A educação na perspectiva da formação omnilateral e emancipatória: compreensão dos professores das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará
Education from the perspective of omnilateral and emancipatory training: understanding of teachers from State Schools of Vocational Education in Ceará
La educación desde la perspectiva de la formación omnilateral y emancipadora: comprensión de los docents de las Escuelas Estatales de educación Profesional del estado de Ceará
Instituto Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil
brenakesia2012@hotmail.com
Instituto Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil
elenilce.beatriz@gmail.com
Instituto Federal do Ceará/PROFEPT, Fortaleza, CE, Brasil
laninharoque@gmail.com
Lélia Cristina Silveira de Moraes
Universidade Federal do Maranhão, Fortaleza, CE, Brasil
lelia.silveira@ufma.br
Recebido em 26 de agosto de 2023
Aprovado em 22 de janeiro de 2024
Publicado em 03 de junho de 2024
RESUMO
A perspectiva da formação integral, em sua acepção omnilateral, permeia os principais documentos referenciais para a ação pedagógica das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEP) do Ceará, criadas em 2008. Essas escolas ofertam Ensino Médio integrado à Educação Profissional em tempo integral, com o intento de desenvolver, no Estado, conforme consta em seus documentos, novo conceito de educação. A estruturação do corpo docente das EEEPs ocorre mediante processo seletivo, cujas etapas desoneram os candidatos do domínio elementar tanto da acepção omnilateral quanto da formação integral. Atentando-se a essa conjuntura, a seguinte questão norteia o estudo em tela: os professores das EEEPs compreendem o que é educação integral omnilateral e emancipatória? Buscando responder a questão posta, o estudo objetivou investigar a compreensão dos educadores que atuam nessas escolas sobre a educação na perspectiva da formação omnilateral e emancipatória. A pesquisa envolveu, especificamente, os docentes que atuam nas EEEPs da segunda Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (CREDE 02). Foi utilizado como base metodológica o materialismo histórico-dialético, cotejando o movimento do real em contínua mudança permeada de contradições e relações entre as particularidades e singularidades constituindo a totalidade. As respostas aos questionamentos levantados apontam para a necessidade de abordagens que explicitem a perspectiva da educação omnilateral, que envolvam planejamento de práticas interdisciplinares e possibilidades de efetivação da integração entre conhecimentos gerais e específicos, além de conhecimentos referentes à Educação Profissional em termos de fundamentos e legislação.
Palavras-chave: Educação profissional; Omnilateral; Professores.
ABSTRACT
The perspective of comprehensive education, in its omnilateral meaning, permeates the main reference documents for the pedagogical action of the State Schools of Professional Education (EEEP) of Ceará, created in 2008. These schools offer High School integrated to Professional Education full time, with the intention to develop, in the state, as stated in its documents, a new concept of education. The structuring of the EEEP faculty occurs through a selection process, whose stages relieve candidates from the elementary domain both from the omnilateral meaning and from comprehensive training. In view of this situation, the following question guides the study in question: do the EEEP teachers understand what omnilateral and emancipatory integral education is? Seeking to unveil the question raised, the present study aimed to investigate the understanding of educators who work in these schools about education from the perspective of omnilateral and emancipatory training. The research specifically involved the teachers who work in the EEEP of the second Regional Education Development Coordination (CREDE 02), having as methodological basis the historical-dialectical materialism, comparing the movement of the real in continuous change permeated by contradictions and relations between the particularities and singularities constituting the totality. The answers to the questions raised point to the need for approaches that explain the perspective of omnilateral education, which involve planning interdisciplinary practices and possibilities for effecting the integration of general and specific knowledge, in addition to knowledge related to Professional Education in terms of fundamentals and legislation.
Keywords: Professional education; Omnilateral; Teachers.
RESUMEN
La perspectiva de la formación integral, en su sentido omnilateral, permea los principales documentos de referencia para la acción pedagógica de las Escuelas Estatales de Educación Profesional (EEEP) de Ceará, creadas en 2008. Estas escuelas ofrecen Educación Secundaria integrada con Educación Profesional de tiempo completo, con la intención de desarrollar, en el Estado, según consta en sus documentos, un nuevo concepto de educación. La estructuración del profesorado de las EEEP se da a través de un proceso de selección, cuyas etapas eximen a los candidatos del dominio elemental tanto en el sentido omnilateral como de la formación integral. Atendiendo a esta situación, la siguiente pregunta orienta el estudio en cuestión: ¿los docentes de las EEEPs entienden qué es la educación integral omnilateral y emancipadora? Buscando responder a la pregunta planteada, el estúdio tuvo como objetivo investigar la comprensión de los educadores que actúan en estas escuelas sobre la educación desde la perspectiva de la formación omnilateral y emancipadora. La investigación involucró específicamente a docentes que trabajan en las EEEP de la segunda Coordinación Regional de Desarrollo Educativo (CREDE 02). Se utilizó como base metodológica el materialismo histórico-dialéctico, comparando el movimiento de la realidad en continuo cambio permeado por contradicciones y relaciones entre particularidades y singularidades que constituyen la totalidad. Las respuestas a las preguntas planteadas señalaron la necesidad de enfoques que expliquen la perspectiva de la educación omnilateral, que impliquen planificar prácticas interdisciplinarias y posibilidades de implementar la integración entre conocimientos generales y específicos, además de los conocimientos relacionados con la Educación Profesional en términos de fundamentos y legislación.
Palabras Clave: Educación profesional; Omnilateral; Profesores.
Introdução
A Educação Profissional e Tecnológica se situa na confluência de dois direitos fundamentais do cidadão brasileiro: o direito à educação e o direito ao trabalho. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei 9.394/1996, foi consagrada entre os níveis e as modalidades de educação e ensino, ampliando seu leque de cursos. Trata-se de uma modalidade da educação brasileira que perpassa os dois níveis do sistema educacional, desde a educação básica até o nível superior. Sua oferta pode ocorrer em articulação com o ensino regular e com outras modalidades da educação.
O modelo de Escola de Educação Profissional construído no Ceará — as EEEPs — situa-se na possibilidade da articulação da Educação Profissional Técnica com o Ensino Médio que se utiliza da concepção de formação humana com base na integração de todas as dimensões da vida no processo educativo (o trabalho, a ciência, a tecnologia e a cultura), isto é, uma formação integral, fundamentada no trabalho como princípio educativo.
As EEEPs têm sua origem na acessão do estado ao Programa Brasil Profissionalizado, instituído em 2007, cujo objetivo é o fortalecimento do Ensino Médio integrado à Educação Profissional nas redes estaduais. No Ceará, após o lançamento desse Programa Federal, o Governo do Estado, por meio da Secretaria de Educação (SEDUC), criou as Escolas Estaduais de Educação Profissional – EEEPs - através da Lei Estadual nº 14.273/2008 que no Parágrafo único, do Art.1º, estabelece o Ensino Médio integrado à Educação Profissional a ser oferecido nas escolas, com jornada de tempo integral para garantia da articulação entre a escola e o trabalho (CEARÁ, 2008, p.1).
A essência do conceito de educação integral está na articulação da educação geral, científica e cultural com a Educação Profissional na perspectiva da formação integral dos estudantes, como se explicita no documento referencial para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio - Documento Base do MEC - que estabelece, como concepções e princípios para esta modalidade de ensino, a concepção de formação humana, “com base na integração de todas as dimensões da vida no processo educativo, visando à formação omnilateral dos sujeitos. Essas dimensões são o trabalho, a ciência e a cultura” (BRASIL/MEC/SETEC, 2007, p. 41). Tal concepção também consta em um dos documentos oficiais das EEEPs elaborado pela própria SEDUC e intitulado de “Relatório de Gestão: o pensar e o fazer educação profissional no Ceará: 2008-2014”, no qual se enfatizam as proposições do Ensino Médio integrado à Educação Profissional, fundamentadas numa concepção integral do ser humano, que agregue suas diferentes dimensões constituintes com vistas à formação omnilateral dos sujeitos
Esse discurso surge de forma bastante contundente em um dos documentos oficiais das EEEPs: Tecnologia Empresarial Socioeducacional (TESE), cujo teor indica um trato explicitamente mercadológico para a educação, situando a escola profissional dentro das circunstâncias neoliberais. Como conceito, a TESE é “um instrumento para o planejamento, gerenciamento e avaliação das atividades dos diversos integrantes da comunidade, ou seja, a síntese de um planejamento estratégico para uma gestão por resultados” (Ceará, 2014. p. 122).
A importância dada a esse documento pela SEDUC é tanta, que a compreensão da TESE faz parte de uma das etapas do processo seletivo para a composição do corpo docente da base comum curricular das EEEP; a etapa é desenvolvida em formato de seminário com duração de quatro horas, em que os futuros docentes são instigados a vislumbrar a educação sob a ótica gerencial de uma empresa.
A SEDUC considera processos seletivos distintos para a estruturação do corpo docente das EEEPs: um para os professores das disciplinas do Ensino Médio regular e outro para professores do ensino profissional. A seleção dos professores da formação geral, que fazem parte do quadro de servidores do Estado e se constituem de profissionais efetivos ou com contrato temporário, ocorre em duas fases, sendo a primeira constituída de prova objetiva de múltipla escolha e de comprovação de experiência através de análise curricular e a segunda, de um seminário presencial sobre o modelo de gestão e a proposta pedagógica das EEEPs, conforme a Lei 14.273 de 2008, regulamentada pelo Decreto 30.865 de 2012. Já a contratação dos professores da base técnica é feita mediante processo seletivo realizado pelo Instituto Centro de Ensino Tecnológico (CENTEC), por meio de edital publicado anualmente, composto das seguintes etapas: prova de conhecimentos gerais e conhecimentos específicos relativos a cada curso técnico; aula prática; e análise de currículo.
Observa-se que em nenhuma etapa de ambos os processos seletivos há espaço formativo que contemple a discussão sobre as bases conceituais da Educação Profissional, da perspectiva da educação integral que fundamenta o projeto das EEEPs para a formação dos sujeitos e, por fim, que oportunize ao professor, ao ingressar no corpo docente dessas escolas, o domínio elementar dos princípios norteadores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio.
Diante do exposto e considerando o fato de que os docentes são os atores diretamente envolvidos no processo de formação dos estudantes da rede e que seu processo seletivo e formativo os desonera do domínio elementar tanto da acepção omnilateral quanto da formação integral, formula-se a seguinte questão: os professores das EEEPs compreendem o que é educação integral omnilateral e emancipatória? Buscando desvelar a questão posta, o estudo em tela objetivou investigar a compreensão dos educadores que atuam nessas escolas sobre a educação na perspectiva da formação omnilateral e emancipatória.
A pesquisa, de abordagem qualitativa, com suporte no materialismo histórico-dialético, foi dividido em duas etapas: 1) levantamento bibliográfico e documental, o qual contemplou estudos dos dispositivos legais acerca do modelo de ensino médio integrado à educação profissional ofertado nas EEEPs do Ceará e dos fundamentos da Educação integral omnilateral e emancipatória nos escritos de Paolo Nosella e Manacorda, dentre outros autores; 2) aplicação de questionário aos professores e discussão crítica dos dados coletados.
Fundamentos da educação integral omnilateral e emancipatória
A base teórica existente nos conceitos e princípios da Educação Profissional integrada ao Ensino Médio, utiliza-se de ideias presentes na educação socialista, que tem como perspectiva a omnilateralidade. Essa categoria, cuja gênese está na obra de Marx e Engels e, objetivamente revelada na proposta educacional de Antônio Gramsci (intelectual marxista da primeira metade do século XX), é compreendida como:
A chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capacidade de consumos e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais e dos quais o trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão do trabalho (Manacorda, 2007, p. 89).
Nessa direção, a formação omnilateral é, antes de tudo, a superação da dicotomia entre o trabalho produtor de mercadorias e o trabalho intelectual, o que significa a reintegração do ser humano cindido historicamente pela divisão social do trabalho, elemento de base da sociedade capitalista (Nosella, 2016).
A expressão omnilateral foi contextualizada pela primeira vez por Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, em que defendia a relação homem-natureza no trabalho como uma relação consciente e universal.
O homem se apropria da sua essência omnilateral de uma maneira omnilateral, portanto, como um homem total. Cada uma das suas relações humanas com o mundo, ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar, enfim todos os órgãos da sua individualidade, assim como os órgãos que são imediatamente em sua forma como órgãos comunitários, são no seu comportamento objetivo ou no seu comportamento para com o objeto a apropriação do mesmo, a apropriação da efetividade humana [...] (Marx, 2004, p. 108).
Conforme Della Fonte (2014), no original alemão, “essência omnilateral” diz-se allseitiges Wesen, enquanto “de uma maneira omnilateral” diz-se auf eine allseitige Art. Logo, o termo omnilateral remete para adjetivo alemão allseitig, formado pela palavra all, que significa todo/a, e Seite que indica lado, página; sendo allseitig traduzido como universal, geral. Isto na tradução portuguesa recorre ao prefixo latino omni ou oni, que denota todo ou inteiro junto à palavra lateralidade. Em suma, a ideia da formação omnilateral ou onilateral supõe o desenvolvimento dos indivíduos em indivíduos completos, integrais.
Especificamente, em relação ao ensino, Manacorda (2012) explica que a produção escrita de Marx compreende uma tríplice formação para a onilateralidade.
Por ensino entendemos três coisas: primeira, formação intelectual (geistige Bildung); segunda, educação física (körporliche Ausbildung), como é ensinada em escolas de educação física e por exercícios militares; terceira, ensino ou adestramento politécnico (polytechnische Erziehung) que transmita os fundamentos científicos gerais de todos os processos de produção e que, ao mesmo tempo, introduza a criança e o adolescente no uso e na capacitação de manejar os instrumentos elementares de todas as profissões (Marx, p. 194-195 apud Manacorda, 2012, p. 10).
De maneira geral, a síntese da proposta marxiana de educação vincula educação intelectual e física, aliada à prática social. É tomando como base a indissociabilidade entre essa tríplice educação que Marx julga possível a formação omnilateral, pela qual os sujeitos conquistam a compreensão sobre a totalidade do processo social do qual fazem parte. À vista disso, longe de significar uma orientação ou treinamento profissional, figura-se numa abordagem teórica e prática associada aos fundamentos científicos dos processos de produção (Della Fonte, 2014).
Desse modo, a educação que tem como fim o homem onilateral deve visar ao ensino intelectual, físico e tecnológico para todos. Isso porque, conforme Manacorda (2012), a “divisão dos homens entre os destinados ao trabalho e outros à ciência, à produção e outros ao consumo, uns ao cansaço ou outros ao gozo, é o nó das contradições da sociedade capitalista” (p.11) e é, exatamente a ruptura desse nó, a intenção de Marx.
É, portanto, na perspectiva da omnilateralidade articulada à liberdade, como postulou Marx, que o homem deve ser educado, já que “nenhuma batalha pedagógica pode ser separada da batalha política e social” (Manacorda, 2010, p. 432). Assim, a concepção de omnilateralidade não se restringe a uma proposta educacional, mas se amplia a um projeto de sociedade, que visa superar a condição de adestramento e exploração que a dinâmica do capital submete o homem.
Desse modo, a categoria da formação omnilateral em Marx transcende a união de instrução e trabalho, “pressupõe a instrução enquanto elemento da crítica da forma histórica que o trabalho assume sob o modo de produção capitalista. E, sobretudo, propõe a construção de um novo modelo de sociedade” (Santos, 2005, p. 12), onde o trabalho se efetive enquanto atividade realizadora do homem.
É sobre a base marxista, em que a educação escolar se põe como possibilidade concreta de elevação cultural e desenvolvimento dos trabalhadores (Ferreti, 2009), que a concepção educacional de Antônio Gramsci está fundamentada. Esse intelectual marxista, nascido em 23 de janeiro de 1891, em Ales, na Ilha de Sardenha, região pobre e atrasada da Itália, teve sua história de vida imbricada à luta pela transformação social a partir da formação de homens genuinamente livres. Suas ideias sobre educação surgem desse contexto.
O projeto educacional apresentado por Gramsci é o da Escola Unitária, no intuito de promover um equilíbrio entre formar no aluno a capacidade de trabalhar manualmente, assim como desenvolver o exercício do trabalho intelectual, já que a cisão existente entre escola clássica e escola profissionalizante aprofundava-se na Itália. Para o autor sardo, “a divisão fundamental da escola em clássica e profissional era um esquema racional: a escola profissional destinava-se às classes instrumentais, enquanto a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais” (Gramsci, 2001, p.33).
Como resposta a esse quadro dual da escola italiana, Gramsci propõe:
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que tempere equilibradamente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (técnica, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalhar intelectualmente. Deste tipo de escola única, através de experiências repetidas de orientação profissional, o aluno passará para uma das escolas especializadas ou para o trabalho produtivo (Gramsci, 2001, p. 33).
Nosella (2015) destaca que Gramsci utiliza a mesma expressão “trabalhar” para as atividades manuais e para as intelectuais, ou seja, a escola, nesse sentido, é sempre escola do trabalho. Gramsci toma o trabalho como princípio educativo na Escola Unitária à luz das análises de Marx que enfoca essa categoria como aspecto central da formação do ser humano.
O trabalho como elemento unitário na proposta educativa de Gramsci “nada mais é que o próprio princípio da liberdade concreta e da autonomia universal do homem” (Nosella, 2016, p.80) e, dessa forma, contrapõe-se à simples preparação para o trabalho já efetivado nas escolas profissionais que se multiplicavam na Itália, caracterizadas pelo ensinar a fazer, em que o ensino estava voltado para a formação de mão de obra especializada para atender às demandas imediatas do mercado.
A proposta educacional Gramsciana buscava, portanto, realizar a integração entre cultura humanística (em seu sentido amplo e não apenas em seu sentido tradicional) e técnico-científica, na qual o trabalho como princípio educativo se constituiria no objetivo último da escola unitária de Gramsci, isto é:
transformar em liberdade o que hoje é necessidade. Trata-se, portanto, de uma escola da liberdade, isto é, de uma escola onde se ensina a ser livre [...]. É a liberdade forjada no e pelo trabalho moderno, administrado pelo trabalhador o qual, produz e define a política de produção e de distribuição (Nosella, 2016. p, 193).
Em se tratando da realidade do sistema educacional brasileiro, a Escola Unitária corresponde, atualmente, à etapa definida como educação básica, nos níveis fundamental e médio. Notadamente, em relação ao Ensino Médio, a discussão que escancara a possibilidade ou não da materialização plena de uma escola nos moldes gramscianos não se esgota às determinações legais e normativas já efetivadas, mas permanece em evidência, sobretudo entre educadores e pesquisadores que fazem a defesa de uma educação pública de qualidade, de caráter emancipatório.
Para tanto, algo que se coloca com extrema importância é que o distanciamento dos educadores em relação às concepções que dão fundamento à Educação Profissional integrada ao Ensino Médio seja reduzido ao máximo, a fim de que a perspectiva da formação integral consubstancie suas práticas de ensino. Dessa forma, ainda que timidamente, estaríamos, em meio às contradições do sistema capital, produzindo movimentos de forma a contribuir para a transformação das relações sociais hodiernas.
Percurso metodológico
O estudo desenvolveu-se no âmbito das Escolas Estaduais de Educação Profissional da CREDE 02, uma das vinte coordenadorias que compõe o Órgão de Execução Regional instituído pela SEDUC. De acordo com dados da própria CREDE, são ao todo 45 Escolas de Ensino Médio distribuídas em quinze municípios no interior do estado, das quais, nove são de educação profissional, a saber: EEEP Adriano Nobre (Itapagé), EEEP Luiz Gonzaga Fonseca Mota (Amontada), EEEP Professora Abigail Sampaio (Paracuru), EEEP Alan Pinho Tabosa (Pentecoste), EEEP Walter Ramos de Araújo (São Gonçalo do Amarante), EEEP Maria Auday Vasconcelos Nery (Uruburetama), EEEP Rita Aguiar Barbosa (Itapipoca), EEEP José Ribeiro Damasceno (Trairi) e EEEP Flávio Gomes Granjeiro (Paraipaba).
A técnica de investigação consistiu na aplicação de um questionário aos docentes, on-line, através de um aplicativo de gerenciamento de pesquisas da Google (Google Forms). O link de acesso à pesquisa foi encaminhado via e-mail para as escolas, a fim de que os diretores das referidas instituições o disponibilizassem aos seus quadros de professores no período de 16 de fevereiro a 02 de março de 2021.
Um levantamento realizado junto à coordenação da CREDE 02 permitiu conhecer o número de professores que compõem as EEEPs da referida Coordenadoria, observando o critério de inclusão da pesquisa, isto é, apenas professores em efetiva regência de classe. As escolas investigadas contam com aproximadamente 250 docentes, destes, 39 profissionais aceitaram participar do estudo, cuja representatividade compreendeu as nove EEEP para a coleta de dados.
As respostas coletadas nas questões objetivas e transcritas nas discussões estão apresentadas de acordo com a ordem de participação dos professores. Utilizamos essa ordem como forma de manter a identidade dos pesquisados preservada e, para denominá-los, optamos pelas letras do alfabeto, por exemplo: (Professor A; Professor Z). Observando que o número de pesquisados é maior que o número de letras do alfabeto, ao concluir a 26ª participação (correspondente a letra “Z”), inicia-se uma nova sequência, representada por uma letra maiúscula seguida de uma minúscula: Professor Aa, Professor Bb, Professor Cc etc.
Conhecendo a acepção da perspectiva formativa integral dos docentes pesquisados
Considerando que a quantidade de docentes da base comum curricular é superior à quantidade de docentes das disciplinas específicas do eixo profissionalizante nas EEEPs, a composição da amostragem do estudo não foi dessemelhante à essa razão: 66,7% consiste em professores da formação geral, servidores do Estado (efetivos ou com contrato temporário) e 33,3%, professores horistas contratados pelo regime da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, via contrato de gestão firmado com o Instituto Centro de Ensino Tecnológico (CENTEC).
Em relação ao tempo de atuação profissional na rede, todos os participantes possuem mais de um ano de experiência, sendo maioria — totalizando 71,8% — aqueles que afirmaram possuir tempo igual ou superior a 04 anos de prática docente em uma Escola Estadual de Educação Profissional, o que julgamos relevante para a solidez dos dados coletados, pois tomando como referência os 13 anos de implantação das EEEP no Ceará, trata-se de uma representatividade que comunga das rotinas pedagógicas dessas escolas por um período expressivo.
Uma das questões apresentadas aos professores envolveu um trecho do “Relatório de Gestão: o pensar e o fazer da educação profissional no Ceará: 2008-2014”, documento elaborado pela SEDUC em que se delineia as proposições do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional. Tomando como base a citação referenciada na questão, o professor julgaria sua compreensão acerca da perspectiva da formação omnilateral. Constatou-se que a compreensão sobre a perspectiva de formação humana que fundamenta o processo educacional nas EEEPs, é tida, majoritariamente como clara entre os professores investigados, mas não absoluta, já que 28, 2% julgam essa compreensão incompleta ou limitada e, 2, 6% não a possuem.
A predominância nas respostas “compreendo claramente”, no entanto, não é capaz de revelar por si só, na análise que propusemos, coerência com as concepções filosóficas que sustentam a perspectiva da formação humana integral. Isso porque, na análise de outras informações coletadas, é possível encontrar elementos que contradizem a clareza dessa concepção e que se enveredam nitidamente pelo caminho da formação unilateral — fomentada e promovida pela lógica do capital — que introduzida no chão da escola, desfigura o processo educacional enquanto processo de formação humana, fragmentando saberes e reproduzindo a cisão histórica entre os que pensam (intelectuais) e os que fazem (trabalhadores).
Na direção oposta, a perspectiva da educação integral, em sua acepção omnilateral, implica a superação da unilateralidade, isto é, a ruptura com o homem limitado da sociedade capitalista. Essa ruptura, que de acordo com Sousa Junior (2009) deve ser ampla e profunda, não pressupõe, todavia, a compreensão de uma formação de indivíduos geniais, mas, antes, de homens que se afirmam historicamente, que se reconhecem mutuamente em sua liberdade e submetem as relações sociais a um controle coletivo, que superam a separação entre trabalho manual e intelectual e, especialmente, superam a mesquinhez, o individualismo e os preconceitos da vida social burguesa.
Nesse horizonte, corrobora a SEDUC do Estado ao afirmar que na formação desse ser integral
[...] é imprescindível a compreensão do real como totalidade, o que exige o conhecimento das partes e as relações entre elas. O movimento da parte para o todo e do todo para a parte possibilita transitar pelos conhecimentos científicos (conhecimentos gerais e conhecimentos técnicos) e dados de realidade (a prática em si), buscando construir novos conhecimentos que deem conta da superação das dificuldades apresentadas na vida cotidiana e no exercício da profissão (SEDUC, 2014, p. 114).
Assim, a concepção de totalidade do desenvolvimento humano que referencia o processo educacional nas EEEPs, exprime que, ao mesmo tempo que o homem se reconhece como tal na sua prática sobre o mundo, ele precisa atuar como um todo sobre o real, com todas as suas faculdades humanas, todo seu potencial e não como ser fragmentado, pois só assim ele poderá se encontrar objetivado como ser total diante de si mesmo (Sousa Junior, 2009). Como explica Manacorda (2007) o conceito de homem onilateral:
Frente à realidade da alienação humana, na qual todo homem, alienado por outro, está alienado da própria natureza e o desenvolvimento positivo está alienado a uma esfera restrita, está a exigência da onilateralidade, de um desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua satisfação (p. 87).
Visionar a integralidade do ser no processo educacional, significa, portanto, romper radicalmente com a ótica da unilateralidade, que se revela nas mais variadas formas de limitação, decorrentes da dinâmica do capital.
Curioso e ao mesmo tempo contraditório, é o fato de a SEDUC delinear a concepção de formação humana integral e ao mesmo tempo adotar como modelo de gestão pedagógica para as EEEPs o Manual Operacional do Instituto de Co-reponsabilidade pela Educação (ICE) cujos parâmetros estão embasados na Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO). Não é necessário grande esforço para compreender que, para além da linguagem utilizada no documento, o conteúdo presente na TESE revela claramente o trato mercadológico dado à educação, reduzindo a gestão do processo educacional à condução de um negócio em que se requer atitude empresarial de educadores e educandos, em suma, nessa filosofia, a Escola deve pensar como uma empresa.
Produtora de riquezas morais, e riquezas materiais; É formadora de cidadãos éticos, aptos a empresariar suas competências e habilidades; Eficiente nos processos, métodos e técnicas; Efetiva na qualidade do ensino, consciente de sua autoridade moral como escola de referência do Ensino Médio público no Estado e no país; Eficaz nos resultados, superando a expectativa da comunidade e do investidor social, tendo o estudante como parceiro na construção de seu projeto de vida e os pais como educadores familiares, parceiros deste empreendimento (ICE, 2004 p. 22).
Pelo fato de a TESE ser enfaticamente o documento acessado pelos professores que compõem os quadros docentes das EEEPs para sistematizar o trabalho pedagógico, tornou-se necessário abordá-la no estudo. Questionou-se, então, se os docentes enxergavam no conteúdo desse instrumento coerência com as proposituras de uma educação que tem como horizonte a formação integral dos estudantes ou se atende à concepção liberal de educação que limita o processo educativo à perspectiva de preparação para o mercado de trabalho.
A maior parte dos professores (71, 8%) entende que o Manual Operacional da TESE se une, em seu conteúdo, às proposituras de uma educação com vistas à formação integral dos estudantes. Já 28, 2% dos pesquisados compreendem que não, que essa filosofia gerencialista com enfoque em resultados e dados numéricos, transplantada para o espaço escolar atende a uma outra concepção educacional, aquela que é determinada pela dinâmica do mercado de trabalho.
Retomam-se aqui, as considerações feitas sobre os dados coletados na questão sobre a compreensão da perspectiva da formação humana omnilateral, na qual obtivemos um percentual majoritário (69, 2%) muito próximo ao desta segunda questão averiguada. Naquela análise inicial, constatou-se que a maioria dos docentes julga ter clareza quanto à concepção de formação humana omnilateral assumida pela SEDUC como substancial para o processo de ensino e aprendizagem nas EEEPs.
Considerando os princípios filosóficos que fundamentam a perspectiva de uma educação emancipatória que não se submete aos imperativos do capital e que, portanto, não estão presentes na TESE, é possível inferir que, embora um maior número de professores tenha afirmado conhecimento claro sobre a concepção formativa omnilateral, esses profissionais não conseguem reconhecer suas bases teóricas e assim distingui-las de outras concepções explicitamente opostas, somando-se aos demais docentes que não possuem tal entendimento, seja de forma parcial ou ainda, totalmente.
A existência dos entraves no sentido de os docentes compreenderem as proposituras do modelo de educação do qual são partícipes, revelou-se de forma mais precisa quando esses profissionais foram questionados sobre as dificuldades experimentadas, especificamente, ao ingressarem no corpo docente das EEEPs. Destacam-se a seguir, algumas respostas que manifestam tais percepções:
“Confesso que ainda sinto, pois acredito que a proposta abordada nos nossos documentos difere da proposta pragmática, no cotidiano, observamos cada vez mais, a construção de uma educação unilateral voltada diretamente para atender as exigências do ditame do capital, obscurecendo a essência do processo formativo proposto à escola” (Professor A).
“Sim, pois não tinha muitos conhecimentos de uma formação integrada” (Professor E).
“Sim, é necessário uma formação para que o professor se sinta inserido” (Professor Gg).
“Sim, por vim de uma situação mais da área da saúde, assistência em saúde. Vi grande dificuldade em entender os processos e modelos de educação” (Professor K).
“Inicialmente sim, pois eu não havia ainda participado de uma escola com essa estrutura integral” (Professor S).
“Sim. Falta integração e formação das bases comum e técnica” (Professor I).
“Senti dificuldade em compreender a educação integral e a materialização desse conceito na prática docente” (Professor O).
“Sim. Sempre trabalhei em escolas regulares. Ao ingressar na escola profissional, percebi que a filosofia da escola era e tinha que ser vivida. Tal filosofia segue os moldes de uma educação baseada em uma empresa. Ainda hoje tenho dificuldade de compreender esta relação educação x empresa” (Professor U).
As informações colocadas sugerem que os educadores chegam às EEEPs oriundos de diferentes contextos profissionais, como de áreas de atuação descoincidentes do campo da educação, ou de escolas regulares, indicando inexperiência com a docência em tempo integral e com o próprio formato do ensino integrado. Sentir-se inserido, nessas circunstâncias, parece ser um imperativo na explicação de um dos pesquisados, quando se reclama por uma formação como meio de atenuar essa condição por ele observada. O encontro com o novo modelo de educação, ensino profissional integrado ao Ensino Médio em tempo integral, figura ocorrer de modo emergente, de forma que é na prática cotidiana que o professor vai desvelando o arranjo educacional do qual faz parte.
“Ao vivenciar as experiências em sala de aula é que pude compreender esse modelo educacional” (Professor Kk).
“Ao ingressar sim, mas ao longo da trajetória profissional nesta escola, dos estudos que realizamos para melhor (sic) nossa prática, isso foi se delineando” (Professor Hh).
“Sim. Pela falta de experiência, o modelo escolar era algo distante das atividades que eu desenvolvia outrora, o que dificultou a compreensão imediata” (Professor Mn).
“No início sim, pois o documento tem uma linguagem um tanto técnica, mas no decorrer do tempo com a vivência foi sendo mais fácil assimilar” (Professor L).
Chama a atenção nas respostas apresentadas, dentre outras indicações, o dilema que decorre da falta de entendimento no que diz respeito à “relação educação x empresa” que certamente vem do estudo exclusivo do Manual Operacional da TESE repassado para os docentes na seletiva de admissão, fazendo com que se perca de vista, para a inserção deste profissional na escola, abordagens cruciais para a compreensão da proposta da integração entre Ensino Médio e Educação Profissional, ou ainda, nos termos de um pesquisado, “obscurecendo a essência do processo formativo proposto à escola”.
Embora expressas em termos e redações distintos, as dificuldades elencadas pelos professores parecem encontrar seu cerne na real necessidade da oferta de condições formativas que os possibilitem ingressar nos quadros docentes das EEEPs usufruindo do conhecimento elementar sobre as bases conceituais da Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio.
Além dos relatos apreciados anteriormente, que confirmam e esclarecem as dificuldades experimentadas pelos professores na compreensão daquilo que se propõe para a modalidade de educação desenvolvida nas EEEPs, há também resultados que são dessemelhantes a essa percepção. Nesses, alguns pesquisados preferiram não argumentar ou explorar com objetividade suas justificativas, como apresentamos a seguir.
“Consegui com facilidade, pois sou muito curiosa e procurei estudar.” (Professor C).
“Não! Abdiquei de escola regular porque vi que o modelo seria desafiador!” (Professor N).
“De compreender não, mas as dificuldades são naturais e vieram em função de ser naquele momento uma experiência nova” (Professor Bb).
Outras explicações sugerem que a compreensão foi facilitada não por algo que é comum à rede, mas devido a circunstâncias particulares, experiências anteriores ou especificidades metodológicas assumidas pela escola que o docente integra.
“Não percebi dificuldades, uma vez que minha formação acadêmica já me preparava para a realidade da escola profissional, quando participava de bolsa de iniciação à docência dentro de um ambiente de EEEP” (Professor Aa).
“Por que já tinha o conhecimento sobre o modelo de educação” (Professor H).
“Nenhuma. Tendo em vista o modelo de trabalho realizado na escola. Aprendizagem cooperativa” (Professor Ii).
“Não, por conta do apoio e acompanhamento bem realizado pelos coordenadores, secretários e diretor” (Professor V).
Compondo esse repertório de informações, destaca-se a preocupação de um dos pesquisados em relação ao efetivo alcance daquilo que as Escolas Profissionais traçam como fim do trajeto formativo para seus estudantes, ou seja, uma educação que contemple a integralidade do ser.
“Não. O grande desafio, enquanto docente, é sentir se realmente a Escola consegue atingir, eficazmente, todas essas dimensões da vida do aluno” (Professor B).
A inquietação do professor, que se considera oportuna e muito relevante para esse panorama, abre espaço para uma reflexão crítica sobre a que reais finalidades o programa de educação das EEEPs tem buscado atender por meio de suas rotinas pedagógicas numa etapa de ensino — como defende Paolo Nosella (2015) — estratégica do sistema escolar e decisiva para a formação geral do cidadão. A máxima relevância da fase escolar do ensino médio, nas palavras de Nosella, que se justifica em sua intrínseca dimensão individual e social, só valida o caminho de investigação definido neste estudo, cujos passos, realçam uma formação para além dos ditames do capital, ou seja, uma formação que tem como perspectiva a integralidade e emancipação dos sujeitos, à luz da qual, o Ensino Médio integrado à Educação Profissional deve ser, de acordo com a SEDUC, direcionado nas EEEPs.
Partindo da abordagem dos elementos estruturantes da formação humana — trabalho, ciência, cultura e tecnologia — foi questionado aos professores se estes consideravam o estudo dessas dimensões e de outras categorias correlatas, relevante para a construção de um corpo docente apto ao projeto de integração que as EEEPs requerem nos termos da legislação. Foi unânime, entre os pesquisados, a resposta “sim”. Em suas mais variadas justificativas, os docentes concordaram sobre a importância do conhecimento das tônicas em questão.
A proposição desses elementos da formação humana no interior das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), cujo texto normativo aplica-se a todas as formas e modalidades de ensino médio, constitui um dos princípios específicos que orientam a última etapa da educação básica. No documento se esclarecem as conceituações dessas dimensões.
a) o trabalho é conceituado na sua perspectiva ontológica de transformação da natureza, ampliada como impulsionador do desenvolvimento cognitivo, como realização inerente ao ser humano e como mediação no processo de produção da sua existência;
b) a ciência é conceituada como o conjunto de conhecimentos sistematizados, produzidos socialmente ao longo da história, na busca da compreensão e transformação da natureza e da sociedade;
c) a tecnologia é conceituada como a transformação da ciência em força produtiva ou mediação do conhecimento científico e a produção, marcada, desde sua origem, pelas relações sociais que a levaram a ser produzida;
d) a cultura é conceituada como o processo de produção de expressões materiais, símbolos, representações e significados que correspondem a valores éticos, políticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade (BRASIL, 2018, p.3).
O estudo conceitual dos elementos integradores da formação humana, entretanto, não se limita ao seu conhecimento instrumental, o que pode implicar o esvaziamento de sentido e, por consequência, na perda da potencialidade formativa neles presentes, é necessário, antes, uma reflexão rigorosa sobre essas categorias. Para Silva e Colontonio (2014):
Nomear trabalho, cultura, ciência e tecnologia como centro das propostas curriculares para o ensino médio exige mais do que a busca pelos significados de cada um dos elementos que o compõe, e ultrapassa o sentido de justificá-los ou legitimá-los no discurso sobre o currículo. Sinalizamos para o necessário desafio de se buscar, juntamente com os sujeitos jovens e adultos aos quais essas proposições se destinam, os significantes desses conceitos como forma de desvelá-los e explorá-los na história, nas relações de poder e nos interesses que circundam as relações sociais entre o trabalho, a ciência, a tecnologia na contemporaneidade. O texto normativo é expressão de uma prática social, o que torna igualmente relevante a compreensão das relações sociais que tensionam suas proposições, com vistas a superar sua limitação instrumental (p. 626).
A necessidade de que essas categorias não sejam fragilizadas pelas incorporações exclusivamente formais, mas que, pelo contrário, sejam submetidas a uma reflexão crítica por parte de todos os que com elas se envolverem, decorre justamente do fato de que, na sociedade de base capitalista, todas as relações sociais são forjadas como objeto, o que inclui a relação cultura, ciência, trabalho e tecnologia. Assim, conforme Silva e Colontonio (2014), torna-se imperativo por parte dos professores o exercício de uma crítica profunda, com o propósito de “não tornar tais proposições fragmentos didáticos que apenas conferem aos currículos e às suas práticas a aparência de inovação” (p.625), quando, na verdade, permanecem privados do processo de compreensão e avaliação da realidade.
Nessa direção, está a afirmação do trabalho como princípio educativo, que se une aos princípios orientadores da fase escolar do ensino médio brasileiro. Sobre esse enunciado, buscou-se saber como a concepção de trabalho é assimilada na atividade docente dos pesquisados. Para 74, 4% dos professores, o trabalho é compreendido em seu sentido amplo, histórico e ontológico, não se esgotando à formação profissional. Já o trabalho como princípio educativo para 20,5 % dos profissionais, é compreendido em seu sentido estrito e urgente frente às necessidades do mercado. Fechando o percentual deste item, estão aqueles que afirmam não possuir clareza sobre essa concepção na sua prática docente — 5, 1%.
É imprescindível nesta análise que seja reiterada a discussão do trabalho como princípio educativo, no sentido de que tal premissa não significa aprender fazendo, nem tampouco é sinônimo de formar para o exercício do trabalho, o que se assemelha com o entendimento de 20, 5% dos docentes pesquisados.
Dessa forma, considerar o trabalho como princípio educativo sob a perspectiva de uma formação emancipatória, equivale dizer que é o homem o produtor de sua história e, por isso, sua existência se constitui mediante sua relação com a natureza e como ele age sobre tal para prover suas necessidades, edificando-se como ser social por meio do trabalho. Em Marx, o trabalho que tem sua concepção ligada à concepção de formação humana omnilateral, constitui uma das categorias fundamentais do materialismo histórico-dialético, sendo assim definido:
O trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla o intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza de suas forças. Põem em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se tratam aqui das formas instintivas, animais, de trabalho [...]. Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana (Marx, 1968, p. 202).
Para Marx, o trabalho se refere diretamente ao homem e sua relação com a realidade material e social. Essa capacidade de ter consciência de suas necessidades e de idealizar meios para satisfazê-las, distingue o homem dos outros animais, conferindo-lhe exclusivamente a produção vital consciente, ou seja, apenas o homem pensa, projeta e imprime sentido a tudo o que faz.
Em sendo o trabalho a categoria fundante do homem, a produção da vida por meio dele é a base de toda a atividade econômica. Portanto, ao abordá-lo à luz da ontologia marxiana, partiu-se necessariamente da compreensão do seu conceito como fundante do ser social e da importância deste para o desenvolvimento da humanidade, na transformação do ser humano e da própria sociedade.
Nessa direção, o Documento Base (Brasil/MC/SETEC, 2007) descreve a compreensão do trabalho como princípio educativo, considerando a categoria em questão no seu duplo sentido, histórico e ontológico. No primeiro sentido, como práxis humana e, então, como a forma pela qual o homem produz sua própria existência na relação com a natureza e com os outros homens e, assim, produz conhecimentos; e no segundo sentido, como categoria econômica e práxis produtiva que, baseada em conhecimentos existentes, produznovos conhecimentos.
Assim, a apropriação da categoria trabalho como princípio educativo no ensino integrado, está para além da visão que reduz a formação dos estudantes ao treinamento para atender as demandas do processo produtivo capital, compreensão essa, assumida pela maioria dos professores participantes deste estudo. Nada obstante, não podemos desconsiderar que, embora se constitua o menor percentual do item, 5,1% dos professores afirmam que essa concepção não se faz clara, afigurando a necessidade de explicitação dos princípios e diretrizes do ensino médio integrado à educação profissional, que, como mencionado anteriormente, devem ser apreendidos criticamente por professores e demais atores desse nível de ensino na modalidade profissional.
Tratando-se da integração dos conhecimentos gerais e específicos correspondentes à formação básica e profissional, essência do conceito de educação que compreende as EEEPs, questionou-se aos profissionais se a eles foram ou são disponibilizadas condições formativas para que compreendam e efetivem essa integração, de modo que os conhecimentos e disciplinas possam dialogar entre si.
Para o item, todos os pesquisados afirmaram ter tido acesso a formações pedagógicas que favoreceram tanto o entendimento do conceito de educação integrada como a possibilidade de efetivação da proposta integradora dos conhecimentos. Destes, 66,7%, afirmaram que essa oferta ocorreu ou ocorre com frequência e 33,3 %, que tais processos formativos ocorreram ou ocorrem de forma eventual, rara.
Por fim, abriu-se espaço para os professores pesquisados sugerirem temáticas ou abordagens para a construção de um possível recurso formativo considerando as questões trabalhadas no estudo. Algumas dessas proposições foram: “Abordagem de Educação Omnilateral, Educação Integral na Essência”; “Planejamento de atividades interdisciplinares”; “Desenvolvimento de projetos interdisciplinares; incentivo à pesquisa acadêmica e escrita”; “Educação integradora”; “Formações que proporcione aos professores da base comum e técnica, trabalharem de forma que venham relacionar com mais proximidade os conhecimentos abordados em suas disciplinas”; “Formações sobre a educação profissional para professores da base comum, a fim de que tais professores tenham mais propriedade desse aspecto na formação de seus discentes”; “As possibilidades de integração entre os eixos trabalho, ciência e cultura”: ‘O que é educação integral? O que é educação omnilateral? Por que o modelo de EEEP parece não corresponder na prática as diretrizes propostas no CNE?”; “Formação sobre as legislações que regem o sistema educacional a nível municipal, estadual e federal.”
Importante observar que, embora todos os pesquisados confirmem condições formativas que favorecem a compreensão e efetivação da proposta de integração do modelo de educação das EEEP, pelas temáticas que eles sugerem para estudo, pode-se inferir que em tais oportunidades formativas não foram abordadas as temáticas referentes à formação integral ou, se foi, elas não foram sedimentadas pelos professores.
O conjunto desses dados, somado às inferências feitas acerca das dificuldades reveladas pelos professores ao ingressarem nas Escolas Estaduais de Educação Profissional da CREDE 02 indicam a necessidade de abordagens que explicitem a perspectiva da educação omnilateral, que envolvam planejamento de práticas interdisciplinares e possibilidades de efetivação da integração entre conhecimentos gerais e específicos, além de conhecimentos referentes à Educação Profissional em termos de fundamentos e legislação.
Considerações finais
O estudo aqui apresentado buscou investigar a compreensão dos professores das Escola Estaduais de Educação Profissional do Ceará sobre a educação na perspectiva da formação omnilateral e emancipatória. Essa perspectiva é assumida pela Secretaria de Educação do Estado como proposta para a oferta do Ensino Médio integrado à Educação Profissional nas EEEP. Mais que uma coleta de informações, buscou-se, ao convidar os professores para participarem do estudo, abrir espaço para reconhecê-los como atores essenciais no processo educacional e para o êxito daquilo que se tem como fim desse processo.
Sem esgotar o valor das contribuições formativas destinadas aos docentes da rede, aviva-se a importância de recursos formativos que promovam a compreensão do Ensino Médio integrado à Educação Profissional à luz da crítica às perspectivas reducionistas de ensino, no sentido de buscar superar a fragmentação da formação dos estudantes e contribuir para o desenvolvimento de sua ação criativa e de sua emancipação intelectual e política. Considera-se, por último, que o avanço ou até mesmo o resgate dessa perspectiva formativa só vem contribuir para que o alcance, já tão expressivo das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará, dê-se em função do desenvolvimento humano, independentemente dos interesses imediatamente mercadológicos.
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