Estudos em Bauman: interlocuções com o cinema

 

Studies in Bauman: interlocutions with cinema

 

Estudios en Bauman: diálogos con el cine

 

 

 

Rafael Montoito

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense, Pelotas, RS, Brasil

xmontoito@gmail.com

 

Recebido em 16 de setembro de 2021

Aprovado em 23 de fevereiro de 2022

Publicado em 04 de julho de 2023

 

 

RESUMO

Este artigo apresenta uma análise do filme Amor.com, tomado como representativo do capítulo Individualidade, da obra Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman. A análise foi desenvolvida como um estudo teórico, visando ser apresentada em uma disciplina ministrada no Programa de Pós-graduação em Educação (IFSul), a qual considerou alguns filmes como um recurso potencial para o ensino de tópicos atinentes à modernidade líquida, sobretudo em tempos de distanciamento social. Amor.com foi escolhido por satisfazer três importantes perspectivas teóricas, as quais são apresentadas neste artigo: poder ser considerado uma escola de vida (MORIN, 2004); favorecer uma experiência estética (NOGUEIRA, 2002) e fomentar a insurreição à cafetinagem dos tempos atuais (ROLINK, 2019). Foram utilizadas, como metodologia de análise, as análises de conteúdo e textual (PENAFRIA, 2009), por meio de fotogramas escolhidos. Como resultado da análise, percebe-se que o filme pode ser tomado como uma metáfora do capítulo de Bauman à medida que discute questões como a sociedade hiperconectada, a busca por conselheiros da vida privada, a metamorfoseação de si em produto e a necessidade de se estar sempre em movimento numa sociedade pautada pelo consumo.

Palavras-chave: Cinema; Modernidade líquida; Individualidade.

 

ABSTRACT

This article presents an analysis of the movie Amor.com, taken as representative of the chapter Individuality, from the work Liquid Modernity, by Zygmunt Bauman. The analysis was developed as a theoretical study, aiming to be presented in a course taught in the Graduate Program in Education (IFSul), which considered some movies as a potential resource for teaching topics related to liquid modernity, mainly in times of social distance. Amor.com was chosen because it gathers three important theoretical perspectives, which are presented in this article: it can be considered a school of life (MORIN, 2004); it favors na aesthetic experience (NOGUEIRA, 2002), and it also foments the uprising to the pimping behavior of current times (ROLINK, 2019). As analysis methodology, content and textual analyzes were used (PENAFRIA, 2009), through frames chosen. As a result of the analysis, it is clear that the movie can be taken as a metaphor for Bauman’s chapter as it discusses issues such as hyperconnected society, the search for private life counselors, the self metamorphosis into a product and the need to be always in movement in a society driven by consumption.

Keywords: Cinema; Liquid Modernity; Individuality.

 

RESUMEN

Este artículo presenta un análisis de la película Amor.com, tomada como representativa del capítulo Individualidad, de la obra Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman. El análisis se desarrolló como un estudio teórico, con el objetivo de ser presentado en una disciplina impartida en el Programa de Posgrado en Educación (IFSul), que consideró algunas películas como un recurso potencial para la enseñanza de temas relacionados con la modernidad líquida, especialmente en tiempos de distanciamiento social. Amor.com fue elegida porque satisface tres importantes perspectivas teóricas, que se presentan en este artículo: puede ser considerada una escuela de vida (MORIN, 2004); favoreciendo una experiencia estética (NOGUEIRA, 2002) y fomentando la insurrección del proxenetismo actual (ROLINK, 2019). Se utilizó como metodología de análisis el análisis de contenido y textual (PENAFRIA, 2009), utilizando fotogramas seleccionados. Como resultado del análisis, queda claro que la película puede tomarse como una metáfora del capítulo de Bauman, ya que aborda temas como la sociedad hiperconectada, la búsqueda de consejeros de la vida privada, la metamorfosis de uno mismo en un producto y la necesidad de estar siempre en movimiento en una sociedad guiada por el consumo.

Palabras clave: Cine; Modernidad líquida; Individualidad.

 

 

Introdução: sobre pandemia e os novos arranjos para a educação  

            Este ensaio teórico apresenta, num primeiro momento, em caráter amplo, as motivações para a elaboração de uma nova disciplina para o curso de Pós-graduação em Educação (IFSul – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense, Câmpus Pelotas), nomeada tal qual este artigo; num segundo momento, discute com mais detalhes uma das análises elaboradas para compor esta disciplina[1].

A origem das reflexões que levaram à proposta da disciplina Estudos em Bauman: interlocuções com o cinema remete ao começo de 2020, quando o mundo foi pego de surpresa pela pandemia da COVID-19, cujos desdobramentos não pouparam o cotidiano escolar e colocaram o docente na delicada tarefa de ter que buscar estratégias diferenciadas e adaptáveis às realidades do seu entorno para que a educação não ficasse estagnada.

Mais do que fazer com que os educadores se desdobrassem para que o ano letivo não fosse perdido, da pré-escola à pós-graduação, a crise ressaltou “as influências de uma política que tem favorecido o capital em detrimento do trabalho e sacrificado a prevenção e a precaução em nome da rentabilidade e da competitividade” (MORIN, 2020, p. 37), assuntos dos quais se compreendeu a urgência de voltarem a integrar as discussões formativas de todos os grupos da sociedade.

            No Brasil, os desdobramentos da pandemia comungaram com outras mazelas, agravando os problemas nacionais e causando uma ampla sensação de mal-estar e preocupação (AFFONSO, 2021).

Neste cenário, depois de uma pausa das aulas, o grupo de professores do PPGEdu (Programa de Pós-graduação em Educação) articulou-se para dar prosseguimento ao semestre interrompido. A expressão adotada foi a de “prudência pedagógica”, entendida como uma preocupação em propor atividades de estudos que viabilizassem o prosseguimento das pesquisas sem, na medida do possível, contribuir para o aumento dos casos de adoecimento docente, que já vinham sendo amplamente registrados nas publicações da área (PACHIEGA; MILANI, 2020; MARQUES, 2021; OLIVEIRA; SANTOS, 2021; PONTES; ROSTAS, 2020).

Os adoecimentos já eram comuns na sociedade do cansaço (HAN, 2017), uma sociedade na qual o animal laborans (animal trabalhador) não descansa porque não pode parar, pois precisa incrementar constantemente sua produção chegando, por vezes, à autoexploração (HAN, 2017) e à metamorfoseação de si em produto (BAUMAN, 2001). Traços desses processos foram incrementados durante a pandemia e podem ser percebidos nos professores que, não por seus desejos expressos, “viraram” youtubers ou tiktokers (SILVA, 2020). Mais do que nunca, dos professores têm sido exigido uma postura multitasking (multitarefa), que “não representa nenhum progresso civilizatório. [...] Trata-se antes de um retrocesso” (HAN, 2017, p. 31-32).

Ainda segundo Han (2017, p. 69), “a sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping” cujo “excesso do desempenho leva a um infarto da alma” (HAN, 2017, p. 71). Neste sentido, está-se caminhando na contramão do que Russell (2002) já defendia, quando advogava pela diminuição da jornada de trabalho para o alargamento das horas dedicadas a um ócio criativo.

Em O Elogio ao Ócio, originalmente publicado na longínqua década de 1930, Russell (2002) já expunha pensamentos que atualmente se encontram com o que Han (2017) demarca acerca de como a sociedade do cansaço minimiza – em alguns casos, exclui – a potência negativa do ser humano, conceito nietzschiano para o não fazer [2]. O poder de negar-se a ter seu tempo (auto)explorado deveria ser condição garantida, a fim de que todos tivessem “tempo mental para adquirir outros conhecimentos” (RUSSELL, 2002, p. 39) além daqueles que estão ligados diretamente à prática do animal laborans.

Considerando todas essas questões – aqui abordadas de maneira breve em virtude de já terem sido documentadas em vários artigos e livros que tratam das reverberações sociais da pandemia, sobretudo para a educação (LEVIEN; ROSSKOPF, 2021; VOLKART; KOLLING; RIBEIRO, 2020; LUCENA; PREVITALI; BRETTAS, 2020) –, percebi que se fazia necessário um trato diferenciado e sensibilizado na elaboração de uma disciplina para o semestre de 2020/2, motivo pelo qual organizei uma que conduzisse o estudo dos capítulos do livro Modernidade Líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a partir de obras fílmicas: cinco filmes foram escolhidos para fundamentarem as cinco análises que comporiam a proposta da disciplina.

Aproximar Bauman de narrativas fílmicas não representava uma ideia inédita, visto que outros pesquisadores apresentaram, anteriormente, produções que o faziam (KURTZ, 2014; CASSALES, 2015; OLIVEIRA, 2016; MONTOITO; GARIM, 2020). Entretanto, estes trabalhos utilizavam as obras e teorias de Bauman para produzir uma leitura do filme escolhido. Na direção inversa, a disciplina por mim ofertada tinha a proposta de o filme conduzir a Bauman, ou seja, de a narrativa poder ser percebida como uma metáfora dos capítulos de Modernidade Líquida, desempenhando assim um papel convidativo ao estudo dos escritos baumanianos e clarificando seus principais tópicos. Neste sentido, do ponto de vista teórico-metodológico, o filme extrapola o papel de uma simples ilustração, pois não é tomado como exemplo ou figuração de algo já sabido; pelo contrário, é elemento pedagógico auxiliar no processo de desvelamento dos conceitos a serem trabalhados.

Isso porque, na idealização da disciplina, o filme se sobrepunha à leitura no sentido de a segunda ser complementar, de poder ser feita no caso de os estudantes terem tempo – eram os filmes que mereciam maior atenção, sendo que cada um deles poderia ser encarado como uma ode ao ócio, uma pequena resistência ao caos cotidiano, um momento de lazer que seria, posteriormente, nas aulas online, atravessado e clarificado pelas ideias de Bauman.

 

[...] o cinema tem ocupado uma posição cada vez mais central como cânone da cultura contemporânea, no sentido de que é cada vez mais comum que filmes ou outras formas de narrativa audiovisual (como as séries de TV) cumpram a função de expressar e transmitir visões de mundo e de nossa condição humana que se tornam amplamente discutidas e, pelo menos nalguma medida, compartilhadas [...]. De fato, filmes e narrativas audiovisuais muitas vezes fornecem o primeiro e mesmo o único cânone efetivo para um grande número de pessoas, constituindo assim o ponto comum de referência para a avaliação de uma série de questões fundamentais (TECHIO; WILLIGES, 2020, p. 18-19).

 

Se, por um lado, alguns filmes podem exercer o papel de uma “escola de vida” (MORIN, 2004), por outro o excerto anterior problematiza sua potência enquanto produto cultural pensado e desenvolvido com intencionalidades, cujos elementos que estruturam sua linguagem[3] dão vazão a forças de poder. Por conta disso, Duarte (2002) aponta que os meios educacionais têm a tarefa de oferecer os recursos para que os alunos adquiram o que ela chama de competência para ver, que pode ser comparada às competências para ler e escrever, razão pela qual a escolha dos filmes que comporiam a disciplina foi feita de maneira cuidadosa.

Sendo assim, este artigo, que leva o nome da disciplina ministrada, tem por objetivo apresentar aspectos dessa, a partir dos referenciais teóricos que conduziram à sua elaboração e que foram determinantes para a escolha dos filmes. Para apresentar este texto, construí-o em três partes: (1) sobre os referidos referenciais teóricos; (2) uma visão geral dos filmes e tópicos estudados; (3) a análise de um dos filmes, de modo a mostrar que ele clarifica tópicos da Modernidade Líquida, no geral, e contempla, de modo subjacente, as ideias expressas em (1).

Vale ressaltar que este texto expõe, na forma de ensaio teórico, uma análise por mim produzida em momento anterior à aula; deste modo, as discussões que ocorreram durante os encontros síncronos e suas reverberações não estão contempladas nesta escrita.

 

Uma disciplina com vistas à insurreição 

Estudos em Bauman: interlocuções com o cinema foi pensada para estudantes com pouca ou nenhuma familiaridade com os escritos baumanianos. Os encontros foram planejados para ocorrerem quinzenalmente, deixando a semana sem aulas para a apreciação dos filmes (e, em havendo tempo, para a leitura do respectivo capítulo de Modernidade Líquida), que seriam comentados por mim e por outro professor convidado, que complementaria as discussões com referenciais de sua área de formação e/ou pesquisas.

A seleção de filmes foi pensada para privilegiar alguns aspectos: que fossem fáceis de achar ou baratos de serem alugados em plataformas de streaming, que representassem estilos variados (nacional e internacional; comédia, drama e suspense; blockbuster, cult e premiado em festivais)[4]; que reverberassem o tripé teórico das narrativas fílmicas enquanto escola de vida (MORIN, 2004; PREVITALI, 2019) que favorece uma experiência estética (WILLIGES, 2020; NOGUEIRA, 2009) capaz de potencializar uma insurreição à cafetinagem (ROLINK, 2019) dos tempos atuais – estes lastros teóricos serão melhor comentados na seção subsequente.

Inspirações teóricas

Modernidade Líquida é um marco na obra de Bauman (2001). A expressão por ele cunhada serve para se contrapor à modernidade sólida, período em que as coisas – instituições, saberes, vínculos etc – eram planejadas para perdurarem. Na modernidade líquida tudo é fluido, ou seja, muda de forma a todo instante, escorre, é transitório; nela, nada é feito para durar muito tempo. Assim, o sociólogo apresenta cinco capítulos que discutem pontos importantíssimos cujas mudanças têm alterado a organização e os comportamentos sociais, tanto no plano individual quanto no coletivo: Emancipação, Individualidade, Tempo/Espaço, Trabalho e Comunidade são temas centrais que o autor retoma em outros de seus livros, na largueza de sua obra. Todos estes temas seguem em constante transformação, criando “territórios flutuantes” de uma “realidade porosa” (BAUMAN, 2001). Essa nova sociedade coage os indivíduos a estarem sempre em movimento e competindo uns com os outros, como se fossem corredores rápidos para quem “diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar no gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência” (BAUMAN, 2001, p. 260).

Como se pode pressupor, do exposto na introdução e fazendo uso dessa metáfora baumaniana, a velocidade foi acelerada em tempos de pandemia: o ritmo de trabalho dos profissionais da educação cresceu conforme a quantidade de novas tarefas a serem feitas e habilidades a serem desenvolvidas, insuflando o que Rolink (2019, p. 22-23) chama de cafetinagem:

 

Se a base da economia capitalista é a exploração da força de trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas extrair mais-valia, tal operação – que podemos chamar de “cafetinagem” para lhe dar um nome que diga mais precisamente a frequência de vibração de seus efeitos em nossos corpos – foi mudando de figura com as transfigurações do regime ao longo dos cinco séculos que nos separam de sua origem. Em sua nova versão, é da própria vida que o capital se apropria; mais precisamente, de sua potência de criação e transformação na emergência mesma de seu impulso – ou seja, sua essência germinativa –, bem como da sua cooperação da qual tal potência depende para que se efetue sua singularidade. A força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo regime para que construa um mundo segundo seus desígnios. Em outras palavras, em sua nova versão é a própria pulsão de criação individual e coletiva de novas formas de existência, suas funções, seus códigos e suas representações que o capital explora, fazendo dela seu motor. Disso decorre que a fonte da qual o regime extrai sua força não é mais apenas econômica, mas também intrínseca e indissociavelmente cultural e subjetiva – para não dizer ontológica –, o que lhe confere um poder perverso mais amplo, mais sutil e mais difícil de combater (ROLINK, 2019, p. 32-33).

 

A compreensão dos cinco capítulos de Modernidade Líquida pode ajudar neste combate, pois cada um deles expõe pontos que instigam o indivíduo a produzir uma leitura crítica da sociedade líquida e insurgir-se contra várias ideias que estão se arraigando na atualidade, tais como o declínio das instituições sociais (Emancipação), o consumo desenfreado e a metamorfoseação de si em produto (Individualidade), o estar permanentemente conectado e ativo (Tempo/Espaço), as relações de trabalho exploradoras (Trabalho) e a cegueira sobre a existência do outro (Comunidade), dentre outras.

Pensar com Bauman pode gerar estratégias contra a cafetinagem à medida que favorece um desvelar das relações da modernidade líquida. “Decifrar suas formas, seus códigos e suas dinâmicas por meio da percepção, da cognição e da informação, estabelecer relações com os outros por meio da comunicação e senti-las segundo nossa dinâmica psicológica” (ROLINK, 2019, p. 52) é uma maneira de reagir à “cronometrização e a mecanização da vida [que] são aumentadas pelas racionalizações, que aplicam a lógica das máquinas ao ser humano” (MORIN, 2020, p. 74).

É neste aspecto que alguns filmes são, em potencial, “escola de vida” ou “escola da compreensão humana” (MORIN, 2004), pois nos fazem

 

[...] compreender o que não compreendemos na vida comum. Nessa vida comum, percebemos os outros apenas de forma exterior, ao passo que na tela e nas páginas de um livro[5] eles nos surgem em todas as suas dimensões, subjetivas e objetivas (MORIN, 2004, p. 50).

 

            Argumento semelhante lê-se em Previtali (2019), que defende o uso de filmes na prática pedagógica por entender que possibilitam inserir o interlocutor em uma realidade da qual esse não faz parte, desta forma exigindo “que o interlocutor se posicione ativamente diante da mensagem que lhe foi transmitida” (PREVITALI, 2019, p. 15). Outro ponto relevante dessa intersecção entre uma narrativa fílmica e a formação (em termos de estratégias de significação de si) do ser humano contemporâneo é o modo como, sendo um objeto cultural, ela “incorpora perspectivas, formas de reflexão sobre a existencialidade e temporalidade muito particulares, guardando uma intimidade com a experiência individual” (TECHIO; WILLIGES, 2020, p. 21).

Williges (2020) sustenta a tese da existência da tríade emoção-cinema-moralidade[6], ou seja, que o cinema é capaz de disparar, no espectador, respostas emocionais relativas a situações morais ficcionais que são indispensáveis para o entendimento de situações morais vividas, o que potencializa “a apreensão da moralidade de uma forma que é, a um só tempo, cognitiva e afetiva” (WILLIGES, 2020, p. 247).

Ainda que este pesquisador aborde as relações entre cinema e Ética por meio do conceito de entendimento moral, é possível extrapolar suas discussões – sobre alguns filmes conseguirem despertar, no espectador, emoções que “transformam nossa relação com o mundo e o conteúdo de nossa percepção e pensamento sobre o mundo” (WILLIGES, 2020, p. 245, grifos do autor) – para se construir reflexões outras sobre diferentes tópicos da Ética. Na sociedade líquido-moderna, Bauman vê a Ética como indispensável para as atitudes individuais e coletivas, mesmo apontando o quanto ela entra em choque com os hábitos arraigados do consumo (BAUMAN, 2011). Para o sociólogo, desenvolver atitudes éticas – pensando o termo largamente – é indispensável, pois “o que nós e outros fazemos tem ‘efeitos colaterais’, ‘consequências não antecipadas’, que podem abafar quaisquer bons propósitos que se fazem e produzir desastres e sofrimentos que nós e ninguém quisemos ou vislumbramos” (BAUMAN, 2018, p. 31).

Mas se alguns filmes podem ser, em alguma medida, uma escola de vida com potencial à insurreição, como isso se dá? A resposta a esta questão emerge do terceiro lastro teórico que embasou a organização da disciplina: a experiência estética que a formação cultural[7] alavanca.

 

A partir desse entendimento de formação cultural, pode-se inferir também nosso recorte a respeito da experiência estética. Entendemos que a Arte, assim como a Ciência, a Filosofia, a Religião, são formas de conhecimento humano, são meios pelos quais a humanidade tem tentado compreender a realidade. A Arte é, portanto, uma forma de interpretação do real, nem superior, nem inferior às demais: é apenas mais uma. É também múltipla, pois varia de acordo com suas diferentes modalidades ou linguagens: música, artes visuais, teatro, dança, cinema, fotografia entre outras. A experiência estética seria justamente aquilo que acontece ao espectador no espaço e no tempo em que a Arte está sendo fruída (NOGUEIRA, 2002, p. 128-129).

 

Mesmo ciente de que a experiência estética é algo indissociável do indivíduo e, portanto, imprevisível e não manipulável, a disciplina propunha-se a ser um espaço que fomentaria o exercício de um saber sensível, o qual se dá quando a “experiência estética proporcionada pela obra de arte atinge o espectador de forma que possibilite o seu crescimento, pois lhe oferece material para o exercício de sua reflexão e de sua sensibilidade de forma integrada” (NOGUEIRA, 2009, p. 129). Nesse sentido um filme, enquanto experiência estética, pode religar as capacidades pessoal-sensorial-sentimental-cognitiva, produzindo “a experiência da subjetividade enquanto ‘sujeito’, intrínseca à nossa condição sociocultural e moldada por seu imaginário” (ROLINK, 2019, p. 52).

Portanto, considerando fortemente estes três lastros teóricos e colocando-os em diálogo com as obras de Bauman, cinco filmes foram escolhidos visando à “experiência estética, que brinda a oportunidade para contar histórias – as dos outros, na arte, e as próprias que são provocadas pela mesma experiência, clima e discussão – do aluno, da pessoa em formação” (BLASCO, 2006, p. 27).

Ao organizar as cinco análises (uma para cada aula que seria dada), estava considerando que “o cinema vale-se de argumentos polifônicos, tanto na promoção de cenários imaginativos abertos, quanto no estímulo a afetos divergentes” (WILLIGES, 2020, p. 254). Assumir isso enquanto professor requeria pensar a disciplina como um espaço colaborativo e participativo no qual os estudantes seriam estimulados a se expressarem e falarem sobre suas impressões e interpretações dos filmes vistos, o que delegaria, a mim, o papel de um professor intérprete, contrário ao do professor legislador (BAUMAN, 2010).

 

Os filmes escolhidos

A justificativa para propor a disciplina era apresentar Bauman como sendo um autor cujo conhecimento da obra ajuda a: compreender os movimentos sociais e históricos que conduziram à configuração da sociedade atual; entender como estas configurações agem sobre nós; desvelar as relações do indivíduo consigo mesmo, com outros e com a sociedade; traçar estratégias conscientes de resistência. Os objetivos da disciplina eram quatro: entender a caracterização da modernidade líquida; discutir a potencialidade do uso de filmes enquanto elemento educativo; estudar pontos importantes e relevantes das obras de Bauman a partir das interlocuções com algumas narrativas fílmicas; e estabelecer conexões entre as características da sociedade contemporânea, as vivências e angústias pessoais e o panorama atual em tempos de confinamento e pandemia. Considerando isso, para cada capítulo de Modernidade Líquida foi escolhido um filme que a ele conduzisse e, muito embora este livro fosse a obra central a ser estudada, outras citações ou ideias de Bauman poderiam permear as discussões.

A seleção dos filmes não foi fácil ou casual. Algumas produções foram por mim revistas e descartadas por motivos diversos, tais como não serem achadas facilmente ou poderem ceder seu lugar a outra, com estilo diferente, a fim de investir no enriquecimento do espectador e minimizar possíveis reações negativas (DUARTE, 2002) que deixassem os estudantes mais fragilizados em tempos de pandemia e de distanciamento social.

No quadro a seguir, é apresentado um fichamento dos filmes selecionados para a disciplina, bem como suas características gerais, potenciais temas de estudo (capítulo e palavras-chaves), relação com outras obras de Bauman e área de interlocução do professor convidado.

Quadro 1 – Filmes utilizados na disciplina Estudos em Bauman: interlocuções com o cinema

FILMES

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

CAPÍTULO DO LIVRO E PALAVRAS-CHAVES

RELAÇÃO COM OUTRAS OBRAS

ÁREA DO PROFESSOR CONVIDADO

Ensaio sobre a cegueira

(Blindness, 2008)

 

Direção: Fernando Meirelles

 

Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo e Gael García Bernal

Coprodução nipo-canado-britano-ítalo-brasileira, baseada no romance homônimo de José Saramago

 

Drama; cult

Emancipação

 

liberdade;

produtividade;

competitividade;

retraimento do Estado;

invasão do privado nos espaços públicos

Em Busca da Política;

 

Babel;

 

Vida em Fragmentos

Psicologia

Amor.com

(Amor.com, 2017)

 

Direção:

Anita Barbosa

 

Elenco:

Isis Valverde,

Gil Coelho, Marcos Mion

Produção nacional

 

Comédia romântica

Individualidade

 

a angústia das escolhas;

o mundo como um contêiner;

estar sempre em movimento;

individualismo;

transformar-se em produto

Amor Líquido;

 

Identidade;

 

A Sociedade Individualizada

Educação[8]

O círculo

(The circle, 2017)

 

Direção:

James Ponsoldt

 

Elenco:

Emma Watson;

Tom Hanks;

Karen Gillian

 

Produção americana, baseada no romance homônimo de Dave Eggers

 

Aventura; blockbuster

 

 

Tempo/Espaço

 

miniaturização do tempo e do espaço;

vigilância constante;

espaços êmicos, fágicos, não espaços e vazios;

em constante movimento

Tempo Líquido;

 

O Mal-estar da Pós-modernidade;

 

Capitalismo Parasitário

Pedagogia

Eu, Daniel Blake

(I, Daniel Blake, 2016)

 

Direção:

Ken Loach

 

Elenco:

Dave Johns;

Hayley Squires

Produção inglesa

 

Drama

 

Palma de Ouro em Cannes (Melhor Filme), 2016

Trabalho

 

precarização das relações de trabalho;

inseguranças no mundo do trabalho;

necessidade constante de atualização;

relações de consumo

A Individualidade numa Época de Incertezas;

 

A Riqueza de Poucos Beneficia Todos Nós?

 

Vida Líquida

Direito[9]

A vila

(The village, 2004)

 

Direção:

M. Night Shyamalan

 

Elenco:

Bryce Dallas Howard; Adrien Brody; Joaquin Phoenix

Produção americana

 

Suspense

Comunidade

 

a disolução das antigas comunidades;

fuga no nacionalismo;

os externos à comunidade como inimigos;

xenofobia e racismo

Comunidade;

 

Estranhos à nossa Porta;

 

Globalização: as Consequências Humanas

Filosofia

Fonte: Elaborado pelo autor.

O Quadro 1 possibilita um vislumbre dos entrecruzamentos dos filmes e livros, os quais dão tônus à argumentação da potencialidade que cada filme selecionado tem não apenas para significar um capítulo de Modernidade Líquida como, também, para conduzir a outros livros de Bauman, auxiliando pedagogicamente na construção de uma visão alargada de sua obra. A penúltima coluna foi organizada como uma sugestão para leitores e pesquisadores que se consideram iniciantes nos escritos deste sociólogo – os mais versados em sua produção perceberão, seguramente, que alguns títulos poderiam ser relocados para outras linhas, ou repetidos, pois a maioria dos escritos de Bauman dialoga entre si, sobretudo a partir do conceito de liquidez.

Dentre os cinco filmes que inspiraram a elaboração das análises que compuseram a disciplina, um foi escolhido para ser, neste texto, comentado com mais detalhes. As citações da seção seguinte foram propositalmente limitadas à Modernidade Líquida como forma de mostrar a boa articulação entre o filme e a obra.

 

Amor.com: uma análise

Penafria (2009) aponta que não há uma metodologia universalmente aceita para se analisar um filme; porém todas as que cita – análise textual; de conteúdo; poética; da imagem e do som – fazem dois movimentos importantes: “decompor, ou seja, descrever e, em seguida, estabelecer e compreender as relações entre esses elementos decompostos, ou seja, interpretar” (PENAFRIA, 2009, p. 1). As quatro análises citadas podem ser manipuladas separada ou conjuntamente, com o objetivo de “explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e de propor-lhe uma interpretação” (PENAFRIA, 2009, p. 1).

As interpretações que serão apresentadas neste texto foram elaboradas por meio das análises de conteúdo e textual. A primeira implica identificar-se com o tema do filme e fazer um resumo “da história e a decomposição do filme tendo em conta o que o filme diz a respeito da trama” (PENAFRIA, 2009, p. 6); a segunda entende o filme como um grande texto, a cujos códigos perceptivos (capacidade de o espectador reconhecer objetos na tela), culturais (capacidade de o espectador interpretar o que vê na tela segundo sua cultura) e específicos (capacidade de o espectador interpretar o que vê na tela a partir de recursos cinematográficos, como a montagem) Penafria (2009) sugere que seja dada atenção.

Ainda, para articular Amor.com com o segundo capítulo de Modernidade Líquida, foi utilizado um dos procedimentos de análise bastante comum, o qual

 

consiste em retirar fotogramas[10] de um filme. Propomos aqui que este procedimento seja produtivo em outros momentos de reflexão. Para tal é necessário que esses fotogramas não sejam apenas utilizados para embelezar o texto, há que transformá-los num instrumento de trabalho (PENAFRIA, 2009, p. 7).

 

Sendo assim, em movimentos de decomposições que consideraram cenas e diálogos, foram elaboradas análises de Amor.com que, como será percebido, conduzem ao capítulo Individualidade[11]. Esta comédia romântica nacional estava, à época da disciplina, disponível na Netflix, que é a maior plataforma de streaming do mundo (BATTAGLIA, 2021).

Com relação à análise de conteúdo, um resumo do filme pode ser contado pela apresentação de seus personagens principais: Katrina (Isis Valverde) é uma digital influencer que, em seus perfis das redes sociais, dá variadas dicas, sobretudo de moda e produtos de beleza. Numa das festas de uma marca de roupas – que ela ganha e ajuda a promover com sua participação –, conhece Fernando (Gil Coelho), um geek e gamer que trabalha também como técnico de informática. Katrina precisa, desesperadamente, que ele apague da internet uma foto íntima sua, que foi divulgada por um ex-namorado. A partir daí, se apaixonam, entretanto o romance de ambos sofre altos e baixos por dois motivos principais: porque ele se veste de maneira trivial e comum e porque os seguidores de Katrina ficam dando likes ou unfollow nos perfis dela, de acordo com o que veem do relacionamento dos dois. É por isso que Felipe (Marcos Mion) entra na história: com sua empresa de assessoramento de mídias digitais ele quer “redesenhar” Fernando, buscando tornar seu perfil – e, de modo indireto, sua pessoa – mais compatível com o de Katrina. Esta análise é importante porque evidencia a proximidade de tópicos de Individualidade com o tema da narrativa fílmica, a partir do que se pode conjecturar acerca de sua relevância e adequação para o tratamento das ideias a serem estudadas, e dar prosseguimento ao estudo com outra metodologia de análise: a textual.

A análise textual trouxe à tona elementos caros à obra baumaniana – daí a se compreender o filme, como dito antes, para além de uma simples ilustração –, como a procura por conselheiros, a exposição da vida particular e a construção das identidades. Visando aprofundar a discussão destes tópicos a análise textual, para lograr êxito, articula, a seguir, trechos do livro de Bauman e elementos próprios da narrativa fílmica, como recortes das cenas e transcrição de diálogo.

Começando pela Figura 1, que é uma composição de duas cenas do filme, vê-se quando os personagens aparecem pela primeira vez: Katrina surge diretamente no YouTube, fazendo propaganda de um batom; Fernando aparece enquadrado por uma câmera, filmando um vídeo que ensina a passar as fases de um jogo de videogame.

Figura 1 – Katrina e Fernando

 

Fonte: Print de tela do filme Amor.com (2017)

 

Já no começo do filme o espectador percebe os personagens imersos nas tecnologias digitais, ambos desejando, embora com intenções diferentes – vender ou mostrar como passar nas fases de um jogo – atrair seguidores. Katrina e Fernando representam bem algo que, segundo Bauman (2001), é sintoma da sociedade líquida: a busca das pessoas comuns por celebridades que lhes digam o que fazer, o que gera uma horda de conselheiros da vida privada, enquanto que faltam líderes a serem seguidos. Ao ser esse agora o novo parâmetro, gravita-se em torno de uma construção cada vez mais focada na individualidade, e não no coletivo, tendo os programas de entrevistas como “rituais de exorcismo – e muito eficazes” (BAUMAN, 2001 p. 89-90) que são, para as pessoas, exemplos “de como outros homens e mulheres, diante de problemas semelhantes, se desincumbem deles” (BAUMAN, 2001, p. 86).

No limite deste novo modo de perceber-se em sociedade está uma ode ao individualismo que, aos poucos, vai normalizando discursos como “cuidemos de nossos problemas, e apenas de nossos problemas, com a consciência limpa. Há pouco a ganhar fazendo o trabalho que ninguém pode fazer senão nós mesmos” (BAUMAN, 2001, p. 85). A consequência é um esvaziamento da consciência e dos movimentos políticos que, sendo substituídos por discussões de cunho pessoal, levam Bauman (2001, p. 92) a questionar: “Por que, então, alguém ficaria intrigado se o que atrai a atenção e provoca o interesse de tantos homens e mulheres é o que os políticos (e outras celebridades) fazem em privado?”

Em Amor.com não há políticos, mas Katrina, enquanto celebridade, escandaliza-se ao descobrir que uma foto íntima sua caiu nas redes sociais, pois ela sabe que seus seguidores a farão repercutir mais do que seus vídeos de trabalho. Mais adiante, no filme, quando ela e Fernando já estão morando juntos, o casal tem uma grande briga porque ela perde seguidores e é criticada nas redes sociais depois que ele posta uma foto em que ela aparece dormindo, sem estar bem vestida e maquiada.

 

Figura 2 – Composição de cenas em que Katrina “vende” a própria imagem

Fonte: Prints de tela do filme Amor.com (2017)

 

A composição de cenas que forma a Figura 2 deixa claro que Katrina é uma celebridade, uma digital influencer, o tipo de pessoa que, como Bauman (2001) apontou, dá conselhos numa sociedade líquida permanentemente conectada e alimentada por selfies. Ela, assim como as roupas que veste ou o batom que usa, é um produto a ser vendido – um que se vende – e, como tal, tem que agradar a seus compradores, motivo por que ser vista escabelada enquanto dorme é uma imagem ruim a ser partilhada.  

Como um indivíduo-produto, ela tem a responsabilidade de

 

descobrir o que é capaz de fazer, esticar essa capacidade ao máximo e escolher os fins a que essa capacidade poderia melhor servir – isto é, com a máxima satisfação concebível. Compete ao indivíduo ‘amansar o inesperado para que se torne um entretenimento’ (BAUMAN, 2001, p. 80-81),

 

o que o coloca em constante movimento, ciente de que não há mais, na sociedade líquida, um tornar-se – há sempre mais um passo a ser dado. “Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas e menos ainda irrevogáveis [...]. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre” (BAUMAN, 2001, p. 81).

            Na outra ponta do romance está Fernando que, depois de reconhecer seu erro, aceita mudar sua identidade virtual – o que gera, também, modificações pessoais – para tornar seu produto (a divulgação de jogos) algo mais rentável, com tino profissional alargado e em comunicação com outros empreendimentos. Pelo intermédio de Katrina, conhece Felipe, que tem uma empresa de assessoramento de mídias digitais. Felipe lhe dispara três conselhos: Fernando deveria diversificar os assuntos que aborda em seu canal, expor-se mais e ter uma movimentada vida social a ser divulgada.

Estes três conselhos não contribuem para a formação de uma identidade sólida e são bem representativos da metáfora a seguir:

 

Quando falamos de identidade há, no fundo de nossas mentes, uma tênue imagem de harmonia, lógica, consistência [...]. A busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos por negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absorver. Mas as identidades, que não tornam o fluxo mais lento e muito menos o detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se (BAUMAN, 2001, p. 106).

 

Em síntese, enquanto profissional, Fernando passaria a ganhar sua independência rendendo-se ao jogo das identidades (BAUMAN, 2001).

Figura 3 – um “novo” Fernando, que surge depois de seguir os conselhos profissionais de Felipe

 

Fonte: Prints de tela do filme Amor.com (2017)

 

Ainda que Katrina e Fernando sejam produtores de conteúdos que outros são incentivados a consumirem, são eles, ao mesmo tempo, produtos (pois vendem suas imagens e suas atitudes) e consumidores (já que precisam constantemente ter algo novo a mostrar aos que os seguem).

A elaboração das identidades neste aspecto mais fluido, segundo Bauman (2001), não traz segurança; pautada no consumo, a identidade conduz à recorrente insatisfação, podendo gerar adoecimentos (como depressão, por exemplo). Destarte estas questões, desenvolver frente à vida uma postura que a entende como uma “festa de compras adiadas significa conceber o mundo como um depósito de mercadorias. Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de prazeres de qualquer mercadoria tende a se exaurir rapidamente” (BAUMAN, 2001, p. 114), requerendo imediata substituição – reverberações dessas atitudes chegam, inclusive, aos relacionamentos afetivos.

Por ser uma comédia romântica, os personagens percebem o quanto suas identidades líquidas atrapalham o relacionamento. A partir daí, em busca de um final feliz, abrem mão do – ou ao menos minimizam o – processo de construção dessas identidades: Fernando retoma seu jeito geek de ser e Katrina faz uma transmissão online, cuja fala aparece transcrita no Quadro 2.

Quadro 2 – Fala de Katrina

 

Tudo que eu fazia, eu fazia pensando no que aquilo poderia agregar à minha imagem. Eu já não sei se o que eu sou é o que eu quero ser ou o que eu fui obrigada a me tornar pra suprir a expectativa das pessoas.

 

Fonte: Transcrição do diálogo de Amor.com (2017)

O que poderia ser entendido como uma libertação não deixa de representar, outra vez, a modernidade líquida, pois, ao fazer uma nova escolha, a vida transborda de um misto de bênçãos e maldições. O indivíduo – seja no filme, seja na vida real – não tem escapatória ou garantias, apenas se movimenta entre as muitas opções (BAUMAN, 2001).

As reflexões aqui apresentadas evidenciam – ou ao menos apontam – diferentes assuntos de interesse da área de Educação, mormente acerca do comportamento dos jovens. Sobre os nascidos em tempos líquidos, Bauman (1994) denuncia que eles têm sido tratados como “a lata de lixo da indústria do consumo” e que o bullying, inclusive o virtual, tem sido banalizado na sociedade atual a ponto de virar um tipo de entretenimento (BAUMAN; LEONCINI, 2018) – estes aspectos, fortemente perceptíveis em Amor.com, circundam os alunos de hoje e exercem forças sobre a construção de suas identidades, motivos por que é relevante abordá-los numa disciplina pensada para professores.

Feitas estas considerações, percebe-se o quanto Amor.com é representativo do segundo capítulo de Modernidade Líquida, podendo ser tomado como um átrio que convida o estudante a adentrar na obra de Bauman. A escolha de fotogramas (prints da tela) seguiu as indicações de Penafria (2009) e destaca os códigos mobilizados na análise textual: os códigos perceptivos colocam o espectador em contato com objetos que aparecem na tela (as redes virtuais, as selfies, a vida constantemente compartilhada etc), favorecendo a interpretação dos códigos culturais (a respeito de uma sociedade hiperconectada em que todos são consumidores e, alguns, também produtos) por meio dos códigos específicos (como a montagem de cenas alternadas que se passam paralelamente, representadas aqui na Figura 1). Tomados conjuntamente, fica claro como fotogramas e códigos, para este filme em questão, auxiliam na transposição, interpretação e apropriação pedagógicas do texto baumaniano.  

 

Considerações finais

A análise de Amor.com aqui apresentada reforça a potencialidade pedagógica de se aproximar este filme do capítulo Individualidade, de Modernidade Líquida, o que permite que o leitor entreveja como foi pensada a disciplina Estudos em Bauman: interlocuções com o cinema, além de ter uma ideia de como foram produzidas as demais análises, referentes aos outros quatro capítulos.

Com relação às teorias que balizaram a organização da disciplina e a escolha dos filmes, retomo-as à guisa de conclusão: salvo a parte da experiência estética, que atinge a cada um de maneira particular, motivo pelo qual torna-se difícil de ser mensurada, as outras duas são contempladas por essa comédia romântica: enquanto escola de vida, este filme propicia reflexões sobre os comportamentos humanos na sociedade hiperconectada, seus desdobramentos na construção das identidades e dos laços afetivos e como já está normalizada a (auto)exposição que transforma tudo em mercadoria para consumo; com relação à insurreição à cafetinagem, a história tem potencial para fomentar, no espectador, um desejo para romper esses comportamentos subjetivados que já foram normalizados em nosso cotidiano, para os quais é necessário que se dedique algum tempo para pensar.

 

A velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento a longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos dados, examinar de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade (BAUMAN, 2001, p. 260).

 

Optar por um ensino intermediado por filmes condiz com esta importante observação de Bauman: são eles elementos pedagógicos catalisadores de um estudo reflexivo, já que sua estrutura possibilita ações que favorecem a elaboração do pensamento reflexivo à medida que podem ser pausados e ter sequências revistas várias e várias vezes, contrariando a velocidade desenfreada dos dias atuais.

 

Referências

AFFONSO, Claudia. Apresentação. In: AFFONSO, Claudia; FERNANDES, Claudio; FRIGOTTO, Gaudêncio; MAGALHÃES, Jonas; MOREIRA, Valéria; NEPOMUCENO, Vera. (Orgs.). Trabalho Docente sob Fogo Cruzado 2. 2. ed. Rio de Janeiro: LPP, 2021, p. 1-12.

BATTAGLIA, Rafael. Infográfico: qual o streaming com mais assinantes do mundo? Super interessante. 27 de maio de 2021. Disponível em:  https://super.abril.com.br/cultura/infografico-qual-o-streaming-com-mais-assinantes-no-mundo/. Acesso em: 2 ago. 2021.

BAUMAN, Zygmunt. A ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna.1. ed. São Paulo: Paulus, 2018.

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes: sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BAUMAN, Zygmunt; LEONCINI, Thomas. Nascidos em tempos líquidos: transformações no terceiro milênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2018.

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 1985.

BLASCO, Pablo González. Educação da afetividade através do cinema. Curitiba: IEF - Instituto de Ensino e Fomento, 2006.

CASSALES, Lucas Pereira. A representação do mal-estar líquido no cinema de Michael Haneke. 2015. 149 f. Dissertação - Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/10923/7257. Acesso em: 18 abr. 2019.

DUARTE, Rosália. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

KURTZ, Luciana Nunes. A sociedade líquida e os efeitos da tecnologia: uma análise do filme Wall-e. 2014. 72 f. TCC – Curso de Graduação em Publicidade e Propaganda, Faculdade de Comunicação, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2014. Disponível em: http://repositorio.upf.br/handle/riupf/717. Acesso em: 20 abr. 2019.

LEVIEN, Sandra; ROSSKOPF, Henrique. COVID-19 no Brasil: um olhar social sobre a pandemia. Thema, Pelotas, v. 20, 2021. Disponível em: https://periodicos.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/1811/1783. Acesso em: 2 ago. 2021.

LUCENA, Carlos; PREVITALI, Fabiane Santana; BRETTAS, Anderson. (Orgs.). Pandemia COVID-19: a distopia do século XXI. Uberlândia: Navegando, 2020.

MACHADO, Andréia de Bem. Revisão sistemática: educação em tempos de COVID-19. In: LACERDA, Tiago Eurico de; TEDESCO, Anderson Luiz. (Orgs.). Educação em tempos de COVID-19, volume 1. Curitiba: Bagai, 2020, p. 98-112.

MARQUES, Ronualdo. O professor em trabalho remoto no contexto da pandemia da covid-19. Boletim de conjuntura, Boa Vista, n. 16, 2021. Disponível em: https://zenodo.org/record/4642898 - .YRxUsHySnIU. Acesso em: 20 jul. 2021.

MONTOITO, Rafael; GARIM, Luize Castro. Zygmunt Bauman vai ao cinema: filmes para entender a Modernidade Líquida. Research, Society and Development, v. 9, n. 7, e839974781, 2020. Disponível em: https://www.rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/4781. Acesso em: 5 fev. 2021.

 

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

MORIN, Edgar. É hora de mudarmos de via: as lições do coronavívus. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

NIETZSCHE, Frederich Wilhelm. Crepúsculo dos Ídolos, ou Como se filosofa com o martelo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.

NOGUEIRA, Monique Andries. Experiências estéticas em sala de aula: a formação cultural de futuros professores. In: OLIVEIRA, Renato José de; LINS, Maria Judith Sucupira da Costa. (Orgs.). Ética e educação: uma abordagem atual. 1. ed. Curitiba: CRV, 2009, p. 127-136.

OLIVEIRA, Fernando Maluf Dib. A constituição da identidade na pós-modernidade: o simulacro da realidade. 2016. 120 f. Dissertação - Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/18029. Acesso em: 7 mai. 2019.

PACHIEGA, Michel Douglas; MILANI, Débora Raquel da Costa. Pandemia, as reivindicações educacionais e o mal-estar docente: uma contribuição sob a ótica psicanalítica. Dialogia, São Paulo, n. 36, set./dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/dialogia/article/view/18323/8712. Acesso em: 7 fev. 2021.

PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes: conceitos e metodologia(s). In: CONGRESSO SOPCOM, 6, 2009, Universidade do Porto. Anais... Porto. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-penafria-analise.pdf. Acesso em: 20 ago. 2020.

PONTES, Fernanda Rodrigues; ROSTAS, Márcia Helena Sauaia Guimarães. Precarização do trabalho docente e adoecimento: COVID-19 e as transformações no mundo do trabalho, um recorte investigativo. Thema, Pelotas, v. 18, 2020. Disponível em: https://periodicos.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/1923/1597.  Acesso em: 7 fev. 2021.

PREVITALI, Fabiane Santana. A formação política pela sétima arte: o cinema como prática pedagógica e de cidadania. In: PREVITALI, Fabiane Santana; GUIMARÃES, Elisabeth da Fonseca; ALVES, Elaine Gonçalves; ANDRADE, Jacqueline de. (Orgs.). A formação política pela sétima arte: o cinema como prática pedagógica e de cidadania. Uberlândia: Navegando Publicações, 2019, p. 15-24.

ROLINK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. 2. ed. [s.l.], N-1 edições, 2019.

RUSSELL, Bertrand. O elogio ao ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

SCHNEIDER, Steven Jay. 1001 filmes para ver antes de morrer. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.

SILVA, Amanda Moreira da. Da uberização à youtuberização: a precarização do trabalho docente em tempos de pandemia. Revista trabalho, política e sociedade, Rio de Janeiro, n. 9, jul./dez. 2020. Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/RTPS/article/view/698/943. Acesso em: 2 ago. 2021

TECHIO, Jônadas; WILLIGES, Flavio. Introdução: a recriação da filosofia através do cinema. In: TECHIO, Jônadas; WILLIGES, Flavio. (Orgs.). Filosofia e cinema: uma antologia. Pelotas: NEPFIL online, 2020, p. 16-30.

VALLE, Paula Dalla; MARCOM, Jacinta Lucia Rizzi. Desafios da prática pedagógica e as competências para ensinar em tempos de pandemia. In: PALÚ, Janete; SCHÜTZ, Jenerton Arlan; MAYER, Leandro. (Orgs.). Desafios da educação em tempos de pandemia. Cruz Alta: Ilustração, 2020, p. 139-154.

VOLKART, Daiane Carina Almeida; KOLLING, Karlene Tatiana; RIBEIRO, Marcus Eduardo Maciel. Do presencial ao online: características de comunidade aprendente em uma disciplina de mestrado em tempos de COVID-10. Thema, Pelotas, v. 20, 2021. Disponível em: https://periodicos.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/1960/1794. Acesso em: 2 ago. 2021.

WILLIGES, Flavio. Cinema, emoção e moralidade. In: TECHIO, Jônadas; WILLIGES, Flavio. (Orgs.). Filosofia e cinema: uma antologia. Pelotas: NEPFIL online, 2020, p. 241-256.

Notas



[1] O texto tem a intenção de comunicar a proposta de uma disciplina e as reflexões do seu autor em momentos anteriores às aulas ministradas, motivo pelo qual as opiniões e participações dos alunos não aparecem aqui abordadas. Assim, o artigo configura-se como um ensaio teórico e, por isso, segundo a resolução 510/2016, o trabalho está dispensado de submissão ao CEP.

[2] Para Nietzsche, esse não fazer se expressa como a “primeira preparação para a espiritualidade: não reagir de imediato a um estímulo” (NIETZSCHE, 2017, p. 48) e, diante da efervescência da sociedade moderna, “o essencial aí é não ‘querer’, ser capaz de prorrogar a decisão” (Idem, ibidem). Em sua interpretação, Deleuze divide a vontade de potência nietzschiana em negativa e positiva, o que Han (2020) retoma em seu livro.

[3] São quatro os principais elementos que servem para estruturar a linguagem cinematográfica, conhecidos como elementos de significação do cinema: câmera (amplitude dos planos de gravação), iluminação, som e montagem ou edição (BERNARDET, 1985).

[4] Blockbuster (algo como “arrasa-quarteirão”) é um termo utilizado para filmes que levam multidões ao cinema, contrapondo-os aos cult, usualmente filmes de circuitos alternativos ou de cineastas específicos. Estes termos, facilmente encontrados na literatura sobre cinema (SCHNEIDER, 2012; BLASCO, 2006), não apresentam limites rígidos – nada impede que um blockbuster venha a se tornar cult (como Blade Runner (1982), de Ridley Scott) ou seja mundialmente premiado (como Titanic (1997), de James Cameron).

[5] Os pensamentos de Morin (2004) para o cinema estendem-se à literatura. Para o pensador, ambas facilitam o entendimento da complexidade humana.

[6] O termo “moral”, aqui, não está associado à aceitação de princípios a priori para a ação, mas sim à ideia de entendimento moral, que é “um ‘modo de ver engajado’, com razões, emoções subsidiárias e motivação” (WILLIGES, 2020, p. 246); trata-se de um estado de compreensão de ações e traços de caráter de modo emocionalmente carregado, pensado a partir da ideia de que “as emoções permitem formar uma compreensão afetiva, engajada, motivada, e não puramente intelectual de conceitos e juízos morais” (WILLIGES, 2020, p. 245).

[7] “Formação cultural” é tomada aqui na acepção cunhada por Theodor Adorno, um dos expoentes da Escola de Frankfurt. Para ele, a formação cultural nada mais é do que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva.

[8]  Escolheu-se pontuar “Educação” no quadro por se entender que, na elaboração da análise do filme, o professor (autor deste artigo) utilizou-se dos referenciais pós-modernos das disciplinas que ele ministrada no Programa de Pós-graduação em Educação (IFsul), e não autores ou teorias atinentes à sua formação inicial em Matemática.

[9] Neste caso específico, a pessoa convidada era uma mestranda em Educação, bacharela e especialista em Direito.

[10] A pesquisadora sugere uma sequência numérica para a organização dos fotogramas retirados para a análise. Aqui, por similaridade, os prints de tela são tomados como sendo fotogramas que contextualizam as discussões teóricas.

[11] Vale ponderar que o capítulo é riquíssimo com relação à diversidade de tópicos abordados. Nesta análise, apenas alguns serão contemplados.

 

 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)