A autoria e o romance da escuta em Quase de verdade, de Clarice Lispector

The authorship and aural novel in Quase de verdade by Clarice Lispector

La autoría y el romance de la escucha en Quase de verdade, de Clarice Lispector

 

Fabio Scorsolini-Comin

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

fabio.scorsolini@usp.br

 

Soraya Maria Romano Pacífico

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

smrpacifico@ffclrp.usp.br

 

Recebido em 01 de outubro de 2021

Aprovado em 01 de junho de 2022

Publicado em 06 de junho de 2023

 

 

RESUMO

Este estudo trabalha com a noção de autoria a partir da recepção auditiva, tal como proposto por Marília Librandi em seu conceito de romance da escuta. A partir desse posicionamento teórico, o objetivo é discutir a construção do romance de escuta no livro infantil Quase de verdade, publicado originalmente em 1978, após a morte de Clarice Lispector (1920-1977). O livro é narrado pelo cachorro Ulisses e a autora se posiciona como quem pode escutar e interpretar a linguagem canina para que a escrita ocorra. A obra pode ser considerada um romance da escuta pela duplicação da autoria (Ulisses-Clarice), por ser construída à medida que é lida e por se tratar de uma ficção aberta que convoca o leitor a participar dessa escrita por meio da escuta e do ato criativo. Em termos práticos, aventa-se que esse conceito pode contribuir para a discussão sobre a construção da autoria com jovens leitores, em diálogo com a literatura infantil.  

Palavras-chave: Autoria; Romance de escuta; Literatura infantil; Clarice Lispector.

 

ABSTRACT

This study works with the notion of authorship from the listening reception, as proposed by Marília Librandi in her concept of aural novel. From this theoretical position, the aim is to discuss the construction of the aural novel in the children’s book Quase de verdade, originally published in 1978, after the death of Clarice Lispector (1920-1977). The book is narrated by the dog Ulisses and the author positions herself as the one who can listen and interpret the canine language for the writing to take place. The work can be considered an aural novel because of the duplication of authorship (Ulisses-Clarice), because it is constructed as it is read, and because it is an open fiction that invites the reader to participate in this writing through listening and the creative act. In practical terms, this concept can contribute to the discussion about the construction of authorship with young readers, in dialogue with children’s literature. 

Keywords: Authorship; Aural novel; Children’s literature; Clarice Lispector.

 

RESUMEN

Este estudio trabaja con la noción de autoría a partir de la recepción de la escucha, propuesta por Marília Librandi en su concepto de romance de escucha. A partir de esta posición teórica, el objetivo es discutir la construcción del romance de escucha en el libro infantil Quase de verdade, publicado originalmente en 1978, después de la muerte de Clarice Lispector (1920-1977). El libro es narrado por el perro Ulises y la autora se posiciona como quien puede escuchar e interpretar el lenguaje canino para que la escritura tenga lugar. La obra puede considerarse un romance de escucha por la duplicidad de autoría (Ulises-Clarice), porque se construye a medida que se lee y porque es una ficción abierta que invita al lector a participar en esta escritura a través de la escucha y el acto creativo. En términos prácticos, se sugiere que este concepto puede contribuir a la discusión sobre la construcción de la autoría con jóvenes lectores, en diálogo con la literatura infantil. 

Palabras clave: Autoría; Romance de escucha; Literatura infantil; Clarice Lispector.

 

 

Introdução

            Clarice Lispector (1920-1977) é uma das mais célebres figuras da literatura brasileira. No ano de 2020, em que foi comemorado o seu primeiro centenário de nascimento, diversas foram as homenagens recebidas: encontros científicos on-line, exposições virtuais, reedições de obras, lançamento de podcasts e de espaços virtuais dedicados à autora e ao reaquecimento de muitas discussões que tocam em aspectos não apenas da sua escrita, mas também da sua vida. Em meio à pandemia da COVID-19 e a um forçado processo de isolamento social que comprometeu os planejados encontros presenciais ao longo de 2020, Clarice foi celebrada em diferentes espaços, formais ou não, selando definitivamente a sua relação com a internet e as redes sociais, também responsáveis pela revitalização de sua imagem e a sua apresentação a um público cada vez mais jovem. 

Clarice foi reconhecida pela crítica literária como uma grande autora desde a publicação de seu livro de estreia, Perto do coração selvagem, em 1943. Em relação ao público, esse movimento se deu mais na década de 1960, com a publicação de Laços de família. Contemporaneamente, no mundo digital, a circulação de textos supostamente atribuídos à autora é um movimento recorrente (OLIVEIRA, 2018). Esse processo nem sempre ocorre de modo rigoroso, com uma investigação mais pormenorizada sobre a origem de textos, frases e pensamentos associados à Clarice. Independentemente de serem textos escritos por Clarice ou não, opera-se um importante movimento da autora nas malhas do digital: a autora permanece atual, contemporânea, conquistando novos públicos, sendo até mesmo alçada a uma condição de “diva da mídia” (FIGUEIREDO; BARRETTO, 2015).

Esse processo que tem convocado novos leitores para Clarice pode ser explicado pela sua presença midiática, mas também por outros marcadores, como o interesse pela figura da autora e sua biografia, pela complexidade de muitos de seus escritos e mesmo pela diversidade de tudo o que escreveu: contos, crônicas, romances, textos jornalísticos, cartas e também livros infantis. É nesse sentido que Maria dos Prazeres Mendes (2020) trata do universo que circunda Clarice:

 

Ela propicia, assim, o desvelar, o desvendar, revela ao mesmo tempo que oculta essa apreensão do mundo, do seu mundo, de modo consciente, trabalhado no intuito de envolver seu leitor, seja ele qual for. Seu poder de sedução se faz através do manuseio primoroso da linguagem. É assim também, e mais precisamente, em suas obras para crianças, intencionalmente escritas, para que ali se alojasse seu futuro leitor: questionador, atento, face a face com a autora, dentro da obra, em completa interação (p. 15).

 

            Clarice é uma autora cuja trajetória de vida é frequentemente incluída nas interpretações de sua obra, exercendo grande fascínio em seus leitores. A vida de Clarice ainda hoje tem gerado disputas entre seus biógrafos, tais como Nádia Gotlib e Benjamin Moser. A obra de Moser (2017) é mais conhecida do público internacional por ter sido lançada originalmente em inglês. No entanto, pesa na comparação entre essas duas abordagens alguns elementos importantes, como o fato de Gotlib (2009) ter publicado a biografia de Clarice anteriormente a Moser, além do fato de divergirem em relação a algumas passagens da vida da autora. Pesquisadores da literatura brasileira têm se posicionado em alinhamento à perspectiva conduzida por Gotlib, recusando muitas das especulações trazidas por Moser (JERONIMO, 2020).

Se a biografia de Clarice representa um espaço de disputas, o mesmo ocorre quando nos propomos a compreender a construção da autoria em sua obra tomando por referência a sua vida. Estaria Clarice representando a si mesma ou reportando-se às suas experiências pessoais na composição das suas personagens? Ao escrever para crianças, por exemplo, Clarice deliberadamente se abre à narrativa de um universo íntimo e doméstico no qual ela, seus filhos e seus bichos se tornam personagens e cúmplices daquilo que só pode ser comunicado às crianças (SCORSOLINI-COMIN, 2023a). Clarice não se esquiva, na literatura infantil, de assumir o tom mais autobiográfico da narrativa, rememorando fatos, experiências vividas com os filhos e o seu intenso interesse pelos mais variados bichos.

Assim, aventa-se que é nessa escrita talvez mais espontânea voltada a um leitor que possivelmente menos crítico, formal e hermético do ponto de vista da linguagem que Clarice possa abertamente se posicionar também como personagem de seus textos, podendo se apresentar e se narrar sem reservas (SCORSOLINI-COMIN, 2021). É por essa razão que estudar a construção da autoria em Clarice a partir de sua ancoragem nos textos escritos para crianças parece ser ainda mais complexo.

Gotlib (2009) destaca que Clarice começou a escrever para crianças a partir de uma demanda doméstica, de uma encomenda de seu filho mais novo, Paulo, que a via escrevendo diariamente, mas não produzindo nada que ele pudesse, de fato, ler. Clarice parece responder a essa demanda não se preocupando em demasia com os efeitos dessas produções, nem mesmo com a sua aceitação no mercado editorial, algo diferente do que observamos em relação aos livros voltados ao público adulto. Desse modo, os marcadores dessa escrita para crianças parecem diferir de seu processo autoral tradicional.

Embora haja diferentes perspectivas teóricas sobre o estudo da autoria, neste estudo não buscamos uma explicação da “origem” desse dizer, se sustentada ou não na biografia de quem escreve, mas dialogar sobre esse lugar do autor, muitas vezes recusando uma descrição de si e outras vezes assumindo essa escrita essencialmente sustentada em sua subjetividade, em suas percepções e até em sua história de vida (SCORSOLINI-COMIN, 2019). Assim, este estudo considera a autoria como um movimento, não a posicionando como algo a ser desvendado e explicado – em uma perspectiva quase positivista de ciência -, mas justamente compreendido, tensionado e problematizado. Para contribuir com esse processo partiremos, neste estudo, da noção do romance da escuta proposta por Marília Librandi (2020).

A partir desse panorama, o objetivo deste estudo é discutir a construção do romance de escuta no livro infantil Quase de verdade, publicado originalmente em 1978, após a morte de Clarice Lispector. Nesse sentido, como proposto por Librandi (2020), a ficção de Clarice Lispector assume, nesta investigação, uma dupla posição metodológica: como um estudo de caso em si e como uma fonte de teoria. Nessa perspectiva, a escritora da ficção, Clarice Lispector, posiciona-se como teórica literária por permitir uma reflexão que ultrapassa a consideração da obra em análise, no caso, o livro Quase de verdade. A partir das reflexões operadas pela leitura dessa obra, abre-se a possibilidade de construções e recriações teóricas que tratem do fenômeno mais amplo que é a autoria ou, ainda, o da escuta no processo de autoria.

No percurso metodológico exploraremos, inicialmente, a conceituação do romance de escuta. Posteriormente, empregaremos esse conceito para problematizar a construção da autoria em Quase de verdade, promovendo importantes ressonâncias que serão posteriormente endereçadas no contexto da literatura infantil e da discussão da autoria na escola.

 

O romance da escuta

Frequentemente, a noção de autoria, em suas diversas tradições epistemológicas, é discutida a partir de uma posição ativa por parte daquele/a que escreve. Escrever, desse modo, é uma atividade de potência do/a escritor/a, alçado/a a uma posição de quem pode dizer e de quem diz segundo seu desejo ou vontade. Marília Librandi (2020) postula uma nova compreensão para esse sentido, ampliando a potencialidade que a escuta pode ter no ato criativo daquele/a que escreve. A autoria, nessa perspectiva, é analisada em sua recepção auditiva, em uma posição de quem recebe, capta, captura.

Obviamente, a escuta não é uma posição meramente passiva, mas nos permite uma compreensão que se contrapõe, em grande parte, aos sentidos tradicionalmente evocados quando se fala na escrita, na autoria: o autor – e o narrador, assim, aparecem mais ligados ao sentido da visão, por exemplo, quando se posicionam como observadores da realidade e dos costumes, podendo narrar aquilo que veem, que percebem. Mas o autor também pode ser descrito a partir da escuta – nessa acepção, ele escreve não apenas o que ouve e como ouve, mas a partir das ressonâncias que essa escuta pode promover e, assim, a partir das afetações inerentes ao ato da escuta.

 

O ouvido é o que aproxima os seres humanos dos animais, porque é o que nos tira da linguagem humana articulada; o ouvido é um órgão de experimentação acústica, o órgão mais próximo de uma antena projetada para captar sinais. É onde somos mais outros, na medida em que deixamos de enunciar para receber o que nos vem de fora, em ecos e reverberações, e de dentro, como em pulsações (...). (LIBRANDI, 2020, p. 208).

 

Para Librandi (2020), a recepção auditiva seria algo ativo e fértil, permitindo a ressignificação da autoria. Como proposto por Nancy (2014), trata-se de construir, no estudo da autoria, a possibilidade de substituição de uma fenomenologia centrada no visual para uma ontologia centrada na escuta.

A escuta na escrita é abordada por Librandi (2020) a partir de três vértices ou características básicas: a escrita de ouvido – ou o escrever de ouvido, o romance da escuta e a ecopoética. Em relação ao primeiro vértice, Librandi destaca que escrever de ouvido é algo que tem sido negligenciado quando tratamos da autoria. Como órgão receptor, o ouvido é alçado a uma condição de mudez, de ausência de fala. Sem voz, não poderia estar associado diretamente à escrita. A autora, então, nos lança o seguinte questionamento: “Como devemos entender a autoria quando escritores se apresentam como objetos de recepção e não como sujeitos de produção?” (LIBRANDI, 2020, p. 32). Para Librandi, a autoria pode ser compreendida a partir de uma “prática auditiva que transcende a dicotomia entre a fala e a escrita” (p. 32). 

Librandi (2020) também recupera as metáforas da aprendizagem de um novo idioma “de ouvido” ou, ainda, do uso de um determinado instrumento musical. Aprender um idioma ou aprender a tocar um instrumento “de ouvido” também seriam processos importantes na compreensão de uma autoria que se tece nas ressonâncias do que se ouve. Escrever de ouvido, desse modo, teria como características a improvisação e a intuição, sem haver uma consciência específica e alinhada a um determinado objetivo. Assim, não necessariamente se procura ouvir, mas simplesmente se ouve ou se permite ouvir no processo de escrever.

O segundo vértice diz respeito ao romance da escuta, que se trata do romance criado como espaço de escuta. Para ser considerado um romance da escuta é preciso satisfazer os seguintes critérios: haver a duplicação ou multiplicação da autoria, apresentar-se como uma obra em construção à medida em que é lida e, por último, promover uma conversa com o leitor. Librandi (2020) considera que o romance da escuta é uma característica fortemente marcada na literatura brasileira, aventando essa recorrência justamente pelo fato de criar uma identificação com quem lê e o público brasileiro estar acostumado a “aprender de ouvido”. Além de Clarice Lispector, a pesquisadora menciona a emergência dessas características em Guimarães Rosa, Machado de Assis e Mario de Andrade, por exemplo.

A dupla autoria é exemplificada por Librandi (2020) no romance A hora da estrela, em que a narração é de Clarice (a autora real) e também de Rodrigo SM, chamado de “autor suposto”. Rodrigo SM não é só narrador, é autor. No livro, o autor real (Clarice) escuta, é receptivo ao autor suposto (Rodrigo SM). Também nesse livro observamos o diálogo constante entre autor e leitor, bem como a consideração de uma ficção que vai se desenhando à medida que vai sendo escrita. Não se trata de uma ficção que é relatada após ocorrer – ela acontece e é narrada ao mesmo tempo: “(...) parecem estar sendo escritas no momento exato em que são lidas, como se estivessem sendo criadas no aqui e agora, improvisadas, sem o estabelecimento prévio de controle por parte de seus autores” (LIBRANDI, 2020, p. 113).

É importante marcar que Librandi (2020, p. 90) define o romance de escuta como um espaço que permite a polifonia, recuperando as acepções bakhtinianas acerca da linguagem:

 

Se múltiplos discursos contraditórios são postos em diálogo no tecido do romance como um espaço democrático de vozes, temos, no caso das “escritas de ouvido”, romances criados como espaços de escuta. É esse espaço que sugiro que chamemos de “romances da escuta”.

 

            Para compreendermos essas múltiplas e contraditórias vozes que compõem o romance, é mister adentrar esse espaço que permite a audição dessas vozes e, mais, a convivência das mesmas, compondo o romance da escuta.

Em relação ao terceiro vértice, a ecopoética, trata-se de um princípio relacionado a uma autoria receptiva, sendo considerada uma captura que permite que um texto seja escrito a partir daquilo que recebe, sendo que quem fala é o ouvinte. A ecopoética permite ao autor sair e se despojar do lugar de poder atribuído à autoria, pois a fala é do outro, é construída pela ressonância. Em termos literários, Librandi (2020) nos alerta que a ecopoética pressupõe uma ruptura em relação à noção tradicional de autoria, isso porque se a escrita se faz pela ressonância, pela reverberação, ela não vem antes, mas justamente depois, no eco. Quem enuncia é quem vem antes e, nesse sentido, pode trazer a originalidade.

Mas a escrita a partir dessa ressonância pressupõe uma capacidade de escuta e de abertura ao enunciado original, permitindo que o eco não seja escrito como uma cópia do enunciado necessariamente, mas a partir de um movimento que leva aquele que escuta a uma condição ativa. Assim, porque se ouve é que se pode também escrever. A partir da descrição desses vértices, passaremos, a seguir, à exploração mais detida do conceito de romance da escuta na ficção Quase de verdade.

 

Quase de verdade como um romance da escuta

Quase de verdade é o quarto livro infantil de Clarice. Embora os animais estejam presentes em todos os seus livros para a infância, como protagonistas e como referências aos próprios animais que Clarice teve ao longo de sua vida, é apenas em Quase de verdade que um animal assume a posição de narrador. E, subsidiado a esse narrador que não pode escrever, mas apenas latir, Clarice ocupa a posição de quem pode escrever a partir de uma compreensão – e da escuta – e visceral dos latidos de Ulisses.

Quase de verdade é narrado por Ulisses, o cachorro de Clarice que a acompanhou nos últimos anos de vida. Segundo Moser (2017, p. 405), “a excentricidade desse vira-lata lhe deu uma reputação tão extraordinária quanto a de sua dona”. Clarice assim o define em uma de suas entrevistas recuperadas por Benjamin Moser (2017, p. 406):

 

Comprei Ulisses quando meus filhos cresceram e seguiram seus caminhos. Eu precisava amar uma criatura viva que me fizesse companhia. Ulisses é um mestiço, o que lhe garante uma vida mais longa e uma inteligência maior. É um cachorro muito especial. Fuma cigarros, toma uísque e Coca-cola. É um pouco neurótico.

 

Ulisses é também o nome do personagem principal de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de 1969, publicado pela editora Sabiá. Segundo Gotlib (2009), a metáfora entre o Ulisses, ou Odisseu, presente em Ilíada e em Odisseia, de Homero, é aqui alterada: enquanto, em Homero, Ulisses ocupa a posição do viajante, do desbravador, do herói, no livro de Clarice ele é um personagem que aguarda, que espera a depuração da amada Lóri para que possam se amar.

Mas a escolha do nome Ulisses não seria uma referência a Homero, segundo Olga Borelli, grande amiga de Clarice: era uma homenagem a um estudante de pintura que se apaixonara por ela, louro e de olhos claros, quando ela morava na Suíça. A paixão desse estudante teria sido arrebatadora, a ponto de ele ter que se mudar da cidade, haja vista que Clarice era casada (GOTLIB, 2009). O significante Ulisses também se repete, com y, no nome do psicanalista que acompanhou Clarice por boa parte de sua vida, primeiramente como psicólogo e, posteriormente, como uma espécie de conselheiro (MOSER, 2017; SCORSOLINI-COMIN, 2023a).

Voltando à figura do cachorro, ainda conforme recuperado por Gotlib (2009) a partir de uma entrevista de Olga Borelli sobre Clarice, a escritora, por vezes, também se referia a ele como “Efeméride”. Outros nomes dados a Ulisses aparecem na biografia escrita por Moser (2017): “Vicissitude”, “Pitulcha” e “Pornósio”. Esse prazer em nomear e renomear coisas, bichos e até mesmo pessoas parece ser um traço característico da autora.

Entre todos os bichos narrados por Clarice em seus escritos e em suas histórias de vida, Ulisses conserva um protagonismo. Não que ele seja exclusivamente um protagonista, o que já ocorrera com a galinha Laura em A vida íntima de Laura, por exemplo, mas é a ele que Clarice concede o poder de narrar, em um movimento de cumplicidade, de entrega. Clarice se posiciona como uma intérprete capaz de tornar acessível a todos uma linguagem “latida”:

 

Eu fico latindo para Clarice e ela – que entende o significado dos meus latidos – escreve o que eu lhe conto. Por exemplo, eu fiz uma viagem para o quintal de outra casa e contei a Clarice uma história bem latida: daqui a pouco você vai saber dela: é o resultado de uma observação minha sobre essa casa. (LISPECTOR, 2010, p. 51).

 

Retomando a concepção de autoria trabalhada por Librandi (2020), em Quase de verdade, podemos observar Clarice Lispector – a autora – apresentando-se como objeto de recepção e não como sujeito de produção. Assim, a posição de intérprete ocupada por Clarice é sustentada no sentido que costura o presente artigo: a escuta. Clarice se coloca como quem pode, quem consegue e quem se interessa pelo que o cachorro tem a dizer – ou a latir. Escutar Ulisses ultrapassa a operação física de capturar os sons dos seus latidos. Aqui o sentido da escuta se aproxima de um pacto existente entre narrador e escritora: Clarice consegue escrever o que Ulisses late porque ela o entende.

No entanto, é importante considerar que essa compreensão não equivale a um registro real e fiel ao que possivelmente Ulisses “gostaria” de dizer ao leitor. Retomemos, por exemplo, o título do livro: Quase de verdade. Embora Clarice possa ouvir e “entender” os latidos, ela é uma intérprete e, como tal, também partilha a autoria do que se escreve. O “quase de verdade”, desse modo, não se refere exclusivamente ao conteúdo que é narrado nessa ficção, mas também metaforiza o próprio processo de escrever a partir da ressonância, da reverberação, do eco produzido pelo latido do Ulisses.

Tanto um como o outro produzem ecos e podem despertar respostas, sentimentos e afetações. Mas, quando nos remetemos a Um sopro de vida (Pulsações), Clarice afirma: “Oh doce martírio de não saber falar e sim apenas latir” (LISPECTOR, 1999, p. 59). Nesta passagem, podemos notar que a fala se sobrepõe ao latido, possivelmente pelo latido ser menos compreensível. Mas tanto o latido quanto a fala precisam ser compreendidos. Ainda assim, o latido carece de uma compreensão específica que só pode ser oferecida por Clarice. É por esta razão que não é qualquer pessoa que é alçada à condição de escutadora e intérprete de Ulisses, capaz de tornar inteligíveis os seus latidos e os seus ecos, permitindo que ele se posicione como narrador.

A escuta não se posiciona como uma reprodução fidedigna da realidade ou do que se quer narrar. Por essa razão, não deve ser auditada pelo leitor – assim como as relações entre arte e realidade segundo as proposições bakhtinianas:

 

(...) a arte não se opõe à realidade, ao mundo da vida, que se encontra plenamente nela como seu elemento indispensável. No entanto, a arte não se confunde com a vida: ao dar nova forma ao conteúdo, o autor-criador penetra com empatia no objeto, sempre já saturado axiologicamente, para, sem se fundir com ele, de fora – trata-se, aqui, da “exterioridade”, noção sempre presente na obra bakhtiniana –, (re)conformá-lo axiologicamente no mundo da cultura. Nesse sentido, não só não se opõem linguagem artística e linguagem cotidiana – o que seria considerar apenas o material –, mas também não se opõem os enunciados concretos do cotidiano e as obras literárias. (MARCHEZAN, 2015, p. 190).

 

Aqui reforçamos o papel da escuta como ressonância de um mundo, como eco de uma realidade e não como realidade em si, motivo pelo qual não pode ser alvo de um escrutínio com o objetivo de alçá-la à condição de verdade. Retomemos o título do livro, em seu jogo do “quase”.

E é por isso que aqui emerge a duplicação da autoria, uma autoria construída nas bordas entre Clarice (a autora) e Ulisses (o narrador), nas bordas daquilo que se escuta a partir do latido e do que se constrói a partir da reverberação dos significados do que se late, nas bordas entre o real e a ficção: “Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade?” (LISPECTOR, 2010, p. 52). Uma escuta nas bordas de um “quase” onipresente.

Esses sujeitos e essas posições, apesar de serem comunicadas ao leitor desde o início, não se mostram lineares e com os limites determinados: eles se fundem, se mesclam, se tornam complexos, tal como no processo de escutar diferentes vozes ao mesmo tempo, gerando ruídos. Os latidos de Ulisses são apresentados como imprecisos: Clarice não se coloca na função de transcrever o latido, mas de entender os significados dos latidos. Essa recepção auditiva de Clarice, desse modo, torna-se um agente ativo na construção da escrita, pois é a ela que é dado o poder de compreender e de tornar inteligíveis os latidos. Assim, a sua escuta não é ascética, mas justamente porosa à subjetividade de Clarice, que não apenas é escritora como também a dona de Ulisses, posicionada ora como companheira, ora como mãe (lembrando que Clarice adquiriu o cachorro por se sentir sozinha depois que os filhos saíram de casa).

A duplicação da autoria ocupa uma função importante na construção do romance da escrita: ela protege o autor real (LIBRANDI, 2020). Assim, pode-se dizer que Clarice se protege ao delegar a escrita (a narração) a Ulisses, ou melhor, ao ser cúmplice do fato de os latidos conduzirem a narrativa – obviamente a partir do que e de como ela os escuta. Se ela “apenas” escreve o que Ulisses late, coloca-se, a princípio, em uma posição de assimetria com o cachorro: ele narra e conduz, ela registra em formato de texto porque é capaz de ouvir e de entender os significados dos latidos para um público leitor. Mas, em um segundo momento, essa posição tem como objetivo também endereçar exclusivamente a Ulisses os questionamentos sobre a ficção que ele narra. As possíveis incoerências do texto e até mesmo da linguagem não poderiam mais ser apresentadas a Clarice, mas a Ulisses. Mas Ulisses é um duplo de Clarice e um duplo com Clarice, o que torna essa posição rica e complexa em termos analíticos. 

Esse processo de tradução – e de escuta – operado por Clarice em Quase de verdade é possível por uma espécie de entendimento mútuo existente entre autora e animal. Gotlib (2009, p. 556) recupera um trecho de uma entrevista de Clarice concedida a Olga Borelli a esse respeito: “incompreensível pela minha consciência e pela consciência dele: há um entendimento que é nosso mas que nos ultrapassa e que não captamos. Mas existe”. Aqui Clarice descreve uma cumplicidade que é acessível apenas ao par e que nem mesmo eles conseguem explicar: trata-se de algo no campo do incompreensível. Assim, a interação descrita como “incompreensível” também pode ser aproximada da relação que se estabelece entre o cachorro que narra e entre a escritora que traduz os latidos em Quase de verdade: não seria, pois, possível, compreender como se daria essa interação entre narrador e escritora.

Aqui o cão é narrado como sendo inconsciente e essa inconsciência era algo que atraía Clarice. Isso emerge na menção ao cachorro no livro Um sopro de vida: pulsações: “O meu cão me ensina a viver. Ele só fica ‘sendo’. ‘Ser’ é a sua atividade. E ser é a minha mais profunda intimidade” (LISPECTOR, 1999, p. 59). Assim, a não consciência de si permitiria ao cachorro, de fato, “ser” de um modo mais natural, mais básico, mais selvagem e menos depurado pela humanidade, pelo intelecto e também pela necessidade de controle.

Em contraposição, Ulisses se aproxima do humano: “Dizem assim: ‘Ulisses tem olhar de gente’” (LISPECTOR, 2010, p. 52). Aqui a identificação com o humano é priorizada a partir do sentido visual, por meio do olhar. Seu olhar seria humanizado. Mas a sua fala – o “latir palavras” – e a sua escuta não são aproximadas da condição de humanização. Apenas o sentido da visão parece ser semelhante ao humano. O seu faro é descrito como uma capacidade de adivinhar pelo cheiro, dotando Ulisses de certa consciência – embora o faro seja um sentido presente nos animais, para adivinhar é preciso ter uma intencionalidade, uma intencionalidade mais relacionada ao humano.

Ainda em Um sopro de vida, Clarice afirma: “O cão é um bicho misterioso porque ele quase que pensa, sem falar que sente tudo, menos a noção de futuro” (LISPECTOR, 1999, p. 60). Nessa acepção, a autora apresenta o cachorro como um ser próximo ao cognoscível (quase pensa), afetivo, passional (sente tudo) e menos ansioso em relação ao porvir e à própria existência, pois não possui a representação do futuro.

No entanto, embora essas aproximações entre humano e animal sejam lícitas não apenas na literatura infantil de Clarice, mas em boa parte desse tipo textual, a autora defende a necessidade do ser humano se animalizar – ao contrário de nossas tentativas contemporâneas de humanizarmos os animais domésticos. Clarice é emblemática ao defender o resgate de nossa natureza mais selvagem, animal (SCORSOLINI-COMIN, 2023a). Como afirma em Um sopro de vida: “E eu – só me resta latir para Deus”.

Não ter consciência de si também seria um recurso para que Ulisses pudesse narrar sem compromisso, de modo mais livre e mais poroso à criatividade, ao inesperado, à improvisação. Pensando no princípio da duplicação da autoria, aqui também Ulisses protegeria Clarice de poder se colocar como autora que também gostaria de criar a própria linguagem, o próprio idioma. Ainda em Um sopro de vida, Clarice trata da linguagem do cão Ulisses:

 

Eu sei falar uma língua que só o meu cachorro, o prezado Ulisses, meu caro senhor, entende. É assim: dacoleba, tutiban, ziticoba, letuban. Joju leba, leba jan? Tutiban leba, lebajan. Atotoquina, zefiram. Jetobabe? Jetoban. Isso quer dizer uma coisa que nem o imperador da China entenderia. (LISPECTOR, 1999, p. 60-61).

 

Ulisses é alçado à figura de um cúmplice das invenções e improvisações de Clarice. Ulisses também podia compreender esse idioma particular de Clarice que não aparecia em sua obra. Mas não se trata apenas de uma compreensão: trata-se de um pacto, de uma vinculação que se sela a partir de uma comunicação a qual o leitor não tem acesso: é uma língua que nem o imperador da China entenderia, apenas o “prezado Ulisses”. Assim, o pacto entre Ulisses e Clarice se dá fundamentalmente pela linguagem, uma linguagem que se escuta e que pode ser compreendida, tal como o cachorro convida o leitor em Quase de verdade, como veremos a seguir.

Em Quase de verdade, o leitor não se sente apartado desse pacto entre Clarice e Ulisses. Pelo contrário, é convidado a entrar na obra e, de certo modo, escrever nessa partilha:

 

Mas antes de começar, pergunto a você bem baixo para só você ouvir:

– Está ouvindo agora mesmo um passarinho cantando? Se não está, faz de conta que está. É um passarinho que parece de ouro, tem bico vermelho-vivo e está muito feliz da vida. Para ajudar você a inventar a sua pequena cantiga, vou lhe dizer como ele canta. Canta assim: pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim. Esse é um pássaro da alegria. Quando eu contar a minha história vou interrompê-la às vezes quando ouvir o passarinho. (LISPECTOR, 2010, p. 53).

 

Aqui podemos apreender diferentes movimentos relacionados ao romance da escuta. Primeiramente, o leitor é convidado também a escrever, à medida em que é convidado a escutar. E, na impossibilidade da escuta por parte desse leitor, Ulisses canta a canção que deve ser imaginada pelo leitor que, porventura, não ouça o tal pássaro. O convite para a escuta, em um primeiro momento, é acrescido do convite a uma imaginação da escuta, em segundo lugar.

Ao ler o que diz a canção também este leitor pode escutá-la de modos distintos: como letra, como canção, como poema ritmado, como um som semelhante ao produzido pelos pássaros. Assim, permite-se que essa escuta ocorra de acordo com cada leitor, tornando-se uma experiência porosa no sentido de incorporá-lo em sua subjetividade, sua maior ou menor captação de sentidos, sua escuta mais ou menos fina. Aventa-se que esse recurso possa ser algo inclusivo em um romance dedicado a crianças: todos poderão, de alguma forma, ouvir. Isso reforça a característica do romance da escuta como uma obra aberta e que convida o leitor a interagir com o enredo: “– Engole-se ou não se engole o caroço? Você, criança, pergunte isso à gente grande” (LISPECTOR, 2010, p. 65).

Outro elemento presente no trecho em tela refere-se ao pacto que o narrador busca estabelecer com o leitor: ele faz a pergunta bem baixo, como se somente narrador (e Clarice) e leitor pudessem ouvir. A pergunta emerge como um segredo. Apenas quem está envolvido naquela leitura, naquela escrita (ou naquela escuta) é que pode ou deve poder ouvir. Ao convidar o leitor para a escuta ou para a imaginação de uma escuta, Ulisses estabelece um pacto com quem lê (e com quem escuta a obra). Isso dá origem a outra característica do romance da escuta que é justamente o acompanhamento de uma escrita que acontece no momento em que se lê ou que se ouve o romance.

A ecopoética também aparece na obra como um princípio relacionado à autoria. A cada vez que o narrador diz “pirilim-pim-pim”, o leitor é convidado a ouvir o canto do pássaro da alegria, ou seja, esse leitor precisa escutar o eco, a ressonância dessa canção em si mesmo. Assim, Ulisses pede ao leitor que escute – ou, em sua indisponibilidade/impossibilidade –, que imagine essa escuta. Esse recurso não é empregado apenas em relação à canção que vai e volta como forma de manter a atenção do leitor, mas de reforçar a importância de algumas passagens fortemente marcadas pela escuta e que esta ocupa a primazia do que se pretende descrever, como na audição do barulho das aves comendo jabuticaba (“plique-ti, plique-ti, plique-ti”), ou quando pisamos nas jabuticabas que caíram no chão (“plóqui-ti-ti, plóqui-ti-ti”), formando onomatopeias. Esses barulhos também são adjetivados por Ulisses: “o barulho era gostoso, dava um arrepio bom” (LISPECTOR, 2010, p. 64).

Até o momento defendemos, no plano teórico, o argumento de que Quase de verdade é um romance da escuta, segundo a perspectiva de Librandi (2020). Mas essas reflexões compartilhadas nos permitem também cotejar um cenário de aplicação desses elementos quando trabalhamos com crianças a partir da literatura infantil. A seguir, discutiremos como esses aspectos podem ser explorados visando ao desenvolvimento da autoria com esse público a partir da escuta.

 

A literatura infantil e a escuta

O modo como a autoria vem sendo desenvolvida na educação básica tem sido o foco do trabalho de muitos pesquisadores da linguagem, em diferentes tradições epistemológicas (BALDOINO; TABAK, 2022; MARTINS, PACÍFICO, 2020). Esses estudos compartilham o interesse em refletir sobre a autoria em uma perspectiva discursiva, não de aquisição, o que se alinha à noção de romance de escuta em Librandi (2020).

A referência direta ao leitor, convidando-o para dialogar com o enredo e os personagens, é um recurso bastante presente não apenas na literatura infantil (LIBRANDI, 2020). Em Quase de verdade, esse convite é feito de modo ritmado e em diversas passagens, também apresentando-se como uma estratégia para assegurar que o leitor esteja totalmente envolvido com a narrativa, podendo, de fato, participar da mesma, assumindo a posição de autor junto a Ulisses-Clarice e possibilitando a polifonia. Essa forma de controlar a dispersão do leitor é mobilizada pela escuta, permitindo a proposição de que esse sentido se apresente como uma condição básica para a emergência da autoria nesse tipo de texto.

Podemos dizer que há a convocação do leitor-criança para o texto – ou a vigilância perene do narrador para que o seu público esteja junto com ele no enredo – o que se dá por meio da escuta. É como se o narrador perguntasse, em diversas passagens: vocês estão comigo, vocês estão me ouvindo? E, de alguma forma, Ulisses-Clarice se põem a ouvir esse leitor. É por essa razão que Ulisses, antevendo qualquer dificuldade desse leitor ouvir o canto do pássaro, permite que a imaginação seja um recurso capaz de manter o leitor vivo em sua leitura, atento aos sentidos presentes em sua história.

O “escrever de ouvido” no romance da escuta inclui a ideia de improvisação. Assim, a autoria não se constitui enquanto algo necessariamente estruturado e planejado pelo autor, mas pode emergir ao longo da escrita ou das escutas que seus leitores vão endereçando a cada vez que o texto é visitado. Podemos observar essa improvisação em Quase de verdade quando o narrador apresenta questões ao leitor que poderão ser respondidas de maneiras distintas por seus interlocutores e a depender do ritmo com que essa escuta se dá. Assim, múltiplas vozes podem se colocar à disposição da narrativa.

Uma experiência exitosa com jovens leitores é apresentada por Baldoino e Tabak (2022) a partir do livro infantil O mistério do coelho pensante, também de Clarice Lispector, que emprega o mesmo recurso de inclusão/convite do leitor na narrativa, promovendo uma interação que tem como objetivo não apenas tornar mais lúdica a experiência da leitura, mas permitir que essa criança leitora em escuta se posicione como autora. A partir de uma escuta prolongada da recepção estabelecida pelas crianças, as autoras propõem um projeto de leitura que ressignifica o ensino e a recepção do texto literário com leitores em formação.

Em outro projeto conduzido junto a alunos do ensino fundamental, Scorsolini-Comin (2023b) propõe uma escuta dos leitores ao longo da leitura partilhada do livro Quase de verdade. A cada pergunta lançada por Ulisses, os estudantes podiam responder, se posicionar, questionar, gerando interrupções no fluxo do texto e até mesmo lançando pistas para outras leituras possíveis e para a continuidade da leitura. Isso promoveria, como efeito, a originalidade de cada leitura. Essa forma de leitura torna-se possível, no livro, sobretudo, pela improvisação com que foi originalmente escrito, com aberturas a diferentes performances:

 

Assim, a improvisação é uma questão de movimento, rápido ou lento, mas sempre em sintonia com o acontecimento que desperta a reação concomitante e simultânea, de modo que aquilo que é percebido é também aquilo que é pensado, dito e lido. Escrever de ouvido, para Clarice, é um processo que avança por tentativa e erro, assim como tocar música de ouvido. Trata-se de uma imersão viva, mais inconsciente do que consciente, e de uma progressão sem método, na qual se tateia cegamente. (LIBRANDI, 2020, p. 102-103). 

 

A imersão viva, de caráter inconsciente, parece estar alinhada à característica do cão Ulisses como ser apartado de consciência. De algum modo, o narrador, assumindo a sua não-consciência, também seria um elemento que contribuiria para essa escrita mais inconsciente, mais experimental e exploratória, a escrita de ouvido. Escrever de ouvido, à escuta de Ulisses, parece ser uma forma ainda bastante experimental de escrita, processo este realizado por Clarice apenas em Quase de verdade.

Isso nos faz retomar a consideração tecida anteriormente em relação à duplicação da autoria. É protegida por Ulisses que Clarice pode, enfim, experimentar uma performance de escrita ainda nova para ela – não porque estivesse escrevendo para crianças, mas porque também se permitisse essa experimentação de autoria protegida não apenas por um alter-ego ou por um narrador, mas também pelo fiel escudeiro que a acompanhou nos últimos anos de sua vida.

Voltando à questão da escrita de ouvido, Librandi (2015, p. 138) afirma que

 

A “escrita de ouvido” demanda, aliás, leitores aptos a ‘ouvir’ um texto escrito, de modo a captar precisamente aquilo que se passa entre as linhas, como a forma e o desenho de uma entonação, de um tom ou de um timbre. Nessa expressão, ‘escrevo de ouvido’, que se assemelha pois a uma autodescoberta, Clarice Lispector abre as portas para um mundo ainda pouco explorado no universo da escrita literária: o estudo das propriedades acústicas da escrita, presentes tanto no momento da criação ficcional, quando o escritor ‘ouve’ vozes e as inscreve, como na leitura silenciosa, quando um mundo imaginário é despertado pela vibração sonora e imagética das palavras.

 

Aqui o foco não reside na capacidade de imaginar e construir um mundo a partir do que se lê, mas de explorar a sonoridade e as ressonâncias advindas de uma leitura compartilhada, em “voz alta”, por exemplo, junto ao público infantil. Essa é uma prática bastante recorrente na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental. A contação de histórias, por exemplo, apresenta-se como uma possibilidade concreta de explorar essa dimensão da recepção acústica na construção da autoria.

Por meio dessa escuta, a criança pode não apenas construir imagens a partir do que é narrado, mas dialogar com as diferentes percepções da turma diante de um mesmo estímulo, problematizando que a escuta não é sempre a mesma e nem única. Isso ocorre de modo guiado também por Ulisses-Clarice ao lançar dúvidas, questionamentos e suspender certezas durante sua narração. Ao apresentar a expressão “eis a questão” ao questionar o leitor sobre o fato de se engolir ou não o caroço da jabuticaba, não se trata apenas de um recurso para a multiplicar as vozes, mas, justamente, guiar o leitor na construção de sua ontologia da escuta, abrindo sua sensorialidade para a possibilidade de uma autoria que se teça nesses diálogos e nesses atravessamentos. A partir desse recurso, a escuta dispara a autoria a partir da composição de algo partilhado e que pode se colocar em movimento a cada nova leitura, a cada nova escuta.

É importante destacar que Quase de verdade é escrito com grande ênfase no ritmo, na repetição das palavras, nas ressonâncias, um livro que pode e deve ser lido pela escuta, deve ser escutado. Isso nos remete à estruturação do livro infantil, que, muitas vezes, é escutado pela criança em um primeiro momento, com forte reconhecimento da oralidade. Isso amplia a possibilidade de empregar essa perspectiva no letramento de jovens estudantes, também favorecendo que eles se tornem autores a partir do exercício não apenas da escrita, mas da escuta. Assim, a escuta pode ser mais valorizada no processo de construção da autoria junto a esse público.

Para além das contribuições práticas e didáticas de se pensar a escuta para a emergência da autoria junto a crianças, as reflexões aqui empreendidas podem ser úteis a um campo de estudos em desenvolvimento. Como sinalizado por Nancy (2014), ler e compreender o romance da escuta a partir da literatura infantil de Clarice Lispector, como empreendido no presente estudo, pode ser um direcionador importante e que contribua para o aperfeiçoamento epistemológico desse conceito no campo da literatura e dos estudos sobre a autoria.

 

Considerações finais

Retomando o modo como os diferentes sentidos e sensorialidades emergem em Quase de verdade, é importante considerar como a visão é retratada no livro. A figueira, querendo escravizar as galinhas, faz um pacto com a bruxa Oxelia. A partir de então, a figueira ficava iluminada à noite, fazendo com que as galinhas achassem que era dia permanentemente. Assim, as galinhas produziam ovos ininterruptamente, ovos esses que eram vendidos pela figueira, gerando a esta grande lucro. A luminosidade, aqui, é explorada como algo que cega, que confunde, que permite a exploração – uma exploração pelo sentido da visão.

Ao contrário, a escuta aparece como um sentido capaz de transgredir, de costurar segredos, tanto entre Ulisses, Clarice e o leitor criança – “(...) pergunto a você bem baixo para só você ouvir” (LISPECTOR, 2010, p. 53), como entre as galinhas social e politicamente organizadas – “Eles cochicharam a resolução para as outras aves num patati e patatá” (LISPECTOR, 2010, p. 59). O olhar humano de Ulisses e a sua posição de observador de uma realidade vivida em um quintal sucumbem à escuta desse narrador: Ulisses é capaz de ouvir esses segredos, essas transgressões, esses pactos e comunicá-los ao leitor. Clarice, à escuta, também partilha desse segredo.

A escuta da figueira também a trai. Em rebelião, as galinhas passam a cacarejar ao mesmo tempo, gerando a desorientação da figueira, prestes a ser destituída do seu papel de exploradora: “A barulheira deixava a figueira meio surda” (LISPECTOR, 2010, p. 60). Assim, aventa-se, neste livro, que a escuta ocupa esse lugar de transgressão capaz de destituir a primazia da visão, no caso, representada pela luminosidade capaz de biologicamente confundir o ciclo de produção das galinhas.

Embora Librandi (2020) destaque que os sentidos empregados para a leitura de uma obra não devam se apresentar em uma arena de disputas, como se visão ou audição, nesse exemplo, tivessem que buscar uma primazia, é importante considerar que a escuta em Quase de verdade funciona como o sentido capaz, inclusive, de confundir o leitor, de transgredir a ideia de autoria. Quem narra a história é o cão Ulisses, mas com a participação de Clarice. Ainda que observemos, classicamente, a necessidade de considerar que o narrador não pode ser confundido com o sujeito empírico do autor (CARDOSO, 2003), essa complexidade aparece fortemente marcada no livro aqui analisado. O jogo de sentidos produzidos pelo título, Quase de verdade, também posiciona a escuta como um sentido capaz de trair, de confundir, de iludir, de fantasiar, o que nos permite atribuir ao mesmo uma potência transgressora que ainda deve ser melhor compreendida e endereçada nos estudos sobre a autoria.

Por vezes, Ulisses deixa de latir palavras para Clarice e ela registra apenas o que qualquer pessoa pode ouvir: “E patati e patatá. Au-au-au!” (LISPECTOR, 2010, p. 54). Aqui o leitor é convidado apenas a ouvir o latido de Ulisses e não ouvir o latido das palavras – algo que é permitido, no livro, apenas à Clarice: “Enquanto isso, eu digo: – Au, au, au! E Clarice entende o que eu quero dizer (...)” (LISPECTOR, 2010, p. 65). A escuta – e a fruição dos significados dos latidos, em Clarice, também emerge como um privilégio – o que também é um poder.

Quase de verdade é uma obra que corporifica de modo emblemático o conceito de romance da escuta. Esse recurso talvez seja mais expressivo neste livro justamente por ele ser escrito para o público infantil, talvez um público mais poroso ao papel da escuta, também como demonstrado em outros estudos (BALDOINO; TABAK, 2022; SCORSOLINI-COMIN, 2021). Se em nossa socialização somos convidados permanentemente a um exercício mais amplo em direção à visão, ao que podemos ver, acompanhar e observar, a literatura infantil parece conservar uma maior conexão com a escuta.

A escuta é um sentido desenvolvido em nossa vida intrauterina, como recuperado por Librandi (2020), e talvez seja por isso que aventamos ser a criança o sujeito mais capaz de privilegiar a ontologia da escuta, como sinalizado por Nancy (2014). No campo educacional, como apresentado, essa perspectiva abre a possibilidade de que a emergência da autoria possa se dar não apenas a partir da posição-leitor, mas também da escuta como sentido presente desde sempre em nosso desenvolvimento, rompendo com a tradicional dicotomia fala-escrita. Essas reflexões podem e devem ser mais aprofundadas em investigações vindouras, contribuindo para os estudos no campo da autoria.

 

Referências

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