencionados fazem com que a escola seja uma organização incompatível e incoerente com uma sociedade democrática e com políticas públicas que desejam assegurar igualdade de acesso à escola. Compartilhamos com a ideia de Lima (2018) de que é preciso democratizar as estruturas organizacionais da escola, pois não se pode chegar a uma gestão democrática por intermédio de uma organização estruturalmente pouco participativa e autocrática.
Sendo assim, a gestão democrática e a participação dos cidadãos consolidados na legislação não são suficientes para garantir uma efetiva gestão democrática das escolas. A leitura do artigo 37, inciso V, da Constituição Federal de 1988, possibilita as indicações políticas em cargos comissionados atribuídos à chefia, direção e assessoramento, prescindindo a concretização da gestão democrática e vai de encontro à determinação da meta 19, estratégia 19.1, do Plano Nacional da Educação de 2014, e abre caminhos para interesse político-pessoal na nomeação de gestores escolares. Diante dessa brecha legislativa, surgem argumentos para a entrada do terceiro setor baseados na performatividade (BALL, 2005) e troca de favores podem se consolidar entre os detentores do poder político e os eleitores através de relações herdadas entre o Estado patrimonialista, cuja maior característica é a não diferenciação entre o bem público e o privado.
Se no decorrer da história do planejamento de políticas educacionais os destinatários da política tivessem forte influência na produção do texto legal, as políticas seriam tecidas a partir das agendas locais a nacionais, com um maior nível de participação desses usuários. Porém, políticas são construídas verticalmente, sem a devida participação dos cidadãos nos documentos legais, evidenciando as tensões educacionais induzidas da meso à micropolítica (ARRETCHE, 2004). Logo, as políticas educacionais são feitas por trás de ações burocratizantes e por diretrizes, tantas vezes top down, forjadas a partir de prescrições legislativas resultantes da agenda local/nacional/global e da preferência por grupos de interesse e da preterição de outros. Nesse campo de disputa, a gestão democrática na escola pública tende a se tornar fragilizada e elementos como a participação no poder decisório e a eleição de diretores escolares podem ser ausentes. Por outro lado, como abordado por Ball e colaboradores (BALL, 1994; BOWE; BALL; GOLD,1992) as políticas educacionais são configuradas diante dos contextos que as influenciaram e recriadas pelos atores em cena.
Para a elaboração deste artigo, foi adotada a ótica teórico-metodológica do ciclo de políticas (BALL, 1994; BOWE; BALL; GOLD,1992), na qual se defende a ideia de que as políticas são vinculadas a cinco contextos: i) contexto de influência (reflexões sobre aspectos contextuais, históricos, discursivos e interpretativos); ii) contexto da produção de texto (análise dos textos das políticas, por meio da compreensão crítica em relação ao tempo e o local específico de sua produção) iii), contexto da prática (as respostas aos textos políticos carregadas de consequências vivenciadas pelos sujeitos na escola) iv) contexto dos resultados/efeitos (extensão do contexto da prática, permeado por processos de interpretação e tradução) e v) contexto da estratégia política, relacionado ao contexto de influência, uma vez que integra o processo pelo qual as políticas são mudadas (MAINARDES, 2006; MAINARDES; GANDIN, 2013).
O contexto de influência e o contexto da produção de texto foram centralizados nesta pesquisa, embora todos os contextos se inter-relacionem. Tal escolha se configura devido a investigação concentrar-se na cena em que as políticas públicas são iniciadas e os discursos políticos são customizados e recontextualizados[1] dentro de suas particularidades, portanto, perceber como o contexto de influência ecoa no da produção de texto, lugar cujos textos políticos representam a política e são costurados, é significativo no campo da pesquisa em Educação. A política não é feita e finalizada no momento legislativo e os textos precisam ser lidos com relação ao tempo e ao local específico de sua produção. Os textos políticos são o resultado de disputas e acordos, pois os grupos que atuam dentro dos diferentes lugares da sua produção competem para controlar as representações da política (BOWE; BALL; GOLD, 1992).
Embora saibamos que o processo de regulamentação da gestão democrática seja complexo, com baixa ou nenhuma participação dos sujeitos atuantes na escola, movimentos da política podem gerar efeitos para que se concretize o direito à educação, à promoção de direitos humanos e à participação. A promulgação do Plano Nacional de Educação de 2014 é o mais recente ensaio da União de solidificar ações, a fim de efetivar a gestão democrática do país e, em especial, de tentar solucionar práticas clientelistas ao tratar de matéria sobre o processo de escolha de diretores da escola pública; desenha-se um escopo para o tema, a meta 19, criando condições para que se discipline a gestão democrática por meio de lei específica cunhada no âmbito dos entes federativos e na observância da lei nacional, de forma a ser considerada, na nomeação dos diretores de escola, a participação da comunidade por meio de consulta pública. A materialização de uma lei municipal que auxilia a escola pública na configuração de um espaço democrático pode ocorrer através da ressignificação de uma política pública educacional e a compreensão dos modos pelos quais tal percurso acontece nas arenas políticas é importante para se refletir a tessitura dessa gestão.
Nesse âmbito, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, MPRJ, parece ser um fator a contribuir para a encenação (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016) de políticas públicas no sistema público educacional. Compreendemos tal órgão como um ator político (Idem, 2016) a catalisar políticas educacionais e a ressemantizar a agenda governamental, atuando em prol de regulações pautadas no processo de escolha de gestores sob o enfoque de uma gestão democrática cuja participação da comunidade escolar seja componente intrínseco.
Desse modo, a pesquisa em questão analisa os caminhos da gestão democrática por meio da regulamentação do processo seletivo de diretores escolares municipais em Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense, região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de investigar como as produções dos textos legais se teceram entre 2014 e 2017, tendo o MPRJ como contexto de influência. Esse período é a fotografia temporal da nossa investigação, por, justamente neste ínterim, após o PNE de 2014, serem visualizadas ações do Ministério Público Estadual calcadas na tentativa de efetivar o regime democrático tangente à construção de legislações municipais a disporem sobre a maneira de elencar os diretores das escolas municipais. Esse print contextual é preciso, pois “a política não é feita e finalizada no momento do legislativo e os textos precisam ser lidos com relação ao tempo e ao local específico de sua produção (MAINARDES, 2006, p. 52).
Notamos que antes da interferência do MPRJ a partir de 2014, a função de diretor escolar na cidade fluminense se fundamentava, apenas, por meio da nomeação do Executivo, e, nessa circunstância, o personalismo do governante pode exercer forte influência (MENDONÇA, 2001), além de a escola, através de negociações clientelísticas, poder se tornar espaço de barganha. Com a função de fiscalizar o cumprimento da lei, atenuando a prática de indicação política com fim eleitoreiro, o Ministério Público instaura procedimentos extrajudiciais ou judiciais a fim de que os municípios configurem uma legislação que postule o direito à educação no bojo da gestão democrática, promovendo, ainda, a garantia do direito à educação e a defesa dos interesses sociais. São expedidas recomendações, celebrados termos de ajustamento de conduta ou distribuídas ações civis públicas para regularização. Nessa perspectiva, o Ministério Público é um órgão de provocação jurídica, possuindo a finalidade de defender o regime democrático, sendo um elo entre sociedade e Estado. Com certa demasia, leis são ignoradas pelo Poder Executivo e o MP entra em cena para atuar no cenário público-político, voltado para atuação da responsabilidade social.
Neste artigo, portanto, guiamo-nos pela seguinte questão: o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro impulsionou o bordado das normativas legais em torno da gestão democrática em Duque de Caxias, tendo em vista a escolha dos diretores escolares municipais? Não estamos descartando aqui a existência de outros fatores que tenham contribuído para regulamentação do princípio. As disputas entre legislativo e executivo são proeminentes, em particular, com as alterações de partido no poder executivo, assim, é provável que esses atores também tenham expressado seu interesse no bordado das legislações da cidade pesquisada. Contudo, tratando-se de uma pesquisa em curso com resultados ainda parciais, o viés desse trabalho está voltado para o MP e, nesse recorte, analisamos as ações instauradas e sua atuação como contexto de influência na regulamentação da gestão democrática municipal.
Tendo em vista os objetivos e o objeto de pesquisa, a abordagem utilizada foi a qualitativa, partindo de uma perspectiva analítica, na qual se buscou o aprofundamento das relações entre Ministério Público e a gestão democrática, priorizando o debate sobre o processo de seleção de diretores, com a intenção de compreender a política sob um viés interpretativo. Assim delineada, a investigação empírica concentrou-se em um estudo de caso, em torno “de um fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre fenômeno e o contexto não estão claramente definidos” (YIN, 2001, p. 32). Yin dialoga com Ball no sentido de afirmar que tal método está relacionado com os contextos nos quais o fenômeno, ou melhor, a política, é encenada.
Por meio de análise documental, efetivada após envio de petição ao MPRJ para acesso a diligências sobre o cumprimento da Meta 19 do PNE na cidade em voga, tivemos contato com Inquérito Civil (IC) impetrado pelo MPRJ em 2016 e analisamos os autos iniciais do processo que incutiram diligências extrajudiciais e judiciais. A apreciação de fontes documentais estendeu-se às legislações caxienses articuladas com o processo seletivo de diretores escolares.
A gestão democrática e o Ministério Público
A gestão democrática assinala o ensino público conforme a Constituição Federal (CF) de 1988. Até então, a educação pública brasileira, pautada em uma cultura política autoritária cunhada por “espasmos de democracia” (MENDONÇA, 2001, p. 84), criada para se adequar aos desejos da elite, segregava as classes, perante a ausência de normas legislativas que formalizassem a equidade de acesso ao ensino público formal. A promulgação da Carta Magna, estabelecida após intensa participação da sociedade, pretendeu redemocratizar o Estado, determinando o acesso à educação como direito público subjetivo do indivíduo e a um ensino de qualidade como direito, estabelecendo a gestão democrática como um dos princípios, por meio do art. 206 (BRASIL, 1988), sendo ofertada “na forma da lei” e construída em regime de colaboração. Essa abrangência normativa sobre definições e sentidos da gestão democrática foi atenuada com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN, (BRASIL, 1996) que esboça uma gestão orientada na participação, autonomia, transparência e pluralidade (ARAÚJO, 2000).
Como instâncias de democracia (LIMA, 2014), surgem os processos de seleção de diretores, os conselhos escolares, as associações de pais e mestres, os grêmios estudantis, os projetos políticos-pedagógicos: são os mecanismos de participação e organização educativa da escola. Assim, a gestão democrática da educação “trabalha com atores sociais e suas relações com o ambiente, como sujeitos da construção da história humana, gerando participação, corresponsabilidade e compromisso” (BORDIGNON; GRACINDO, 2000, p. 12). A LDBEN no seu Art. 3º, inciso VIII, ao apoiar o pressuposto de que “a Gestão Democrática do ensino público [ocorrerá] na forma desta lei e da legislação dos sistemas de ensino” (BRASIL, 1996), corrobora com essa autonomia ao descentralizar o que faria, teoricamente, com que os sujeitos interessados participassem do fazer coletivo.
Mais adiante, o Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005, promulgado em 2014, com 14 artigos e 20 metas, foi concebido com a estratégia de centralizar para descentralizar ao discorrer sobre a aprovação de instrumentos normativos específicos, pelas unidades federativas, capazes de promover a gestão democrática da educação pública nos seus sistemas de ensino em um período de dois anos, segundo determinação da meta 19 do PNE, ratificando a autonomia das unidades federadas na produção dos seus textos, deferindo sobre a escrita de leis específicas acerca da efetivação da gestão democrática. A estratégia 19.1 contida nesse plano também incentiva a regulamentação, por meio de financiamento federal aos municípios, subsidiando as condições financeiras pertinentes na formulação dos procedimentos, dotando as unidades de uma autonomia ainda que relativa, pois elas são obrigadas a aprovarem leis no período estipulado, submetidas a sanções financeiras perante o não exercício dos critérios.
A respeito disso, Dourado, em 2019, durante a 39ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criticou os limites do federalismo brasileiro, do marco legal, das políticas e da gestão da educação, salientando as discrepâncias no campo educacional e a revisão do pacto federativo, sob a regulamentação do regime de colaboração entre as entidades federadas e a coordenação federativa, ressaltando a necessidade de instituir um Sistema Nacional de Educação (SNE) junto aos demais sistemas de ensino, como base para a garantia ao direito à educação básica e sua democratização.
Por outro lado, sem o devido monitoramento das ações dos entes federativos, acreditamos que a construção do SNE pode ser uma expectativa, mas, talvez, não uma garantia para a efetivação ao direito à educação. Nesse panorama, a intervenção do Ministério Público poderia incutir ações nas entidades federativas, já que o órgão é incumbido da tutela coletiva do direito à educação, investiga e reprime violações de natureza cível praticadas no âmbito dos Sistemas Municipais e Estadual de Ensino em detrimento dos princípios constitucionais indicados no art. 206, da Constituição Federal de 1988. Caracterizado, no Brasil, como instituição autônoma e independente, ou seja, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não o subordinam, o Ministério Público possui maiores condições de fiscalizar e acompanhar mais efetivamente o cumprimento da lei. A Constituição Federal, em seu art. 127, caput, compete sua existência regida na defesa de ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, atuando pela defesa da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Cada um dos 26 Estados da Federação possui um Ministério Público que atua por meio de suas Promotorias de Justiça, em todos os seus municípios. No Estado do Rio de Janeiro, as chamadas Promotorias de Tutela Coletiva são responsáveis pela presidência dos inquéritos civis e pelo ajuizamento de ações civis públicas referentes às matérias de meio ambiente, consumidor, saúde, cidadania, educação e estão sediadas numa Comarca, denominada Núcleo, mas também possuem atribuição para outros municípios limítrofes (CAVALCANTI, 2011).
Imersas nas Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva da Cidadania, estão as Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação. Damasco (2008) aponta que o surgimento de uma Promotoria especializada em Educação partiu de um movimento nacional dos Ministérios Públicos Estaduais sugestionado na Carta de Recife em Defesa da Educação pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça do Brasil, em 18 de dezembro de 1998. Em 2000, por meio da Carta de Canela, o Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Justiça do Brasil unido com outras entidades manifestou compromisso pela continuidade das ações no âmbito do Ministério Público de cada um dos Estados da Federação para a permanente mobilização para a tomada de providências em defesa e promoção da educação infantil e do ensino fundamental da criança e do adolescente. Em 2006, o Conselho dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) assinaram um termo de cooperação entre si.
De acordo com relatos dos Promotores entrevistados por Damasco, a Promotoria de Justiça e Defesa da Educação, Proeduc, foi a primeira Promotoria especializada em Educação no Brasil dentro do Ministério Público brasileiro por meio do órgão no Distrito Federal. Segundo Castilho (2007 apud DAMASCO, 2008), ganhou destaque por publicizar as recomendações expedidas entre 2001 e 2007 no site institucional. Em outros estados, a garantia do direito à educação se colocou a cargo das Promotorias de Cidadania e/ou Direitos Humanos e Centros de Apoio Operacional da Cidadania e/ou de Direitos Humanos e Promotorias de Infância e Juventude e Centros de Apoio Operacional da Infância ou Juventudes ou títulos correlatos. O movimento “Pela Justiça na Educação” (KONZEN et al., 2000), uma campanha nacional, em 2000, voltada para a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Criança e do Adolescente da Vara da Juventude, fortificou o desejo de se trabalhar especificamente o direito à educação por meio de uma Promotoria especializada, ao levantar questões que poderiam ser objeto de estudo do MP no âmbito das Promotorias de Educação.
Segundo as entrevistas realizadas por Damasco (2008), essas mobilizações influenciaram o desenho da primeira Promotoria para a Educação (Proeduc) no Brasil, formalmente criada dentro do MP brasileiro, sendo uma experiência pioneira. O ato de criação da primeira Proeduc é de 31 de janeiro de 2000 e em caráter experimental. A concepção desses órgãos especializados na área de educação, visando ao corpus de nossa pesquisa, o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro, à luz da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação, localizada na cidade de Duque de Caxias, é relativamente nova.
Em 2013, a partir da Resolução GPGJ nº 1.845, de 02 de julho, a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação – núcleo Duque de Caxias foi configurada para atuar na tutela coletiva do direito à educação, junto aos Sistemas Municipal e Estadual de Ensino e na fiscalização dos programas suplementares a eles correlatos, nos Municípios de Duque de Caxias, Belford Roxo, Magé e São João de Meriti.
A eclosão dessa promotoria especializada sobre a temática educacional no município analisado deve ter promovido a aferição do MPRJ em determinadas categorias, como a regulamentação da gestão democrática, podendo, inclusive, contar com mais pessoal de apoio, já que a ideia de se estabelecer um organismo visa a um maior número de profissionais para suprir as novas demandas, promovendo agilidade nos procedimentos. Advertimos que essas afirmativas são, na verdade, suposições e que elas podem ser confirmadas ou não no avançar da pesquisa.
Para compreender o incentivo à gestão democrática do ensino público por meio da regulamentação do processo seletivo dos diretores escolares, é preciso considerar como a atuação do MPRJ se fundamenta em instrumentos instaurados pela PJTCE-DC. O nível de substancialidade democrática da legislação orquestrada no município pesquisado introjeta políticas mais ou menos erodidas (LIMA, 2018), corroborado pelos variados recursos administrativos e judiciais que o MP pode apresentar em uma solicitação. Tais procedimentos administrativos podem ser instaurados pelo MPRJ mediante o requerimento de um impetrante ou por iniciativa própria do órgão. Interpretamos essas demandas que chegam ao MPRJ, as chamadas notícias de fato (MPRJ, 2018), como políticas que se postam em cena e as quais o MP poderá reinterpretar e retraduzir (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016) na solidificação das políticas educacionais.
Em Duque de Caxias, observamos que a regulamentação da gestão democrática adveio após ingerências impetradas pelo MPRJ. De acordo com Amaral (2018), a instituição “é um ator importante nesse cenário e sua ação gera efeitos e resultados nos municípios” (p. 23) e “as Recomendações, a Ação Civil Pública e os Inquéritos são ações que podem gerar ações em âmbito municipal” (p. 13). Por intermédio desses instrumentos, o MPRJ expressa sua interpretação, preconizada pela meta 19 do PNE de 2014, a qual não basta assegurar a escolha da direção pela comunidade escolar, tendo em vista que “conferir democracia à gestão é colocá-la a serviço da coletividade” (MPRJ, 2014, p. 10) e, essa última, tem sua legitimidade apoiada através dos conselhos e associações escolares. Ao mesmo tempo, o órgão não deixa de expor a importância da normativa em torno da participação da comunidade na escolha dos diretores (Ibidem).
Destacam-se, ainda, os embates presentes na elaboração do texto que regulamenta a gestão democrática e o percurso de uma meta nacional que reverbera nos dispositivos legais do processo de seleção de dirigentes escolares nas unidades federadas. Entendemos que as políticas são produzidas dentro de um círculo de ressignificações de contextos e atuações, consequentemente, os ordenamentos legais são construídos em um cenário entremeado por contínuas rearticulações sobre as quais emergem disputas pela articulação do texto. Por isso, na configuração das regulamentações “a posição hierárquica do instrumento legal utilizado na institucionalização de diretrizes políticas na área educacional parece ser um fator indicador na menor ou maior perenidade dessas diretrizes” (MENDONÇA, 2001, p. 99).
Ou seja, a escala de democracia é inferida na dimensão temporal dos dispositivos legais. A oscilação entre os termos jurídico-normativos no artigo 9º, em que se determina “lei específica” e na estratégia 19.1, na qual se menciona “legislação específica” repercute “[...] nas possibilidades de revogação da norma ser[em] mais ou menos democrática e participativas, promovendo uma escala democrática no que diz respeito à participação dos destinatários da política na sua elaboração e aprovação” (AMARAL, 2019, p. 313).
A semântica do sintagma “legislação específica” abrange variados corpos jurídicos como resoluções, decretos, portarias, os quais são dissolvidos de maneira mais rápida quando comparados a uma lei.
Consideramos que o Ministério Público do Rio de Janeiro explicita a não satisfação com instrumentos jurídicos via decretos, portarias e resoluções pelo caráter temporário que possuem em torno do princípio democrático. A instituição defende a ideia de uma “legislação específica’, indicada na estratégia 19.1 do PNE de 2014, corporificada por meio de um projeto de lei (AMARAL, 2018), instrumento legal com menor grau de efemeridade e, nesse sentido, inferimos que sua atuação em Duque de Caxias cria expectativas para ampliação da gestão democrática nas legislações municipais. Sem o devido monitoramento das ações dos entes federados, práticas clientelistas e de pouca participação da comunidade escolar acabam fomentadas, logo o MPRJ, incumbido da tutela coletiva do direito à educação, parecer ser um indutor na regulamentação de políticas de gestão democrática e pode influenciar na escala democrática dos textos legislativos acerca do processo seletivo dos diretores, dependendo da natureza legal dos instrumentos instaurados pelo órgão.
À luz desse pressuposto, analisando os instrumentos impetrados pelo Ministério Público do Estado do Rio de janeiro, por meio das ações da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação de Duque de Caxias, observamos, até então, providências municipais desencadeadas após a atuação do MPRJ. Notamos também que quando os instrumentos exarados pelo órgão saem da esfera administrativa e passam ao cenário judicial, parecem influenciar estratégias políticas de uma “maior” escala democrática, tendo em vista que em Duque de Caxias uma lei foi regulamentada após a impetração de uma Ação Civil Pública. Destacamos que o MPRJ age como ator político a influenciar a solidificação da política educacional caxiense instigado pela formulação de uma política macro, o PNE de 2014. As políticas propostas referem-se às intenções não apenas do governo, mas também de outras arenas que as políticas emergem (MAINARDES, 2018). Dessa forma, o MP entra no cenário como um ator que interpreta uma política posta nacionalmente e instiga o ente federativo, Duque de Caxias, a encenar em legislação própria, a sua reinterpretação e tradução do documento macro de maneira que o processo de seleção de gestores seja um elemento a se aproximar de uma gestão democrática.
Seleção de diretores em Duque de Caxias: o Ministério Público como contexto de influência em prol da gestão democrática
O Plano Nacional de Educação de 2014 é uma referência nas experiências de os entes federativos “elaborar[em] seus correspondentes planos de educação, ou adequar os planos já aprovados em lei, em consonância com as diretrizes, metas e estratégias previstas neste PNE” (BRASIL, 2014). Isso não significa dizer que as regulamentações locais estarão alinhadas aos pressupostos estabelecidos nacionalmente, sinalizando as dificuldades e as inaptidões diante das alterações. Logo, sem o devido monitoramento das ações dos entes federados, práticas clientelistas e de pouca participação da comunidade escolar acabam fomentadas. A interferência política no ambiente escolar permite que o clientelismo político tenha na escola um campo fértil para seu crescimento (MENDONÇA, 2001). Por meio das indicações políticas, “[...] o gestor patrimonialista dificilmente tomará decisões com base na objetividade da organização e gestão da unidade educativa, pois está comprometido com as relações tecidas com os seus apoiadores e consequentes eleitores” (ESQUINSANI, 2013, p. 110).
A região Sudeste possui 7% dos municípios a realizarem eleições, tão-somente, para diretores(as) de escolas municipais. O Estado do Espírito Santo tem o maior percentual de municípios da região Sudeste: 15,4%, seguido do Rio de Janeiro, com 12%; Minas Gerais, com 8,6%; e São Paulo, com apenas 4%. O Sudeste possui 11% dos seus municípios que utilizam as eleições como uma das etapas do processo de seleção de diretores(as).
Logo, os mecanismos de provimento de diretor escolar apregoam as visões de gestão democrática adotadas pelo sistema de ensino (MENDONÇA, 2001). A matéria é complexa e possuímos uma Constituição que legitima a função de chefia como cargo comissionado, o que dificulta a tangibilidade da gestão democrática no sistema de ensino alusiva à gestão escolar. O modelo de eleição pela comunidade estaria em desacordo com a lei, já que o diretor é um cargo de confiança, conforme interpretação do art. 37 da CF de 1988, cujo inciso II considera “as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração” (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Em 12 de agosto de 2009, ainda, o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2997, ajuizada, em 2003, pelo Partido Social Cristão (PSC) contra dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro e outras normas diretivas a disporem sobre a seleção de gestores escolares. A mais alta Corte da Justiça Brasileira considerou o artigo 308 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro uma “ofensa aparente” à Constituição Federal, ratificando seu entendimento de que as eleições diretas para provimento de cargos comissionados nas diretorias de escolas públicas sejam inconstitucionais. O argumento apresentado pelo STF para declarar inconstitucional o processo eleitoral para direção de escolas se baseou justamente no artigo 37 da CF de 1988. O cenário reverbera como “as eleições dos diretores estão articuladas a uma luta que remonta aos anos 1980, mas não só a legislação nacional as referencia, como, ao contrário, há posicionamento legal contrário a elas” (SOUZA; PIRES, 2018, p. 77).
Talvez seja por essa abrangência constitucional, a induzir interesses de lideranças políticas, que documentos legislativos como a Lei de Diretrizes e Bases e os Planos Nacionais de Educação, o de 2014 e também o anterior a ele, o de 2001, deixem em aberto a questão da escolha dos diretores escolares, assegurando o princípio constitucional democrático, mas não abordando a forma do processo seletivo, afastando-se de problemáticas de constitucionalidade e influenciando os entes federados a fazerem o mesmo, diante de sua autonomia. Essa maior independência aos municípios, incluídos como entidade federativa a partir da CF de 1998, fez emergir desafios à gestão educacional municipal pública, em termos de relações a serem desenvolvidas pelos demais entes federados quanto nos vínculos a serem estabelecidos pela sociedade civil local, em especial ao que tange à participação social dos variados órgãos colegiados.
Reflexo do momento de redemocratização do Brasil, no final da década de 80, a Lei Orgânica do município de Duque de Caxias, em seu art. 92, inciso XI, do dia 05 de abril de 1990, dispõe sobre as “eleições diretas para direção de todas as instituições de ensino mantidas pelo Governo Municipal, de acordo com a lei complementar” (DUQUE DE CAXIAS, 1990). Apesar disso, a não definição prescritiva sobre a forma de escolha do diretor escolar parece ter acendido uma brecha aos interesses de lideranças políticas em Duque de Caxias e, nesse cenário, até 2015, os diretores caxienses eram nomeados por intermédio de indicações político-partidárias, contribuindo para perpetuação de práticas apadrinhamento.
Contudo, a partir do ano supracitado, o município em questão inicia o desenho da regulamentação da gestão democrática por meio do Decreto nº 6542 de 11 de maio de 2015, que dispõe sobre as eleições para diretores e vice-diretores das unidades escolares municipais. O Plano Municipal de Educação de Duque de Caxias, Lei nº 2713, de 30 de junho de 2015, corrobora com este mecanismo de provimento na sua meta 15.1, que versa sobre os Instrumentos e Mecanismos de construção democrática: “A eleição dos diretores de instituições educacionais deve ser direta [...]. É inconcebível pensar em Gestão Democrática sem eleições” (DUQUE DE CAXIAS, 2015b).
Mais adiante, em 3 de outubro de 2017, é aprovado, durante sessão plenária, na Câmara Municipal, o Projeto de Lei, nº 27/GP/2017, sancionado pelo Poder Executivo, em 01 de novembro de 2017, com a aplicação da Lei nº 2864, que regulamenta a gestão democrática da educação pública no município, sancionando a forma como os diretores chegam à função, mediante Consulta Pública para Escolha dos Diretores (DUQUE DE CAXIAS, 2017).
Lima (2014) discorre sobre as formas clássicas de escolha dos dirigentes escolares: eleição, concurso, nomeação e uma combinação entre várias formas de designação. Paro (2003) chama essas modalidades, respectivamente, de eleição, seleção por meio de concurso público, indicação e formas correlatas de aferição de competência técnica. Maia e Manfio (2011) identificam ainda formas mistas de escolha de diretores como a seleção seguida de eleição e seleção seguida de indicação. Drabach e Adrião (2017) apresentam que essas modalidades nomeadas mistas aparecem como opções no questionário do Saeb, orientado aos diretores escolares, a partir de 1997. Duque de Caxias opta pela forma mista, já que há a consulta pública à comunidade mediante eleição e análise de desempenho por meio de avaliação de um plano de gestão apresentado à uma comissão técnica avaliadora antes da consulta pública propriamente dita.
A concomitância da variabilidade de formas de escolha de diretores respalda-se na LDBEN, que delega aos sistemas de ensino a definição das modalidades, a partir do princípio de gestão democrática. No Brasil, há diferentes formas para selecionar diretores, umas com maior escala de democracia do que outras e o Plano Nacional de Educação de 2014, a fim de corroborar no aumento do grau democrático, estabelece, na meta 19, a participação da comunidade escolar na nomeação de diretores, por meio de consulta pública.
Destacamos que a consulta pública, mecanismo criado no PNE de 2014, é um mecanismo diverso da eleição, pois nesse, o voto da comunidade é válido para eleger o candidato mais votado para a função da direção, enquanto naquele, a condição de ser mais votado não legitima o provimento. Duque de Caxias rege o processo de escolha de diretores por meio da consulta pública e poderia modalizar a participação da comunidade, não garantindo a vontade dos eleitores no pleito, dando margem para o executivo desconsiderar a votação, quando fosse nomear o gestor escolar. Porém, observa-se uma reinterpretação e “apropriação elástica dos textos da lei nacional a partir de outras perspectivas na consolidação das suas legislações próprias” (AMARAL, 2018, p. 12), potencializando o sentido de participação nos contextos da política local, no tocante da Lei nº 2864/2017, art. 44, inciso IV, que determina a elegibilidade do candidato com maior números de votos da comunidade por intermédio do projeto de gestão apresentado por sua chapa – “o projeto [de gestão] apresentado que obtiver o maior número de votos pela Comunidade Escolar será considerado vencedor e os seus representantes eleitos para o cargo de Gestor Escolar.” (DUQUE DE CAXIAS, 2017) – através do voto direto da comunidade escolar, conforme o art. 48 da mesma lei: “A Consulta Pública para escolha do cargo de Diretor e Vice-Diretor dar-se-á por meio do voto direto, secreto e facultativo”.
Apesar de a consulta pública na cidade caxiense ocorrer por meio de eleição determinada através de uma lei, propiciando uma expectativa de maior substancialidade democrática, não significa dizer que a consolida. O município de Queimados, também na Baixada Fluminense, elenca os diretores por eleições diretas, no entanto, tutela o voto a partir dos 16 anos, limitando a participação daqueles abaixo da faixa etária (BITTENCOURT, 2019), diferente de Duque de Caxias, que não limita à idade, mas, estabelece critérios para o seu eleitor discente: “alunos regularmente matriculados na unidade escolar a partir do 5º ano de escolaridade, bem como todos os alunos da EJA” (DUQUE DE CAXIAS, 2017).
Ainda que dotada de fragilidades, defendemos a ideia de que a eleição seja a instância que propicie um grau maior de democracia, mesmo dependente dos desdobramentos relativos à participação popular, em torno do percurso normativo nos sistemas de ensino público. A forma de escolha de diretor é entremeada por reconfigurações e disputas, questão debatida desde o período de redemocratização nacional e, apesar das aversões ao modelo, ela se sucedeu como uma forma de subtrair a herança clientelista do país, de forma a aumentar a participação social nos espaços de decisão. Para Lima (2014), a eleição dos diretores e membros dos colegiados é significativa ao se opor ao autoritarismo anterior à Constituição de 1988, favorecendo a participação da comunidade de alguma forma no processo. Paro (1992) expõe a necessidade da participação da comunidade escolar, sem deixar de verificar, porém, as potencialidades e obstáculos emergentes que implicam a realidade participativa. A eleição pode não garantir a certeza, mas fortalece a democratização na escola “associada [à] competência [d]o compromisso com a proposta pedagógica emanada dos conselhos escolares” (BRASIL, 2001, p. 77) sendo um mecanismo que materializaria ações educacionais mais participativas.
Mesmo que haja múltiplos fatores de maior ou menor intensidade democrática envolvidos na eleição e que ela por si não seja autônoma, a eleição é significativa como uma prática na educação para e pelo princípio democrático (LIMA, 2014). No entanto, a tessitura da gestão democrática, com foco no processo de seleção de diretores em Duque de Caxias, não é uma trajetória simplória e o cenário de uma agenda nacional, como os PNEs, não basta. São necessários outros agentes e trabalhar com a abordagem do ciclo de políticas possibilita ampliar a ótica sobre embates, intenções e atores envolvidos no processo político (MAINARDES, 2018). Nesse quesito, parece o Ministério Público orquestra forte influência no aspecto de fazer com que o município em análise estabeleça legislações específicas sobre gestão democrática.
Sugere-se que, durante a encenação da política, o MPRJ tenha exercido papel de agente político nas ações municipais referentes ao processo de regulamentação da gestão democrática, tendo em vista a emissão de ferramentas processuais pela PJTCE-DC, durante o desdobramento legal da portaria de instauração do Inquérito Civil 01/2016, cujo objeto era acompanhar e fiscalizar o cumprimento da Meta 19 do PNE, monitorando a eleição para diretores e a participação da comunidade escolar no pleito. Seguiram-se, tais procedimentos: a Recomendação nº 10/2016 – entregue pessoalmente ao prefeito à época, Alexandre Cardoso, como destaca o MPRJ no instrumento; a Ação Civil Pública, ACP, (Ref. IC 01/2016) de 28 de março de 2017 e a Recomendação nº 16/2017 (Ref. IC 01/2016) de 29 de maio de 2017, já com Washington Reis como chefe do executivo municipal.
Em tais documentos, o MP ratifica a celebração do Plano Nacional de Educação de 2014 em frente aos preceitos constitucionais e o estabelecimento da gestão democrática da educação como uma das diretrizes para a educação nacional, resultado do que emana a Carta Magna. Ainda, discorre sobre a necessidade de o poder Executivo debater com toda a rede municipal da educação sobre o princípio, no intuito de se elaborar um anteprojeto de lei de fato democrático, tendo como referência os preceitos normativos do PNE.
Em linhas gerais, o MP ilumina as instâncias democráticas tais como o processo de seleção dos diretores, a participação da comunidade escolar, a colegialidade, as associações, os grêmios, os conselhos, os projetos políticos-pedagógicos. Finda essa cena, abre-se outra: a elaboração do projeto de lei a ser conduzido ao Poder Legislativo. O MP, conforme Amaral, defende que “a perspectiva de ‘legislação específica’ contida na estratégia 19.1 do PNE se materializa através de um projeto de lei” (2018, p. 15).
Ainda, nos textos exarados, reconhece-se certo progresso acerca da gestão democrática devido à formulação do Decreto nº 6542/2015, já mencionado aqui, ao estabelecer eleições diretas para os gestores escolares municipais. Todavia, a PJTCE-DC explicita a não satisfação com esse instrumento jurídico na ACP de 2017: “Aliás, mesmo no que diz respeito ao processo de escolha da direção da unidade, não há lei a respeito do tema. Foi expedido apenas decreto neste sentido, exercício precário do preceito legal” (MPRJ, 2017, p. 5) e na Recomendação nº 16/2017, considerando que o processo de consulta pública às comunidades escolares e as eleições para diretor foram disciplinados por meio de decreto, não havendo leis e atos normativos sobre gestão democrática, desligados de outras políticas de efetiva implementação da gestão democrática no município (MPRJ, 2017). Ou seja, elencar um decreto e não uma lei parece demonstrar o caráter temporário da legislação específica no sistema de ensino público,
[...] assim, instrumentos jurídicos de caráter unilateral como decretos, portarias, resoluções, editais, teriam mais chances de serem anulados, enquanto a lei, pela natureza de que se reveste, implicando negociações políticas com o parlamento, sofreria menor possibilidade de derrogação (MENDONÇA, 2001, p. 99).
Inferimos que as ações do Ministério Público geraram efeitos em torno das providências adotadas pelo município relacionadas à adequação das metas e estratégias do PNE/2014 e ao cumprimento das medidas expedidas pela PJTCE-DC, induzindo a gestão democrática por meio de normas com maior solidez, considerando que a formulação de uma lei é fomentada através de uma trajetória cujas audiências públicas insinuam o debate com a participação de todos os sujeitos interessados no processo. Os procedimentos extrajudiciais podem propiciar agilidade no trâmite da investigação, não sendo necessário acionar o poder judiciário, denotando o caráter conciliador do MP ao tentar promover diálogo entre as partes e providências no bojo da política encenada. O município de Duque de Caxias recebeu recomendações e inquéritos civis com o objetivo de apurar a configuração de sua própria gestão democrática, entretanto, percebemos, que por mais que um decreto tenha sido produzido no ínterim dessas solicitações, apenas com a instauração de uma ACP, a regulamentação da gestão democrática urge com uma escala maior de robustez por meio de lei. A iminência de se ter um processo judicial promovedor de perda de recursos financeiros, em especial do representante do Poder Executivo, parece ter levado o município metropolitano a configurar uma política educacional com menor grau de erosão.
Salienta-se que o estabelecimento do processo consultivo para a gestão escolar em forma de lei é um marco inaugural na Baixada Fluminense, ao ponderarmos Duque de Caxias como a primeira cidade dessa região metropolitana detentora de regulamentação própria com esse fim, mesmo após mudança político-partidária, posterior às eleições municipais para prefeito em 2016. Esse é um debate importante e novo: a lei de Duque de Caxias regulamenta a gestão democrática de forma ampliada, o que não ocorre com outras normativas orientadoras de vários aspectos ou somente a própria seleção de diretores e chamam isso de gestão democrática. Localizamos notícia da Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias, publicada em 05 de outubro de 2017 em seu site oficial, a qual discorre sobre o percurso da lei sobre gestão democrática com a representação dos destinatários da política:
Em conformidade com a Lei Federal, a SME criou uma comissão, formada por representantes da própria Secretaria, do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe), da sociedade civil e de outros órgãos do governo. O objetivo é promover ações e debates acerca da implantação da Gestão Democrática na rede pública de ensino. Todos, inclusive, estavam presentes durante a sessão plenária e vibraram com o resultado (SECRETARIA MUNICIPAL EDUCAÇÃO DE DUQUE DE CAXIAS, 2017).
Destaca-se, ainda, que o PNE é a agenda política nacional a fazer com que todos os municípios, obrigatoriamente, aprovassem leis alusivas à gestão democrática. Ademais, consideramos que o PNE é uma variável indutora das diligências instauradas pelo MPRJ a respeito da regulamentação da GD. Por sua vez, as Promotorias de Justiça também são conduzidas pelas orientações dadas pela instituição e podem estimular as legislações locais no âmbito da educação pública, sendo estas a concretude das políticas dimensionadas por condições multifatoriais e particulares ligadas ao nível meso da política de configuração do instrumento normativo e ao nível micro na medida em que os sujeitos interagem com as políticas em ação. A confluência desses contextos e suas disputas marcam a agenda das políticas postas, mediadas por hibridismos, recontextualizações e ressignificações dos textos e processos discursivos (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016). Duque de Caxias ter sido a primeira cidade da Baixada Fluminense a possuir regulamentação é um ineditismo ligado a um “um processo de elaboração [...], de contradições, de incoerências” (BARDIN, 2007, p. 38), que em um curto espaço de tempo, produz uma legislação “imperfeita”, visto a fragilidade de um decreto, e uma lei, quase dois anos depois, a preconizar a gestão democrática no munícipio, indicando o aspecto caminhante da democracia.
Nesse sentido, a produção de políticas é complexa porque dependem dos contextos de influência (BOWE; BALL; GOLD, 1992) e das contínuas relações que irão permear o processo político. Bastos (2002) salienta que as lideranças políticas não se negam de a democracia na escola estar presente, contudo, suas agendas, neoliberais, impugnam a prática, já que “as casas legislativas muitas vezes atuam, a partir de negociações clientelísticas, como braço do executivo, aprovando praticamente tudo o que por ele é encaminhado” (MENDONÇA, 2001, p. 99). Portanto, o diálogo, por diversas vezes, não surge naturalmente, sendo construído através de tensões e embates por atores sociais que tiveram seus direitos negados ou por órgãos que atuam como requerentes desse direito, caso do Ministério Público.
Considerações contínuas
Ao observar como os contextos de influência (BALL, 1994; BOWE; BALL; GOLD, 1992) podem auxiliar na configuração de políticas educacionais mais participativas de seus usuários, apresentamos a relevância da se edificar um panorama sobre o que vem ocorrendo nos sistemas municipais de educação acerca da meta 19 do PNE/2014 tangente à gestão democrática. Quando se pensa em participação, Lima (2014) indica que “o poder de decidir, participando democraticamente e com os outros, nos respectivos processos de tomada das decisões, representa o âmago da democracia” (p. 1072). Ainda que a eleição dos gestores escolares pela comunidade escolar talvez não seja sinônimo de uma instituição democrática, somos guiados pela ideia de que a eleição é uma dimensão básica (LIMA, 2014) no processo democrático e promove expectativa para tanto, podendo os sujeitos que fazem parte dela possuírem vontade de participar ou não. A eleição pode gerar um maior alcance de participação da comunidade escolar, sendo “instrumento mais congruente e eventualmente propiciador da participação” (LIMA, 1998, p. 102).
Ao se conjecturar a premissa de o Ministério Público do Rio de Janeiro influenciar os desdobramentos da gestão democrática acerca da contextura de políticas municipais de Duque de Caxias, depreendemos que a instituição, em suas intervenções, favorece a atuação dos destinatários da (e na) política e o crescimento da substancialidade democrática relativa à insurgência de instrumentos normativos municipais perenes, corroborados pelos recursos administrativos e judiciais que o MP apresenta em suas ações. Como resultado parcial da investigação em curso, parece-nos que as ações do Ministério Público provocam, em certa medida, a configuração de políticas educacionais em Duque de Caxias, sendo o órgão um personagem a contribuir para a encenação (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016) da gestão democrática no sistema educacional da cidade. Nessa perspectiva, compreendemos o Ministério Público do Rio de Janeiro como um ator político (ibidem) a catalisar políticas educacionais, suscitando providências municipais relacionadas a normativas de uma maior escala democrática e que pautem o processo de escolha de gestores de escola em torno da participação da comunidade escolar.
Consideramos o trabalho apresentado relevante na medida que possui importância social, cujas implicações são adicionadas às pesquisas da comunidade científica, de modo a colaborar na compreensão de como o MPRJ – órgão idealizado na CF/88 para defender o princípio democrático – amplifica a gestão democrática no âmbito da educação pública. Procuramos evidenciar, via Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação – núcleo Duque de Caxias, o acompanhamento do órgão a atenuar ações desdemocratizantes, que minimizam práticas patrimonialistas expandem a democracia, em especial, quando atrelado à participação dos destinatários da política e ao crescimento de substancialidade democrática relativa à insurgência de instrumentos normativos municipais menos erodidos.
Ressaltamos outros fatores a intensificarem o gradiente democrático, como a subjetividade da promotora à frente da PJTCE-DC, que constituiu o IC 01/2016, mesmo com ausência de denúncias; o Centro de Apoio Operacional – CAO Educação, a guiar as promotorias de justiça no que se refere à matéria da educação; a proatividade do Sindicato de Professores de Duque de Caxias. Essas variáveis ratificam a atuação do MPRJ a nível local, solidificando a escala democrática e as quais cabem profícuas discussões que, por ora, deixaremos em aberto.
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Notas
[1] A recontextualização (Ball; MAGUIRE; BRAUN, 2016) é assentada na ideia de que textos e discursos são apropriados, interpretados e reinterpretados de um contexto a outro.
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