Trajetórias formativas com pesquisas em gênero e sexualidade na educação

Formative trajectories with research on gender and sexuality in education

 

Alexandre Gomes Soares

Pós-doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

prof.alexhis@gmail.com - http://orcid.org/0000-0001-6835-1155

 

Marlucy Alves Paraíso

Professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

marlucyparaiso@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-3542-4650

 

Recebido em 14 de outubro de 2021

Aprovado em 29 de novembro de 2021

Publicado em xx de abril de 2022

 

RESUMO

A entrevista realizada com a docente e pesquisadora Dagmar Elisabeth Estermann Meyer teve como objetivo compreender suas trajetórias formativas com pesquisas em gênero e sexualidade no campo educacional e da saúde. Buscou oferecer elementos para problematizar os marcadores de gênero e de sexualidade e sua interface com as políticas públicas de inclusão social, com derivações que permitem pensar a transversalidade de gênero na formação inicial. Uma das perspectivas da pesquisadora no campo educacional é que a atividade de educar supõe processos de ensino e de aprendizagem: o que, quem e como ensinam e o que, quem e como se aprende, extrapolando, assim, as instituições de ensino e as salas de aula. A entrevista foi realizada no âmbito de uma atividade de pesquisa[1] de Pós-Doutoramento, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Educação.

 

ABSTRACT

The interview conducted with professor and researcher Dagmar Elisabeth Estermann Meyer aimed at understanding their formative trajectories with research on gender and sexuality in the educational and health field. It sought to offer elements to problematize the markers of gender and sexuality and their interface with public policies for social inclusion, with derivations that allow thinking about the transversality of gender in initial education. One of the researcher’s perspectives in the educational field is that the activity of educating involves teaching and learning processes: what, who and how they teach and what, who and how one learns, thus going beyond educational institutions and classrooms. The interview was carried out within the scope of a Post-Doctoral research activity, at the Faculty of Education of the Federal University of Minas Gerais.

Keywords: Gender; Sexuality; Education.

Introdução

A docente e pesquisadora Dagmar Elisabeth Estermann Meyer possui Pós-doutorado no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo – USP (2005), é Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (1999), Mestre em Educação pela UFRGS (1991) e graduada em Enfermagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (1979).

Foi professora, com dedicação exclusiva, no Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT (1980-1991) e, depois, na Faculdade de Educação da UFRGS, de 1992 até se aposentar em 2011, na qual permaneceu vinculada como docente colaboradora voluntária – ou seja, sem remuneração – até julho de 2019. Ela exerceu a docência, na Graduação, nos cursos de Enfermagem, Pedagogia e em disciplinas de formação pedagógica de diversas Licenciaturas. Foi docente pesquisadora e orientadora (2000 a 2019) nos cursos de Mestrado e Doutorado nas áreas da Educação, da Enfermagem e da Saúde Coletiva da UFRGS, atuando em linhas de pesquisa vinculadas aos estudos de gênero e de sexualidade e aos estudos culturais, bem como em vários cursos de Pós-Graduação lato sensu, nas áreas da Educação e da Saúde.

Foi integrante-fundadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero – GEERGE (de 1990 a 2019) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (2001 a 2018, nível 2 a 1B). Tem ampla experiência na gestão acadêmico-científica, tanto em cargos executivos quanto em cargos de representação em órgãos colegiados e em associações (como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd) e órgãos de fomento (como o CNPq), bem como em comitês e conselhos editoriais de periódicos científicos.

A docente e pesquisadora publicou inúmeros artigos em periódicos científicos qualificados e concluiu 21 orientações de Mestrado e 18 orientações de Doutorado. Atualmente, é sócia da Incomum Consultoria e Assessoria Educacional. Nesta entrevista, que ocorreu de forma virtual pelo Google Meet, em 27 de agosto de 2021, a proposta foi compreender suas trajetórias formativas com pesquisas em gênero e sexualidade na Educação no Ensino Superior, permeando pesquisas sobre políticas públicas de inclusão social e transversalidade de gênero.

Entrevistadores: Professora Doutora, agradecemos a sua disponibilidade. De forma inicial, gostaríamos que abordasse um pouco de sua escolha profissional e, se possível, indicasse alguns momentos e fatos marcantes de sua trajetória na Enfermagem e na Educação.

Professora: Graduei-me em Enfermagem, com habilitação em Enfermagem Médico-Cirúrgica. Trata-se, pois, de uma formação inicial marcadamente cartesiana, biologicista e hospitalo-cêntrica. Meu primeiro emprego, inclusive, foi como enfermeira chefe de Centro Cirúrgico em um hospital geral de Cuiabá. Formei na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cujo campus da área da Saúde é em Sorocaba e, quando me formei, voltei para Cuiabá, porque minha família residia em Mato Grosso desde o início dos anos de 1960. Os meus pais moravam em uma fazenda, no Norte do Mato Grosso. Posteriormente voltei para Cuiabá, fazendo aquele movimento de volta para casa, porque saí de casa aos oito anos para estudar.

Estudei dos oito aos dezesseis anos em um internato, em São Paulo; depois, fiz o segundo grau, em uma escola pública, e o cursinho no interior de São Paulo. Acabei fazendo faculdade também em São Paulo. Então, voltei para Cuiabá e, quando estava trabalhando no Centro Cirúrgico, a Universidade Federal de Mato Grosso abriu seleção para professor auxiliar, e me inscrevi e acabei sendo selecionada. Isso foi em 1980. A universidade tinha criado, há poucos anos, um curso de Graduação em Enfermagem. Além disso, a universidade tinha muita dificuldade para alocar professores e professoras pós-graduados, por meio de concursos públicos. Quase todo o corpo docente da época era, assim como eu, recém-graduado.

A universidade, naquela época, fazia um grande investimento na formação de professores, inicialmente, em Especialização e, depois em Mestrado, geralmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Então, eles me contrataram, seis meses depois de formada, inclusive em Regime de Consolidação das Leis do Trabalho. Naquela época, não tínhamos ainda o Regime Jurídico Único; então, não fiz concurso público, mas uma seleção e passei a atuar como professora de Fundamentos de Enfermagem e de Enfermagem Médico-Cirúrgica, áreas, digamos assim, bem tecnicistas, biologistas, etc. Com essa ênfase, trabalhei oito anos, no curso de Enfermagem da UFMT, sem reflexões pautadas pelas Ciências Sociais e Humanas e, tampouco, sobre questões de gênero.

Assim, no momento em que, por necessidades familiares mais do que por demandas profissionais, precisei pedir uma licença sem remuneração, para acompanhar o meu marido (eu tinha dois filhos pequenos), que já estava trabalhando em Porto Alegre. A universidade posicionou-se contra esse pedido de licença, argumentando que eles tinham dificuldades homéricas para qualificar os seus professores, e eu estava pleiteando ir para um grande centro com licença sem remuneração. Estou pontuando isso um pouco para nós pensarmos como também as nossas trajetórias são contingentes, sabe? Não é só para contar história, mas é para reforçar o que disse na aula[2], que as nossas opções são aquelas que são possíveis em um determinado tempo e contexto; e as nossas trajetórias vão se desenhando no âmbito dos limites e das possibilidades das instituições nas quais nós estamos.

Então, acabei me mudando temporariamente para Porto Alegre, com a incumbência de fazer Mestrado na área da Educação, para pesquisar um problema recorrente que nós tínhamos na formação, lá, em Mato Grosso. Tratava-se de uma dicotomia que se instaurava entre o Ciclo Básico e o Ciclo Profissional, porque nós trabalhávamos com uma proposta de ensino multidisciplinar e integrado, na época. Essa proposta dava muito certo no Ciclo Básico; e, de repente, quando nós passávamos para o Ciclo Profissional, essa integração se tornava muito complicada. Esse foi o meu foco, encomendado, de pesquisa no Mestrado. Nesse sentido, procurei a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas a seleção no Programa de Pós-Graduação em Educação já tinha acontecido; fiquei lá como aluna sem vínculo por um ano e então ingressei como aluna regular no Mestrado.

Entrevistadores: Ao revisitar a sua trajetória de pesquisadora e docente no Ensino Superior, poderia descrever como se deu seu interesse pelos estudos de gênero?

Professora: Então, como disse, ingressei no Mestrado no início de 1989, ainda com esse propósito de estudar esse problema curricular. Na hora de compor o conjunto de disciplinas que ia cursar, me deparei com uma disciplina que se chamava: Educação e Mulher. Pensei: “Ah, que tema interessante. Vou me matricular para ver o que discutem aí”. O seminário era oferecido por Guacira Lopes Louro, que tinha voltado há mais ou menos um ano do seu Doutorado, na Universidade Estadual de Campinas; e ela estava inserindo esse tema no rol dos seminários da Pós-Graduação. Quando iniciei essa disciplina, comecei a me dar conta que várias das questões que nós colocávamos como problema no plano curricular, inclusive esse que envolvia a dicotomia entre Ensino Básico e Profissional, poderíamos, também, pensar, desde a ótica de gênero, levando em consideração que a Enfermagem era, e é, um campo predominantemente composto por mulheres e que, na relação histórica com a Medicina, isso acabava constituindo determinadas marcas para a profissão. Isso me abriu outras perspectivas para pensar naquela problemática, que nós atribuíamos a questões curriculares stricto sensu.

Assim, mudei meu enfoque de pesquisa e de orientadora. Fiz a minha dissertação de Mestrado, com orientação da Guacira, a respeito das “Relações de poder de gênero e de classe, no Ensino de Enfermagem”. Foi uma das primeiras dissertações que discutiu a questão de gênero na Enfermagem, no Brasil. Então, diria que a minha inserção no campo dos estudos de gênero se dá ali. Como disse, deu-se de uma forma não necessariamente vinculada com aquela ideia romantizada de escolha individual; quer dizer, tem uma série de fatores contingentes aí, alguns, como a proposta inicial de fazer Mestrado em Educação, que nem foi minha escolha. Agrega-se, entre as contingências, também o fato de que fui parar em um Programa de Pós-Graduação, um PPG, que contava com uma professora doutora reconhecida e que estava disposta a inserir a temática feminista e de gênero, nas disciplinas e na pauta das pesquisas.

Quando terminei o Mestrado, em 1992, ficou muito complicado voltar para a UFMT, porque as questões familiares persistiam, e acabei pedindo transferência. Assim, fui me dando conta, concretamente, das inscrições de gênero em minha própria trajetória profissional. Enfim, consegui a transferência para a UFRGS, para o curso de Pedagogia. Isso se constituiu como uma virada em minha vida profissional e é assim que se iniciou a minha trajetória como pessoa interessada nas discussões feministas e de gênero.

Logo em seguida, acho que foi em 1993, não lembro bem, a Guacira me convidou para fazermos um projeto de pesquisa em conjunto, que submetemos a um daqueles editais da Fundação Ford, a qual, junto à Fundação Carlos Chagas, foi, por muitos anos, uma importante incentivadora e financiadora de pesquisas no campo dos estudos de gênero no Brasil. Pesquisadoras nacionalmente reconhecidas naquela época, como Céli Pinto, Cristina Bruschini, Albertina de Oliveira Costa, dentre outras, faziam parte desse Comitê de Seleção e Acompanhamento de projetos da Fundação Ford. O projeto, proposto pela Guacira e por mim, foi aprovado e fizemos uma pesquisa com um viés de história da educação da mulher, que ainda era o viés da Guacira, e que prevalecia também no Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, o GEERGE, que ela havia criado em 1990. Nós discutimos a escolarização do doméstico[3] em uma escola técnica feminina, do Rio Grande do Sul.

Em 1994, entrei no Doutorado, ainda com um projeto de pesquisa vinculado à área de História da Educação. Foi a época em que a Guacira e vários outros pesquisadores e pesquisadoras importantes do programa estavam se aposentando, em decorrência de reformas da previdência propostas no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Assim, para viabilizar sua permanência no PPG, como professora colaboradora aposentada (modalidade que não existia e que a UFRGS instituiu nesse contexto), a Guacira apresentou um grande projeto de pesquisa ao CNPq, intitulado “Histórias da Educação”, na perspectiva de gênero, do Rio Grande do Sul. Entrei no Doutorado com uma proposta de pesquisa vinculada a esse projeto, que propunha discutir a formação de professores no contexto das regiões de imigração alemã, no Rio Grande do Sul.

O que me instigou a pesquisar esse tema foi a constatação de que, em um contexto em que a feminização do Magistério já era uma realidade, no Brasil, desde o início do século XX, nas regiões de colonização alemã, a docência seguia sendo majoritariamente, senão exclusivamente, masculina. Nessas regiões, criou-se quase que um sistema educacional paralelo ao sistema educacional brasileiro, vinculado às Igrejas Luterana ou Católica, no qual as aulas eram em alemão e ocorriam em escolas rurais, que, em sua maioria, também tinham os seus currículos próprios, e os professores eram homens. Então, essa dissonância entre um contexto nacional, em que a feminização do Magistério era uma realidade e um sistema confessional teuto-brasileiro espraiado pelo interior do Rio Grande do Sul, que continuava privilegiando professores, chamou minha atenção. Fiz a tese de Doutorado com esse foco: Escola e Docência teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul, na perspectiva de gênero.

Você vê que minha trajetória é – sempre digo – meio estranha, porque é assim: a enfermeira cartesiana e biologicista, que pretendia discutir o currículo de formação profissional com uma abordagem mais técnica, acabou discutindo essa formação profissional na perspectiva de gênero com uma forte ênfase histórica, também para entender como a Enfermagem se constituiu como profissão feminina, passando, depois, para uma perspectiva de História da Educação inserida no contexto da imigração alemã. Entretanto, durante meu Doutorado, foi que mergulhamos, como grupo de pesquisa – o GEERGE – no estudo das abordagens dos estudos culturais e dos estudos de gênero pós-estruturalistas. Como já mencionei, a Guacira o criou em 1990 e eu já era mestranda dela; então, fiz parte desse movimento.

A pesquisa que fizemos em dupla, com financiamento da Fundação Ford, foi feita no âmbito do GEERGE. Todavia, foi no meu Doutorado que o grupo mergulhou fundo no texto de Joan Scott (1995), Gênero, uma categoria útil de análise histórica, o qual já tinha usado no Mestrado, mas não tínhamos, até então, nos dado conta das implicações da adoção desse conceito de gênero na sua radicalidade, uma vez que Joan Scott faz referência direta, explícita, ao conceito de poder, de Foucault, e ao conceito de desconstrução, de Derrida. Foi ali que começamos, de fato, a discutir a teorização foucaultiana e a desconstrução em Derrida, para, inclusive, nos darmos conta de quais eram os diálogos possíveis entre esse conceito de gênero e, por exemplo, a dominação masculina, de Bourdieu, ou com outras vertentes feministas.

Por exemplo, trabalhei muito com a teoria da reprodução de Bourdieu na minha dissertação de Mestrado, especialmente com os conceitos de habitus e de capital cultural, articulando-os com a definição de gênero de Joan Scott, sem dimensionar as tensões existentes nesse diálogo. Desse modo, durante o meu Doutorado, fomos também construindo um percurso importante, como grupo, pela discussão pós-estruturalista mesmo, dessa abordagem de gênero pós-estruturalista, e com uma forte ênfase dos estudos culturais, que tinham entrado ali com Tomaz Tadeu da Silva. Essas duas abordagens constituíram uma base importante de minha formação como pesquisadora e orientadora. A minha tese está inscrita no campo dos Estudos de Gênero e dos Estudos Culturais. Quando conclui o Doutorado, já vinha também atuando com duas colegas pesquisadoras que discutiam gênero no Mestrado em Enfermagem da UFRGS e fui fazendo um movimento de refazer o vínculo, com outras ênfases, com a área da Saúde. Isso porque eu não era historiadora, não era professora de História da Educação, mas, sim, de Didática e Prática de Ensino em Saúde, na Graduação. Além disso, o GEERGE e a própria Guacira já estavam se encaminhando para os estudos de gênero e sexualidade em sentido amplo, deslocando-se da abordagem da História da Educação.

Dentro do grupo e já credenciada no PPGE da UFRGS, fui me inserindo nas interfaces entre Educação e Saúde, para pensar as questões de gênero. Terminei o Doutorado em maio de 1999, e, em agosto, já era professora do PPGE da UFRGS; recebi as minhas primeiras duas orientandas em 2000. Então, esse referencial teórico foi muito importante para mim, para articular uma agenda de pesquisa própria no PPGE, e que ficasse nessa interface da Educação com a Saúde.

Assim, comecei o meu primeiro projeto de pesquisa, com o qual ganhei a bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, em 2001. Ele fazia uma análise do Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, para discutir representações de maternidade e identidades maternas que esse programa colocava em circulação. Comecei aí a fazer uma discussão, que foi se enveredando na direção da generificação[4] das políticas públicas – não utilizávamos o conceito de transversalidade até então. A não ser no último projeto de pesquisa, nós, no grupo de pesquisa que fui constituindo, não trabalhamos explicitamente com a noção de transversalidade de gênero, mas fomos encaminhando as nossas discussões nessa direção. À medida que o grupo de orientação aumentava, e em resposta às demandas colocadas pelas políticas de fomento e de avaliação da Pós-Graduação, fui propondo o que chamo de projetos guarda-chuva, as dissertações; e, depois, as teses que orientava foram inseridas nesse projeto que passava pela discussão da generificação de programas e de políticas públicas, na área da Educação e na área da Saúde.

Então, desde que passamos a pesquisar políticas públicas, considerando tanto sua proposição normativa quanto diferentes momentos e contextos de sua implementação, demos muita ênfase a um dos desdobramentos teórico-metodológicos do conceito de gênero, que é, justamente, a proposição de que o gênero, para além de constituir papéis e funções de mulheres e de homens, é um organizador do social e da cultura. A partir dessa noção de que o gênero é um organizador do social e da cultura, que é uma proposição que Joan Scott faz, vem essa ideia da generificação. Dessa maneira, podemos entender que o gênero atravessa tudo, no contexto da nossa sociedade, e que é preciso prestarmos atenção naquilo que ele (re)produz e transforma nesses atravessamentos que faz, mesmo quando não há nenhuma intencionalidade de investir explicitamente em aspectos e dimensões conectadas com relações de poder de gênero.

Entrevistadores: Quais projetos de pesquisa com a temática de gênero e sexualidade você desenvolveu? Pode comentar um pouco sobre as ações e os artefatos que deles foram criados?

Professora: Apresentei, inicialmente, como docente pesquisadora do PPGE, dois projetos de caráter ainda individual, que começaram a direcionar também as pesquisas de minhas primeiras orientandas. O primeiro, que se chamou “Mulher perfeita tem que ter mamas e uma barriguinha?”, tomava como mote uma propaganda de Dia das Mães que circulou naquele período [séculos XVIII e XIX], para poder exatamente discutir representações de maternidade, que programas como o de “Incentivo ao Aleitamento Materno”, do “Hospital amigo da criança” e do “Programa de pré-natal, parto, e puerpério do PAISM” colocavam em circulação.

Então, as minhas primeiras pesquisas foram muito centradas na questão da maternidade, e nós analisamos artefatos culturais e ações programáticas endereçadas a essa parcela da população. Orientei dissertações que fizeram discussões importantes sobre essa questão da maternidade, já em um vínculo com políticas públicas. Por exemplo, a Carin Klein, em 2003, discutiu o Programa Bolsa-Escola, que nem existe mais, e, depois, no Doutorado, discutiu e analisou o “Primeira Infância Melhor”, em 2010. A Letícia Prezzi Fernandes, em 2008, discutiu o Programa de Acolhimento de Meninos e Meninas Vivendo em Situação de Rua, que era um programa municipal. Duas mestrandas docentes de Enfermagem – Carmem Duro (2002) e Ivete Dutra (2005) – discutiram um programa municipal de atenção à saúde da criança e o Programa de humanização do parto e do nascimento, respectivamente. Já Maria Simone Vione Schwengber, em 2006, analisou a produção de corpos maternos na Revista Pais e Filhos. Foi em 2008 que apresentei meu primeiro “projeto guarda-chuva”, seguido, depois, por mais dois, nos quais mergulhamos mais organicamente na análise de políticas públicas de inclusão social, investindo também em outras articulações teórico-metodológicas, como os estudos de vulnerabilidade e a educação permanente em saúde.

Entrevistadores: É interessante como essa trajetória dentro da Enfermagem, bem como na área da Educação e as contingências institucionais, como você mesmo mencionou, proporcionam outros olhares, outras trajetórias; sua produção vai percorrendo, também, outros conhecimentos. Outro ponto que chamou muito atenção, em relação à sua produção, junto à Professora Sandra dos Santos Andrade da UFGRS, que discute a potência e os limites da transversalidade de gênero e analisa a produção científica sobre a transversalidade de gênero em políticas públicas, no Brasil, é que não é muito ampla, como mostrou o estudo na produção científica Transversalidade de gênero em políticas públicas: uma revisão de literatura, de 2019. Se você puder fazer essa conexão, considerando seus estudos sobre o tema, como você tem percebido a proposta da transversalidade de gênero no Ensino Superior?

Professora: A noção de transversalidade curricular de vários temas está presente, no Brasil, desde a proposição dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ela diz respeito a determinadas temáticas, como, por exemplo, da educação para a saúde ou da educação sexual, que deveriam transversalizar todas as disciplinas do currículo, em suas diferentes etapas. Tive de me envolver com essa discussão porque, na Graduação de Pedagogia, era professora de Educação em Saúde, um tema que pedagogos e pedagogas precisam trabalhar na Escola Fundamental.

Além disso, nos Parâmetros Curriculares, Educação em Saúde está posta como uma temática transversal. Não é para existir uma disciplina e uma professora específica para esses conteúdos, mas enfatiza-se que todos os professores precisariam trabalhá-los. Então, fiz algumas discussões, devo ter uma ou duas coisas publicadas, que não tem a ver com gênero, mas, sim, com essa questão da Educação em Saúde na escola, para discutir a transversalidade. Ela se colocava, na verdade, como um problema, porque, de fato, o que era transversal estava muito mais focado em exigências e normas da escola, na direção de promoção de hábitos de higiene, enfim, nessas coisas.    

Do ponto de vista de uma formação mais ampla dos alunos e das alunas, relativa a cuidados com o corpo, a promoção da saúde e a prevenção de doenças, bem como a responsabilidades coletivas frente a essas questões, isso era muito pouco trabalhado. A ênfase acabava sendo higiene corporal nas chamadas séries iniciais (hoje Ensino Fundamental I) e prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis, a DST, HIV e AIDS, bem como prevenção de gravidez e uso de substâncias psicoativas no Ensino Fundamental II e no Ensino Médio, temas que acabavam ficando quase sempre como responsabilidade dos professores de Ciências, Biologia ou Educação Física. Então, a transversalidade não se efetivava como tal; ao mesmo tempo, como ela não se efetivava, também acabava sendo um domínio, que era para ser de todos, e acabava não sendo de ninguém. Quando ela fica no domínio das Ciências ou da Biologia vai ser tratada de forma mais reducionista, como saúde do organismo; e, sobretudo, para os alunos dos últimos anos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio fica muito centrada na prevenção de doenças. Desse modo, a transversalidade está colocada como um conceito, um operador curricular, desde os Parâmetros Curriculares Nacionais.

Minha atuação na Graduação em Pedagogia e no curso de Enfermagem, com prática de ensino, até onde acompanhei essas discussões, permitiu-me perceber que também, no próprio currículo de formação das pedagogas e das enfermeiras, havia aquela disciplina perdida ali, de dois créditos; depois, passou para três, no quarto semestre; ninguém falava antes desse tema, e também seguia não falando dele. Então, nem na Pedagogia a ideia da formação transversal para trabalhar com Saúde na Escola se operacionalizava. Ouso dizer, embora não tenha vivenciado na Graduação uma proposta de transversalidade de gênero nos currículos, que ela padece um pouco dos mesmos problemas.

Além disso, não tínhamos uma diretriz claramente estabelecida (até 2011, quando me aposentei) como princípio organizador curricular, na qual todas as disciplinas precisam tratar de questões de gênero, de classe, de raça, enfim. Sei que no currículo atual essas questões estão postas de forma mais explícita em várias disciplinas e, especialmente, nos estágios docentes. Mas, se assumimos que o gênero é um organizador do social e da cultura e que, no contexto da cultura brasileira, a raça funciona como um organizador, então essas questões teriam, praticamente, que atravessar todas as disciplinas. Todavia, elas acabam, ainda hoje, por estar muito vinculadas não só à vontade das professoras que ministram as diferentes disciplinas, mas à formação que essas professoras têm, ou à inserção política que elas têm.

Então, acho que hoje, ou melhor, nos últimos cinco anos, houve uma discussão política mais forte colocada sobre essas questões de gênero e de raça; talvez, por isso, existam possibilidades mais concretas para que, de fato, se faça uma certa operacionalização dessa transversalidade nos currículos. Deixei de dar aula na Graduação porque me aposentei em 2011, mas segui dando aula na Pós-Graduação até 2019 e sigo participando de eventos de atualização docente nas escolas. Mesmo na Pós-Graduação, onde temos as linhas de pesquisa de Estudos Culturais e de Gênero e Sexualidade, desde meados dos anos de 1990, não sei o quanto outras linhas de pesquisa recuperam essas dimensões de gênero e de raça para pensarem, por exemplo, a Educação no Campo, as relações entre Educação e Trabalho, a formação de professores e de professoras, que são outras linhas de pesquisas que estão colocadas lá. Até acho que as discussões acontecem, mas de forma muito conectada a interesses de pesquisa específicos de determinados estudantes.

Nesse sentido, penso que a discussão da transversalidade na minha trajetória, para voltar agora ao texto publicado com a Sandra [Transversalidade de gênero em políticas públicas: uma revisão de literatura], é parte dos resultados de uma pesquisa (2014-2018), que foi, de fato, a mais abrangente que coordenei, tanto em termos de número de pessoas quanto de focos temáticos. Eu a pensei mesmo, digamos assim, como a pesquisa de fechamento de uma trajetória, que se desenhou a partir da pesquisa individual para a pesquisa coletiva, porque investi em alguns princípios, pedagógicos e políticos, que nortearam toda a minha atuação na Pós-Graduação. Não era só uma questão de fazer pesquisa e dar conta de indicadores de produção acadêmica stricto sensu. Tive envolvimento com um certo projeto de formação de pesquisadores e pesquisadoras, que prezava muito o trabalho coletivo; então, exercitei, desde muito cedo, no nosso PPG, a proposta de fazer orientações coletivas, sem que essas orientações coletivas elidissem, ou substituíssem, as orientações individuais. Os grupos de orientação coletiva contavam créditos e agregavam os estudantes e as estudantes nos projetos uns dos outros. Assim, há uma certa responsabilidade, que se tem em um grupo, de contribuir e, de alguma forma, de participar com responsabilidade desses trabalhos.

Se você olhar o meu currículo lattes, vai ver que muito antes que isso se tivesse colocado, de fato, como exigência do CNPq, já tinha pesquisas realizadas em grupo, e muito artigos e textos produzidos em coautoria com orientandas e orientandos, e com colegas de trabalho. Sempre investi muito, também, em uma alavancagem dos meus orientandos e orientandas; quer dizer, eles não são só pessoas que participavam trabalhando daquelas pesquisas, mas se constituíam, de fato, como parceiros e parceiras de trabalho. Então, é como você ir, de fato, investindo em uma formação mais ampla de alguém que está fazendo pesquisa, do que só cuidar da sua pesquisa e pensar que tem que produzir não sei quantos artigos. Depois, também optei, e isso foi uma opção mesmo, por investir menos em redes de colaboração internacional e em publicar fora do país; investi pouco nisso.

Optei por investir na produção de redes com universidades de outras regiões do Brasil e do interior do Rio Grande do Sul; quer dizer, movida pelas diferentes inserções institucionais de minhas parceiras, ex-orientandas, fomos compondo parcerias com a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, a UFRB, em Amargosa, com a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, a Unijuí, com a Universidade Federal da Paraíba, a UFPB, inclusive com o objetivo de dar suporte para a constituição e o fortalecimento de grupos de pesquisa de gênero, que elas foram criando nesses lugares.

Então, essa última pesquisa que coordenei, claramente, tinha três objetivos. Primeiro, de produção de conhecimento, que era discutir como é que a questão da transversalidade de gênero, ou da transversalização de gênero, se colocava nesse conjunto amplo de políticas públicas, que viemos analisando há mais de uma década. Segundo, de pensar, e aí que se dá o desdobramento que Sandra Andrade, Carlos Eduardo Barzotto (Cadú) – que era nosso bolsista de Iniciação Científica – e assumimos, que era o de discutir as tensões e os desafios que estão colocados para a operacionalização da transversalidade de gênero em políticas públicas, considerando estudos já publicados sobre isso. Foi, um pouco, mapear o estado da arte, ou fazer uma revisão bibliográfica sobre o tema. E o terceiro objetivo foi justamente o fortalecimento de grupos de pesquisa nas universidades parceiras. Por isso que dizemos que a pesquisa foi multicêntrica, porque envolveu pesquisadores da Unijuí, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a Unisinos, da ULBRA, da UFPB e da UFRB; eram cinco universidades. Depois, ainda, entrou a Universidade Federal do Espírito Santo, a Ufes.

Seis universidades envolvidas e basicamente todas as docentes pesquisadoras foram, em algum momento, minhas orientandas; elas são professoras, bem inseridas e referências em estudos de gênero nessas instituições. Assim, a ideia foi de, inclusive, com recursos financeiros captados do CNPq, financiar uma infraestrutura básica para esses grupos de pesquisa, nessas instituições. Foi um projeto que durou quatro anos. No relatório que fizemos do projeto, evidenciamos algumas coisas que experimentamos ali. Apesar de ter sido a coordenadora do projeto, não fui necessariamente coautora de todos os artigos. Nós tínhamos Núcleos, o Núcleo da Unijuí, porque a Simone era uma das professoras que tinha um núcleo constituído e já era orientadora sênior no seu programa. Então, ela entrou com as suas orientandas no grupo e desenvolveram subprojetos vinculados ao projeto, mas as autorias dos novos projetos de pesquisas ficaram naquele grupo.

Como coordenadora e orientadora de vários dos subprojetos, fui sempre coautora, e não autora principal. Penso que é uma forma de abrir espaços e investir na constituição de vozes autorizadas dessas professoras nas instituições das quais fazem parte. Assim, há coisas, nesse projeto, que estão vinculadas a uma ideia de produzir conhecimento, claro; de ter produtividade, claro; mas que também tinham desdobramentos éticos e políticos, que iam além dessa questão. Foi nesse contexto de parceria e produção coletiva que investimos fundo em uma discussão conceitual sobre a transversalidade. Acho que ajuda a pensar –não tinha pensado nisso antes, estou sendo levada pela provocação de vocês –, um pouco, o que acontece nos currículos, quando se fala em transversalidade de gênero.

Nesse mergulho, trabalhamos com Jussara Prá e Cecilia Sardenberg, que são conhecidas, no Brasil, por essa discussão, no campo das políticas públicas. Elas nos permitiram argumentar que, quando estamos falando do gênero como um organizador do social e da cultura, estamos falando em transversalidade de gênero. E essa transversalidade está dada, certo? Porque o gênero é transversal, ele opera organizando todas as esferas da vida social, suas instituições, suas políticas, os processos educativos. É preciso que façamos uma analítica dessa transversalidade, ou de como é que o gênero funciona em determinados tempos, lugares e contextos. O que, e como, ele funciona ali? Isso nem sempre é da ordem da intencionalidade, mas faz parte do que se produz e reproduz, na maioria das vezes, de forma naturalizada, na cultura, reforçando o que se entende e se vive como normal, como legítimo e como desejável, do ponto de vista de gênero e de sexualidade. Por isso, as duas autoras propuseram a noção de transversalização de gênero que ajuda a pensarmos melhor sobre essas questões.

Entrevistadores: Então, como se pensar o currículo da Educação Superior desde a perspectiva da equidade e da transversalização de gênero?

Professora: A transversalização de gênero quando propões investigar como é que, intencionalmente, os currículos e seus professores e professoras trabalham relações de poder de gênero, demanda entender como é que o gênero funciona, de forma naturalizada ou nem tanto, no contexto daquele currículo e das salas de aula e escolas que o operacionalizam, porque a proposta da transversalização implica tentar mudar, com intencionalidade e de forma explícita, essas formas naturalizadas de funcionamento. Tem uma intencionalidade política explícita colocada aí. É isso que elas argumentam, e nós acabamos concordando com elas, uma vez que o termo, em inglês, é Gender Mainstreaming. Foi traduzido, em um primeiro momento, como transversalidade de gênero, mas essa, talvez, não foi a melhor tradução para um termo que pretende ser ferramenta conceitual implicada com mudança e com transformação social.

A transversalidade tem a ver com essa ideia de que o gênero atravessa tudo, que ele é um organizador do social e da cultura. A transversalização significa investir em processos de transformação dessas relações desiguais de gênero vigentes; relações e condições que, no Brasil e fora dele, continuam subjugando e subalternizando, também de maneiras desiguais, diferentes grupos de mulheres, incluindo mulheres trans, não só mulheres cis, e, também, alguns grupos de homens, cis e trans, em determinados contextos. Então, a questão toda vai ficando mais complexa, quando você pensa dessa forma.

Em termos de políticas públicas, o nosso grupo também fez críticas à noção de transversalidade de gênero, tal como operacionalizada em políticas públicas no Brasil, uma vez que estas seguiam focando, predominantemente, mulheres. Foi preciso investir nessa discussão e articular a noção de transversalização com as de equidade e de igualdade, para entender que transversalizar o gênero é investir em ações de equidade, o que implica tratar de forma desigual grupos que são posicionados de forma desigual na sociedade. Então, se mulheres são subalternizadas, transversalizar o gênero, para ter como resultado a igualdade de gênero, significa privilegiar os grupos subalternizados, com recursos de proteção, políticas redistributivas e oportunidades de educação e de empregabilidade. Isso explica porque as políticas, para produzir igualdade de gênero, precisam dar, digamos assim, prioridade para mulheres, por exemplo; ou, em políticas já direcionadas para mulheres, você precisa dar prioridade para mulheres negras, por exemplo. Desse modo, é uma rede conceitual que as próprias políticas públicas, na sua proposição, os textos normativos e, principalmente, a formação profissional para sua implementação não trabalham.

Entrevistadores: Sim. É interessante todo esse destaque. Primeiro, retomando o seu compromisso pedagógico e ético, no que se refere à sua formação e à formação dos que estão ao seu redor, acreditamos que isso se torna uma marca específica sua, da Professora, que, como se diz, tece, lança outras sementes em outros lugares, que consideramos fundamentais para a própria formação, como docente e como pesquisadora. Gostaríamos de retomar uma reflexão que a professora fez, anteriormente, que se refere à discussão sobre a inserção de disciplinas obrigatórias, ou optativas, de gênero e de sexualidade, na formação docente, uma vez que a professora já tem uma longa produção na formação continuada sobre isso e uma formação bem basilar, na formação inicial, sobre os avanços e os limites dessa inserção. Como a professora tem visto essa discussão, e como ela reflete sobre essa proposição das disciplinas obrigatórias, ou não, no currículo?

Professora: Olha, aqui vou ficar um pouco nas minhas impressões, porque, como disse, não estou atuando na Graduação há dez anos. Tenho atuado em Programas de Educação Continuada, ou como chamamos de Educação Permanente, de professores e professoras já formados. Sinto que tínhamos um espaço maior, um investimento público e programático mais consistente, para alavancar esse tipo de formação e sua inserção nos currículos escolares. Entretanto, de 2016 para cá, temos vivido um refluxo nessa questão, o qual tem um efeito paradoxal, porque, por um lado, há toda uma série de obstáculos, de diferentes tipos, para que gênero e sexualidade sigam sendo abordados como questões político-pedagógicas importantes para uma sociedade que se quer democrática, igualitária e pautada por princípios de direitos humanos e de cidadania. Por outro lado, pesquisas, como as conduzidas pela Marlucy, têm mostrado que gênero se tornou uma arena de fortes disputas políticas, uma vez que se falou mais disso na cena política mais ampla.

Professores e professoras que nem sabiam o que era gênero e nem se interessavam por essas questões, digamos assim, passaram a ficar atentos a isso e a se aproximar, inclusive, das temáticas. Os que já tinham uma certa militância, ou proximidade, interesse e atuação com esse tema, até como forma de exercício de resistência, vão buscar se fortalecer nessa direção. Então, acho que essa nossa perspectiva pós-crítica de análise ajuda a entendermos e analisarmos melhor que não se trata só de coerção, e nem só de incentivo, mas que essas duas coisas acontecem concomitantemente. Quer dizer, há, de fato, coerções; há, de fato, uma certa perseguição; e há, de fato, o exercício de vigilância, enfim, sobre os professores, nesse sentido. Todavia, ao mesmo tempo, isso também os fortalece para buscarem escapes; as pessoas buscam se informar e estudar para se colocarem de uma forma mais qualificada na discussão, e para conseguirem defender os seus argumentos, na cena pública.

Essa é uma das razões pelas quais, eu, por exemplo, e acho que o grupo da Marlucy também vai na mesma direção, nunca abri mão de discussão conceitual densa. Mesmo quando estou conversando com plateias amplas, as pessoas podem dizer: “Ah, isso aí é ‘academicês’, uma linguagem muito difícil, muita teoria, etc.”. Essa, também, é uma bandeira política que deveríamos perseguir. Se não conseguirmos que grupos maiores de pessoas aprendam a operar com teorias e conceitos, mobilizando-os como ferramentas para atuação social, se só ficarmos na prescrição, podemos não sair do lugar, porque a prescrição tem limites, ela tem muitos limites. O domínio conceitual permite que as pessoas sejam criativas, que encontrem os seus próprios caminhos, que façam desvios e possam pensar de outras maneiras; que pensem, como digo, “de forma contexto dependente”. Ou melhor, o que aquele contexto permite pensar e fazer com esse conceito. É um pouco por aí, os nossos desafios atuais.

Ao longo da minha trajetória, também fui fazendo esses movimentos. Por exemplo, fui fazer Pós-Doutorado em Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, a USP, porque, à medida que fomos avançando nessa agenda de pesquisa de análise de políticas públicas inclusivas, direcionadas para as populações chamadas de risco e depois de populações vulneráveis a serem incluídas socialmente, foi possível perceber que elas estavam muito direcionadas para mulheres pobres, mesmo quando se referiam a famílias pobres.

Então, tu precisas estudar o vocabulário das políticas, em um determinado momento, de forma mais intensiva. Bom, a partir de 2004, as palavras “mãe” e “maternidade” quase somem das políticas, e aparece a palavra “família”. A noção de risco desaparece e entra a de vulnerabilidade. Fui fazer o Pós-Doutorado da USP para estudar o quadro conceitual da vulnerabilidade, para podermos entender o que o termo implica quando entra no domínio do vocabulário das políticas, em termos de mudança e de permanências. Nesse sentido, conseguimos, no grupo, operacionalizar muito essa ideia do gênero como organizador do social e da cultura, articulando-a também com um dos desdobramentos da noção de vulnerabilidade, que é a vulnerabilidade programática que permite pensar que, muitas vezes, as políticas que têm a intenção de minorar vulnerabilidades funcionam na direção de aprofundar algumas dessas vulnerabilidades.

Foi essa articulação que nos levou a discutir o princípio da transversalidade de gênero proposto no Plano Plurianual brasileiro de 2004. Ao mesmo tempo em que constatávamos que as políticas explicitam e assumem a palavra “gênero”, elas seguiam reforçando determinadas posições de desigualdade de mulheres, investindo em sua educação como mães; e vão fazer isso, em muitos momentos, aprofundando a ideia de que as mães são as grandes responsáveis pelo sucesso e, sobretudo, pelo fracasso de seus filhos, nos planos sanitário, educacional, social mais amplo. Então, essa é uma política que aprofunda determinadas vulnerabilidades de gênero, embora, ela tenha intencionalidade de transversalizar o gênero, entende?

Posteriormente, fizemos também uma certa articulação com a noção de Educação Permanente, nas duas últimas pesquisas que coordenei, para pensarmos exatamente a formação de profissionais que atuam nessas políticas, no trabalho e pelo trabalho. É assim que se dá a formação de profissionais que atuam nas redes e nas suas pontas: no trabalho de operacionalização de políticas públicas. Essa formação se dá no trabalho e pelo trabalho, e é preciso entender que formação é essa, o que as políticas ensinam, e o que profissionais aprendem e desaprendem com elas. Entretanto, tanto o quadro conceitual da vulnerabilidade, quanto o da Educação Permanente são quadros conceituais que têm uma base em teorias críticas emancipatórias. Como é que trabalhamos essa tensão que se estabelece entre uma abordagem de gênero pós-crítica com esses outros olhares que funcionaram, para nós, como aportes metodológicos?  Como é que você pensa a operacionalização da pesquisa? Então, são coisas interessantes.

Diria que elas só foram possíveis porque eram projetos coletivos, porque tinham várias pessoas envolvidas, mesmo que estivessem estudando políticas diferentes, e em instâncias diferentes; algumas analisando textos programáticos, outras trabalhando com grupos focais, com profissionais na ponta, outras fazendo etnografias de campo mais amplas. Nessa perspectiva, como é que você consegue articular esses diferentes tipos de conhecimento produzidos em diversos subprojetos para constituir um conhecimento mais amplo, que te permite fazer uma leitura mais complexa e mais ampliada desse real que você está analisando? E aí, claro, tinha orientandas que atuavam na Enfermagem e na Saúde Pública, orientei muitas pessoas da Educação Física, além de professoras do Ensino Superior e da Escola Básica. Assim, formou-se um grupo multidisciplinar com pessoas inseridas em diferentes contextos profissionais e geográficos. Penso que isso contribuiu muito para que pudéssemos fazer esses diálogos de uma forma mais ampla.

Entrevistadores: Professora, ficamos encantados, se é que essa palavra pode ser utilizada neste momento. Gostaríamos, porém, de destacar esse compromisso da formação humana que você desenvolveu. Retomamos essa perspectiva da expressão “Formação Travessia”, que você utilizou na aula, na disciplina de “Seminário de Pesquisa” na UFMG. Gostaríamos muito de agradecer a sua disponibilidade. É sempre um aprendizado esses momentos de compartilhamento de experiências, essa retomada do campo de pesquisa e reflexão da atuação na docência.

Professora: Eu que agradeço por me ouvir. Hoje é tão raro, também, ter tempo para uma escuta que acolhe a pesquisadora na sua integralidade, porque eu falei para vocês aqui de uma trajetória acadêmica, sem deixar de fora outras dimensões da vida, que contribuíram e/ou demandaram para que ela se tornasse o que é.

Referências

ANDRADE, Sandra dos Santos; MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann; BARZOTTO, Carlos Eduardo. Transversalidade de gênero em políticas públicas: uma revisão de literatura. Revista Prâksis, Novo Hamburgo, v. 2, p. 81-106, 2019. DOI: https://doi.org/10.25112/rpr.v2i0.1816

 

DAL'IGNA, Maria Cláudia; KLEIN, Carin; MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann. Generificação das práticas escolares: uma abordagem feminista pós-estruturalista. Currículo sem fronteiras, [s. l.], v. 16, p. 468-487, 2016.

 

DURO, Carmen Lucia Mottin. Maternidade e cuidado infantil: concepções presentes no contexto de um programa de atenção à saúde da criança. 2002. 169 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/11987/000343303.pdf. Acesso em: 15 set. 2021.

 

DUTRA, Ivete Lourdes. Parto natural, normal e humanizado: a polissemia dos termos e seus efeitos sobre atenção ao parto. 2005. 147 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/6067. Acesso em: 15 set. 2021. 

 

FERNANDES, Letícia Prezzi. Nas trilhas da família... Como e o que um serviço de educação social de rua ensina sobre relações familiares. 2008. 123 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

 

 

 

KLEIN, Carin. “...Um cartão [que] mudou nossa vida?”: maternidades veiculadas e instituídas pelo Programa Nacional Bolsa-Escola. 2003. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/3814. Acesso em: 15 set. 2021.  

 

KLEIN, Carin. Biopolíticas de inclusão social e produção de maternidades e paternidades para uma “infância melhor”. 2010. 255 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/27048. Acesso em: 15 set. 2021.  

 

LOURO, Guacira Lopes; MEYER, Dagmar. A escolarização do doméstico. A construção de uma escola técnica feminina (1946-1970). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 87, p. 45-87, 1993. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/1896/1863. Acesso em: 15 set. 2021.  

 

SCHWENGBER, Maria Simone Vione. Donas de si? A educação de corpos grávidos no contexto da Pais & Filhos. 2006. 198 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/8937. Acesso em: 15 set. 2021.  

 

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

 

 

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Notas



[1] Esta pesquisa teve como objetivo geral analisar as percepções de docentes e discentes sobre gênero e sexualidade no currículo de Pedagogia na formação transversal na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

[2] A Professora Doutora fez referência a reflexões realizadas na aula ministrada no dia 9 de junho de 2021), cujo tema foi “Pesquisar Gênero e Educação em perspectivas pós-estruturalistas”, como docente convidada da disciplina “Seminário de Pesquisa” na UFMG.

[3] Para saber mais acesse Louro e Meyer (1993).

[4] Para mais detalhes sobre essa discussão, ver Dal’Igna, Klein e Meyer (2016).