Construção da identidade docente em tempos de pandemia: narrativas de professores/as do ensino fundamental
Construction of the teaching identity in times of pandemic: narratives of elementary school teachers
Construcción de la identidad docente en tiempos de pandemia: narrativas de docentes de primaria
fosilva@uefs.br
geruzafribeiro@hotmail.com.br
ednagamaoff@gmail.com
Recebido em 20 de setembro de 2021
Aprovado em 26 de novembro de 2021
Publicado em 04 de julho 2023
RESUMO
O texto enfoca a identidade profissional docente de professores/as da educação básica, promovendo uma análise compreensiva sobre como os/as professores/as têm habitado a profissão docente em tempos de pandemia. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo identificar os fatores que se relacionam com a construção da identidade docente em tempos de pandemia. Para tanto, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas e aplicadas a um total de quatorze professores/as de três municípios do Estado da Bahia, com atuação profissional nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Foram elaborados dois blocos de questões: o primeiro, com três questões fechadas sobre o perfil profissional do/da informante e o segundo bloco, contendo quatro questões abertas a partir das quais se buscavam respostas mais amplas a respeito dos impactos da pandemia, com foco na construção da identidade docente. De natureza qualitativa, as entrevistas foram dispositivos que proporcionaram um mapeamento sobre como os professores/as têm desenvolvido práticas e saberes da docência na pandemia. Os resultados evidenciam sentimentos de esgotamento, angústia, incertezas, sobrecarga, resiliência, além do abandono sofrido por parte das instâncias públicas nos processos de formação, o que compromete, ainda mais, a construção da identidade dos/as professores/as marcada pela própria história como uma profissão que diuturnamente está em processo de autoafirmação, sobretudo em constante busca pelo reconhecimento dos poderes públicos e da sociedade.
Palavras-chave: Identidade docente; Pandemia; Ensino remoto.
ABSTRACT
The text focuses on the professional identity of teachers in basic education, promoting a comprehensive analysis of how teachers have inhabited the teaching profession in times of pandemic. In this sense, this article aims to identify the factors that are related to the construction of the teaching identity in times of pandemic. For that, semi-structured interviews were used and applied to a total of fourteen teachers from three municipalities in the State of Bahia, with professional performance in the first years of elementary school. Two blocks of questions were prepared: the first, with three closed questions about the professional profile of the informant and the second block, containing four open questions from which broader answers were sought regarding the impacts of the pandemic, with a focus on construction of the teaching identity. Qualitative in nature, the interviews were devices that provided a mapping of how teachers have developed teaching practices and knowledge in the pandemic. The results show feelings of exhaustion, anguish, uncertainty, overload, resilience, in addition to the abandonment suffered by public authorities in the training processes, which further compromises the construction of the identity of teachers marked by their own history as a profession that is constantly undergoing a process of self-assertion, above all in constant search for recognition by public authorities and Society.
Keywords: Teacher identity; Pandemic; Remote teaching.
RESUMEN
El texto se centra en la identidad profesional docente de los docentes de educación básica, promoviendo un análisis integral de cómo los docentes han habitado la profesión docente en tiempos de pandemia. En ese sentido, este artículo tiene como objetivo identificar los factores que se relacionan con la construcción de la identidad docente en tiempos de pandemia. Para ello, se utilizaron y aplicaron entrevistas semiestructuradas a un total de catorce docentes de tres municipios del Estado de Bahía, con actividad profesional en los primeros años de la Enseñanza Fundamental. Se elaboraron dos bloques de preguntas: el primero, con tres preguntas cerradas sobre el perfil profesional del informante y el segundo bloque, con cuatro preguntas abiertas a partir de las cuales se buscaban respuestas más amplias sobre los impactos de la pandemia, centrándose en la construcción de la identidad docente. De carácter cualitativo, las entrevistas fueron dispositivos que brindaron un mapeo de cómo los docentes han desarrollado prácticas y saberes docentes en la pandemia. Los resultados muestran sentimientos de agotamiento, angustia, incertidumbres, sobrecarga, resiliencia, además del abandono que sufren los organismos públicos en los procesos de formación, lo que compromete aún más la construcción de la identidad de los docentes marcados por su propia historia como una profesión que está constantemente en proceso de autoafirmación, especialmente en constante búsqueda de reconocimiento por parte de las autoridades públicas y la sociedad.
Palabras clave: Identidad docente; Pandemia; Enseñanza a distancia.
Introdução
O processo de construção da identidade docente é perene e constitui-se desde os percursos de formação inicial (SILVA, 2017), passando pela entrada na profissão (NÓVOA, 1992), sendo transversalizada pelas experiências que diuturnamente são produzidas no âmbito da profissão. Assim, a identidade profissional docente constitui-se em um processo que é fluído e, por isso, é constantemente retroalimentado pelos movimentos experienciais que professores e professoras logram no âmbito da atividade profissional docente. Assim pensando, é possível inferir que a identidade docente não é algo fixo, que é dado e cristalizado. Mas ela carrega em si os elementos da subjetividade de cada professor e professora que produz, também, singulares experiências no movimento de viver a profissão. A experiência aqui é tomada no sentido de acontecimento, de algo que acontece com uma determinada pessoa, que a toca, que a transforma e que a mobiliza a desenvolver aprendizagens (LARROSA, 2002).
Dito isto, e mobilizados por uma compreensão de como a identidade docente vai se consolidando nas experiências de vida, e de atuação profissional de professores e professoras, iniciamos a escrita deste artigo com as seguintes perguntas: Como professores e professoras constroem a identidade docente? Quais desafios são enfrentados diante dos olhares lançados sobre os professores e professoras no contexto atual?
Na busca de compreensões, revisitaremos as condições de trabalho, formação e valorização docente ao longo da história, percebendo que a identidade docente está inserida em um momento histórico, demarcado por uma época. Nóvoa (1992) nos adverte que identidade docente (ser e sentir-se professor) não é um dado, um produto, mas um lugar de conflitos, disputas, portanto um espaço de ser e estar na profissão. Logo, é preciso compreender o identitário docente, inserido na conjuntura.
Para Guimarães (2006), as práticas ligadas ao exercício da docência que são desenvolvidas na escola servem como elementos estruturantes para a orientação futura do exercício profissional. É na escola e em sua dinâmica que o professor desenvolve saberes para agir competentemente em situações pedagógicas. Isso só é possível, uma vez que é na escola que se estabelecem as relações entre pessoas, práticas e tempos de aprendizagem. Nesta ótica, esse movimento sugere que a identidade docente vai ganhando contornos ainda na formação inicial. Assim, “a prática profissional determina os contornos da profissionalidade a ser buscada nos processos de formação inicial e continuada e estes contribuem para a construção de novas práticas” (GUIMARÃES, 2006, p.30). O autor acredita que as práticas que são desenvolvidas na escola pelos professores determinam a sua profissionalidade, conceito que está mais ligado ao bom desempenho das funções profissionais do que a um conjunto de saberes, ações e atitudes que se relacionam com a produção da identidade docente.
Desde o ano de 2020, vivemos em um contexto pandêmico, com diversos aspectos negativos, inclusive na educação, em que os professores encontraram muitas dificuldades para organizarem e exercerem a docência, seja por ausência de formação, recursos materiais, distanciamento social ou políticas mais efetivas. Torna-se necessário uma escuta mais próxima junto aos mesmos para compreender os entraves para ser e estar professor, bem como perceber a fluidez da construção da identidade docente, no atual cenário.
Se por um lado, é comum atualmente, ouvir muitas queixas, mal-estares, relatos de medo, incerteza diante da educação, ao abordamos o ser docente em tempos de pandemia, por outro lado, podemos perceber o quanto de comprometimento, criatividade e busca por formações, os professores vem concretizando. No tempo novo, limitado e instável, olhares e vozes surgiram, anunciando que eles se reinventaram para exercerem a profissão.
Corroborando com tal ideia, Pimenta e Anastasiou (2002), afirmam que a identidade não é algo imutável, que possa ser adquirido, mas é um processo de construção do sujeito em um contexto histórico. Mas haveremos de considerar que a pandemia provocou uma nova forma de professores e professoras do ensino fundamental I habitar a profissão docente, e por consequência, construir novos paradigmas para o desenvolvimento do processo identitário. As salas de aulas se virtualizaram, e abriram as portas para um outro público, que mantêm relação com os estudantes, mas que não são eles, são seus familiares. Esses olhares “estranhos” convocam nesse novo tempo pandêmicos os/as professores/as a se reinventarem, a criarem novas táticas e astúcias (CERTEAU, 1994) para engendrar um ensino e desenvolver novas aprendizagens na relação com os estudantes, com os familiares e com a comunidade de forma geral.
A problemática, portanto, que emerge dessa situação, demanda uma compreensão outra dos modos de habitar a profissão docente, conclamada por situações que requerem dos professores/as habilidades, competências, logo, táticas e astúcias para empreender em novas aprendizagens que os/as levam a construírem saberes da docência, os quais, até, então, os/as docentes não tinham construído ao largo de seus percursos profissionais. Aprender na imprevisibilidade do cotidiano da profissão requereu dos/as professores/as esforços, disposições, aberturas e superação de obstáculos, fazendo-os/as enxergar e construir uma identidade multifacetada pelos desafios que a docência lhes impõe na contemporaneidade.
Nesse sentido, os/as docentes aprenderam e se modificaram, fazendo uso de diversas estratégias para continuarem sendo professores/as em espaços que não eram salas de aula conhecidas tradicionalmente, imbricados com alunos, colegas, famílias, em ambientes diferentes e sob olhares diversos. Cria-se uma alegoria de camaleão, para atender diariamente a exigência educacional na pandemia.
Seguindo o percurso dos diversos olhares sobre a identidade docente, destacamos como ponto de partida uma breve análise histórica sobre a identidade docente no Brasil, estabelecendo uma relação com o novo contexto pandêmico. Para tal intento, dialogamos com teóricos como Freire (1999), Libâneo (1999), Gadotti (2003), Bauman (2005), Canário (2006) dentre outros, e também com os autores que atuam na profissão, os professores e professoras.
Além dessa introdução, o presente trabalho está dividido em outras quatro seções. Na próxima explicitamos os aspectos metodológicos do estudo. Em seguida discorremos sobre os aspectos históricos e contemporâneos sobre a identidade docente no Brasil, mostrando como esse conceito está imbricado nas ações, modos e práticas de cada professor/a habitar a profissão docente. Na seção analítica, intitulada: Olhares sobre a identidade docente em contexto de pandemia, buscamos revelar os que os professores e professoras da Educação Básica, colaboradores do presente estudo concebem sobre os desafios da docência e o modo como eles têm constituído suas identidades. Por fim, mas não menos importante, tecemos as considerações finais, revelando os achados do estudo.
Tecituras metodológicas
O trabalho é de natureza qualitativa, pois buscou mapear os sentidos do vivido, do que os próprios colaboradores tecem ao abordar o modo como habitam a profissão docente. Elegemos o paradigma de pesquisa qualitativa, exatamente porque nesse tipo de abordagem o que interessa são os fenômenos sociais e do comportamento humano. Nesse aspecto, é o comportamento de professores e professoras no que tange ao vivenciar e experienciar a docência em tempo pandêmico, o que nos interessou, a fim de compreendermos como isso tem relação com a construção da identidade docente.
O estudo inspirou-se na perspectiva (auto)biográfica, que segundo Silva (2020) é uma abordagem que prima pelo vivido, pelo experienciado em determinada situação. Ainda segundo o referido o autor, é uma abordagem que possibilita centralizar questões da subjetividade, que no caso de professores e professoras, vêm à tona pelo modo narrativo e reflexivo em que as vivências e experiências de percursos formativos e profissionais são tratadas pelo próprio sujeito narrador. Interessa nessa abordagem, portanto, compreender o modo peculiar em que o/a próprio/a docente constrói reflexividade sobre si e sobre como lida com as questões da profissão docente.
Como dispositivo de pesquisa, utilizamos entrevistas semiestruturadas, realizadas por meio da plataforma Google Forms, contendo seis questões, duas que versavam sobre o perfil biográfico dos participantes e outras quatro que focalizavam as experiências de professores e professoras no desenvolvimento de práticas, saberes e estratégias de ensino, considerando o distanciamento social e a necessidade de desenvolvimento de aulas remotas. Assim sendo, as questões buscaram mapear como os professores estavam realizando aulas remotas, quais as principais dificuldades em relação ao trabalho mais expositivo, em que outros olhares se fazem presente na aula e na profissão docente e como o processo de construção identitária foi se constituindo nesse processo. As entrevistas foram gravadas, transcritas e dadas a ler a cada colaborador, colaboradora para validação das informações. Seguiu-se os paradigmas
éticos de pesquisa com seres humanos, em que os nomes dos/as colaboradores são fictícios a fim de preservar a identidade pessoal.
O estudo envolveu quatorze professores, que foram convidados e que aceitaram participar da referida pesquisa. São professores e professoras que atuam em diferentes redes de ensino de três municípios do interior da Bahia. Todos atuam nos primeiros anos do ensino fundamental I. São docentes que possuem em média cinco anos de atuação na docência com formação em cursos de licenciatura em Pedagogia. Esclarecemos que os princípios éticos foram devidamente observados, conforme preconizado no parecer consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos, que aprovou a pesquisa matricial, da qual o presente estudo se originou.
Para a efetivação das compreensões das informações, nos inspiramos no paradigma compreensivo e interpretativo de Ricoeur (2000). Assim, o processo de categorização foi constituído a partir dos núcleos temáticos que emergiam da própria narrativa, de cada professor/a, sendo agrupadas a partir da semelhança entre os sentidos que foram sendo construídos. Nesse sentido, o movimento se deu, não de interpretação dos pesquisadores sobre o narrado, mas de desvelar os próprios sentidos que os colaboradores produziam no ato de narrar, observando-se o foco que cada colaborador produziu no momento de narrar as experiências e vivências com a docência em tempos de pandemia.
Aspectos históricos e contemporâneos sobre a identidade docente no Brasil
Ao longo da história da educação no Brasil, alguns percalços contribuíram para a (des) construção da identidade docente a exemplo do próprio sentido que a educação escolar produzia ainda no Brasil colônia. Para entender melhor, situamos dois momentos em que o trabalho docente e as relações de poder são fatores marcantes na/para formação dos processos educacionais: o ensino dos padres jesuítas e a reforma educacional proposta pelo Marquês de Pombal.
Para os Jesuítas, os nativos eram sem cultura, sem religião e conforme descrito na carta de Pero Vaz de Caminha, “gente bestial e de pouco saber” e por isso precisavam ser aculturados sob os moldes europeus pelo sistema de catequização. Para tanto, eram rigorosos em sua formação, tanto que alguns trechos do Ratio Studiorum, Método Pedagógico desenvolvido pelos Jesuítas, apresentam requisitos imprescindíveis para o exercício da docência: lecionar a partir dos 30 anos de idade, afastamento das ideias iluministas e, apesar dos jesuítas se aproximarem dos costumes e da língua indígena, não poderiam ser amigos dessas tradições, mas usá-las como estratégia de conquista, de confiança e de meios para alfabetizar e letrar conforme o domínio português.
Para os indígenas, conviver e conhecer um novo povo, novos costumes e poder compartilhar de seus saberes representaram inicialmente um processo natural, sem interesses. Até certa medida, adaptaram-se à cultura europeia e aderiam ao cristianismo até que, a imposição imperou sobre a “inocência” dos nativos e puderam manifestar suas lutas e resistências contra a opressão da Colônia. Nesse interim, importa perceber qual era a compreensão dos indígenas sobre a representação do ensino e da figura do mestre e a relação que essas primeiras impressões têm com a visão sobre papel da escola e do professor na atualidade.
Após a expulsão dos Jesuítas, o Marquês de Pombal se incumbiu com a educação impetrando novas formas de oferta ao ensino. Instituiu juntamente com o governo impostos para cobrir as despesas com a educação, mas com a falta de recolhimento regular desses impostos, muitos professores ficavam sem receber os vencimentos. Até então os professores realizavam suas atividades em espaços improvisados e com saberes apoiados ainda em metodologias dos padres e jesuítas. Percebe-se então que a questão salarial, as condições de trabalho e a formação são aspectos decisivos e que continuam a perpetuar dentro da construção da identidade docente. (RODRIGUES, 2003)
Nesse sentido, ao longo da história, percebemos episódios que marcaram e ainda deixam marcas nas concepções do trabalho docente e consequentemente na construção de sua identidade. Quando analisamos as marcas deixadas pelas formas de contratação precárias, pelas metodologias de ensino que oprimiam e pelos objetivos com que a educação foi inicialmente implementada no país, encontramos várias lacunas que tem originado estudos cada vez mais amplos e que buscam compreender a origem da desvalorização do professor e da professora, da crise de identidade da profissão, principalmente, em um tempo de incertezas e constantes mudanças.
Constatamos que momentos da história influenciaram e continuam influenciando o percurso da educação e ao mesmo tempo causando uma preocupação quanto ao modelo de professor (a) atuante no ensino. Desde os primórdios com a colonização, até os dias atuais, percebe-se imposições no que se refere a construção da identidade do (da) professor (a), perante a si próprio e a sociedade.
Torna-se urgente, entendermos os elementos que impactam na construção da identidade docente, tornando-a um movimento constante, principalmente em um contexto tão incerto, trazendo à baila, reflexões de estudiosos que dialogam com a temática, bem como as vozes dos próprios protagonistas do processo identitário, professores e professoras. Segundo Bauman (2005), “a única constância, é a inconstância”, logo, nada é garantia de permanência para sempre.
Seguindo por essa via, busca-se formar o docente capaz de lidar com as novas exigências sociais, com competências e habilidades de ação-reflexão fundamentadas em tendências pedagógicas ou apoiadas em teorias inovadoras. Tal situação requer o reconhecimento primeiro do papel da escola como ambiente de interação, socialização e formação do cidadão como bem apresenta Canário (2006).
A identidade do/a professor/a que também encontra alicerce na sua formação, atualmente, surge com uma postura camaleônica, fragilizada, sem alunos, colegas, escola, com muitas informações e angustiados/as com o amanhã. São profissionais que vestem novas vestes impostas pela ausência do governo ou pela pressão da sociedade. Se camuflam, com identidades que não são suas para não sucumbirem ao desemprego, olhares e críticas externas.
Daí então o currículo, o ensino, a formação e a avaliação passam a serem componentes principais para sustentar a educação nos moldes de uma modernidade dotada de exigências. “Em face desses problemas, faz-se necessária uma reavaliação das relações entre escola e sociedade, entre informação e conhecimentos, entre as fontes de informação providas pelos meios de comunicação e o trabalho escolar realizado pelo professor” (LIBÂNEO, 1999. p.73).
Nesse sentido, devem ser formuladas as práticas de formação inicial e continuada do professor e ser a base de sua profissionalização considerando as problemáticas que giram em torno da educação bem como a importância do profissional docente frente a esse contexto (GADOTTI, 2003). A formação é também uma forma de se possibilitar a construção da identidade docente, que conforme assevera Silva (2017) é tecida nas acontecências dos percursos de formação, bem como no engendramento do fazer docente. O tempo pandêmico convocou os/as professores/as a se reinventarem, a investirem em uma nova formação, geralmente a autoformação, como forma de sobreviverem na profissão e, em decorrência disso, construírem aberturas, grietas, para a construção de um novo processo identitário em que o/a próprio/a professor/a encontra desafios e percalços para realizar tal construção.
Nesse sentido, professores/as estão imbricados em constantes processos de formação e de atuação para a docência, em que a escola e o professor figuram como elementos fundantes para a constituição da docência e da profissão docente. Assim sendo, as políticas educacionais focalizam a figura dos professores como agentes responsáveis e essenciais aos processos educativos, logo ao movimento de produção de mecanismos estruturantes de ensino e de aprendizagem, que se processam, mais comumente, em escolas.
Oliveira (1999) reuniu textos como resultados das apresentações de conferencistas no Fórum de debates sobre as políticas e as reformas educacionais, realizado em 1997 na Universidade Estadual de Santa Cruz no município de Ilhéus-BA. Um dos textos intitulado A escola do século XXI de Roberto Jarry Richardson vem confirmando a importância do professor quando cita: “pode existir professor sem escola, mas não pode existir escola sem professor. Para uma escola funcionar precisa estar centrada nesse profissional. A cabeça pensante da escola é o professor, as outras funções escolares devem estar a serviço das atividades do corpo docente.” (p.156).
É visível que o professor exerce um papel importante, não apenas dentro da escola, como para toda sociedade, considerando o objetivo de inspirar confiança no aluno que por sua vez possa questionar sobre o mundo em que vive. Nesse sentido as novas tecnologias não podem substituir o/a professor/a.
Os enfoques educativos baseados em teorias humanistas e construtivistas que valorizam as atitudes e a criatividade do aluno são cada vez mais presentes dentro das escolas, mas o professor continua sendo o eixo fundamental na construção do conhecimento. “Os professores são em geral, considerados os principais responsáveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema, no contexto atual de reformas educacionais e de uma nova regulação educativa.” (OLIVEIRA, 2006, p.212).
A partir do reconhecimento dos valores da escola e sua dimensão educativa, obtemos os valores docentes que por sua vez refletem as competências listadas por alguns estudiosos. Para Rodrigues (2003) o professor precisa ser pesquisador, refletir sobre a prática, capacidade de diagnóstico e observação, criatividade e possibilidade de uso dos recursos didáticos e metodológicos. Libâneo (1999) afirma ainda que os docentes precisam reavaliar conteúdos, ter comportamento ético para lidar com a diversidade cultural e social, orientar aos alunos nos conhecimentos e estratégias relacionadas aos valores e modos de agir, ensinar a pensar e aprender a aprender. Freire (1999) apresenta ainda que o docente precisa saber escutar, dialogar, ser tolerante, compreender a realidade em que vivem os alunos, refletir sobre a prática e, principalmente assumir uma postura vigilante diante das ideologias neoliberais.
Licciardi (2011) afirma que o professor deve considerar de modo geral sua responsabilidade no ato de ensinar e as consequências no exercício da docência para a formação do autoconceito e desenvolvimento intelectual dos alunos. Gera, assim, uma tensão no desempenho adequado da docência, não apenas às necessidades dos alunos como também da instituição de ensino. As diversas tarefas realizadas pelo professor necessitam de comprometimento e jornada de trabalho extra.
São desenvolvidas uma série de atividades e pesquisas, correções fora do horário de trabalho, tempo este que não é computado pela instituição. São horas trabalhadas e não remuneradas, uma realidade ainda mais visível durante a pandemia que tem afetado a saúde física e mental dos professores e professoras. A esse respeito, considera-se, ainda, o desafio de autoformar-se no processo de habitar a docência, em que a identidade docente vai se constituindo de maneira desafiadora e até imprevisível, pois os/as professores/as deslocam-se para superarem desafios, antes não esperados no âmbito da docência. São, portanto, novas formas e maneiras de habitar a profissão docente, mobilizando sentimentos, ações, vivências e experiências do ser professor em tempos de pandemia.
Mas, além das condições de trabalho em que os professores estão imersos em tempos pandêmicos, existem outros fatores que tem afetado a identidade docente? Quais são esses fatores? São questionamentos que serão discutidos mediante as percepções de quem tem propriedade para discorrer sobre esse cenário: os/as professores/as.
Olhares sobre a identidade docente em contexto de pandemia: o que revelam os professores e professoras da Educação Básica
O ano de 2020 foi marcado pela pandemia do novo coronavírus. Iniciada na cidade de Wuhan, na China em 2019, espalhou-se por todo o mundo causando uma onda de preocupações com a saúde, economia e educação. A doença denominada de Covid-19 não apenas afetou as decisões políticas, como também desenvolveu sentimentos de incertezas, medos e tensões na sociedade.
No Brasil, os impactos da pandemia foram/são enormes, desde o caos que se tornou o sistema de saúde, à continuidade da vida frente aos efeitos da doença. No contexto educacional, por exemplo, não se esperava que esse estado de calamidade interrompesse por muito tempo o funcionamento normal das escolas, pois não se tinha vivido uma situação parecida há gerações.
Passaram-se dias e meses com aulas presenciais suspensas, o que gerou uma série de iniciativas por parte dos/as gestores/as, professores/as, órgãos estaduais e federais a fim de propor ações com foco na continuidade do ensino. Foram adotadas uma série de medidas que pudessem, a partir do ensino remoto, atender às demandas educacionais dos estados e municípios.
Mas, como compreender e executar o ensino remoto diante das dificuldades de formação para tal proposta? Como os professores e professoras desenvolvem suas funções no ensino remoto sem perder de vista sua identidade? São essas algumas reflexões que deram origem a essa produção com o objetivo de identificar os fatores que têm afetado a identidade docente em tempos de pandemia. Esses professores e professoras representam a percepção do grupo de docentes que realizam o ensino remoto no Brasil e que convivem com um novo formato de aula apoiado nas tecnologias de informação e comunicação.
Dentre as estratégias adotadas pelas escolas e professores/as estão os grupos de WhatsApp, Telegram, Instagram[1], aulas online pela plataforma digital Google Meet [2]além de entregas mensais de blocos de atividades. Mas, para executar e administrar uma rotina de trabalho com essas ferramentas, necessitam conviver com o desgaste físico e mental causado pelo contexto de saúde nacional e pelas demandas que exigem o trabalho.
Diante desse panorama, muitos/as professores/as se sentem confusos/as. Uma das questões centrais que transversalizam o trabalho dos/as professores/as diz respeito aos novos expectadores da aula, da docência e de tudo que o/a professor/a aí realiza. Há um desafio bastante eminente para o/a docente que aponta para uma questão identitária. Como construir sua identidade diante do novo formato de educação, em que novos olhares são lançados sobre os professores/as durante o ensino remoto? As narrativas que surgem nos relatos dos/das professores/as é a de sobrecarga de trabalho, desvalorização e também ausência de apoio por parte de algumas famílias e do governo.
Tivemos que aprender e aplicar as tecnologias digitais nas aulas remotas, fazendo replanejamento usando plataformas digitais, com falta de apoio da gestão pública municipal, despreparo de formação docente e falta de parceria de algumas famílias no processo de aprendizado dos alunos (Cari[3], entrevista, 2021).
Já tínhamos uma carga de atividades burocráticas para cumprirmos, e com a pandemia, o trabalho aumentou com o intuito de atender a comunidade e os alunos, mas nem todos os alunos participam das aulas on-line… por falta de acesso aos recursos tecnológicos em que o estado deixa de cumprir com a população (Paty, entrevista 2021).
O trabalho docente é atravessado por um desafio de aprendizagem que desloca o/a professor/a de certas posições identitárias que antes ele/ela ocupava e que agora já não é mais realidade. Além de olhares outros, como o da própria comunidade, pais e familiares, o/a docente se depara com o desafio de construir novos modos de habitar a docência em que o trabalho só aumentou. O número de ações e preocupações se eleva, sobretudo pelo pouco apoio que os/as professores/as encontram no poder público e nas instituições, que mais cobram do que auxiliam. É uma emergência de um novo tempo, de um tempo que torna o/a professor/a ainda mais protagonista de suas ações educativas, colocando-o/a numa condição desafiadora de reinventar-se, de reexistir e de criar novos modos de constituir seu processo de identidade docente.
Percebe-se que por mais comprometidos/as com o trabalho, o identitário do/a professor/a foi convocado a novas aberturas, a constituir-se por outros desafios, antes não vivenciados na profissão. O trabalho do/a professor/a, em certas medidas, foi ameaçado, e a guerra por justiça social foi reduzida a batalhas por reconhecimento como aponta Bauman (2005). Para o autor, os processos de globalização têm forte influência sobre o trabalho, sobre a vida e a identidade dos sujeitos, o que caracteriza a docência como uma profissão em constante crise identitária.
Diante desse cenário, as escolas precisam ajustar-se às novas condições e efeitos da globalização e os/as professores/as que, num emaranhado mundo de transformações precisam assumir posições também inovadoras. Para Carnoy (2003) as reformas educacionais estão sob reflexo da mundialização e, consequentemente requer novas ações do docente frente às formas de avaliação da aprendizagem. E é isso que se visibiliza numa reforma educacional pandêmica que se constrói nas emergências do cotidiano, sem nenhuma prévia de organização e estruturação. A pandemia, simplesmente acontece, e de uma semana para a outra os professores/e professoras precisam se reinventar, precisam desenvolver saberes e experiências de uma educação antes nunca desenvolvida. A reforma educacional é imposta por uma cruel pedagogia do vírus, como nos assevera Santos (2020), que não escolhe momento, simplesmente acontece e desafia educadores/as a construírem novos modos de construir seu processo identitário e a enfrentar os desafios diuturnos e imprevisíveis da docência.
Ao passo em que os/as educadores/as direcionam suas práticas para as novas manifestações de cultura, das novas tecnologias e da necessidade de formação para o mundo do trabalho, vale ressaltar que, assim como um ser pensante e atuante na construção de consciência para o exercício da cidadania, o/a professor/a também exerce papel fundamental para a desconstrução das várias manifestações ideológicas e no pensamento contra hegemônico.
Oliveira (2003) apresenta dentro desse processo, as reformas educacionais e de como elas atuam na formação dos professores e na construção da profissionalização diante das mudanças ocorridas no mundo do trabalho. A Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, por exemplo, marcou um novo ciclo de discussões sobre a formação e valorização dos professores, porém, diante da pandemia, as iniciativas para o desenvolvimento do trabalho partiram muito mais dos professores e, em certa medida, de empresas privadas do que dos órgãos públicos.
Os professores, tecem redes de compartilhamento de informações e formações, se juntam para ofertar um ensino aos alunos, mas também buscam um reconhecimento, valorização que lhes fora negado na história.
A pandemia mostrou a força, criatividade e extraiu o melhor de muitos educadores, onde nos reinventamos, descobrimos e fizemos coisas que nunca imaginaríamos fazer e aprender, e isso tudo em meio ao caos provocado pela pandemia (Ana, entrevista, 2021).
Eu fui adaptando as atividades para os discentes que não têm acesso aos meios tecnológicos, no intuito de incluir todos, contornando, assim, as diversas dificuldades do atual contexto em que estamos inseridos, pensando outras formar de fazer a profissão. (Jasmim, entrevista 2021).
A reinvenção de si emergiu com uma constante na pandemia, momento em que muitos educadores e educadoras tiveram que se reinventar e construir uma identidade profissional docente antes não produzida, sobretudo pelos desafios que a pandemia impôs a cada um/uma. A descoberta, a prática insurgente, a criatividade e inventividade foram tônicas que possibilitaram aos/às professores/as a se permitirem viver uma experiência enquanto acontecimento, que os tocou, que os transformou e que os motivou a produzir feitos pedagógicos para incluir àqueles e àquelas que não poderiam estar excluídos do processo. Foram e são experiências singulares, de um tempo vivido que tocou cada um/a de modo a produzir saber, produzir conhecimento, a transformar, como nos diz Larrosa (2002), o modo como vivenciamos cada situação educativa.
Como sinalizam Silva e Rios (2018) a docência constrói-se numa aprendizagem experiencial, num movimento de reflexividade formativa e autoformativa que possibilita aos professores e professoras a construírem de forma perene a sua identidade profissional docente no cotidiano escolar. A pandemia criou condições para que houvesse transformação de práticas e de modos de habitar a profissão, convocando os docentes, como diz Ana em sua entrevista, a saírem de caos para gerar conhecimento no palco dos desafios que uma cruel pedagoga do Vírus (SANTOS, 2020) imputou aos profissionais que atuam no campo educacional.
Assim, para superar a crise instalada no tempo pandêmico, os professores deixaram de falar do óbvio que era justificar que não podiam fazer nada, devido às limitações geradas pelo distanciamento social e a ausência de recursos, para atuarem, para vivenciarem novas formas de constituir-se docente. Tal situação é o que percebe e defende Flecha (2000), ao mencionar Freire (1996), quando afirma que os/as professores/as passaram da cultura da queixa para a cultura da transformação. Reinventaram-se para alcançar todos os/as alunos/as, mas foram vistos pelo governo como a categoria de profissionais que não estavam trabalhando, e que, em razão disso, em muitos municípios brasileiros tiveram seu salário reduzido.
Ademais dessa problemática, as aulas passaram a contar com outros agentes, pais e familiares, que em muitas classes tiveram que se fazer presentes, ora para questionar e cobrar o trabalho do professor, ora para serem, também, partícipes da educação dos filhos e parentes. No entanto essa nova forma do/a professor/a desenvolver seu trabalho criou representações de valorização, mas também de crítica, de desvalorização e de ataques ao trabalho docente. Tal situação criou angústia, tristezas, incertezas, e por vezes, pondo em xeque a própria imagem e construção identitária que o/a professor faz de si. Vimos que os pais dos alunos, devido a dificuldade de ensinarem e permanecerem grande parte da rotina, com os filhos, usaram as lentes ampliadas, participaram das aulas e, em muitos casos, chegaram a afirmar e reconhecer a importância do ser professor/a. No entanto, nas narrativas dos/as professores/as vê-se que a sensação é de desvalorização do trabalho docente e de pouco reconhecimento. A esse respeito, Jasmim, em outro trecho de sua narrativa assim nos relata:
As dificuldades e desvalorização com os profissionais de educação é corriqueira em nossa sociedade, mas no cenário pandêmico os desafios ampliaram e a falta de reconhecimento dos órgãos públicos, principalmente devido a falta e atrasos de pagamento aos educadores, nos faz sentirmos menosprezadas, mesmo sempre buscando alternativas para superar as dificuldades para educar os discentes sem recursos básicas tecnológicos (celular e internet) para os professores manterem o contato com os alunos. Superação e inovação metodológicas são outras palavras que fizeram parte do cotidiano como educadora, pois apesar das dificuldades acolhemos o momento como propício para novas aprendizagens (Jasmim, entrevista, 2021).
As novas aprendizagens emergem de uma situação que é pouco desfavorável aos/às docentes, pois além da falta de apoio governamental, o novo gerou ansiedade para a produção de conhecimento e gerou, ainda, a dificuldade de saber como habitar a profissão e manter os salários em dia. A questão que apontou para uma saída viável revelou-se nos processos de comunicação, em que os/as professores/as lançaram mão de investir numa comunicação mais eficiente com os estudantes e com os familiares a fim buscarem, nisso, alternativas para continuar desenvolvendo o seu trabalho educativo e reconhecendo-se enquanto profissional docente. A esse respeito, a valorização e estímulo advindos dos familiares e estudantes foi fundamental. A comunicação foi uma das alternativas para que a atividade docente seguisse sendo efetivada.
Flecha (2000) destaca Habermas (1987) como o responsável pelo desenvolvimento da teoria da competência comunicativa na qual demonstra que todas as pessoas são capazes de se comunicar e gerar ações. Logo, todos possuem habilidades comunicativas para se comunicarem e atuarem em um meio e foi notório essa comunicação nos relatos dos professores. As mensagens enviadas pelos pais os faziam sentir-se valorizados e respeitados, aproximando-os cada vez mais de estratégias para promover um aprendizado aos alunos como afirma uma das professoras colaboradoras “Consegui ver o reconhecimento das famílias para o trabalho dos professores, principalmente na realidade pública, onde muitos têm dificuldades de acessibilidade” (Margarida, entrevista, 2021).
Porém, ainda existe um sentimento de insatisfação pela maioria dos/das professores/as e em alguns casos, que percebem a motivação e a desmotivação. Assim, há identidade docente vai sendo transversalizada por motivações e desmotivações oriundas do que os/as professores/as vivenciam no fazer educativo em tempo de pandemia. Sobre isso, as colaboradoras Ana e Cari assim ponderam:
Por mais que hoje as famílias vejam e/ou admitam, o quanto o professor desenvolve um papel de vital importância na sociedade, e tenha sentido na pele um pouco das dificuldades que passamos no cotidiano, não sinto que a categoria passou ser mais valorizada. Entendem mais de perto o processo, mas ainda assim não dão o braço a torcer sobre o quanto nos esforçamos para que educação aconteça de fato. Mas é claro que isso não abrange a todos e com certeza não deixa de valer a pena, tudo que buscamos para aprimorar a nossa prática (Ana, entrevista, 2021).
Acredito que a sociedade viu o quanto o professor tem sua importância no cenário mundial. Infelizmente uma parcela percebe, mas não muda a prática e desvaloriza seu papel. Vemos o descaso em vários segmentos quando nos retiram direitos em plena pandemia (Cari, entrevista, 2021).
A passagem de um ensino presencial para um ensino remoto, implicou aumento de demandas para os professores, mas também o aparecimento de novos problemas, como ser professor (a) perante esta nova situação, em que os alunos sem acessibilidade, muitos se mantiveram ausentes ou enviando atividades impressas, sendo olhadas com grande ceticismo pelo governo e em determinados momentos pela categoria.
Os/as professores/as passaram por mudanças que os obrigaram a fazer mal o seu trabalho, recebendo olhares de crítica, que não analisavam as circunstâncias que os impediam de realizar o processo de ensino. Perante as mudanças causadas pela pandemia, muitos (as) professores (as) foram atingidos pela ansiedade, medo, angústia, exaustão, incerteza e ausência de apoio. Esses sentimentos definiram o que é ser professor em tempos de pandemia e demonstraram enfaticamente como a identidade docente é mutável diante de situações tão desafiadoras como as que estão vivendo. Nisso implica reconhecer que a constituição da identidade docente é articulada entre o individual e o social, o que na pandemia, numa cruel pedagogia do vírus, como considera Santos (2020), desvela-se sobre o olhar do outro e sobre o seu próprio olhar.
O individual e o social se entrecruzam e se entrelaçam num movimento relacional que faz com que a produção de uma identidade profissional seja atravessada pela dimensão do pessoal e pelo sistema social de que se faz parte. “O saber do professor na interface entre o individual e o social, entre o ator e o sistema é um dos componentes que formam a sua identidade” (TARDIF, 2007, p. 16). Esse autor assevera que “embora os professores utilizem saberes, essa utilização se dá em função do seu trabalho e das situações, condicionamentos e recursos ligados a esse trabalho [...], [ou seja,] [...] que as relações dos professores com os saberes nunca são relação estritamente cognitivas [...]” (TARDIF, 2007, p. 16).
Considerações finais
A identidade é ambivalente, pois transita entre dois polos: opressão e libertação (Bauman,2005) e é nessa dualidade que os professores (as) estão imersos e imersas enquanto vivem um dilema na sua formação profissional e na constituição de sua identidade. Assim, o estudo possibilitou entender que no processo biográfico há uma gama de subjetividade que pode ser apreendida pelo conteúdo e pelo modo como o/a professor/a relata sua trajetória de formação para desenvolver saberes e experiências docente em tempos de pandemia, bem como pela forma como lidou com as dificuldades que a pandemia impôs ao trabalho docente.
De fato, o processo biográfico favorece a construção de uma ficção de si, de uma forma gestora de como o/a professor se vê e como ele próprio analisa os desafios que precisa enfrentar para habitar a profissão docente em tempos de pandemia. Assim, o processo de identidade profissional docente também é influenciado pelas relações que socialmente e pedagogicamente são estabelecidas. Se isso é verdade, será verdade também que pela condição de narrar suas trajetórias e desafios de viver à docência em tempos de isolamento social provocado pela pandemia, os/as professores estabelecem relações com tantos outros agentes que se presentificam em sua docência e no modo como arquitetam o seu fazer pedagógico.
A partir das inquietações descritas pelos docentes, verificou-se que em determinados momentos o ser professor/a é tomado pela liberdade de se poder decidir, criar, organizar seu modo de ensinar na pandemia, mas ao mesmo tempo migra-se para a opressão, quando se depara com as limitações que a distância lhe impõe, pelo acesso e usos dos recursos tecnológicos e pela impotência no atendimento a todos/as os/as estudantes.
Escapam-lhes pelas mãos o poder de fazer tudo que estavam acostumados no ensino presencial: o tato e o contato direto, as observações dos comportamentos e das dificuldades, a percepção do olhar do outro sobre seu trabalho e as metodologias de ensino que foram se apropriando ao longo de suas experiências tiveram que ser reconstruídas.
Portanto, a identidade flutua algumas vezes por escolha dos próprios professores/as, outras por interferências do sistema, da sociedade, da categoria. Por isso, essa necessidade de autoafirmação da profissão perpassa pela negação, pela desvalorização, pela falta de reconhecimento do trabalho.
Apesar de duas das professoras participantes considerarem que a sociedade percebeu a importância do/a professor/a, reconhecemos que as práticas de desvalorização social diante da profissão não mudaram muito. Ainda são presentes o desrespeito e a negação de direitos principalmente em um momento tão delicado de perdas pessoais, de fragilidades emocionais e tensões diante das incertezas.
Os/as docentes deixaram clara a insatisfação quanto ao formato do ensino remoto e foi unânime a menção de sentimentos negativos que descrevem a profissão nesses tempos: exaustão, sobrecarga, abandono pelos órgãos públicos e incertezas quanto ao futuro da profissão.
É preciso redefinir o papel do professor, assumindo que o ensino de agora é bastante diferente do que era antes da pandemia. E isto implica em um projeto de formação permanente, adequação de currículos, melhores condições de trabalho, reformas nas políticas educacionais, bem como a difusão da ideia das mudanças existentes, junto à sociedade, poderes públicos e a própria categoria para que no futuro bem próximo, os professores (as) passem a ser olhados de outro modo, com reconhecimento e valorização.
Em síntese é possível afirmar que o processo relacional com as pessoas favorece a produção identitária dos/das professores/as em diferentes espaços e condições de trabalho. As dificuldades e os desafios surgiram como um elemento vital nos processos de produção identitária, estando presente tanto na produção relacional como na biográfica, bem como na representação social da própria profissão docente, pois são nas acontecências da profissão docente de na narração que as experiências vão sendo tecidas, abrindo espaço para a compreensão de um processo identitário que está em perene construção, face aos desafios e as imprevisibilidades que a pandemia tem imposto ao trabalho docente. A pandemia tem sido um elemento considerável na produção identitária, mesmo porque as dificuldades que os/as docentes enfrentaram não assumem uma única conotação social para o/a próprio/a professor/a.
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[1] Aplicativos de mensagens, chamadas e fotos.
[2] Serviço de comunicação por vídeo desenvolvido pelo Google.
[3] Conforme preconizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos, que aprovou a pesquisa matricial, da qual o presente estudo se originou, os nomes aqui são fictícios, escolhidos pelos/pelas professores/as participantes do estudo, com o objetivo de preservar as identidades pessoais.