Estratégias de entrada e permanência no grupo de crianças: caminhos para interagir

 

Entry and permanence strategies in the group of children: ways to interact

Estrategias para entrar y permanecer en el grupo de niños: formas de interactuar

 

Elaine Conceição Silva de Almeida

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
elaines.pedagoga@gmail.com

Iza Rodrigues Da Luz

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

izarodriguesluz@gmail.com

Isabel de Oliveira e Silva

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

isabel.os@uol.com.br

 

 

Recebido em 24 de junho de 2022

Aprovado em 21 de agosto de 2022

Publicado em 25 de outubro de 2023

 

 

 

RESUMO

Este artigo tem por objetivo refletir sobre as interações entre crianças de cinco e seis anos de idade no ambiente de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI), em Belo Horizonte/Minas Gerais (Brasil). O foco definido foram as ações que almejavam a criação de vínculos, apontando as estratégias utilizadas pelas crianças para obter acesso e permanência nos grupos de pares. Para este estudo optou-se por um referencial teórico multidisciplinar embasado em estudos contemporâneos sobre a Infância e a Educação Infantil, com destaque para a Sociologia da Infância e Psicologia Social. Foi realizada uma pesquisa qualitativa tendo como principais instrumentos a observação participante do grupo de crianças, com registros em diário de campo e videogravação; e entrevista semiestruturada com as professoras do grupo. A análise das informações evidenciou forte relação entre o espaço e artefatos disponíveis e o modo como as crianças se organizavam em grupos mais ou menos estáveis. Destacaram-se também as estratégias de pedido/convite e interferência como principais ações para entrada no grupo de pares e diálogo e cooperação como principais estratégias de permanência. A estratégia de ajuda foi percebida em ambas as categorias. Foi identificado também que na perspectiva das crianças pesquisadas, se integrar em um grupo significava ser amigo dos participantes.

Palavras-chave: Crianças; Grupo de pares; Amizade; Educação Infantil.

 

 

ABSTRACT

This article aims to reflect on the interactions between five and six year old children in the environment of a Municipal School of Early Childhood Education (EMEI), in Belo Horizonte/Minas Gerais (Brazil), focusing on establishing relationships that sought to create bonds, pointing out the strategies they used to gain access and permanence in peer groups. For this study, a multidisciplinary theoretical reference was chosen based on contemporary studies on Childhood and Early Childhood Education, with special emphasis on Childhood Sociology, and supported by Social Psychology studies. A qualitative research was conducted having as main instruments the participant observation of the children's group, with records in a field diary and video recording; and semi-structured interview with the group's teachers. The information analysis revealed a strong relationship between the available space and artifacts and the way children organized themselves in more or less stable groups. The strategies of request/ invitation and interference were also highlighted as the main actions for entering the peer group and dialogue and cooperation as the main permanence strategies. The help strategy was perceived in both categories. It was also identified that, from the perspective of the children researched, integrating a group meant to be friends of the participants.

Keywords: Children; Peer group; Friendship; Early childhood education.

 

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo reflexionar acerca de las interacciones entre niños de cinco y seis años en el ambiente de una Escuela Municipal de Educación Infantil (EMEI), en Belo Horizonte/Minas Gerais (Brasil). El enfoque definido fueron las acciones que pretendían la creación de vínculos, señalando las estrategias utilizadas por los niños para obtener acceso y permanencia en los grupos de pares. Para este estudio se optó por un marco teórico multidisciplinar basado en estudios contemporáneos sobre la Infancia y la Educación Infantil, con énfasis en la Sociología de la Infancia y Psicología Social. Fue realizada una investigación cualitativa teniendo como herramientas principales la observación participante del grupo de niños, con registros en el diario de campo y videograbación; y entrevistas semiestructuradas con las profesoras del grupo. El análisis de las informaciones evidenció una fuerte relación entre el espacio y artefactos disponibles y la forma en que los niños se organizaban en grupos más o menos estables. También se destacaron las estrategias de pedido/invitación e interferencia como principales acciones para la incorporación al grupo de pares y el diálogo y la cooperación como principales estrategias de permanencia. La estrategia de ayuda fue percibida en ambas categorías. Fue identificado también que, desde la perspectiva de los niños investigados, integrarse a un grupo significaba ser amigo de los participantes.

Palabras clave: Niños; Grupo de pares; Amistad; Educación Infantil.

 

 

Introdução

            A pesquisa que deu origem a este artigo se insere em um movimento de fortalecer reflexões sobre as crianças e a infância que discorram sobre os processos de interação entre grupos de pares e a perspectiva delas referente a esse processo. Parte-se do princípio de que os momentos em que as crianças estabelecem relações entre si se configuram como momentos privilegiados de construção de conhecimento sobre a infância. Isto porque as interações entre as próprias crianças se constituem como oportunidade singular para promover uma série de competências que não se desenvolveriam apenas nas interações com os adultos (CARVALHO; GUIMARÃES, 2002). Fruto de uma dissertação de mestrado, o texto tem como objetivo refletir sobre as interações entre as crianças, tendo como foco as ações que almejavam a criação de vínculos, apontando as estratégias utilizadas por elas para obter acesso e permanência nos grupos de pares.

A referida pesquisa teve como objetivo geral compreender como as crianças de cinco e seis anos de idade de uma turma da Educação Infantil interagiam em grupos no ambiente de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) em Belo Horizonte (Minas Gerais). Adotou-se a pesquisa qualitativa como abordagem teórico-metodológica. A escolha pelo estudo qualitativo deve-se às preocupações em investigar a infância como uma categoria social, geracional e cultural, considerando as crianças como atores sociais ativos e produtores de culturas, bem como as identificando como sujeitos empíricos com vez e voz, perspectivas próprias e cidadãos de direitos (MARTINS FILHO, 2004). Ao observar os agrupamentos de crianças, foi possível a vivência, com as crianças, dos processos de interação, isto é, além do contato direto com os sujeitos, a pesquisadora pode se inserir nas rotinas de interação dos investigados, buscando um equilíbrio entre a ação e a investigação (ANDRÉ, 2001).

Quanto aos cuidados no desenvolvimento da pesquisa, foram seguidos todos os trâmites necessários à realização de pesquisas com seres humanos, sendo o projeto aprovado por Comitê de Ética, assim como procurou-se assegurar, em todo o processo de realização da pesquisa, os aspectos éticos específicos na pesquisa com crianças1 (DELGADO; MÜLLER, 2005; CARVALHO; MÜLLER, 2010). A escolha da instituição foi acordada com a Secretaria Municipal de Educação. A instituição escolhida para realização da pesquisa se situava na região noroeste da cidade de Belo Horizonte. Era um prédio que anteriormente atendia a Educação Infantil da rede privada e foi adquirido pela prefeitura para ser adaptado para o funcionamento de uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI). Durante o período de realização da pesquisa de campo, a instituição atendia a 369 crianças com idades entre 1 ano e meio e 6 anos, divididas em 58 no período integral, 135 no turno da manhã e 176 no turno da tarde. A instituição desenvolvia suas atividades no período das 07h às 17h20h e era composta por um corpo docente de 56 professoras.

O principal instrumento para a geração dos dados foi a observação participante, durante 2 meses, de uma turma de 15 crianças (6 meninos e 9 meninas) com 5 e 6 anos de idade, que frequentavam a instituição no turno matutino e eram acompanhadas por duas professoras diariamente. As crianças participantes da pesquisa eram provenientes de bairros da região noroeste da cidade. Suas famílias eram compostas, predominantemente, por pai, mãe e filhos. Os pais das crianças da turma possuíam majoritariamente nível de escolaridade de ensino médio completo e eram trabalhadores do setor de serviços. Os registros foram feitos por meio de diário de campo, videogravação e fotografias.

Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com as duas professoras que atuavam com a turma de crianças participantes da pesquisa. Essas entrevistas foram realizadas com o objetivo de obter elementos que pudessem contribuir para a compreensão da organização das interações entre as crianças e que não seriam possíveis de conseguir somente por meio das observações. As entrevistas com as professoras seguiram um roteiro previamente definido, abordando questões relacionadas à formação e atuação delas como profissionais da educação infantil, às suas percepções sobre a educação e sobre as interações e relacionamentos entre as crianças.

As informações construídas em campo foram sistematicamente trianguladas. Para tanto, as informações organizadas nas diferentes formas de registro foram cotejadas, encontrando-se padrões que possibilitaram a construção das categorias de análise, seguindo os procedimentos de triangulação adotados por Borba (2005).

Neste artigo discutimos especificamente as estratégias adotadas pelas crianças para obter acesso e permanência nos grupos durante as interações. Essas estratégias são descritas e categorizadas em estratégias de entrada e permanência, com ações verbais e não verbais. Também apresentamos o ponto de vista das crianças sobre a experiência de participar de um grupo de amigos (as).

 

Interações, grupos de crianças e culturas infantis

A escolha do espaço escolar para a realização da pesquisa se justifica pelo fato de que é no espaço educativo que a maioria das crianças da faixa etária de 5 e 6 anos estão em maior contato com os seus pares (FERREIRA, 2004; GOUVÊA, 2002). Segundo Borba (2005), apesar de não ser o único local onde as crianças se constituem em grupos de pares, sobressai a importância da escola na construção social da criança por se tratar de um espaço institucional, estruturado pelos adultos para as crianças, que as reúne em espaços e tempos definidos, organizando as suas vidas cotidianamente, regulando as suas práticas sociais. Representa geralmente para as crianças o primeiro contexto institucional fora da família, onde partilharão parte de suas vidas com outras crianças e com professores (BORBA, 2005, p.93).

Por ser uma pesquisa do campo educacional, compreender as ações e organizações das crianças, quando estas se articulam em grupos, é uma forma de melhor compreender a escola e suas possibilidades como espaço de experiência para as crianças. É importante destacar que a expansão da oferta educacional para as crianças de 0 a 6 anos é resultado de amplo processo de luta que resultou na promulgação da Constituição Federal de 1988, que é um marco para a Educação Infantil no Brasil, pois institui uma nova doutrina da infância. É a partir desse cenário que as crianças passaram a figurar como sujeitos de direitos e não mais apenas como objetos da tutela do Estado (SILVA, 2016). Perceber a criança como sujeito histórico e de direitos ao lado da consideração de suas formas de desenvolvimento fortalece o lugar da instituição de Educação Infantil como um ambiente propício a trocas e a relações, onde as experiências anteriores vividas na família poderão ser ampliadas e enriquecidas nas interações com os sujeitos e objetos que compõem o dia a dia das crianças (SILVA; LUZ, 2012).

Considerando serem as interações entre as crianças um dos eixos norteadores da proposta curricular para a Educação Infantil, retomamos Gouvêa (2002, p.25) ao destacar que “a ação da criança sobre os objetos e outros indivíduos é sempre mediada pela interação”. Logo, a interação pode ser entendida como as relações que são estabelecidas entre as crianças, onde “a ideia de interação social é assim aproximada da noção de ação conjunta, da relação Eu/Outro” (OLIVEIRA, 2011, p.22). Dessa forma, a criança se constitui como sujeito através das relações sociais estabelecidas, não limitando sua participação no processo educativo somente a aspectos psicológicos, mas também àqueles sociais, econômicos, políticos e históricos (QUINTEIRO, 2003). De acordo com Oliveira (2011) a interação humana é concebida como

um dinâmico processo de expandir e restringir campos partilhados de conduta semioticamente organizados por meio da coordenação dos papéis assumidos pelos participantes de uma situação concreta, cada um deles com seus interesses e objetivos (OLIVEIRA, 2011, p.32).

Interação pode então ser compreendida como o processo de encontro com o outro, onde esse encontro proporcionará a construção de conhecimentos, uma vez que a criança deve ser vista como um sujeito sociocultural (GOULART, 2002). Ferreira (2004) sugere que as ações das crianças se tornam acontecimentos sociais quando ocorrem na relação com o outro, de modo que ações individuais não fazem sentido isoladamente. A partir desses apontamentos, podemos dizer que é por meio das interações que as crianças criam oportunidades de se organizar e participar de um grupo. Em outras palavras, não é possível ser membro de um grupo sem estabelecer interações com os demais participantes.

Neste trabalho, o conceito de grupo é compreendido como um conjunto de indivíduos que mantém relações estáveis entre si, a partir de objetivos e interesses em comum. Assim, “um grupo é uma estrutura social: é uma realidade total, um conjunto que não pode ser reduzido à soma de seus membros; é uma totalidade que supõe vínculos e interdependência entre os indivíduos” (MARTINS, 2002, p.233). Martín-Baró (apud MARTINS, 2002, p. 233) entende o grupo como "uma estrutura de vínculos e relações entre pessoas que canaliza em cada circunstância suas necessidades individuais e/ou interesses coletivos".

Ao observar o cotidiano das instituições de Educação Infantil, percebe-se que as crianças organizam suas brincadeiras e atividades no interior de um grupo. As crianças estão constantemente em predisposição para se organizarem em grupos, sendo a formação destes caracterizada “como movimento permanente, como resultado das ações de seus integrantes em condições sócio-culturais específicas” (ZANELLA; PEREIRA, 2001, p. 108). Horn (2004, p.17) reflete que “o grupo social é indispensável à criança não somente para sua aprendizagem social, como também para o desenvolvimento da tomada de consciência de sua própria personalidade”.

Assim, a participação em um grupo se caracteriza, de acordo com Lane (1989), em termos de “acréscimos” e “contribuições”, dentro de um processo de comportamentos encadeados. Apenas uma ação efetiva e compartilhada com os outros é que se caracteriza como participação, ou seja, uma ideia não compartilhada com todos não traz significado para o grupo. O grupo é, portanto, formado e transformado nas relações e participações dos indivíduos, onde a organização, o assumir papéis e realizar tarefas constituem-se como o próprio processo de produção do grupo (LANE, 1989).

Corsaro (2009; 2011) adota o uso da expressão “grupo de pares”, para se referir ao grupo de crianças que compartilham tempo juntas, diariamente. Müller e Carvalho (2009) ressaltam que o recorte das pesquisas de Corsaro é “o grupo social de pares de idade na infância como fenômeno desse estágio da vida” (MÜLLER; CARVALHO, 2009, p.24) e afirmam que a compreensão do que se denomina cultura de pares é importante para o desenvolvimento das concepções da vida social da criança no grupo de brinquedo.  William Corsaro utiliza o termo pares para se referir ao conjunto de crianças que se reúnem diariamente (CORSARO, 2009). A partir deste termo, o autor criou o conceito cultura de pares, definido como “um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e interesses que as crianças produzem e compartilham na interação com seus pares” (CORSARO, 2009, p.32). Em outras palavras, podemos dizer que são ações realizadas por crianças, entre as próprias crianças.

Corsaro enfatiza também a natureza coletiva da cultura infantil, localizando sua emergência em diversos contextos institucionais interativos. Quinteiro (2009), por sua vez, interroga o que realmente sabemos sobre culturas infantis ao afirmar que

pouco se conhece sobre as culturas infantis porque pouco se ouve e pouco se pergunta às crianças e, ainda assim, quando isto acontece, a 'fala' apresenta-se solta no texto, intacta, à margem das interpretações e análises dos pesquisadores. Estes parecem ficar prisioneiros em seus próprios referenciais de análise. (QUINTEIRO, 2009, p.21)

 Sarmento (2003, p. 4) entende por culturas da infância, “a capacidade das crianças de construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo adulto e de ação intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e ação”. Na mesma direção, Ferreira (2004) afirma que cultura infantil se refere a um modo de ser criança entre crianças, sendo ainda um estilo cultural particular com tempo e espaço também particulares. A autora acrescenta que “um estudo que pretenda focalizar as culturas infantis não pode ocorrer alheio ao contexto social; pelo contrário, necessita sustentar, na análise, as condições em que as crianças vivem, interagem e pelas quais dão sentido ao que fazem” (FERREIRA, 2004, p.109). Podemos então dizer que as culturas da infância são produzidas no meio social, e se constituem e são alteradas historicamente pelo processo de recomposição das condições sociais em que vivem as crianças e que regem as possibilidades das interações dessas crianças, entre si e com os outros membros da sociedade (SARMENTO, 2003).

Ainda, segundo Ferreira (2004), as interações sociais são base para a produção de culturas infantis locais, conferindo sentidos à vida na instituição de Educação Infantil. Cabe ressaltar que as crianças criam seus próprios mecanismos para superar as dificuldades encontradas nas tentativas de estabelecerem interações com seus iguais. Segundo Corsaro (2011, p. 161), “obter acesso a grupos de brincadeiras, manter a interação e fazer amigos ainda são árduas tarefas para crianças em idade pré-escolar”. As crianças tendem a proteger os seus espaços compartilhados do ingresso dos demais, e os novos participantes da interação podem necessitar alinhar suas ações, em conformidade com os outros, sob pena de serem excluídos da interação. Os ritos de entrada em brincadeiras não são tão simples para as crianças como aparentam ser para os adultos, visto que, de acordo com o tempo de aproximação do grupo e o desenvolvimento da brincadeira, os pequenos tendem a proteger seu tempo e espaço de outras crianças (MÜLLER, 2008). Segundo Ferreira (2004), não basta ser classificado como criança para que se torne capaz de desenvolver ações de interação imediatas com outras crianças. Para interagirem, elas desenvolvem relações estáveis com vários colegas, como uma maneira de maximizar a probabilidade de ingresso bem-sucedido e a interação satisfatória com as demais.

Com base nessas reflexões sobre as crianças e as culturas infantis, buscaremos discutir seus processos de interação e constituição social num contexto institucional. Nas próximas seções apresentamos as análises construídas com base nos registros de notas de campo, vídeos e entrevistas, contendo cenas, episódios e falas das interações das crianças no contexto da EMEI pesquisada.

 

As Interações em Grupos entre as Crianças na EMEI

A Educação Infantil se configura como um ambiente de relações e, com isso, as crianças estão em constantes interações, seja com seus pares, seja com os adultos. Ao observar as crianças nos diferentes espaços da Instituição, percebeu-se que as interações apresentavam configurações distintas de acordo com o ambiente em que ocorriam.

No parquinho, por exemplo, as crianças desenvolviam interações mais variadas, não havendo muita constância nos grupos, que eram formados e reconfigurados frequentemente. O espaço do parquinho se apresentava como um local amplo e com menor quantidade de artefatos que a sala. Esse ambiente também propiciava mais oportunidades de escolha de parceiros entre as crianças sem a intervenção direta do adulto.

A sala de aula, por sua vez, dispunha de muitos artefatos em um espaço mais restrito, o que poderia contribuir para que houvesse maior constância nas interações entre as crianças, principalmente nos momentos de brincadeira nesse ambiente. Sobre este tipo de ambiente, Rivero (2015) aponta que, quando estão na sala, as crianças têm acesso a uma diversidade de materiais e a um espaço delimitado que propicia certa privacidade. Em contrapartida, nos espaços externos, há menor número de materiais, e os espaços são facilmente acessíveis e abertos, o que torna possível os movimentos e expressões variadas. Quando estavam na sala, as crianças buscavam interações mais duradouras com seus parceiros, principalmente quando iam decidir ao lado de quem gostariam de se assentar. Martins Filho (2008) destaca a importância dessas interações ditas duradouras ao afirmar que

As crianças, ao se relacionarem e interagirem com os outros sujeitos, vão, aos poucos, descobrindo que os seres humanos são distintos; que cada um tem um modo próprio de ser, de pensar, de sentir e de estar no mundo. É socializando-se com os Outros que as crianças vão descobrindo as próprias especificidades, como também as especificidades dos que com ela convivem. (MARTINS FILHO, 2008, p.104)

Por se tratar de ações complexas, as análises aqui apresentadas partiram das observações das interações estabelecidas nos diferentes ambientes da Instituição, com foco nas que ocorriam entre as crianças e que tinham por objetivo a criação de vínculos. Privilegiou-se as ações que objetivavam a entrada e a permanência delas nos grupos de pares.

A análise minuciosa dos dados gerados a partir das observações evidenciou que, para interagir em grupos, as crianças utilizavam estratégias, criando mecanismos próprios para superarem as dificuldades encontradas nas tentativas de estabelecerem interações com seus iguais. Corsaro (2011) nos auxilia nesta interpretação, ao afirmar que, na tentativa de superar essas dificuldades de acesso ao outro, as crianças criam suas próprias estratégias de aproximação e não limitam seus contatos sociais a um ou dois colegas. Ao interagirem, elas desenvolvem relações estáveis com vários deles, como uma maneira de maximizar a probabilidade de ingresso bem-sucedido e interação satisfatória com as demais. De acordo com Ferreira (2004), é a partir da qualificação e do uso do corpo pelas crianças que elas desenvolvem suas experiências de aproximação. Desse modo, o corpo constitui-se como um facilitador inicial de reciprocidade, certificando à criança sua aceitação ou impedimento ao seu ingresso e à participação no grupo de pares.

Estratégia neste texto é, portanto, uma forma da criança demonstrar para o outro um interesse em estabelecer interações e compartilhar ações, por meio de um esforço para fazê-lo (BORBA, 2005). Em outras palavras, estratégia é um meio utilizado pelas crianças para criar tentativas de acesso aos grupos de pares. Nesta mesma direção, podemos dizer que as crianças criam estratégias de acesso, entendidas como “uma variedade de estratégias que crianças pequenas empregam para obter acesso a grupos de brincadeiras em ambientes pré-escolares” (CORSARO, 2011, p. 346).  O uso do termo estratégia se reporta, então, às ações desenvolvidas pelas crianças, para estabelecerem interações com outras crianças, conjugando o uso da linguagem corporal e verbal.

Estratégia deve ser aqui entendida como uma ação realizada a partir de uma tomada de decisão frente a uma situação que desperta na criança o interesse em se integrar naquela situação. O objetivo da ação é consciente, iniciar ou manter uma interação, e a decisão sobre qual ação adotar para alcançar esse objetivo é espontânea, visto que, para tomar a decisão, “as crianças trazem os conhecimentos individuais construídos nas suas experiências cotidianas dos seus mundos sociais e culturais mais amplos e os assumem tacitamente como elementos partilhados da interação, iniciando uma ação conjunta” (BORBA, 2005, p. 152). Essa ação espontânea se faz a partir de como “os usos sociais do corpo, aliados a estratégias de interação social onde se mobilizam diferenciadamente competências e conhecimentos sociorrelacionais adquiridos nas relações familiares e na comunidade e determinados recursos socioemotivos” (FERREIRA, 2004, p. 73).

Observamos que as crianças constroem principalmente dois tipos de categorias estratégicas para ingressar em ações com outras crianças, sendo elas de entrada e permanência. Para iniciar uma aproximação e ter acesso a seus pares e, assim, se organizar em grupos, as crianças utilizam as estratégias de entrada. Quando obtém o acesso ao outro ou ao grupo, utilizam novas estratégias para manter relações estáveis e garantir sua permanência no grupo, ou para que seja possível retornar a ele, posteriormente, com facilidade, visto que, de acordo com Müller (2008), após ser aceito como membro do grupo, a entrada se torna automática nas brincadeiras e encontros seguintes. Quando as crianças utilizam destas estratégias é necessária a aceitação do outro para que a interação se inicie e/ou permaneça, uma vez que assumir a condição de participante regular nas rotinas culturais da infância exige que haja outras crianças dispostas a aceitarem compartilhar uma ação comum (FERREIRA, 2004).

Então, podemos dizer que a aceitação ou resistência (BORBA, 2005) do outro é entendida como uma resposta para a estratégia utilizada, resposta esta que pode ser positiva, quando há aceitação, ou negativa, quando há resistência. Essa resposta pode ser verbal, quando a criança diz sim ou não, ou mesmo justifica a resistência ou aceitação do outro por meio do uso da fala, ou pode ser não verbal quando a resposta é dada por meio de ações, não sendo empregado o uso da fala.  Observou-se ainda que havia uma convergência nas respostas, visto que, na maior parte dos casos, as estratégias verbais obtinham respostas verbais e as estratégias não verbais recebiam respostas não verbais. Apenas em casos esporádicos uma estratégia verbal recebia uma resposta não verbal e vice-versa.

Conforme destaca Martins Filho (2008), é preciso reconhecer a capacidade comunicativa das crianças. Suas ações são um processo de constante recriação da cultura, e é o fundamento da dinâmica nos processos de socialização das crianças com seus pares. Assim, a socialização é compreendida, também, como um efeito das relações entre as próprias crianças, através de uma comunicação verbal e não verbal. É, portanto, no movimento dinâmico de agir com determinada estratégia e pela resposta dada a esta ação estratégica que a interação vai se configurando. Observou-se que as principais estratégias de entrada desenvolvidas foram pedido ou convite (verbal) e interferência (não verbal); e as principais estratégias de permanência foram diálogo (verbal) e cooperação (não verbal).

Quando a criança realiza o pedido ou convite para realizar uma ação por meio de uma estratégia verbal, observa-se a solicitação ou declaração direta da participação do sujeito no grupo (BORBA, 2005). No caso desta pesquisa, na maioria das vezes, esta ação era para uma brincadeira, mas também havia outras situações. Este tipo de estratégia pode ser verificada na situação abaixo:

Em certo momento, João Victor brincava com o celular de Gabriel que circulava pela sala. Daniel ingressou na brincadeira de boneca das meninas, dizendo que era o pai, mas, quando Gabriel quis brincar, Valéria disse que tinha que pedir a Giovana, porque a brincadeira era dela. Ele pediu a Giovana, que estava em outra mesa, mas ela não deixou. (Notas do Diário de Campo, 31/10/2014).

Vê-se que quando Gabriel expressou seu desejo de iniciar uma interação com as colegas, foi direcionado por elas para Giovana, a quem fez um pedido verbal direto e recebeu dela uma resposta negativa também verbal. É interessante observar que, assim como na situação acima, o pedido para brincar era direcionado à criança designada como “a dona da brincadeira”. As brincadeiras, geralmente, “pertenciam” a uma criança, que era responsável por definir quem podia ou não brincar, além de resolver os possíveis conflitos e questões que surgissem, referentes à organização da brincadeira. Sobre este aspecto, Borba (2005) pontua que a referência a um dono da brincadeira delimita o processo de aceitação e resistência a uma estratégia de entrada, visto que é a esse “chefe” que as crianças se dirigem para obter o desejado acesso à brincadeira. Além do pedido, a estratégia de convite também podia ser expressa por uma pergunta direta ou mesmo de outras formas, visto que os convites para estabelecer interações englobam todas as formas das crianças convidarem alguém para interagir (SESTINI, 2008).

A estratégia de interferência se refere ao movimento de chegar e interferir ou se agregar a uma situação. A adoção desse tipo de estratégia exige que a criança faça uma observação prévia objetivando interpretar a situação a que deseja ter acesso (BORBA, 2005). Também, neste caso, a situação desejada poderia ser uma brincadeira ou outro tipo qualquer de ação. Esta estratégia se configurava como não verbal, uma vez que não havia uma fala principal, mas uma ação de demonstrar para o outro o interesse em realizar esta entrada. Isto significa que, ainda que houvesse dizeres acompanhando a ação, o que sobressaía era a ação em si. Essas tentativas de acesso consistiam em a criança chegar próxima ao outro e interferir em uma interação que já estava organizada, de modo a se agregar na brincadeira sem um pedido formal.

Gabriel colocou duas cadeiras lado a lado na mesa onde eu estava e mais duas atrás e disse que era seu carro, e Daniel se aproximou e pediu para brincar. Edson, vendo as cadeiras, colocou a sua ao lado, formando uma fila com três cadeiras e Daniel se queixou com Gabriel dizendo “olha o que o Edson está fazendo”. Gabriel respondeu “mas o carro é meu” e Daniel retrucou “mas um carro só tem 4 lugares” e pediu licença a Edson colocando mais duas cadeias atrás. Mesmo Daniel tendo alegado que um carro tem quatro lugares, ele mesmo colocou mais duas cadeiras, ficando então com seis lugares. Valéria trouxe alguns brinquedos das panelinhas e colocou sobre a mesa dizendo “eu também vou brincar”. Assentaram então Gabriel e Valéria na frente; Aninha e Daniel no meio, e Arthur e Edson atrás, e Valéria disse “nós vamos para a praia” enquanto Gabriel fingia estar dirigindo. (Notas do Diário de Campo, 23/09/2014).

Neste episódio Edson utiliza uma estratégia de entrada não verbal, interferindo e se agregando à brincadeira. Ele não faz um pedido direto e nem mesmo utiliza palavras, mas chega e se insere em uma situação já iniciada, acabando por receber uma resposta positiva não verbal, pois mesmo havendo um desconforto inicial para Daniel, Edson fica e participa da brincadeira. Valéria também se utiliza da interferência para se agregar à brincadeira, trazendo seus brinquedos e completando sua ação com a afirmação “eu também vou brincar”.

Para esta última estratégia apresentada, observou-se, nas interações, uma resposta positiva não verbal quando a brincadeira ou situação se manteve com a chegada e participação de uma nova criança. Como resposta negativa não verbal, observou-se que a criança que chegava era ignorada, não recebendo atenção do outro ou dos demais. Nesse caso, a criança que usou a estratégia podia até mesmo sair e tentar nova estratégia em outro grupo. Sendo assim, uma resposta negativa manifestada pelo grupo a uma tentativa de acesso por uma criança implicava, geralmente, da sua parte, a criação de novas tentativas que precisavam de determinados ajustes em relação à ação inicial. As novas tentativas podiam ocasionar novas resistências ou respostas positivas.  A partir disso, é possível perceber que também situações de conflito normalmente servem para fortalecer os laços interpessoais e organizar os grupos sociais (CORSARO, 2011).

No que se refere à permanência na brincadeira, o diálogo foi uma das principais estratégias observadas, portanto, uma estratégia verbal. Neste caso, durante a interação, as crianças conversavam ativamente sobre assuntos diversos relacionados ou não à ação que desenvolviam, conforme o episódio abaixo observado:

No refeitório, observei Giovana conversando com os colegas enquanto lanchavam. Ela dizia: “Na minha casa não tem mangueira, tem uma piscina com um tobogã.... (pensou um pouco) Gente eu vou fazer uma festa na piscina lá em casa, e vou chamar você, você e você (apontando para Bruno, Valéria, Aninha, Lídia e Paula). Nós podemos fazer um piquenique... vai ter churrasco”. Bruno comentou, com empolgação, “eu adoro churrasco” e Giovana completou “pipoca, cachorro-quente... Vai sim”. Paula questionou, então, se Mariana iria ser convidada e Giovana disse “sim, porque eu também gosto dela”. Em seguida, disse “todo mundo vai ser convidado, menos o Edson”. Arthur e Edson estavam na mesa ao lado lanchando e nem ouviram a conversa. Subimos com a professora Daniela e Giovana foi contando para a professora sobre a 'festa na piscina' que ela pretendia fazer. (Notas do Diário de Campo, 23/09/2014).

Giovana inicia a conversa com os colegas afirmando que na casa dela não tem mangueira, provavelmente, porque, no dia seguinte a esta observação, as crianças fariam um banho de mangueira na escola. Giovana desenvolve um diálogo com um grupo de crianças da turma sobre uma possível festa em sua casa. Tendo a festa sido realizada ou não, observa-se que o diálogo proposto pela criança se apresentou como um meio de manter ou prolongar a interação do grupo durante o lanche da manhã.

Além desta estratégia, observou-se também a cooperação como uma estratégia de permanência não verbal utilizada pelas crianças. Borba (2005, p. 214) afirma que “as crianças desenvolvem suas ações em coordenação umas com as outras, buscando articular seus pontos de vista com os pontos de vista dos outros”, a fim de manter a interação estabelecida. Observou-se então que as crianças que tiveram uma entrada bem-sucedida em uma interação cooperavam desenvolvendo ações para que a interação iniciada permanecesse.

Daniel, Gabriel e Heitor retornaram para a brincadeira do carro com as cadeiras. Arthur assentou na 2ª fila de cadeiras e Daniel falou para Gabriel “papai você me empresta o carro para eu buscar meu amigo?”. Gabriel respondeu “sim, mas esse é meu carro novo”. Daniel assentou na frente e fingiu que dirigia, quando Arthur saiu correndo da cadeira e Daniel disse “o cachorro fugiu”; olhou para Gabriel e falou “papai o cachorro fugiu”, e os dois saíram correndo atrás de Arthur. (Notas do Diário de Campo, 23/09/2014).

Observa-se que as crianças cooperam com a brincadeira que está sendo desenvolvida. Elas não se opõem e se adaptam às situações que vão surgindo na interação que já está estabelecida. Neste trecho, vemos que Arthur decide sair correndo, e os colegas dão continuidade a esta ação dele, cooperando para que a interação permaneça. De acordo com Borba (2005), na cooperação, há um esforço conjunto de todos os participantes para cumprirem determinada tarefa proposta pelo grupo de brincadeira, na qual cada criança colabora na execução do seu papel na produção conjunta de uma ação comum.  No caso das estratégias de permanência utilizadas pelas crianças, as respostas obtidas eram majoritariamente positivas e não verbais, pois já havia uma interação iniciada, consistindo na continuidade da situação que ocorria.

Além das estratégias apresentadas, as análises dos dados sugeriram que a estratégia de ajuda ou apoio podia se configurar tanto como tentativa de entrada quanto de permanência no grupo, dependendo da situação em que ocorria. As crianças, sujeitos desta pesquisa, por sua vez, ao adotar a estratégia de apoio ou ajuda para iniciar ou manter uma interação, o faziam, possivelmente, porque criavam empatia com o outro e se dispunham a contribuir com sua demanda. A estratégia de ajuda ou apoio podia ser verbal ou não verbal, e ambas ocorrendo ao mesmo tempo.

Arthur terminou a atividade primeiro e ficou circulando pela sala. Edson estava entregando seu desenho à professora Karen, mostrando que tinha feito ele e o dinossauro. Arthur chegou perto e pediu para ver. Em seguida disse que Edson esqueceu-se de fazer os espinhos do dinossauro; pegou o desenho na mão da professora e falou com Edson “eu te ajudo”. Pegou uma canetinha e colocou uns traços saindo das costas do dinossauro. Edson continuou com o desenho na mão, quando Arthur terminou, só o entregando para professora depois. (Notas do Diário de Campo, 18/09/2014).

No caso apontado, Arthur se oferece para ajudar Edson como uma estratégia de entrada para iniciar uma interação com o colega, se expressando verbalmente. Ele recebe uma resposta positiva, pois o colega não refuta o seu auxílio. Conforme destaca Ferreira (2004), considerar as perspectivas e o papel do outro é uma condição primordial no estabelecimento de acordos que permitem ou não uma abertura do brincar, conferindo à criança um modo de se constituir como ator social.

Todos estavam ansiosos para o banho de mangueira. As crianças, iniciando por Valéria, começaram a tirar e ver os chinelos que levaram. Karen pediu que todos se assentassem, para que pudesse organizar tudo para descermos. Ela começou por uma mesa e pediu para os demais aguardarem. A professora foi passando nas outras mesas e chamando a atenção de algumas crianças. Aqueles que estavam prontos circulavam pela sala e brincavam com os brinquedos que iriam levar para o banho. Alguns ajudavam os colegas a passar protetor. Em uma das mesas, Valéria, que ainda não havia se trocado, passava o protetor solar nas costas de Camila. Daniel emprestou o seu protetor solar para Gabriel e Aninha que não haviam levado nenhum. (Notas do Diário de Campo, 24/09/2014).

Nesse episódio as crianças Aninha, Valéria, Camila, Daniel e Gabriel, que estavam assentados na mesma mesa, já se constituíam como um grupo e mantinham uma interação. Assim, com o objetivo de prolongar a interação por eles já iniciada quando se organizaram ao redor daquela mesa, Valéria e Daniel auxiliam os colegas na organização para a realização do banho de mangueira. Logo, essa ajuda se configurou como uma estratégia de permanência, pois foi um meio utilizado pelas duas crianças para que a interação entre o grupo permanecesse.

Cabe aqui relembrar que a Instituição apresentava vários ambientes. Ao observarmos o desenvolvimento das interações entre as crianças é interessante enfatizar que, em ambientes mais restritos como a sala, era comum perceber a adoção de estratégias de entrada verbais por parte das crianças. Em espaços amplos, como parquinho, as crianças utilizavam, com mais frequência, as estratégias de entrada não verbais. Verificou-se, também, que o diálogo, como estratégia verbal de permanência era utilizado majoritariamente em espaços como a sala e o refeitório. Já a cooperação, como estratégia de permanência não verbal, pôde ser percebida em todos os ambientes.

As estratégias descritas foram as que se observaram com maior frequência. É importante destacar que essas ações ou estratégias adotadas pelas crianças, para iniciar e manter uma interação, não pareciam ser premeditadas. Ao contrário, as crianças pareciam adotar essas ações diante de uma demanda por agir e interagir com o grupo.

 

 

 

A Participação nos Grupos na Perspectiva das Crianças

 

A interpretação das informações analisadas também sinaliza que do ponto de vista das crianças pesquisadas, estar com o outro ou participar de um grupo significa ser amigo. A organização em grupo relacionava-se com o sentimento de amizade. Em outras palavras, compartilhar uma brincadeira ou qualquer situação com o outro é ser amigo deste outro. A ação de fazer amigos e a brincadeira se configuram como similares, em concordância com a visão de que apenas assim as crianças participam de uma cultura de crianças (FERREIRA, 2004).

Aninha, em outra mesa, se levantou e mostrou a professora que tinha montado um cofre. Em seguida, se dirigiu a mesa de Lídia e começaram a brincar juntas. Lídia disse “então vamos fazer cofres”, e começaram a montagem. Momentos depois, chegou Mariana com algumas peças encaixadas, pedindo para brincar. Ambas deixaram e Mariana pediu para que lhe ensinassem a fazer o tal cofre. Lídia começou dizendo que primeiro ela tinha que desmontar tudo o que fez e encaixar como ela estava fazendo. (Lídia foi montando o seu e dizendo “aí, você faz assim... Assim oh.... E assim....Presta atenção... E assim... E, depois, vira...” enquanto ia encaixando as peças da montagem dela). Mariana começou a montar e Aninha continuava montando o dela. Lídia perguntou a Mariana “você quer ser nossa amiga?”, e ela respondeu que sim. Lídia, então, falou “se você tiver aqui, você é nossa amiga, senão não é”. (Notas do diário de campo, 17/09/2014)

Neste exemplo, Lídia é muito clara ao afirmar para a colega que se ela compuser o grupo, elas serão amigas. Nesta perspectiva, ser amigo se apresenta como uma condição para participar e estar no grupo. A partir da fala de Lídia, entende-se que, se a colega Mariana sair do grupo ou da brincadeira, elas não serão mais amigas. Portanto, reconhecer o outro como amigo está relacionado com o ato de compartilhar uma brincadeira ou outra ação qualquer, tornando o brincar ou desenvolver ações conjuntamente uma forma de fazer as crianças se tornarem amigas. Essa percepção da importância da amizade para as crianças é também descrita na fala da professora Daniela, ao analisar como ela percebe e analisa as interações da turma:

De um modo, eu acho que eles interagem bem. Tem uma questão que a gente vê muito assim “você é meu amigo?”. Já viu? Aqui nessa turminha mesmo (referindo-se a outra turma de 5 anos) “quem é meu amigo levanta a mão” (imitando uma criança). Aí, eles começam levantando a mão. Aí, ele fica vigiando para saber. Aí, o outro “quem é amigo de fulano levanta a mão”. Então, assim, essa questão de ser “meu amigo”, para eles, é muito importante … Então, eu acho que essa interação, para eles, além de ser muito [dando ênfase] importante né, eu acho que ocorre, assim, eles precisam disso para ter um outro como amigo. Eles precisam (...) de saber que o outro gosta dele. É importante isso para eles. (DANIELA, professora entrevistada em 04/11/2014)

A professora Daniela pondera que, para as crianças, é importante saber que o outro é amigo e, ainda, que a interação ocorre por meio da amizade. As crianças entendem que é através da interação que elas se tornarão amigas umas das outras e poderão criar laços de amizade. De acordo com Corsaro (2011), criar laços de amizade significa produzir uma atividade compartilhada em uma área específica, e protegê-la contra invasões de outrem. Müller (2008, p. 135) acrescenta a isso que “a noção de amizade surge com a ideia de atividades compartilhadas em espaços-tempos específicos da escola, como o pátio e o recreio”. Entende-se assim que as crianças não se tornam parte de um grupo social unicamente pelo fato de se encontrarem em um mesmo local. A transformação do conjunto de crianças em grupo social se dá por meio dos processos de construção social interligados e dos atos praticados pelos sujeitos presentes no espaço educativo com sua estrutura espaço-temporal (FERREIRA, 2004).  Entendemos, assim, que a amizade entre as crianças que compõem um grupo social é definida como uma ação compartilhada em tempo e espaço específicos. Abaixo apresentamos outro exemplo da posição das crianças frente à amizade:

Continuo observando as meninas e vejo que Giovana e Lídia pegam seus brinquedos para mudar de mesa de novo, mas Giovana vai até a mesa de Marina e diz “você sabia que a Lídia tem uma boneca que (...)” E completa com algo que não entendo, chamando-a para brincar. Ela concorda, se levanta e diz “vem Camila”. Giovana chega para Lídia e pergunta se elas (Camila e Marina) também podem brincar. Lídia responde “só se ela for minha amiga” e elas dizem que sim. Lídia concorda dizendo “então pode”. Paula, que observa ao lado, pergunta a Giovana “então eu também posso brincar?” e Giovana diz que pode. (Notas do diário de campo, 03/10/2014)

Aqui Lídia coloca, outra vez, a necessidade da amizade como uma condição para que as crianças ingressem na brincadeira. Ferreira (2004) sugere que as amizades são capazes de assegurar reciprocidade aos seus membros, por meio da cooperação, o que as configura como uma condição para o estabelecimento das relações sociais. É possível também supor que Paula ingressa na brincadeira por ser já considerada como amiga por parte de Giovana. Por ser a amizade uma condição para fazer parte de um grupo, é possível que, em diversas situações, surjam conflitos entre as crianças, o que coloca a amizade à prova e faz com que o grupo se mantenha unido. O conflito surge a partir da ameaça de ruptura do espaço interativo, que pode ser causada por discordâncias relacionadas às ações em curso ou a disputa de papéis (BORBA, 2005).

Müller (2008) pondera que o conflito se caracteriza como um movimento de distanciamento e aproximação, intercalado entre períodos amistosos e de ações conturbadas. Também por meio do viés do conflito, podemos perceber a visão das crianças sobre a importância de ser amigo do outro, para participar do grupo, uma vez que rompimentos e brigas são resultantes de fatores sociais e individuais, pois assumem diferentes dimensões e significados para diferentes gerações (MÜLLER, 2008). As crianças percebem os conflitos como um elemento natural nas relações de amizade, já que “conflitos e até brigas são inevitáveis e fazem parte do relacionamento” (MÜLLER, 2008, p. 137).

 Quando se observa atentamente os conflitos entre as crianças, especialmente em casos das brigas e discussões verbais, é possível perceber que tais conflitos, normalmente, servem para fortalecer os laços interpessoais de amizade e organizar os grupos sociais (CORSARO, 2011). Além disso, ao contrário dos conflitos, há momentos em que as crianças buscam ajudar e defender os companheiros que fazem parte da interação, fortalecendo também, os laços de amizade. Ao compreender o colega como um amigo, as crianças demonstram um interesse em apoiar e defender o outro enquanto estiverem mantendo uma interação. Assim, quando um grupo de crianças estabelece uma interação, seus componentes tendem a proteger esse espaço interativo de qualquer tipo de ruptura, a partir de um esforço conjunto de todos os envolvidos (BORBA, 2005).

 

Considerações finais

A partir das análises das informações construídas durante a pesquisa de campo, com o apoio de um referencial teórico amplo e multidisciplinar, buscamos uma aproximação ao ponto de vista de um grupo de crianças de cinco e seis anos buscando compreender como ocorriam suas interações no ambiente de uma instituição de Educação Infantil. O artigo visou, portanto, contribuir com os estudos que se ocupam em compreender as interações estabelecidas entre as crianças a partir de suas perspectivas. Nesse sentido, mais do que desenvolver notas conclusivas, destacamos a importância do desenvolvimento de novas pesquisas na área, que trabalhem com temáticas semelhantes juntamente com as crianças, visando ampliar a gama de conhecimento científico sobre as crianças e a infância. Um exemplo de aprofundamento dessa discussão se refere a estudos que possam abordar as estratégias das crianças para saída do grupo. 

Quanto ao contexto institucional, a partir dos resultados alcançados, consideramos importante reforçar os sentidos das indicações das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (BRASIL, 2009), de que a construção e organização da proposta pedagógica deve ser centrada nas crianças. Desse modo, a organização dos ambientes pode ser estimuladora das interações das crianças entre si e com as professoras; assim como com o próprio espaço. Ao se organizar um ambiente, pode-se tomar como ponto de partida o zelo pelas possibilidades de interação e desenvolvimento que ele pode proporcionar para as crianças, de forma a não optar por uma organização que aparente ser “mais fácil” para os adultos. 

E, para finalizar, ressaltamos que, dentro dos limites deste artigo, procuramos tornar visíveis as estratégias que as crianças pesquisadas utilizam para iniciar e manter relações em brincadeiras e demais atividades desenvolvidas por seus pares. Nesse sentido, as crianças do grupo observado demonstram não apenas desenvoltura para adotar uma estratégia que pareça mais conveniente à situação vivida, como também são capazes de se adequar às exigências do espaço interativo ajustando suas ações às percepções do grupo, reforçando, assim, o lugar de sujeitos competentes capazes de gerir seus próprios processos interativos.

 

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Notas

1 A participação das crianças foi autorizada pelos responsáveis por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes das crianças utilizados na pesquisa são fictícios. Cada criança escolheu o próprio nome como gostaria de ser chamado.

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

 

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