Aprendizagem da Matemática e da Língua Portuguesa nos Anos Iniciais sob a ótica de Piaget

 

Learning Mathematics and Portuguese in the early years from the perspective of Piaget

 

Aprendizaje de las Matemáticas y de La Lengua Portuguesa en los primeros años desde la perspectiva de Piaget

 

 

Beatriz Sievert

Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil

biasievert@gmail.com

 

Camila Borges Ribeiro

Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil

camilaborges@hotmail.com

 

Recebido em 19 de novembro de 2021

Aprovado em 08 de setembro de 2022

Publicado em 27 de junho de 2023

 

 

RESUMO

O presente estudo objetivou conhecer as etapas do desenvolvimento cognitivo das crianças sob a ótica de Piaget com vistas a compreender o aprendizado da Matemática e da Língua Portuguesa nos Anos Iniciais. Para tanto, utilizou-se a pesquisa bibliográfica que tratou da construção do conhecimento na teoria piagetiana e dos estádios de desenvolvimento, bem como da implicância dessa teoria no aprendizado da Matemática e da Leitura e Escrita. Constatou-se que os estádios devem ser considerados como as estruturas mentais construídas que não possuem cronologia fixa e que cada indivíduo possui características e estruturas específicas. Essas estruturas possibilitam o conhecimento, que é construído através do contato com o meio. O aprendizado da Matemática e da Língua Portuguesa está relacionado às manipulações e interações que partam de objetos ou situações concretas, além das interações sociais em sala de aula, na qual o aluno deve ser o centro do processo ensino-aprendizagem. Concluiu-se que conhecer os estádios é fundamental para compreender como a construção do conhecimento acontece, dando foco ao aluno de forma a estimulá-lo e suscitar “desequilíbrios” que o levem à busca pela equilibração.

 

Palavras-chave: Piaget; Construtivismo; Anos iniciais.

 

ABSTRACT

The present study aimed to know the cognitive development stages of children from the Piaget perspective in order to understand learning of Mathematics and Portuguese Language in the Early Years. For this purpose, we used the bibliographical research that dealt with the construction of knowledge in Piagetian theory and development stages, as well as the implication of this theory in the learning of mathematics and reading and writing. It was found that the stages should be considered as the constructed mental structures, that they do not have a fixed chronology and that each individual has specific characteristics and structures. These structures enable knowledge, which is constructed through contact with the environment. The learning of Mathematics and The Portuguese Language is related to manipulations and interactions that start from concrete objects or situations, in addition to social interactions in the classroom, in which the student should be the center of the teaching-learning process. It was concluded that knowing the stages is fundamental to understand how the construction of knowledge happens, focusing on the student in order to stimulate it and raise "imbalances" that lead them to the search for balance.

 

Keywords: Piaget; Constructivism; Early years.

 

RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo conocer las etapas del desarrollo cognitivo de los niños desde la perspectiva de Piaget para comprender el aprendizaje de las Matemáticas y la Lengua Portuguesa en los primeros años de la escuela primária. Para eso, se utilizo la investigación bibliográfica, que abordo la construción del conocimiento em la teoría piagetina y las etapas de desarrollo, así como la implicacióm de este teoría en el aprendizaje de las Matemáticas y la Lectura y Escritura. Se constató que las etapas deben considerarse como las estructuras mentales construidas que no tienen cronología fija y que cada individuo tiene características y estructuras específicas. Estas estructuras permiten el conocimiento, que se construye a través del contacto con el medio ambiente. El aprendizaje de las Matemáticas y de la Lengua Portuguesa está relacionado con las manipulaciones e interacciones que parten de objetos o situaciones concretas, además de las interacciones sociales en el aula, en las que el estudiante debe ser el centro del proceso de enseñanza-aprendizaje. Se concluyó que conocer las etapas es fundamental para comprender cómo ocurre la construcción del conocimiento, centrándose en el estudiante con el fin de estimularlo y plantear "desequilibrios" que lo lleven a la búsqueda del equilibrio.

 

Palabras clave: Piaget; Constructivismo; Primeros años.

 

 

Introdução

 

O tema da presente pesquisa – aprendizagem da Matemática e da Língua Portuguesa nos Anos Iniciais – emergiu dos questionamentos acerca do planejamento na condição de regência de uma turma de 3º ano do Ensino Fundamental durante o curso de Pedagogia. As indagações se davam no sentido de saber se as atividades relativas as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa estavam adequadas ao nível de desenvolvimento dos estudantes daquela turma. Nas observações realizadas durante as aulas, as seguintes indagações emergiram: como a criança aprende e se desenvolve? Existem características peculiares em cada fase do desenvolvimento? Como isso acontece no aprendizado da Matemática e da Leitura e Escrita nos Anos Iniciais?

Consideramos que seja imprescindível que o professor saiba como se dá a construção do conhecimento pela criança. Como afirma Bruner (2001), no ato de ensinar estão contidas as noções do docente sobre o aprendizado e a mente do seu aluno, o que significa que as práticas do professor estarão voltadas às suas concepções sobre como o estudante aprende, influenciando o seu planejamento e o seu modo de dar aula. Tendo em vista que as crianças passam por diferentes etapas ao longo de seu processo de aprendizagem, conhecê-las propicia uma melhor adequação na organização do planejamento contemplando as necessidades dos discentes e impulsionando uma prática pedagógica mais eficaz, que supere as dificuldades de aprendizagem que poderão surgir.

Nessa perspectiva, optamos por realizar essa investigação tendo Piaget e sua obra sobre o estudo da inteligência - a Epistemologia Genética - como referencial teórico. Considerando que para ele a construção do conhecimento se dá a partir de interações do sujeito com o meio, em que não se prioriza um em detrimento do outro, constituindo-se no que Piaget denomina de processo interacionista (MIZUKAMI, 1986).

Dessa forma, estabelecemos como objetivo conhecer as etapas do desenvolvimento cognitivo das crianças sob a ótica de Piaget com vistas a compreender o aprendizado da Matemática e da Língua Portuguesa nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Como objetivos específicos elencamos: compreender as etapas de desenvolvimento infantil elaboradas por Piaget; analisar como essas etapas se desenvolvem no campo da Matemática e da Leitura e Escrita; e, refletir sobre as possibilidades para a prática docente nessa etapa de ensino com base na teoria piagetiana.

Para atingir o objetivo proposto, no presente estudo foi realizada uma pesquisa do tipo bibliográfica, que se caracteriza por ser realizada “[...] a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc” (SEVERINO, 2013, p. 106).

Além dos livros que abordem a temática, foram efetuadas buscas nas seguintes bases: Scientific Electronic Library Online (SciELO), Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); utilizando as palavras-chave: Piaget, aprendizagem, Leitura e Escrita, Matemática, anos iniciais, cognitivismo e construtivismo. Nesse estudo restringimos a busca tendo como critérios de seleção apenas obras que fossem publicadas em língua portuguesa. No levantamento bibliográfico foram encontrados 42 artigos, 15 dissertações, 12 teses e 14 livros.

Frente a esse levantamento, a discussão foi organizada em dois momentos: o primeiro faz uma contextualização sobre quem foi Piaget e como ele chegou à teoria da Epistemologia Genética, sobre a qual são abordados os estádios do desenvolvimento cognitivo infantil; e, o segundo trata das implicações e contribuições dessa teoria no processo de ensino-aprendizagem da Matemática e da Língua Portuguesa, em especial da Leitura e da Escrita. Por fim, as considerações finais trazem reflexões sobre os principais pontos da teoria piagetiana e sobre as possibilidades que trazem para o processo ensino-aprendizagem no tocante às práticas docentes e o papel do professor e do aluno em sala de aula.

 

Piaget e a abordagem cognitivista

 

Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, na Suíça, e viveu uma época de novas descobertas e teorias em diversos campos, com destaque para a área da Psicologia, à qual se dedicou ao longo de sua vida (MUNARI, 2010).

Aos 15 anos, Piaget publicou seus primeiros artigos científicos e, ainda jovem, cursou Biologia, tomando gosto pela pesquisa científica. No entanto, seus estudos voltaram-se à Psicologia, interessando-se em investigar a construção do conhecimento na criança, pois lhe fascinou, “durante toda sua vida, o processo evolutivo que se expressa desde a embriologia vegetal e animal até a embriologia mental específica do homo sapiens” (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2011, p. 1).

Segundo Munari (2010), movido por esse interesse, Piaget viajou a Paris para trabalhar nos laboratórios fundados por Binet, localizados em uma instituição que tratava crianças hospitalizadas, na qual teve a oportunidade de ter contato pela primeira vez com o pensamento infantil. Formulou nesse período suas primeiras hipóteses sobre o desenvolvimento cognitivo, observando que as crianças de mesmas idades costumavam raciocinar de maneira semelhante. A partir de então, desenvolveu seu próprio método de estudo, o qual chamou de “método clínico”, que consistia na aplicação de testes, na observação e na intervenção livre das respostas das crianças a estes (RIBEIRO, 2018). Nessa época chegou à conclusão de que existem estágios durante o desenvolvimento das estruturas mentais das crianças (MUNARI, 2010).

No entanto, foi quando se mudou para Genebra e trabalhou na Casa das Crianças do Instituto Jean-Jacques Rousseau que Piaget teve a oportunidade de trabalhar com crianças em situações escolares, desenvolvendo mais investigações sobre o desenvolvimento cognitivo e, inclusive, suas concepções em educação (MUNARI, 2010). A Instituição era conhecida pela realização de pesquisas com crianças e a experiência de Piaget nesse local foi fundamental para o amadurecimento e a criatividade de seu método e de seus estudos (RIBEIRO, 2018).

Mais tarde, assumiu a direção do Bureau Internacional de Educação (BIE), onde teve contato com a versão sociopolítica da educação. Nesse período, houve uma vasta produção de textos por Piaget, versando sobre as possibilidades para a educação e a sua importância para o desenvolvimento da sociedade (MUNARI, 2010). Dessa forma, o autor veio a influenciar as formas de ensino presentes em várias escolas de diversos países, tanto na Europa como nos demais continentes, inclusive no Brasil (RIBEIRO, 2018).

Conforme Mizukami (1986) Piaget sempre valorizou e defendeu a educação, a considerando como “condição formadora necessária para o desenvolvimento natural do ser humano. Este, por sua vez, não iria adquirir suas estruturas mentais mais essenciais sem a intervenção do exterior” (p. 71). Piaget se tornou, assim, um grande pensador e influenciador da educação, mesmo não tendo sido um educador de fato. Seus estudos trouxeram importantes contribuições para a educação, principalmente a sua teoria sobre o desenvolvimento da inteligência na criança. Apesar de suas descobertas, Piaget nunca propôs metodologias e técnicas de ensino, pois seu objetivo sempre foi apenas o estudo da construção do conhecimento, por meio do qual procurou desvendar a gênese do conhecimento, como se dá a formação das estruturas mentais no ser humano e intitulou sua teoria de Epistemologia Genética (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2011).

Essa teoria está relacionada à abordagem cognitivista de ensino, que compreende o aprendizado como um processo cognitivo do sujeito, investigando suas capacidades de integração e processamento das informações, levando em consideração a influência exercida no sujeito pelo meio externo e pelas suas emoções (MIZUKAMI, 1986). Nesse sentido, o epistemólogo suíço sempre discordou do que diziam as concepções empiristas de desenvolvimento, que são entendidas da seguinte forma:

 

Podemos, em primeiro lugar, atribuir o desenvolvimento intelectual à pressão do meio exterior, cujas características (concebidas como completamente constituídas independentemente da atividade do sujeito) se imprimiram pouco a pouco na mente da criança. [...] esta aplicação leva a que se considere o hábito como fato primeiro e as associações adquiridas mecanicamente como o princípio da inteligência. [...] com o empirismo, se negligencia a atividade intelectual em favor da pressão dos objetos (PIAGET, 1970, p. 371).

 

Se opunha também ao que defendiam as concepções aprioristas de desenvolvimento, sob o ponto de vista de que:

 

Segundo as concepções aprioristas, podemos considerar o desenvolvimento da inteligência como devido, não a uma faculdade que já está completada, mas à manifestação de uma série de estruturas que se impõem de dentro à percepção e à inteligência, à medida das necessidades que o contato com o meio provoca. As estruturas exprimiriam assim a própria contextura do organismo e das suas características hereditárias, o que torna inútil qualquer aproximação entre a inteligência e as associações ou hábitos adquiridos sob a influência do meio (PIAGET, 1970, p. 372).

 

Assim sendo, para Piaget (1970) a aprendizagem é tida como um processo que se constrói a partir das relações de troca entre o sujeito e o meio, sendo esse o foco de sua teoria. Assim, a evolução desse processo se desenvolve de forma construtivista, em que as estruturas mentais vão se tornando cada vez mais complexas e sua construção só é possível através dessas trocas. Na teoria piagetiana, a estrutura mental “é uma organização interna, não apenas cognitiva e psicológica, mas também e fundamentalmente biológica” (BECKER; MARQUES, 2012, p. 159).

Nesse sentido, o aprendizado não é inato e nem empírico, mas uma construção interna que ocorre no sujeito através de ações externas durante seu desenvolvimento, na qual “o objeto só é conhecido na medida em que o sujeito consegue agir sobre ele” (PIAGET, 1972, p. 99). Assim,

 

[...] podemos conceber a inteligência como o desenvolvimento de uma atividade assimiladora cujas leis funcionais são dadas desde a vida orgânica e cujas estruturas sucessivas que lhe servem de órgãos se elaboram por interação entre ela e o meio exterior. [...] não acentua unicamente a experiência, mas a atividade do sujeito que torna possível esta experiência (PIAGET, 1970, p. 372-373).

 

Nessa perspectiva, Mizukami (1986, p. 64) é assertiva ao dizer que “o conhecimento humano é essencialmente ativo”. Através das interações do sujeito com o meio ocorrem regulações internas que criam e modificam as estruturas cognitivas. Conforme a mesma autora, o conhecimento é considerado, sob o ponto de vista construtivista,

 

[...] como uma construção contínua e, em certa medida, a invenção e a descoberta são pertinentes a cada ato de compreensão. A passagem de um nível de compreensão para o seguinte é sempre caracterizada por formação de novas estruturas, que não existiam anteriormente no indivíduo (MIZUKAMI, 1986, p. 3).

 

Assim, Piaget (1977) traz dois conceitos para explicar como a criança constrói seu conhecimento. O primeiro deles é a assimilação, que definiu como sendo a “incorporação dos objetos nos esquemas da conduta, e esses esquemas nada mais são do que esboços das atividades suscetíveis de serem repetidas ativamente” (PIAGET, 1977, p. 18). Esse mecanismo de assimilação ocorre por meio da atividade do sujeito sobre os objetos, dependendo de atividades anteriores sobre os mesmos objetos ou semelhantes, sendo que “as modificações que então ocorrem não são de ordem substancial, mas exclusivamente funcional, e são determinadas pela motricidade, pela percepção ou pela conjugação de atividades reais ou virtuais (operações conceptuais, etc.)” (PIAGET, 1977, p. 18).

O segundo conceito é a acomodação, que Piaget define como sendo oposto a assimilação. Ele considera que não apenas o sujeito age sobre o meio, como também este age sobre aquele, durante uma atuação em que “o ser vivo jamais sofre puramente a reação dos corpos que o circundam, mas que ela apenas modifica o ciclo assimilador ao acomodar o ser vivo a esses corpos” e, que “a pressão das coisas culmina sempre, não numa submissão passiva, mas em simples modificação da atividade que recai sobre elas” (PIAGET, 1977, p. 18).

Esse processo pode ser compreendido sob dois pontos de vista: o biológico e o psicológico (RAMOZZI-CHIAROTTINO, 2011). No sentido biológico, o ser vivo modifica o meio e ao mesmo tempo se adapta a ele enquanto organismo. No sentido psicológico, a adaptação é entendida como o

processo pelo qual o sujeito, em sua interação com o objeto, necessita modificar sua estrutura cognitiva prévia (processo de acomodação) para poder assimilar (processo de assimilação) informações novas, o que, por sua vez, resulta em novo patamar de organização e de adaptação ao objeto (THOMÉ;DURO; ANDRADE, 2020, p. 405).

 

Com isso, Piaget define a adaptação como o “equilíbrio dos intercâmbios entre o sujeito e os objetos” (PIAGET, 1977, p. 18). Esse processo de equilibração é o ponto fundamental da teoria piagetiana (MUNARI, 2010). Quando a criança se vê diante de um objeto que não consegue assimilar por esse possuir características ou propriedades diferentes das já existentes nos seus esquemas de ação, ocorre um desequilíbrio em suas estruturas, que são organizadas de tal forma que seja possível a interiorização daquele objeto aos seus esquemas, isso por meio da acomodação. Dessa forma, o equilíbrio é restaurado temporariamente, até que a criança presencie um novo desequilíbrio em suas estruturas. É esse processo de constante busca pelo equilíbrio que possibilita o desenvolvimento da inteligência, pois é a partir dele que o sujeito constrói suas estruturas mentais, que cada vez vão se tornando mais complexas, sempre a partir da ação, conforme nos mostrou Piaget (1999) a partir da observação de seus filhos, por meio da qual compreendeu que “as ações constituem o ponto de partida das futuras operações da inteligência. A operação é, assim, uma ação interiorizada, que se torna reversível e que se coordena com outras, em estruturas operatórias de conjunto” (p. 70).

Assim sendo, a inteligência se desenvolve a partir de diversas reorganizações e não por acréscimo, em um processo que se relaciona com o desenvolvimento do conhecimento (SULEIMAN, 2008). Para tanto, situações que causem desequilíbrio são fundamentais, visto que fazem com que o sujeito busque pela equilibração através de regulações internas. Essa busca pelo equilíbrio trata-se de uma equilibração majorante, que é entendida como um ciclo crescente e contínuo, “em que cada ponto de intersecção na passagem anterior fica mais enriquecido e elaborado, em busca de ascender para um conhecimento mais complexo” (SULEIMAN, 2008, p. 91).

Conforme Mizukami (1986) a construção das estruturas mentais está submetida a quatro fatores, que atuam como determinantes: a maturação biológica, em que o sistema nervoso se torna complexo e maduro; a experiência, incluindo a experiência física e a experiência lógico-matemática; o meio social, havendo a socialização; e as equilibrações, que são compensações e reestruturações que ocorrem internamente no sujeito.

De acordo com Piaget (1999, p. 40):

 

Em cada um dos aspectos complexos da vida psíquica, quer se trate da inteligência ou da vida afetiva, das relações sociais ou da atividade propriamente individual, observa-se o aparecimento de formas de organização novas, que completam as construções esboçadas no decorrer do período precedente, assegurando-lhes um equilíbrio mais estável e que também inauguram uma série ininterrupta de novas construções.

 

Assim sendo, Piaget (1972; 1999) estabeleceu que a criança passa por quatro estádios de desenvolvimento cognitivo, em que o pensamento evolui até chegar no nível mais formal. Ele denominou essas fases de “estádios”, pois considerou que cada estádio compreende as estruturas que a criança apresenta durante seu desenvolvimento, que aos poucos vão evoluindo até que a criança apresente estruturas mais desenvolvidas referentes ao estádio seguinte.

Esses estádios são etapas que se sucedem de forma constante, não tendo sua ordem alterada e nem havendo a supressão de uma etapa (CAETANO, 2009).  Além disso, os estádios possuem caráter integrativo, uma vez que cada um compreende estruturas que se desenvolvem e se complexificam atingindo um novo nível, superando o estádio anterior, sempre a partir das estruturas já existentes. A cada estádio do desenvolvimento surgem estruturas operatórias mais desenvolvidas, com características específicas correspondentes a esse determinado período. Dessa forma, Piaget (1999) coloca que o processo de desenvolvimento compreende os seguintes estádios: sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal.

O primeiro estádio, o sensório-motor, é o período em que a criança constrói mais estruturas e esse desenvolvimento se apresenta de forma rápida, abrangendo desde o nascimento até aproximadamente os dois anos de idade. Nesse período, todo o conhecimento adquirido provém das ações do sujeito sobre o meio através de percepções e movimento físico, por isso o nome sensório-motor (CAETANO, 2009). Piaget (1999) constatou que no início, a criança não possui a capacidade de se identificar no espaço e não reconhece diferenças entre ela e o mundo. Assim, utilizando movimentos e percepções que vai adquirindo e organizando em seus esquemas de ações, a criança acaba por desenvolver noções de objeto permanente, que é o reconhecimento de que um objeto continua em determinado lugar mesmo se coberto, por exemplo; e de causalidade, que é o estabelecimento de relações nas interações com o objeto. Por fim, a criança passa a representar suas ações, adentrando no próximo estádio.

O segundo estádio, o pré-operatório, compreende o período em que a criança começa a fazer representações e a pensar de forma simbólica, ocorrendo entre os dois e os sete anos, aproximadamente. As brincadeiras passam a ser simbólicas, e então uma pedra ou uma caixa podem representar algo bem diferente (CAETANO, 2009). Nessa fase, também se desenvolve a linguagem, o que possibilita novos meios de interação e comunicação com outras pessoas, possibilitando a representação de objetos e ações por meio da fala. No entanto, Piaget diz que, assim como no estádio anterior, o egocentrismo nessa idade é muito presente e faz com que a criança se interesse somente por ela mesma e suas necessidades. É a fase dos “porquês”, diz o autor, em que a criança faz diversas perguntas que para os adultos não fazem muito sentido, pelo fato de terem respostas óbvias, mas que demonstram o pensamento espontâneo do pré-operatório. Outra característica presente em crianças que estão nesse estádio, é a falta de noção de conservação, já que “a igualdade não se conserva por igualdade lógica, não havendo, portanto, uma operação racional, mas sim uma simples intuição” (PIAGET, 1999, p. 34). A noção de conservação surge quando a criança desenvolve o que Piaget chamou de reversibilidade, constituindo “operações lógicas passíveis de serem generalizadas e combinadas entre si” (PIAGET, 1999, p. 35) e que caracteriza o próximo estádio.

O estádio operatório-concreto se estende dos sete anos até em torno dos onze anos de idade. É o período em que desenvolve a já mencionada reversibilidade, sendo possível a criança realizar operações mentais sobre ações e objetos concretos. Retomando que a operação é entendida como “psicologicamente, uma ação qualquer (reunir indivíduos ou unidades numéricas, deslocar etc.) cuja origem é sempre motora, perceptiva ou intuitiva” (PIAGET, 1999, p. 48), é evidenciado o caráter integrativo dos estádios, que surgem sempre a partir de estruturas pré-existentes provenientes do estádio anterior. Segundo o mesmo autor, a criança desenvolve noções de tempo, espaço, velocidade, causalidade e conservação, que nessa etapa são esquemas de pensamento e não mais esquemas de ação, como no estádio anterior. É somente nesse estádio que ela é capaz de compreender a transitividade, propriedade que consiste em entender que A é igual a B e B é igual a C, então A é igual a C (CAETANO, 2009). Nessa etapa a criança praticamente já não apresenta mais o egocentrismo que apresentava anteriormente e é capaz de socializar e trocar ideias com outras crianças, uma vez que consegue se colocar sob o mesmo ponto de vista delas (PIAGET, 1999).

Por fim, o quarto e último estádio, o operatório formal, caracteriza o pensamento hipotético-dedutivo, que se apresenta em torno dos onze anos e permanece ao longo da vida do sujeito. Nessa fase, o adolescente é capaz de levantar hipóteses para confrontá-las com a realidade, uma vez que as operações não partem mais do concreto, como no estádio anterior, e sim das próprias ideias, a partir das quais se realizam deduções de conclusões sobre hipóteses sem ser preciso recorrer à observação do real (PIAGET, 1999). Nesse período, há a volta do egocentrismo, que aparece com a capacidade da reflexão, e que logo será superado através da equilibração, que marca a entrada do indivíduo na vida adulta. Durante o estádio operatório formal, o sujeito desenvolve a sua personalidade, que já vem se construindo desde o estádio anterior, com o surgimento da vontade. A formação da personalidade é contínua, tanto na adolescência como na vida adulta.

Dessa forma, sobre o processo de desenvolvimento da inteligência, é feita a seguinte afirmação:

 

pode-se constatar a unidade profunda dos processos que, da construção do universo prático, devido a inteligência senso-motora do lactente, chega à reconstrução do mundo pelo pensamento hipotético-dedutivo do adolescente, passando pelo conhecimento do universo concreto devido ao sistema de operações da segunda infância (PIAGET, 1999, p. 64).

 

Sobre a ocorrência de cada estádio, Piaget (1999) afirma que depende do meio social em que a criança está inserida. Dessa forma, as idades anteriormente mencionadas não são fixas, havendo possibilidade de que um ou mais estádios tenham seu início cronologicamente antecipado, retardado ou até mesmo impedido. Isso explica a ocorrência de estádios diferentes em crianças de mesmas idades. Ainda, o autor constatou em seus estudos que há adultos que não chegam a apresentar o pensamento lógico-matemático, pertinente ao estádio operatório-formal, evidenciando a falta de estruturas mentais necessárias para tal.

É reforçada assim a importância da ação do sujeito sobre o meio, tendo em vista que todo conhecimento parte dela. Ao longo do processo do desenvolvimento cognitivo percebe-se que “a tendência mais profunda de toda atividade humana é a marcha para o equilíbrio” (PIAGET, 1999, p. 65), sendo este em si uma adaptação. Esse processo pode ser relacionado à aquisição do conhecimento na escola, na tentativa de buscar esclarecer como ocorre a aprendizagem dos estudantes. Portanto, a seguir apresentamos as principais contribuições da teoria piagetiana para o processo de ensino-aprendizagem, nas áreas de Matemática e Língua Portuguesa.

 

Aprendizagem nos campos da Matemática e da Leitura e Escrita

 

Conforme mencionado anteriormente, os estudos de Piaget tinham como objetivo desvendar como as crianças adquirem o conhecimento. Assim sendo, analisamos como suas descobertas podem contribuir para o entendimento do aprendizado das crianças em situações escolares, em especial da Matemática e na aquisição da Leitura e da Escrita (Língua Portuguesa) com intuito de aprimorar as práticas docentes em sala de aula.

Considerando os estádios anteriormente descritos, bem como as especificidades que envolvem o início de cada etapa, é possível inferir que o período compreendido pelos Anos Iniciais – entre os 6 e os 11 anos aproximadamente – condiz com a etapa em que a criança apresenta estruturas referentes ao estádio pré-operatório bem desenvolvidas a ponto de ingressar no estádio operatório-concreto ou já estando neste último. Segundo Piaget (1999), ainda falta no pensamento pré-lógico que a criança desenvolva a reversibilidade das operações, raciocinando sobre estados finais e configurações fixas, sem entender ainda as transformações. A criança supera esse estádio pré-operatório quando as operações se tornam reversíveis através das progressivas compensações que são realizadas por regularizações mentais, durante as ações sobre o meio.

O pensamento operatório, isto é, por meio de operações, é anterior ao pensamento formal, em que o raciocínio se dá por meio de proposições e abstrações. Portanto, a criança que pensa operacionalmente parte de objetos reais, permitindo que ela realize classificações, seriações, correspondências, entre outras operações. As proposições partem de enunciados verbais, hipotéticos, e as estruturas do nível operatório ainda não são capazes de fazê-las.

Nesse sentido, o aprendizado da Matemática nos Anos Iniciais parte da manipulação do concreto, evidenciando a importância da ação da criança sobre o meio para a construção do conhecimento. Para Duro e Cenci (2013, p. 3):

 

A matemática é uma área de conhecimento que exige um elevado grau de abstração, principalmente quando falamos da matemática pura. Observa-se que a matemática por ela mesma não existe enquanto ciência empírica, e sua aquisição dá-se, em sua totalidade, por abstrações reflexionantes, a partir de construções lógico-matemáticas.

 

De acordo com Becker (2019) na teoria piagetiana pode-se compreender o conhecimento matemático como uma construção humana, que é “acessível a todos os humanos, por um processo que começa com as ações que são, progressivamente, interiorizadas em forma de operações” (p. 965). Desse modo, para Piaget (1999) o pensamento está ligado fortemente à ação da criança sobre o objeto e à manipulação efetiva. O mesmo autor defende que, por estarem ligadas à ação, as operações já se constituem como reversíveis, se organizando a partir de leis de totalidade e estabelecendo relações entre as diversas operações. Isso torna possível que a criança compreenda por meio de classificação, por exemplo, que uma adição de classes (a que Piaget exemplifica como A+A’=B) é diretamente inversa a uma subtração de classes, estabelecendo uma inversão ou negação através da reversibilidade (em que B-A’=A ou A-A’=0).

Segundo Piaget (1999) outra estrutura importante é a de seriação. Através dela, a criança é capaz de realizar ordenamentos, a partir de qualidades crescentes ou decrescentes (A<B<C<...), em que a reversibilidade consiste na reciprocidade, que está presente nas demais relações estabelecidas. Além disso, nesse nível de pensamento são constituídas também as estruturas multiplicativas, que se desenvolvem através de operações que realizam correspondências, matrizes, entre outras.

A construção do número também é edificada nesse nível de pensamento. Piaget (1999) afirma que essa construção se dá no sentido operatório a partir da conservação. O autor identificou que apesar da criança já apresentar a noção de número antes do nível operatório, esse número é “figurado”, e o número só é entendido como inteiro quando se constitui uma síntese da classe e da ordem, configurando seu caráter cardinal e ordinal. Essa construção é exemplificada da seguinte forma:

 

Por exemplo, depois de ter colocado seis fichas vermelhas em correspondência, termo a termo, com seis fichas azuis (no começo ela se limita a construir uma fileira do mesmo comprimento, sem correspondência), bastará comprimir ou espaçar uma das coleções para que o sujeito de 5-6 anos não creia mais na equivalência. Por volta dos 7 anos, ao contrário, constitui-se a sequência dos números, graças às operações, que consistem simultaneamente em adicionar, de maneira inclusiva (classe), e em ordenar (seriação) com a operação inversa; a primeira fornece a conservação do todo, e a seriação fornece o meio de distinguir uma unidade da seguinte (PIAGET, 1999, p. 106).

 

Desta forma, as estruturas construídas nesse nível estão relacionadas às operações de classe e de relações, resultando na noção de conservação, denominadas como “estruturas elementares” (PIAGET, 1999, p. 106), menos complexas do que os grupos lógicos e as redes do nível formal. Conforme Piaget (1999) essas estruturas organizam as experiências sem haver uma diferenciação completa entre objetos e ações, visto que esse processo se dá gradualmente, pois em torno dos sete ou oito anos a criança desenvolve a noção de conservação de massa, um ou dois anos depois a noção de conservação de peso e um ou dois anos após desenvolve a conservação do volume.

As ações proporcionam experiências que podem ser classificadas em dois tipos: físicas e lógico-matemáticas. A experiência física, conforme Caetano (2009), ocorre quando o indivíduo manipula o objeto e interage com ele, apreendendo suas características e assimilando-as ou acomodando-as a seus esquemas. As segundas, de acordo com o mesmo autor, ocorrem de forma semelhante à da primeira, no entanto, durante a ação do indivíduo sobre o objeto há uma coordenação desta ação, ordenando e classificando esse objeto, abstraindo o conhecimento. Assim, as experiências lógico-matemáticas constituem o conhecimento que é abstraído das ações sobre o objeto e não do próprio objeto.

De acordo com Caetano (2009, p. 46) a abstração, também alvo de estudos de Piaget, “é definida como um deslocamento realizado nas estruturas cognitivas do sujeito para que ele seja capaz de generalizar e isolar certas propriedades do objeto analisado”. As abstrações podem, ainda, ser classificadas em empíricas e reflexionantes. Na primeira o indivíduo retira propriedades do objeto (suas características físicas), enquanto na segunda, o indivíduo retira qualidades das próprias ações sobre esse objeto (BECKER, 2019).

Em se tratar da abstração reflexionante, Becker (2019) fala que esta pode ser dividida em outros dois tipos: pseudo-empírica e refletida.  Segundo o autor, na primeira, o indivíduo atribui características ao objeto e as assimila, como se fossem próprias do objeto, por meio de abstração reflexionante; e na segunda, se dá a consciência da abstração reflexionante, se constituindo uma abstração refletida, que finaliza a construção de um conceito.

A reflexão resulta na tomada de consciência, em que a criança é capaz de refletir sobre as propriedades de um objeto ou mais objetos. De acordo com Caetano (2009, p. 48),

 

por meio do processo de abstração é possível perceber que a construção de novos conceitos dar-se-á a partir de sucessivas elaborações/reflexões de conceitos anteriores que se localizavam num patamar menos elaborado de esquemas conceituais.

 

Considerando que o processo de desenvolvimento do conhecimento se dá de forma construtivista, é possível afirmar que o aprendizado da Matemática, especificamente, ocorre por meio das interações do sujeito com o meio, interagindo com o objeto e manipulando-o, principalmente no nível das operações concretas. Dessa forma, “o que no início era uma simples constatação no plano físico (abstração empírica) passa a ter significado (por meio da abstração reflexiva), compondo, assim, as estruturas cognitivas (lógico-matemáticas) dos indivíduos” (CAETANO, 2009, p. 55).

O mesmo autor ainda afirma que esse processo de desenvolvimento do conhecimento matemático se inicia quando a criança desenvolve a capacidade de classificar, seriar e corresponder, operações já mencionadas anteriormente. Isso acontece por meio da interação com o objeto, desenvolvendo assim as estruturas lógico-matemáticas.

A criança desenvolve, então, estruturas aditivas que permitem a ela realizar atividades como unir e separar mentalmente quantidades, sempre a partir de objetos reais e da reversibilidade. Com isso, as referidas estruturas apresentam como características a capacidade de associar e dissociar de forma recíproca, em que uma está diretamente relacionada à outra pela inversão e negação, conferindo às estruturas aditivas esse caráter reversível (CAETANO, 2009).

Para o mesmo autor, as estruturas multiplicativas se desenvolvem a partir das estruturas aditivas, e se apresentam como estruturas de correspondência e divisão. Assim, faz-se necessário, no ensino da Matemática, que o aluno tenha a possibilidade de manipular objetos, visto que seu pensamento se desenvolve a partir de situações concretas. Vale ressaltar que

 

[...] não é uma simples manipulação, e sim uma manipulação orientada pelo professor que, a todo momento, deve questionar o aluno causando-lhe desequilíbrios para que sua invariante funcional adaptativa assimile-acomode ‘novas’ formas de pensar por meio da abstração reflexiva (CAETANO, 2009, p. 58)

 

Com isso, Caetano (2009) expõe que através da teoria piagetiana é possível compreender a importância da ação no processo de ensino-aprendizagem durante os Anos Iniciais, especialmente na disciplina de Matemática. Dessa forma, a manipulação do concreto em sala de aula é imprescindível e contraria o ensino por mera transmissão via linguagem que é criticado por Piaget (2002, p. 59) quando afirma que:

 

A verdadeira causa dos fracassos da educação formal decorre pois essencialmente se principiar pela linguagem (acompanhada de desenhos, de ações fictícias ou narradas, etc.) ao invés de o fazer pela ação real e material. É a partir da escola maternal que deve ser preparado o ensino da Matemática por uma série de manipulações voltadas para os conjuntos lógicos e numéricos.

 

Para Caetano (2009) o trabalho em grupos na sala de aula consiste numa boa prática para aquisição do conhecimento uma vez que Piaget defende as interações sociais como fonte de experiências, nas quais as crianças relacionam-se trocando ideias e refletindo sobre as falas dos colegas. Segundo Piaget (1999, p. 110) a “forma de interação coletiva que intervém na constituição das estruturas lógicas é essencialmente a coordenação das ações interindividuais no trabalho em comum e na troca verbal”.

Além das interações com seus pares, a interação com o professor também é fundamental, tendo este o papel de proporcionar meios que possibilitem tanto interações sociais quanto com objetos concretos, além de poder provocar “desequilíbrios” nos alunos. Assim, esses discentes se sentirão desafiados e motivados, buscando mentalmente pela reequilibração de suas estruturas. Essa busca constante pelo equilíbrio é o que possibilita a organização e a formação de novas estruturas, por sua vez, sempre mais complexas, como afirmou Piaget (1999, p. 110):

Assim é que a coordenação de ações do sujeito individual se manifesta sempre por desequilíbrios momentâneos (correspondendo às necessidades ou aos problemas) e por reequilibrações (correspondendo às satisfações e às soluções). Da mesma forma, fica evidente que a coordenação social das ações comporta desequilíbrios e formas de equilíbrio, e que as interferências entre os fatores individuais (neurológicos etc.) e os fatores sociais da ação resultam de uma contínua equilibração.

 

Da mesma forma que o aprendizado no campo da Matemática está relacionado às   interações do sujeito com o meio social e físico, ao desenvolvimento biológico e às sucessivas equilibrações das estruturas mentais, o aprendizado da Leitura e Escrita nos Anos Iniciais também está diretamente ligado aos mesmos determinantes.

Como afirmam Leite et al. (2003), para Piaget o aprendizado da Escrita e da Leitura não se dá apenas com a interiorização do meio externo, mas sim com a construção de significados e sua ressignificação em relação ao que já se conhece, isso por meio de processos de equilibração.

 

Assim, o desenvolvimento cognitivo desenvolve-se pela assimilação do objeto de conhecimento com as estruturas anteriores presentes no sujeito, e pela acomodação dessas estruturas em função do que vai ser assimilado.  Para o autor, a criança se apodera de um conhecimento se “agir” sobre ele, pois aprender é modificar, descobrir, inventar (LEITE et al., 2003, p. 2).

 

Dentre os fatores determinantes do desenvolvimento cognitivo, conforme já mencionado, nenhum deles basta por si só, todavia, cada um atua e exerce fundamental influência nesse desenvolvimento, podendo acelerar ou retardar seu progresso. Portanto, o conhecimento que é construído durante esse processo não depende apenas da maturação do sujeito ou do meio social em que está inserido, nem exclusivamente das suas interações com os objetos ou das equilibrações, mas cada um destes está diretamente relacionado aos demais de forma interdependente.

No aprendizado da Língua Portuguesa, de forma mais específica da Leitura e da Escrita, o processo de desenvolvimento não é distinto do que ocorre no aprendizado da Matemática. A criança não aprenderá a ler e escrever em uma idade pré-estabelecida, mas sim quando possuir as estruturas necessárias para tal conhecimento, construídas através das equilibrações que ocorrem durante as interações com objetos e as relações sociais de acordo com sua maturação biológica.

Piaget (1970) fala que ao mesmo tempo em que desenvolve a linguagem, a criança desenvolve também o jogo simbólico, a imaginação e a imitação, adquirindo a função simbólica que caracteriza o nível pré-operatório. A função simbólica “consiste numa diferenciação dos significantes (signos e símbolos) e dos significados (objetos ou acontecimentos, uns e outros esquemáticos ou conceitualizados)” (PIAGET, 1999, p. 79). Sobre sua formação, os signos são elaborados necessariamente de forma coletiva, enquanto os símbolos não têm essa necessidade, podendo ser elaborados de forma individual (PIAGET, 1985).

Conforme Coelho (1998) na teoria piagetiana é observado um realismo nominal em que a criança quando pequena não reconhece distinção entre o nome do objeto e o objeto propriamente dito. É somente após as abstrações e da tomada de consciência que a criança supera esse realismo, diferenciando significante de significado. Esse entendimento deriva de uma construção contínua ao longo do desenvolvimento cognitivo infantil, tendo contato com a Escrita e interações sociais, começando pelo desenho e chegando à Escrita que se utiliza de signos próprios.

Assim sendo, a aprendizagem da Leitura e da Escrita possui relação com a construção dos símbolos e dos signos, em nível simbólico, possibilitando a representação; e continua a edificar-se durante o nível operatório com a formação das estruturas operatórias como conservação, ordenação e classificação.

O contato com a Leitura e a Escrita é imprescindível para o seu aprendizado visto que Siqueira (2018) destaca que o objeto de conhecimento com o qual a criança interage é a própria scrita. Nesse sentido, a mesma autora afirma que a resolução de problemas, não problemas matemáticos, mas sim sobre a própria Escrita e o seu uso, adquire o potencial de levar a criança à reorganização de suas estruturas mentais. A testagem de hipóteses e a reflexão são pertinentes ao aprendizado da Leitura e Escrita, bem como da Matemática.

Conforme a autora, esse conhecimento é construído socialmente e tem no seu uso um caráter social de comunicação e interação com outras pessoas. Desse modo, a prática de trabalho em grupo que se evidencia no campo da Matemática se faz importante também na aquisição da Leitura e Escrita. Ao interagirem entre si as crianças têm a possibilidade da troca de ideias e de reformulação de hipóteses, gerando desequilíbrios e reequilibrações, reorganizando suas estruturas.

Siqueira (2018) ressalta ainda que as crianças estão socialmente inseridas em um mundo letrado, já possuindo conhecimentos prévios sobre a Leitura e a Escrita quando chegam à escola. Cabe ao professor oportunizar interações entre as crianças, incentivar as reflexões sobre a língua e testar hipóteses. Tais práticas são importantes para a aquisição desse novo conhecimento ao mesmo tempo em que valoriza os saberes prévios que as crianças trazem de seus próprios contextos sociais. A mesma autora destaca que

 

No caso da alfabetização, a interação com os textos e com o outro é imperativa: o aluno deve colocar-se como participante ativo do diálogo contínuo com textos e leitores. Destaca-se, então, o aluno como sujeito de sua aprendizagem e consciente de sua produção linguística como processo de autoria (SIQUEIRA, 2018, p. 40).

 

A teoria piagetiana também faz referência ao uso de jogos em sala de aula, como uma ferramenta que estimula o desenvolvimento cognitivo e possibilita tanto o aprendizado da Leitura e da Escrita quanto o da Matemática. Piaget (1985) salienta que o jogo é

um meio tão poderoso para a aprendizagem das crianças, que em todo lugar onde se consegue transformar em jogo a iniciação à leitura, ao cálculo, ou à ortografia, observa-se que as crianças se apaixonam por essas ocupações comumente tidas como maçantes (p. 158-159).

 

Para o autor o jogo é entendido como

 

uma assimilação do real à atividade própria, fornecendo a esta seu alimento necessário e transformando o real em função das necessidades múltiplas do eu.  Por isso os métodos ativos; de educação das crianças exigem todos que se forneça às crianças um material conveniente, a fim de que, jogando, elas cheguem a assimilar as realidades intelectuais que, sem isso, permanecem exteriores à inteligência infantil (PIAGET, 1985, p. 160).

 

            Por fim, ao tratarmos do processo de construção do conhecimento da Matemática e da Leitura e Escrita, podemos afirmar que durante os Anos Iniciais o aprendizado parte das interações do sujeito com o meio concreto, evidenciando o contato da criança com a linguagem e com a Escrita, bem como de manipulações de objeto, gerando desequilíbrios. A busca pela equilibração por parte da criança é estimulada quando o professor valoriza os conhecimentos prévios das crianças e lhes proporciona situações que considerem esses conhecimentos (SIQUEIRA, 2018).

 

Considerações Finais

 

           A literatura estudada revelou que o conhecimento é uma construção resultante das relações de troca entre o sujeito e o meio. É interagindo sobre o objeto que as estruturas mentais são construídas e organizadas, de forma que cada vez se tornam mais complexas até atingirem o pensamento formal, característico da idade adulta. Para Piaget (1977; 1999), o desenvolvimento da inteligência é um processo de adaptação, que se trata de uma constante equilibração entre a assimilação e a acomodação. Alguns fatores são determinantes nesse desenvolvimento: a maturação, as experiências, o meio social e a equilibração. Nenhum desses determinantes influenciam unicamente o desenvolvimento cognitivo, mas atuam conjuntamente. Piaget identificou que ao longo de seu desenvolvimento, as crianças passam por estádios, que são estruturas mentais específicas, considerando como um “estado” em que a criança se encontra. Esses estádios possuem caráter integrativo, pois as estruturas do estádio precedente se complexificam de forma a possibilitar a formação de novas estruturas e novos conhecimentos.

 Constatamos que o período compreendido pelos Anos Iniciais do Ensino Fundamental corresponde ao desenvolvimento das estruturas operatórias das crianças, referentes ao nível operatório-concreto. No entanto, Piaget descobriu através de seus estudos que a cronologia dos estádios não é fixa e, sua ocorrência pode ser acelerada, retardada ou até inibida, dependendo das interações do sujeito e da educação que lhe é dada. Em se tratar da aprendizagem da Matemática, a teoria piagetiana mostra que seus conceitos são assimilados através das operações, que internalizam as experiências realizando abstrações, que se tornam reflexivas e resultam na tomada de consciência. E em relação à Leitura e Escrita, seu aprendizado inicia quando se desenvolve o símbolo e o signo, possibilitando que a criança consiga fazer representações. O signo é construído através do meio social, por isso além da interação com o objeto ser fundamental, destacam-se as interações com outras crianças e adultos.

A aprendizagem é um processo de construção na qual a criança constrói seu conhecimento através da interação com o meio. A partir da teoria piagetiana sobre a gênese do conhecimento, afirmamos que o processo ensino-aprendizagem deve basear-se nas interações do sujeito, levando em consideração a manipulação de objetos, as interações com colegas e inclusive com o professor. O aluno descobre o mundo e a si, além de construir o seu conhecimento, que não pode ser transmitido e nem se apresenta como uma herança genética. O papel que o professor detém, nesse sentido, é o de estimular o seu aluno, de proporcionar-lhe situações de aprendizagem em que possa agir de forma ativa. Tais situações devem partir do concreto e não da linguagem, pois se considera que o período dos Anos Iniciais compreende o desenvolvimento das estruturas operatórias nas crianças e, estas que necessitam de objetos ou situações reais para ocorrerem. Nesse momento as crianças não são capazes ainda de pensar a nível formal, isto é, não apresentam o pensamento hipotético-dedutivo.

As práticas pedagógicas devem ter como centro o aluno e se evidencia a importância da resolução de problemas e da testagem de hipóteses. Também é necessário que se respeite o tempo de desenvolvimento da criança, pois cada estádio compreende estruturas específicas, que não dependem somente da maturação do sujeito, como também das experiências, do meio social e das equilibrações. Além disso, esses estádios não podem ser entendidos como períodos cronológicos, e sim como as estruturas mentais que a criança apresenta. Por isso, uma criança estar com determinada idade não significa que ela esteja em determinado estádio, ainda que a maturação biológica seja um determinante.

Concluímos que conhecer os estádios é fundamental para compreender como a construção do conhecimento acontece, dando foco ao aluno de forma a estimulá-lo e suscitar “desequilíbrios” que o levem a busca pela equilibração.

 

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