“Deus abençoe o nosso Brasil” - recomendações para o retorno às aulas presenciais das crianças: a travessia da biopolítica à necropolítica

“God bless our Brazil” - Recommendations for the comeback of the return of presential classes to the children: the transition from biopolitics to necropolitics

Célia Ratusniak

Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.

celiaratusniak@ufpr.br - https://orcid.org/0000-0002-0608-8838

 

Vanderlete Pereira da Silva

Universidade Estadual do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil.

vanderletesilva@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0001-9353-3110

 

Recebido em 01 de outubro de 2021

Aprovado em 17 de dezembro de 2021

Publicado em 16 de abril de 2022

 

RESUMO

O artigo discute a travessia das escolas públicas que atendem crianças pela pandemia da COVID-19. Problematiza o discurso do ministro da educação, tomando-o como um exemplo de pós-verdade que cria um cenário de segurança sanitária para convencer o retorno às aulas presenciais. O texto mapeia as distorções, invenções e interpretações equivocadas de dados, estratégias para produzir a pós-verdade, apresentadas pelo MEC, pela SEED/PR e pela SEDUC/AM, contrapondo esses discursos com dados que apresentam o cenário real da pandemia no Brasil, retirados do Ministério da Saúde, de revistas científicas e agências oficias de notícias. Considera a decisão do retorno imediato uma tentativa de esconder a situação do ensino remoto emergencial (ERE), bem como a falta de planejamento e investimento nas condições sanitárias recomendadas, expostas em documentos e pesquisas oficiais. Para construir essa tese, busca na Sinopse Estatística do Questionário Resposta Educacional à Pandemia de COVID-19 no Brasil, Educação Básica dados que mostram alguns aspectos do ERE na rede municipal brasileira, paranaense e amazonense, que concentram grande parte das matrículas de crianças. Para fundamentar a análise, utiliza os conceitos de biopolítica e de necropolítica, que acionam o racismo de Estado. Conclui que o argumento da defesa do futuro das crianças legitima a exposição delas, de suas famílias e profissionais da escola onde trabalham, deixando morrer populações subalternizadas.

Palavras-chave: Educação básica; Biopolítica; Necropolítica.

 

ABSTRACT

This article discusses the transition of the public schools that attend children through the COVID-19 pandemic. It problematizes Brazil’s Ministry of Education’s narrative, using him as an example of post-truth that creates a scenario of sanitary security to justify a return of presential classes. The text maps the distortions, inventions and misinterpretations of data, strategies to produce the post-truth, presented by the MEC, the SEED/PR and the SEDUC/AM, contrasting these speeches with information that shows the real scenario of the pandemic in Brazil, taken from the Ministry of Health, scientific journals and official news agencies. It considers the decision of the immediate return an attempt of hiding the situation of the emergency remote education (ERE), as well as the lack of planning and investment in the recommended health conditions, exposed in official documents and research. To build this thesis, it searches the Statistical Synopsis of the Educational Response to the Pandemic of COVID-19 in Brazil, Basical Educational data that show some aspects of the ERE in the Brazilian municipal network, from Paraná and Amazonas, which concentrate a large part of children. To support this analysis, it is used the concepts of biopolitics and necropolitcs, which trigger the State racism. They conclude that the argument of defending the future of the children legitimizes the exposure of them, their families and the professionals of the school, letting subalternized population die.

Keywords: Basic Education; Biopolitics; Necropolitics.

Introdução

            Quarta-feira, 20 de julho de 2021. O Ministro da Educação, o pastor presbiteriano, teólogo, advogado e professor Miltom Ribeiro faz um pronunciamento em rede nacional, conclamando ao retorno às aulas presenciais que, segundo ele, é uma necessidade urgente e não pode mais ser adiada. Conclamar é um chamado insistente, uma convocação. Não há nenhuma menção sobre a situação da pandemia no Brasil ou à Sinopse Estatística do Questionário Resposta Educacional à Pandemia de COVID-19 no Brasil, Educação Básica, feita pelo Censo Escolar entre fevereiro e maio de 2021, e que usou como instrumento o Questionário Resposta Educacional à Pandemia de COVID-19 no Brasil, Educação Básica.

Para mostrar aquilo que o ministro omitiu, distorceu ou apresentou de maneira equivocada em seu discurso, trazemos dados e informações acessadas on line em meios de comunicação oficiais, instituições governamentais e jornais. Os dados mostram que a não oferta de estrutura pelos órgãos gestores impediu que grande parte das crianças pudesse se beneficiar do ensino remoto emergencial. Desse modo, esse trabalho entende que conclamar a reabertura das escolas é uma estratégia para ignorar a situação de abandono na travessia da pandemia. Em vez de ofertar as condições necessárias para o ensino o remoto, o governo opta por reabrir as escolas como se não houvesse a COVID-19, para ver o que acontece. Deixar morrer. Efeito colateral.

As análises aqui apresentadas contemplaram de maneira separada escolas municipais urbanas e rurais, e mostram como estas últimas são mais afetadas pela falta de políticas públicas durante o ensino remoto. É na rede municipal onde estudam grande parte das crianças nos estados do Paraná e Amazonas, nos dando uma amostra da situação do ensino remoto e das condições em que este está sendo ofertado, bem como a utilização das medidas sanitárias e a contaminação da comunidade escolar. A rede municipal concentra 82% das matrículas do ensino ofertado no Brasil (Educação Infantil e Anos Iniciais) (INEP, 2020).

Esse trabalho se propõe a problematizar o discurso do ministro, apresentando dados que foram omitidos, distorcidos ou interpretados de forma equivocada, criando uma situação de travessia da pandemia que não reflete aquilo que encontramos nas escolas, que aliada às estratégias discursivas utilizadas no pronunciamento, produzem o contexto que caracteriza a pós-verdade, acionadas para tornar o dito verdadeiro. O dicionário Oxford incorporou essa expressão em 2016, definindo-a como um adjetivo. "Relating to or denoting circumstances in which objective facts are less influential in shaping public opinion than appeals to emotion and personal belief” (OXFORD, s.d)[1]. Hanna Arendt já nos alertava sobre a forma como a política moderna se utiliza dessa estratégica para criar realidades paralelas que dariam veracidade aos discursos:

 

(...) se as mentiras políticas modernas são tão grandes que requerem um rearranjo completo de toda a trama fatual, a criação de outra realidade, por assim dizer, na qual elas se encaixem sem remendos, falhas ou rachaduras, exatamente como os fatos se encaixavam em seu próprio contexto original, o que impede essas novas estórias, imagens e pseudofatos de se tornarem um substituto adequado para a realidade e fatualidade? (Arendt, 2014, p. 313).

 

Para ganhar esse efeito, formas de poder que compõem essas novas realidades são acionadas, e agem a partir do dispositivo. Discutiremos aqui as práticas utilizadas pelo poder pastoral, biopoder e necropoder, nos apoiando nas chaves teóricas de Michel Foucault e Achille Mbembe, que nos ajudam a compreender a produção desse discurso e o tipo de racionalidade de governo em que ele opera. 

O texto está dividido em três partes. A primeira problematiza o discurso do ministro da educação, numa tentativa de mapear as táticas que produzem o borramento da realidade e a produção de um cenário inventado de ações políticas que ofertariam o direito à educação para as crianças durante a pandemia e a garantia do seu futuro. A segunda parte discute o conceito de biopolítica, o acionamento do poder pastoral como uma tática poderosa na produção do discurso do ministro, que conclama e mostra o caminho para a travessia da pandemia, que se sobrepõe e potencializa o biopoder. Por fim, o texto aciona o conceito de necropoder para analisar aquilo que o governo insiste em esconder: as mortes, os efeitos das mortes na vida de quem fica e a quem é mais suscetível de morrer.

A conclamação  

Nas palavras do ministro: “O Brasil não pode continuar com as escolas fechadas, gerando impactos negativos nestas e nas futuras gerações. Não devemos privar nossos filhos do aprendizado necessário para a formação acadêmica e profissional deles” (RIBEIRO, 2021). Primeiro equívoco: as escolas não estiveram fechadas e o ensino, mesmo com todas as dificuldades impostas pela falta de estrutura, acontece.

  A Sinopse Estatística mostra que, dentre as estratégias e ferramentas adotadas no desenvolvimento das atividades de ensino, a que teve maior alcance foi a disponibilização de atividades impressas, o que mostra que as escolas estiveram abertas, elaborando, fotocopiando ou imprimindo, entregando-as nas escolas ou nas residências, recolhendo-as, produzindo planos de estudos individualizados, atendendo à comunidade escolar. Tudo isso somado à carga de trabalho remoto. A tabela a seguir apresenta estas tarefas específicas:

 

Quadro 1 - Estratégias e ferramentas adotadas no desenvolvimento das atividades de ensino-aprendizagem [possível  assinalar mais de uma categoria]

 

Entrega materialmpress

na escola e/ou em domicílio (%)

Disponibilização de materiais na internet(%)

Aulas ao vivo (%)

Transmissão de aulas ao vivo (síncronas) por TV ou rádio (%)

Transmissão de aulas ao vivo (síncronas) pela internet (%

Transmissão de aulas previamente gravadas por TV ou rádio (%)

Disponibilização de aulas gravadas pela internet (%)

Avaliações remotas ou com envio/devolução atividades (%)

Suporteestudantes ou responsáveis - planos de estudos(%)

Atendimento virtual ou presencial escalonado (%)

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

93

95

92

85

86

30

31

14

5,9

4

4

15

20

10

6,3

12

19

2,7

56

56

3,4

57

61

47

54

56

9,3

60

60

36

Fonte: INEP, 2021  [Organização das autoras]. 

 

Muitas dificuldades foram impostas ao desenvolvimento do trabalho docente.  A pesquisa mostra as condições de trabalho as quais a categoria foi submetida: predominância de reuniões e mecanismos de controle, pouco treinamento técnico, não disponibilidade de equipamentos e internet e exigência de adequação do planejamento.

 

Quadro 2 - Estratégias adotadas pela escola/secretaria de educação junto aos/as professores/as [escolas podiam assinalar mais de uma categoria]:

 

Reuniões virtuais de planejamento, coordenação e monitoramento das atividades (%)

Treinamento para uso de métodos/materiais dos programas de ensino não presencial (%)

Disponibilização de equipamentos para os professores - computador, notebook, tablets, smartphones etc. (%)

Acesso gratuito ou subsidiado à internet em domicílio (%)

Reorganização/adaptação do planejamento com priorização de habilidades e conteúdos específicos

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

85

86

50

53

47

51

19

36

7,1

2,2

1,9

2,7

89

93

84

Fonte: INEP, 2021 [Organização das autoras]. 

 

Para dar credibilidade à sua conclamação, o ministro da educação cita relatórios  da UNESCO, UNICEF e OCDE, para os quais o fechamento de escolas traria consequências devastadoras: perda de aprendizagem, do progresso, do conhecimento, da qualificação para o trabalho, aumento do abandono escolar, implicações emocionais. Acionar a ruína de um futuro tem sido um argumento muito presente nas políticas e ações implementadas pelo governo atual, apostando numa multiplicidade de riscos que impediriam à concretização do sonho do emprego formal e da estabilidade financeira.

Esse argumento traz a falsa premissa de que a Educação é o passaporte certeiro para uma uma boa condição econômica e para a seguridade social, afastando o risco do desemprego. Nessa lógica, estão fora do mercado de trabalho as pessoas desqualificadas, e não o excedente de mão-de-obra produzido pelas relações de trabalho contemporâneas. Robert Castel (2005) nos alerta para o fenômeno de desqualificação de massa, os/as inempregáveis, populações que tiveram seus postos de trabalho suprimidos ou que não possuem a qualificação necessária imposto pelo mercado, dentre as quais estão as pessoas jovens. É preciso seguir em frente, mesmo que não haja garantia nenhuma de se chegar a algum lugar. 

O ministro menciona que Portugal, Chile, França, Espanha, Austria e Rússia retornaram às aulas presenciais em 2020 e que adotaram como medidas sanitárias o uso de álcool em gel, de máscaras e distanciamento social. Segundo ele, nesse período, as escolas desses países reabriram sem sequer haver previsão de vacinação, o que não é verdade. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada em maio desse ano apurou que a farmacêutica Pfizer entrou em contato com o governo brasileiro em agosto de 2020 para oferecer vacinas que seriam entregues em dezembro do mesmo ano (AGÊNCIA SENADO, 2021). Logo, havia previsão de vacinação sim. Nessa época, não haviam as variantes Alfa e Delta, mais transmissíveis e que provocam mais óbitos (VALENTE, 2021).

A Universidade Johns Hopkins analisou letalidade e a mortalidade provocada pela COVID-19. Os dados são de 20 de julho de 2021. Dos países citados pelo ministro, a taxa de letalidade em Portugal, que é o 290 nesta lista é de 1,8%, com 167 mortes/100 mil habitantes. Chile está em 240, com 2,2% de letalidade e 182 óbitos por 100.000 pessoas. França é o 300 país, com 1,9% de mortes de pessoas contaminadas e 166 mortes para cada 100.000 francesas/es. A Espanha está em 270, com 1,9% de letalidade e 173 mortes para 100.000 habitantes.. Áustria, também citada pelo ministro, é a 450, com 1,6% de mortes de infectadas/os, sendo 120 óbitos/100 mil austríacos/as. Por fim a Rússia, que está em 540 nessa lista, com uma alta letalidade de 2,5%, mas com uma taxa de mortalidade de 102/100.000 habitantes, que é menos da metade da nossa. O Brasil é 90 país com maior taxa de mortalidade: 2,8%, sendo que a cada grupo de cem mil brasileiras/os, 257 pessoas morreram. Dentre todos os países citados pelo ministro, temos a maior taxa de letalidade e de mortalidade (UNIVERSITY JOHNS HOPKINS, 2021). No Brasil, o Painel Coronavirus, ligado ao Ministério da Saúde, apresentava no dia 21 de julho 544.180 mortes, com uma taxa de letalidade de 2,8%, com 259 mortes por 100 mil habitantes (BRASIL, 2021a).

            A Sinopse Estatística do Questionário Resposta Educacional à Pandemia de COVID-19 no Brasil, Educação Básica analisou o percentual de trabalhadoras/es e discentes das escolas municipais afastadas/os por estarem contaminadas/os com o coronavírus após o retorno das atividades presenciais, e os resultados são preocupantes: no Brasil, foram 57,4%. No Amazonas, temos 54,8% e no Paraná, 68,2% de profissionais, alunos e alunas, o que mostra que, mesmo com os protocolos de biossegurança recomendados, não houve proteção contra o contágio (INEP, 2021). Com a chegada da variante Delta, mais contagiosa e com potencial de transmissão antes de aparecerem os sintomas, retornar às aulas no inverno rigoroso do Paraná, por exemplo, compõe uma condição favorável à contaminação.

            Milton Ribeiro menciona que profissionais da Educação Básica estão sendo vacinadas/os, mas afirma que a vacinação da comunidade escolar não pode ser condição para reabertura das escolas. No site Vacinômetro, consultado em 21/07/21, o gráfico Doses Aplicadas de Vacina contra a COVID, Segundo os Grupos Prioritários mostra que 843.119 trabalhadoras/es da Educação Básica foram vacinadas/os com a primeira dose e 110.462 com a segunda dose ou dose única (BRASIL, 2021b). Notícia publicada no site do Ministério da Educação em janeiro desse ano contabiliza 2,2 milhões de professoras/es e 161.183 diretoras/es atuando nas 179.553 escolas de Educação Básica no Brasil (BRASIL, 2021c). Ou seja, ainda não foram vacinados/as nem metade dessas/es profissionais. Se a vacina, aliada às medidas sanitárias, é a forma de conter a contaminação, nenhuma dessas condições estão garantidas. O governo expõe, assim, a comunidade escolar ao risco de se contaminar, de adoecer e, por não estar completamente imunizada, de desenvolver formas mais agressivas de manifestação do vírus.  

No pronunciamento, o ministro nos informa que temos um Comitê Interativo de Emergência, cujo nome que consta no site do Ministério da Educação é Comitê Operativo de Emergência (COE/MEC), criado pela portaria n. 329/2020, e que tem como objetivo “gerenciar questões inerentes a assuntos sensíveis, de repercussão nacional” (BRASIL, 2020, s. p.). No parágrafo segundo, está previsto que esse comitê deve analisar eventos que provoquem mudanças significativas das atividades e que demandem estudos de medidas para o retorno à normalidade. O artigo terceiro discorre sobre componentes do Comitê, que conta com um/a representante de cada uma dessas instâncias e instituições: Gabinete do Ministro de Estado da Educação; Secretaria-Executiva do MEC; Secretaria de Educação Básica do MEC; Secretaria de Educação Superior do MEC; Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do MEC; Subsecretaria de Planejamento e Orçamento do MEC; Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE; Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP; Conselho Nacional de Secretários de Educação – CONSED; duas vagas para a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME; duas vagas para o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica - CONIF; duas vagas para a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – ANDIFES. De 16 representações, 7 são ligadas diretamente ao MEC.

As competências do COE/MEC são listadas no artigo 5º:

 

I - reunir informações para diagnóstico da operação emergencial, permitindo estabelecer metas e focos de atuação;

II - convocar esforços e conhecimentos de profissionais que possam integrar, a convite, o COE/MEC;

III - analisar o histórico da situação e o desenrolar de ocorrências semelhantes, de forma a subsidiar as tomadas de decisões;

IV - planejar ações, definir atores e determinar a adoção de medidas para mitigar ameaças e restabelecer a normalidade da situação; e

V - acompanhar a execução das medidas propostas e avaliar a necessidade de revisão e planejamento (BRASIL, 2020, s. p.)

 

            Na página inicial do MEC disponível no endereço https://www.gov.br/mec/pt-br, consultada no dia 21 de julho de 2021, não existe nenhum link para acessar o COE. Existe um espaço chamado CORONAVÍRUS – Ações do MEC em Resposta à Pandemia da COVID 19. Clicando nesse espaço, existe o Relatório de Atividades Ações do MEC em Resposta à Pandemia da COVID 19 marco de 2020/marco de 2021, dividido em Eixo 1: Educação Básica, que apresenta as ações feitas pela Secretaria de Educação Básica (SEB), de Alfabetização (SEALF), de Modalidades de Educação (SEMESP) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); e Eixo 2, que trata do Ensino Superior, Pós-Graduação e Educação Profissional e Tecnológica (BRASIL, 2021d). 

Na página do MEC também há uma notícia informando sobre o Guia de Implementação de Protocolos de Retorno das Atividades Presenciais nas Escolas de Educação Básica. Clicando nela, há um texto, publicado em 20/07/21, mesma data do pronunciamento do ministro, que explica que o material tem o objetivo de “orientar sistemas e redes de ensino da educação básica sobre o funcionamento e o desenvolvimento de atividades administrativas e educativas nas escolas, com vistas ao retorno das atividades presenciais” (BRASIL, 2021e). Ao clicarmos no link Confira o Guia, somos redirecionados para uma página que diz: “Desculpe, mas esta página não existe…”. A tentativa foi feita nos dias 20 e 21/07/2021. Encontramos esse documento fazendo uma busca com o seu nome na ferramenta de buscas Google.

Miltom Ribeiro deixa bem claro em seu pronunciamento que a decisão de reabrir as escolas ou fechá-las foi delegada aos estados e municípios, mas que o MEC é favorável ao retorno imediato das aulas presenciais em todo o Brasil, independente de como esteja a situação de contaminação, internações, óbitos ou das condições das escolas se adequarem aos protocolos apresentados pelo Guia de Implementação de Protocolos de Retorno das Atividades Presenciais nas Escolas de Educação Básica.

No Amazonas, em 23 de agosto, o Estado determinou o retorno das aulas 100% presencial. No site da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/AM), reforça-se protocolos de segurança como "o uso de máscaras, o não compartilhamento de itens pessoais e a manutenção das mãos sempre higienizadas” (AMAZONAS, 2021a, s. p.), não mencionando o distanciamento social recomendado pelo Protocolo Geral de Prevenção à COVID-19, elaborado pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, e que é mencionado pela própria SEDUC (AMAZONAS, 2021b) como documento referência para as medidas sanitárias.

No início, o Protocolo Geral já informa em suas recomendações

 

o distanciamento social, uso correto de máscaras e EPI, higienização e desinfecção de superfícies e objetos, higiene pessoal (principalmente a lavagem frequente das mãos com água e sabão ou álcool em gel a 70%) e etiqueta respiratória, devendo ser implementadas de forma conjunta e conforme as características de cada local ou ambiente (AMAZONAS, 2021, p. 3).

 

Nas recomendações especificas para instituições públicas, o item 7 do Protocolo determina que: "As estações de trabalho e de atendimento ao público devem estar com espaçamento mínimo de 1,5m (um metro e meio) entre as suas posições" (AMAZONAS, 2021, p 16).

         Na foto publicada no site da SEDUC, materializa-se e normaliza-se a ausência do distanciamento social como medida sanitária:

 

Figura 1 - Atividades integralmente presenciais foram retomadas em toda a rede pública estadual de Manaus

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Fonte: SEDUC/AM (Foto sem autoria)

 

Abrir as escolas é uma estratégia para apagar o fracasso que foi o ensino remoto no Brasil. No Estado do Paraná, as declarações do Secretário Estadual da Educação Renato Feder anunciaram investimentos em TV Aberta, aplicativos para smartphone, parcerias com operadoras de telefonia com acesso via 3G e 4G, que totalizam 15 milhões. Feder ressaltou as aulas dadas pela plataforma Meet, com o alcance de 150 mil aulas por dia: "Todos os dias os alunos têm aulas nas quais podem enxergar os professores, os professores enxergam os alunos e eles se enxergam em suas turmas. As aulas acontecem no Paraná” (PARANÁ, 2021a). Cabe ressaltar que esse acesso era ofertado para os Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, sem estender o serviço  aos municípios que atendem os Anos Iniciais e a Educação Infantil.

A condição apresentada pelo secretário de educação não é a mesma relatada pela própria SEED:

 

Atualmente, o Paraná atende um grande percentual de estudantes por meio de material impresso em escolas que não possuem conexão de internet adequada para que sejam ofertadas aulas síncronas, situação que corrobora para o aumento da dificuldade na aprendizagem e da desigualdade social entre a população, e causa prejuízos à saúde mental de crianças e adolescentes (PARANÁ, 2021c, s. p.).

 

O documento orienta a necessidade dos pais justificarem por escrito o motivo de não enviar suas/seus filhos/as para as escolas. Os desdobramentos desse ofício são diretoras/es eleitas/os afastados por não conseguirem o retorno presencial, sendo substuídas/os por profissionais designados pela SEED (PIRES, 2021). 

Essa condição é apresentada Sinopse já citada. Com relação às estratégias de comunicação e apoio tecnológico disponibilizadas às/aos alunas/os da rede municipal no Brasil, 98% não teve acesso gratuito ou subsidiado à internet. No Amazonas, o índice de quem teve acesso é 0,6% e no Paraná 0,8%. O percentual de equipamentos disponibilizados também foi baixo: 4,3% à nível nacional, 0,8% no Amazonas e 4,3% no Paraná (INEP, 2021).

            O canal mais utilizado de comunicação direta das crianças com suas professoras e seus professores foi e-mail, telefone, redes sociais e aplicativos de mensagens. Isso significa trabalhar para além das aulas virtuais, visto que o envio dessas mensagens não é regulado pelo horário de trabalho, mas pela disponibilidade de quem envia.

            O uso das plataformas/ferramentas digitais nas atividades desenvolvidas pela internet também foi questionada pela pesquisa. A questão aonde aparece a utilização do WhatsApp é a que conta com o maior frequência de respostas.

 

Quadro 3 - Plataformas/ferramentas digitais utilizadas pela escola nas atividades desenvolvidas pela internet

Plataforma desenvolvida especificamente para a secretaria de educação municipal ou estadual ou para a escola (%)

Google Classroom (Google sala de aula) (%)

Microsoft

Teams for Education (Microsoft Teams para educação) (%)

Aplicativos ou ferramentas para realização de videoconferências (WhatsApp, Zoom, Youtube etc.) (%

BRA

PR

AM

BRA

PR

AM

BRA

PR

AM

BRA

PR

AM

23,9

19

17

24

27

9,4

5,4

1,4

1,0

84,3

84

62,8

Fonte: INEP, 2021. [Organização das autoras]

 

            O monitoramento da participação e da frequência das/os alunas/os também foi avaliado no Eixo II da pesquisa. A modalidade que mais teve alcance foi recolhimento das atividades pedagógicas impressas, o que mostra que, ao contrário do que o ministro disse, as escolas estiveram abertas, funcionando. Na rede municipal, a chamada eletrônica ficou em 25% nas escolas urbanas e 19% nas rurais, o que indica que o ensino remoto não estava se utilizando da internet como recurso para as aulas.

            Esses dados foram coletados até abril de 2021, no início da segunda onda de COVID-19 produzida pela variante Gamma, surgida no Amazonas, mais letal nas populações mais jovens; e da variante Delta, que nesse momento está com transmissão comunitária no Paraná. No dia 21 de julho, o governo do Paraná determinou o retorno das aulas presenciais no modelo híbrido, nas condições sanitárias apresentadas aqui. Em 28 de julho, tínhamos 29 casos e 12 óbitos por essa variante (PARANÁ, 2021b). A Agência Brasil de Comunicação (EBC) informa que o Ministério da Saúde recebeu em agosto um ofício de governadores/as solicitando ações para o apoio ao combate da variante Delta, informando que ela é 100% mais transmissível que a primeira CEPA, e 30% mais transmissível que a variante GAMA (VALENTE, 2021). O governo continua negando os efeitos da pandemia e insistindo em nos obrigar a viver como se ela não existisse ou não fosse letal.

            Milton Ribeiro afirmou que o Ministério da Educação fornece todos os protocolos de biossegurança sanitários a todas as escolas de Educação Básica e de Ensino Superior. Pesquisando quais seriam esses protocolos e investimentos feitos para efetivá-los, encontrei o documento Ações do MEC em Resposta à Pandemia da COVID-19 (BRASIL, 2021f), que estava disponível no site do MEC no dia 21/07, mas já indisponível no dia seguinte (22/07). Sua Ação 8 diz respeito ao Programa Dinheiro Direto na Escola Emergencial, informando que foram destinados em 2020 em torno de 672 milhões de reais às escolas das redes estaduais, municipais e distrital para a preparação do retorno às aulas presenciais. Esse valor é dividido a 116.899 escolas e mais de 36 milhões de estudantes, ou seja, R$ 5.748,55 por escola ou R$ 18,66 por estudante, para o ano todo. O ministro fala de um valor de 1,7 bilhão de reais para enfrentamento da COVID nas escolas públicas, mas não explica como esse dinheiro foi disponibilizado e em que pode ser gasto. Se ele existir e se for encaminhado, totaliza R$ 47,22 por aluno e R$ 14.542,00 por instituição por ano, variando para mais ou para menos, conforme o número de alunos e alunas de cada escola.

            O dinheiro pode ser aplicados da seguinte maneira:

 

 I. na aquisição de itens de consumo para higienização do ambiente, das mãos, assim como na compra de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), com o objetivo de prevenir o contágio dos profissionais da escola, bem como dos estudantes neste momento de pandemia;

II. na contratação de serviços especializados em desinfecção de ambientes;

III. na realização de pequenos reparos, adequações e serviços necessários à manutenção dos procedimentos de segurança para tramitação dentro das dependências da unidade escolar;

IV. no investimento com acesso e/ou melhoria de acesso à internet para estudantes e professores; e

V. na aquisição de material permanente (BRASIL, 2021, p. 13).

 

O Guia de Implementação de Protocolos de Retorno das Atividades Presenciais nas Escolas de Educação Básica recomenda as seguintes medidas sanitárias: EPIs para estudantes: Máscara tripla camada (deve ser trocada a cada 4 horas ou assim que estiver úmida) – observando a contraindicação para crianças com idade inferior a 2 anos; frasco individual de álcool em gel/álcool 70%” (BRASIL, 2021e; p. 14). Cozinheiras/as precisam do mesmo tipo de máscara, protetor facial (face shield), álcool em gel a 70%, luvas de proteção descartáveis e touca descartável (BRASIL, 2021e). Responsáveis pela limpeza, além de todos esses itens, precisam de avental impermeável de mangas longas e botas ou sapatos impermeáveis, e o face shield pode ser substituído por proteção ocular. Demais profissionais da escola necessitam de máscara tripla camada; protetor facial (face shield) e frasco individual de álcool em gel a 70% (BRASIL, 2021e)”.  O dinheiro não é suficiente.

A Sinopse Estatística já citada também investigou as medidas sanitárias adotadas pelas escolas para o retorno das atividades presenciais. O primeiro aspecto avaliado foi a adequação/ampliação da infraestrutura física: instalação de pias para a lavagem das mãos, construção de salas para reduzir o número de alunas/os por turma, aumento da ventilação natural. Os dados mostram que ainda não há as adequações. O segundo item avaliou a formação de profissionais da educação para reconhecimento e avaliação do cumprimento das medidas sanitárias como identificação dos sintomas da COVID-19, e para o monitoramento dos motivos de ausência das/os alunas/os, com resultados que também colocam o Paraná abaixo da média brasileira. Note-se o aumento na carga de trabalho docente com essas novas tarefas.

 

Quadro 4 - Medidas sanitárias adotadas pela escola para o retorno das atividades presenciais

Adequação/ampliação da infraestrutura física das escolas (%)

Capacitação dos profissionais (%)

Comunicação e divulgação de informações e orientação para a comunidade escolar  (%)

Aumento na frequência da limpeza rotineira (%)

Monitoramento da temperatura  (%)

Uso constante de EPIs (%)

Redução de pessoas no ambiente da escola(%)

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

BR

PR

AM

37

27

34

70

50

41

92

95

64

90

95

93

78

90

41

93

95

99

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Fonte: INEP, 2021. [Organização das autoras].

 

 Mesmo com os recursos insuficientes, o ministro assume o compromisso de de garantir as condições necessárias para o retorno às aulas presenciais “pelo bem dos filhos e pelo futuro do país”, sem dizer como vai fazer isso e nem com qual  orçamento. Por fim, o pronunciamento termina com “Deus abençoe o nosso Brasil. Meu desejo e minha oração”, atendendo a um dos aspectos que definem a pós-verdade: "fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (Oxford, s. d, s. p.).

Fazer viver - entendendo a biopolítica para compreender a necropolítica

            No seu discurso, o ministro da Educação exerce sua função de pastor que conduz seu rebanho, misturada à de soberano, que governa. Discutiremos aqui essa sobreposição de figuras que exercem o poder, e que têm como função a garantia de condições para que a população viva. Para tanto, nos apoiaremos em chaves teóricas foucaultianas.

            Michel Foucault problematiza o momento em que as tecnologias utilizadas pelo  poder pastoral passam a fazer parte da arte de governar operada pelo Estado Moderno, sobreposta a duas outras formas de poder: o disciplinar e o biopoder. Compreender a composição das estratégias de governo da população nos permite identificar as biopolíticas que produzem as infâncias e adolescências a partir do dispositivo pedagógico, e que colocam a escola como um espaço privilegiado de proteção, de formação e de produção de subjetividades alinhada às demandas dos modelos econômicos.

            O conceito de dispositivo pedagógico é utilizado inicialmente pelo filósofo francês René Schérer, a partir das leituras de Michel Foucault, e que aqui utilizamos problematizado por Silvio Gallo e Alexandre Carvalho (2017). Esse dispositivo é composto por “[...] discursos e pensamentos, mas também instituições e arquiteturas, leis e ações de administração, proposições filosóficas e verdades científicas, máximas morais e religiosas” (CARVALHO; GALLO, 2017, p. 627), onde “[...] alguém só aprende quando um outro (o mestre) ensina, gerando uma hierarquização na aquisição e na relação com os saberes que impossibilitam uma efetiva emancipação intelectual” (CARVALHO; GALLO, 2017, p. 624).

            Esse dispositivo age, por exemplo, pelos jornais televisivos, notícias na internet, discursos de representantes do Estado e de figuras públicas (artistas, celebridades, youtubers), pronunciamentos e documentos das instituições de proteção da infância e da adolescência, que compõem uma narrativa que ressalta e repete de várias formas os riscos de se estar fora da escola. Para além do direito à Educação, as instâncias de poder sabem que as escolas são um espaço privilegiado de regulação das subjetividades, de disciplinamento dos corpos e de produção de capital humano (FOUCAULT, 2008b).

            O acionamento do poder pastoral no nosso governo atual é mais uma das táticas de um modelo ultra conservador. O pastor é a figura que liga o povo à Deus e, por essa ligação direta, questioná-lo é questionar a Deus. Sua função é conduzir o rebanho à salvação de suas almas, protegendo-o dos desvios e das tentações do demônio, que se metamorfoseia na figura de inimigos imaginários. Possui uma função vigilante, atenta a todas as pessoas e a cada uma, impedindo o desgarramento.

            O poder pastoral surge no Oriente pré-cristão e ganha força no cristianismo. Para Foucault, é somente a partir do século XVIII que o poder pastoral passa a ser acionado como tática de governo da população. Se antes existiam redes de influência entre o soberano e a igreja, estas permaneciam distintas: um era responsável pela condução das almas à salvação, e o outro tinha o poder de vida e morte de cada um/a (FOUCAULT, 2008a).

            As técnicas e táticas do poder pastoral vão se deslocando para a racionalidade de governo do Estado Moderno, que nasceu “[...] da combinação entre o – ou talvez melhor: da invasão do – poder pastoral e/sobre o poder de soberania” (VEIGA-NETO, 2011, p. 69). Se antes o problema do soberano era aumentar seu território, agora o problema do governante passa a ser conduzir a população para extrair dela o máximo de trabalho com o mínimo de custo. Para tanto, é preciso cuidar, deixar viver.

            Para essa condução, outra forma acionada para a regulação dessas subjetividades é o poder disciplinar.  Ele opera a partir das práticas das instituições que surgem com o objetivo de moldar os corpos e torná-los dóceis, como a escola, o quartel, a família, preparando-os para o trabalho nas indústrias. Age a partir de táticas como o esquadrinhamento do tempo e do espaço, por onde corpos devem seguir o fluxo. Essa disposição também é produzida a partir do exame e do olhar vigilante (FOUCAULT, 2009). Cada pessoa no seu lugar. Um tempo para cada coisa. O lugar e o tempo da infância é na escola, pois é na criança que habita a pessoa adulta.

            O Estado não promete a salvação das almas, mas o bem-estar social: condições mínimas de moradia, emprego, um tanto de seguridade social, saúde, salário, alimentação. O que Michel Foucault não poderia imaginar é que essas táticas seriam operadas pelo próprio pastor, nosso ministro, explodindo com a laicidade do Estado e o cuidado com a população.

            Sobreposta a estas formas de poder, Foucault vai identificar outra forma que vai agir naquilo que cada um/a de nós temos em comum: a vida. Chamou-a de biopoder, onde “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (FOUCAULT, 2008a, p. 3)

            O biopoder age a partir da biopolítica, aquilo: “[…] que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos” (FOUCAULT, 1988, p. 134), ou seja, políticas de condução e de controle da vida da população. Essa nova racionalidade de governo vai se utilizar de saberes produzidos sobre a vida por várias áreas: Biologia, Medicina Social, Economia, Pedagogia, constituindo assim uma área de conhecimentos sobre as coisas do Estado, a Estatística: “Etimologicamente, a estatística é o conhecimento do Estado, o conhecimento das forças e dos recursos que caracterizam um Estado num momento dado” (FOUCAULT, 2008a, p. 364). Nessa nova racionalidade, diferente do soberano que tinha o poder de matar ou deixar viver, o Estado administra a vida da população a partir de cálculos que lhes indicam quem deve viver e quem se deve deixar morrer. A Estatística, aliada à Economia, garante o fortalecimento do Estado a partir da máxima extração das forças da população. Por isso, não nos estranha que o discurso de salvar a Economia tenha sido tão acionado no período da pandemia.

Foucault problematizou como se produzem as biopolíticas e por que táticas e tecnologias agem a partir de um evento que tem similaridades com a crise sanitária que estamos vivendo: a prática da inoculação da varíola. O filósofo nos mostra como a Medicina Social e a Estatística produziram saberes sobre os riscos de contaminação a partir da observação dos modos de vida, e como essa observação produziu formas de se gerenciar e controlar as doenças, como a vacina. Foram os saberes sobre os riscos de contágio que fundamentaram as políticas de saúde impostas à população, cujos modos de se viver passaram a ser vigiados pelo Estado. Para essa vigilância, um aparato estatal é criado - a polícia, que tinha uma função muito diferente da que tem hoje: fiscalizar se as recomendações e determinações feitas às populações com mais risco de contrair a doença estavam sendo seguidas e incorporadas ao cotidiano, conduzindo as condutas e produzindo novas formas de se viver (FOUCAULT, 2008a).

As biopolíticas objetivavam conduzir as condutas, convencer as pessoas a mudarem seus hábitos, a saírem do campo para as cidades trabalhando em regimes extensos e insalubres, garantindo que o capital e poder permanecesse ou circulasse entre determinados grupos, organizando a vida nas cidades, erigindo instituições que garantissem o mínimo de bem-estar social e seguridade, mas que regulassem as subjetividades. Todas essas táticas operam uma nova racionalidade de governo muito mais complexa: a governamentalidade:

 

Por governamentalidade entendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança  (FOUCAULT, 2008a, p. 143).

 

Nessa nova racionalidade, o retorno às aulas deveria estar condicionado aos cálculos dos riscos de contaminação da COVID-19, à aplicação e fiscalização de medidas sanitárias, análise das taxas de letalidade e de mortalidade, às ações específicas para proteger as populações mais vulneráveis garantindo a criação de grupos prioritários de vacinação, à imunização pela vacina, à garantia de alternativas para o ensino remoto para restringir a transmissão do vírus. Esses cálculos produziriam biopolíticas que permitiriam o controle e gerenciamento da pandemia, até que voltar às aulas não oferecesse grandes riscos de contágio e morte.

Os dados apresentados anteriormente sobre a situação da pandemia no Brasil, produzidos por agências sanitárias e pelo INEP deveriam servir como fonte de informações para a elaboração das ações do Ministério da Educação durante a pandemia, mas nem foram citados pelo Ministro ou pelos documentos publicados pelo MEC. As ações de governo ignoram esses saberes, o que nos leva a concluir que suas políticas vêm em outra lógica: expor à morte.

Deixar morrer - a travessia brasileira pela pandemia e a necropolítica

            Achille Mbembe (2018) nos alerta que a noção de biopoder é insuficiente para compreendermos como as formas contemporâneas de soberania estabelecem as condições que resultam na garantia da vida. Por isso, propõe os conceitos de necropolítica e necropoder para compreender as várias formas de   se provocar “[…] a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhe conferem o estatuto de “mortos-vivos” " (MBEMBE, 2018, p. 71). Como efeitos dessa forma de poder, cita vítimas civis nas guerras e refugiadas/os em campos de concentração. Alinhadas às problematizações do autor, consideramos as ações do governo brasileiro durante a pandemia da COVID-19 como estratégias de necropolítica.

            Para Mbembe (2018), a máxima expressão de soberania se materializa no poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Ao conclamar que profissionais da educação retornem imediatamente às aulas presenciais sem garantir, de fato, as medidas sanitárias que o próprio MEC recomenda, o ministro da Educação está acionando o necropoder. Se professoras/es, funcionárias/os, crianças forem infectadas/os, desenvolverem a forma grave da doença, ficarem com sequelas, morrerem, infectarem seus familiares, esses são efeitos colaterais de um projeto maior, onde a Economia não pode parar. As ações do nosso governo entrelaça técnicas do poder pastoral, do biopoder e do necropoder, que utilizam da pós-verdade para produzir uma realidade de falsa segurança, onde se exerce o poder de expor à morte. O pastor Milton conduz o seu rebanho. Não há garantia para a salvação. Somente a da travessia.

O discurso da necessidade de um futuro para essa geração de crianças coabita com a sua retirada, na prática. Temos uma legião de crianças órfãs da COVID-19, que pode aumentar com o retorno das aulas sem a imunização completa da população. A pesquisa publicada recentemente pela revista The Lanced, conduzida por Susan D. Hillis e colaboradoras/es analisa a orfandade produzida pela pandemia, com dados coletados entre março de 2020 e abril de 2021: 1.134.000 crianças perderam pelo menos uma das pessoas que eram suas cuidadoras (pai, mãe, avó ou avô) em decorrência de complicações provocadas pelo vírus. No Brasil, foram 113.150 crianças, sendo que 87.529 perderam o pai, 25.608 a mãe e 13 ambos (HILLIS et alli, 2021).

Mbembe nos aponta que o biopoder divide as pessoas entre as que devem viver e as que podem morrer, distribuindo as populações em subgrupos, estabelecendo um corte biológico. Os dados da COVID no Brasil mostram o racismo agindo. A letalidade da COVID-19 varia conforme a população. O 20 Boletim Socioepidemiológico da COVID-19 nas Favelas trabalhou com dados das comunidades do Rio de Janeiro, coletados entre 22/06/20 e 28/09/20, e mostra que as taxas de letalidade giravam entre 10% e 16%. A taxa de mortalidade de pessoas negras era duas vezes maior do que em bairros não chamados de favelas. Essa população também teve taxa de mortalidade superior à das pessoas não negras (FIOCRUZ, 2020).

            Outra população que sofre de forma mais intensa os efeitos da necropolítica é a indígena. Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) da mesma época mostram que a taxa de mortalidade nessa população é 150% maior do que a média brasileira, com 6,8% dos/as infectados/as (IPAM, 2020). Cabe ressaltar que o primeiro contágio de indígena se deu em contato com médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), e que a necessidade de buscar o auxílio emergencial nas cidades aumentou o número de casos. O corte nas cestas básicas enviadas pela FUNAI, a presença de não indígenas nos territórios, a não testagem em larga escala, o aumento do garimpo e o não reconhecimento dos direitos de indígenas são táticas da necropolítica que colaboraram para esses índices. Em 28 de julho desse ano, eram 57.415 casos confirmados, com 1144 mortes e 163 povos infectados (PLATAFORMA COVID E OS POVOS INDÍGENAS, 2021). Essa situação é resultado de “um longo processo de ferocidade contra às vidas, direcionadas à destruição das florestas, dos rios, dos animais e, consequentemente das pessoas que lá viveram, resistem e tiram seu sustento ainda hoje na Amazônia” (RATUSNIAK; MAFRA; SILVA, 2020, p. 1365).

            Em Curitiba, o dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGEB) do primeiro trimestre de 2021 informa que o total de desligamentos por morte de profissionais da limpeza, portaria, cobradoras/es e vigilantes aumentou em mais de 500% no primeiro trimestre de 2021 (KOWALSKI, 2021). São postos de trabalho compostos por trabalhadores/as em sua maioria terceirizados, com “baixos rendimentos, jornada de trabalho indeterminada, rotatividade do emprego, discriminação social e de direitos e, por fim, invisibilidade  de  classe  para  o  empregado,  que  é  rebaixado  ao  papel  de  ser  inferior (RODRIGUES, SANTOS, SILVA; 2020). Descartáveis. Um subgrupo que não precisa viver.            

            Essa racionalidade seleciona, classifica, hierarquiza as populações, definindo quem pode seguir o fluxo:

 

[...] a biopolítica é uma tecnologia de governo que “faz viver” aqueles grupos populacionais que melhor se adaptam ao perfil de produção necessitado pelo Estado capitalista e, ao contrário, “deixa morrer” aos que não servem para fomentar o trabalho produtivo, o desenvolvimento econômico e a modernização (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p. 157).

 

            Nessa racionalidade, a escola é tutelada e potencializa essa função sobre a infância e a adolescência, cujo objetivo já não deve ser a formação humana, mas a produção de capital humano, que é definido como o “[...] conjunto de todos os fatos físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz de ganhar este ou aquele salário" (FOUCAULT, 2008b, p. 308), e que compõe competências, aptidões e características exigidas pelo mercado de trabalho. Ela se alia com instituições e instâncias que se apropriam de discursos e saberes, e que produzem uma narrativa ancorada em dados estatísticos e econômicos analisados de forma distorcida e tendenciosa (a pós-verdade), e que produzem uma realidade que objetiva fazer acreditar que tudo esta bem, e se não está, é por causa dos inimigos do povo brasileiro.

            Podemos identificar essas táticas no discurso do ministro: sua performance corporal, tom de voz, uso de palavras como conclamar, ameaça do futuro de uma geração inteira, proteção contra a fome e as violências, uso dos nomes de instituições que monitoram e regulam as infâncias no mundo, comparação com países, distorção de dados, invenção de verdades, aliança com as religiões cristãs, acionamento da proteção divina. São estratégias de governamento que, nesse pronunciamento, têm o claro objetivo de fazer a população exigir das escolas o retorno imediato, garantindo assim a vontade do governo que não se preocupa em deixar morrer quem se infectar e desenvolver a forma mais agressiva da doença. 

            A aposta na escola como o espaço que produz um futuro é uma estratégia biopolítica, onde se objetiva produzir o sujeito um tanto docilizado, um tanto empreendedor de si, um tanto alienado, um tanto convertido. Escolas militares, reforma do Ensino Médio, Nova Base Comum Curricular, congelamento de salários do funcionalismo público, criminalização de práticas docentes, presença de evangelizadores/as na gestão pública, corte de orçamentos nas agências de fomento à pesquisa e à formação docente, ausência de concursos públicos são ações orquestradas que atendem a esse projeto de produção de sujeitos no modelo das aspirações do governo que está posto. 

            O necropoder está presente nas atitudes desse governo: na negação da eficácia de medidas sanitárias como o uso de máscaras e distanciamento social, no incentivo do uso de medicamentos não eficazes no tratamento da COVID, no atraso na compra de vacinas e na demora da imunização de toda a população, na propagação de um falso cenário favorável ao retorno das aulas presenciais que expõe à morte as crianças. As chances de morrer acompanham grupos específicos que estão mais expostos ao vírus e cujas vidas importam menos. Essas são deixadas morrer. Efeito colateral. 

Considerações finais

Esse texto é um exercício de indignação. Conviver com um cenário de pós-verdades, com o absurdo nos bombardeando cotidianamente, até que as ausências, omissões e contra-produções dos nossos governos sejam naturalizadas é desolador. E esse é um dos efeitos desejados: que percamos as nossas forças para resistir.

As tentativas de apagamento dos dados, sucessivas nesse governo, aparecem na ausência da Sinopse Estatística do Questionário Resposta Educacional à Pandemia de COVID-19 no Brasil feita pelo Censo Escolar como elemento para a tomada de decisões do Ministério da Educação sobre a condução da Educação Básica no período da pandemia.

As ações de vigilância que vigiam apenas as crianças, as famílias e os docentes não se debruçam sobre o controle social. Obrigar profissionais da educação a retornar ao trabalho presencial sem estarem imunizados, tirar qualquer possibilidade de participação na organização desse retorno, criar uma realidade paralela completamente diferente do que estão vivenciando em sala de aula, monitorar as aulas, exigir que trabalhem com atividade planejadas e elaboradas por outras pessoas, vigiar semanalmente o trabalho em sala de aula, deslocando a função da Pedagogia para a controle das práticas, todo esse cenário objetiva destruir a autonomia e qualquer tentativa de resistência ou revolta. O treinamento toma o lugar da formação. Isso, aliado ao retorno ao ensino presencial com alto risco de contaminação de si e de quem esta no entorno expõe à morte de várias formas: à pessoa que habita a/o profissional da educação, às práticas que configuram a função docente e que configuram o ato de ensinar, à infância de uma criança que não está sendo pensada no presente, e que também está atravessando a pandemia.

As ações orquestradas pelo Estado, para além de expor ao vírus, se aproveitam desse momento de insegurança social trazido pela pandemia para destruir, junto com a vida, uma educação para a formação humana das crianças, para a autonomia e para cidadania. Rebanho moldado é mais fácil de ser conduzido. 

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Notas

 



[1] [Tradução: Relacionado a ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais]. Disponível em: https://www.lexico.com/en/definition/post-truth.