Riflessività e Ricerca Sociale: la produzione dialogica della realtà[1]
Reflexivities and Social Research: the dialogic production of reality
Reflexividade e Pesquisa Social: a produção dialógica da realidade
Leandro
Rogério Pinheiro
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
leandropinheiro75@gmail.com – https://orcid.org/0000-0001-5041-4939
Enzo Colombo
Universidade de Milão, Milão, Itália.
enzo.colombo@unimi.it – https://orcid.org/0000-0001-7231-5819
Recebido em 06 de agosto de 2021
Aprovado em 10 de agosto de 2021
Publicado em 04 de setembro de 2021
RIASSUNTO
Durante l’intervista abbiamo provato a problematizzare domande che riguardano la ricerca sociale su le infanzie e gioventù, evidenziando i processi riflessivi che costituiscono le azioni sociali contemporanee. In questo modo, invitiamo Enzo Colombo ad un’interlocuzione sulle diverse prospettive teorico metodologiche che portano alla luce il tema della ‘riflessività’, considerandola come categoria di interpretazione visto i processi di socializzazione e di individualizzazione ai giorni d’oggi. I contributi che risultano dalle risposte di Enzo Colombo ci portano dalle critiche epistemologiche e delineano didatticamente filoni interpretativi dell'azione riflessiva. Cioè: a) riflessioni dell’attore sociale su sé stesso e il contesto, in interazione con codici e attività; b) processo ricorsivo di incorporazione dei risultati dell'azione e della conoscenza; e c) pratica relazionale di produzione di sensi e azioni nell’interazione. In questo modo, inoltra i suoi argomenti alla discussione sulle condizioni socio-politiche per la produzione di una ‘riflessività costruzionista’, imprigionata ai contesti e ai dialoghi tra soggetti, attenta alla participazione della ricerca nella costruzione della realtà sociale.
Palavras-chave: Riflessività; Ricerca sociale; Realtà sociale.
ABSTRACT
During the interview, we aim to problematize issues pertinent to social research with/about childhood and youths, highlighting the reflexive processes that constitute contemporary social actions. Thus, we invite Enzo Colombo for a conversation about the different theoretical-methodological perspectives that bring up the theme of “reflexivity”, considering it a category of interpretation in view of the current processes of socialization and individuation. The contributions raised by Enzo Colombo answers emerge from epistemological criticisms and didactically outline interpretative perspectives of the reflexive action, namely: a) the reflection of the social actor on him/herself and the context, interacting with codes and activities; b) the recursive process of incorporating results from action and knowledge; and c) the relational practice of producing senses and action in the interaction. Therefore, he continues his arguments to discuss the socio-political conditions to produce a ‘construcionist reflexivity’, held to the contexts and dialogues between the subjects, aware to the research participation in the construction of social reality.
Keywords: Reflexivities; Social research; Social reality.
RESUMO
Na entrevista, procuramos problematizar questões pertinentes à pesquisa social com/sobre as infâncias e juventudes, com destaque aos processos reflexivos que constituem as ações sociais contemporâneas. Dessa forma, convidamos Enzo Colombo para uma interlocução acerca de diferentes perspectivas teórico-metodológicas que trazem à tona o tema da ‘reflexividade’, considerando-a como categoria de interpretação em vista dos processos de socialização e individuação na atualidade. As contribuições versadas nas respostas de Enzo Colombo trazem-no desde críticas de ordem epistemológica e delineiam didaticamente vertentes interpretativas da ação reflexiva, a saber: a) reflexões do ator social sobre si mesmo e o contexto, em interação com códigos e atividades; b) processo recursivo de incorporação dos resultados da ação e do conhecimento; e c) prática relacional de produção de sentidos e ações na interação. Assim, encaminha seus argumentos à discussão sobre as condições sócio políticas para a produção de uma ‘reflexividade construcionista’, entrelaçada aos contextos e aos diálogos entre sujeitos, atenta à participação da pesquisa na construção da realidade social.
Palavras-chave: Reflexividades; Pesquisa social; Realidade social.
Introdução
Enzo Colombo é professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais e Política da Università degli studi di Milano. Iniciou sua atuação em sociologia no final dos anos 1980, no contexto educativo do “Laboratorio sul Mutamento Sociale (LAMS)”, coordenado por Alberto Melucci. Como o próprio Colombo afirmou certa vez, aquele teria sido o espaço de gestação de uma perspectiva de “construcionismo factual e radical”, que buscava vincular, de um lado, os interesses teóricos pela relação recursiva entre estrutura e agência e, de outro, questões metodológicas e epistemológicas concernentes ao trabalho do pesquisador, entendido como produtor de conhecimento social.
A partir daí, nosso entrevistado construiu uma trajetória de pesquisa atenta aos temas das juventudes, da diferença e do multiculturalismo na contemporaneidade, com ênfase às apropriações contextualizadas destes. E, em congruência, destacam-se também suas reflexões sobre a produção social das narrativas de pesquisa, ao que ele dá vazão nas linhas que seguem, em seus argumentos sobre uma reflexividade construcionista e dialógica.
Nossa entrevista foi realizada por e-mail entre maio e julho de 2021, sob propósitos de diálogo mais amplos, associando-se à participação do professor no seminário especial Reflexividade(s) e ação social: ponderações à pesquisa sobre socialização e individuação, efetivado no âmbito do acordo de cooperação, celebrado entre os Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Leandro R. Pinheiro: Para iniciarmos nossa interlocução, gostaria que nos falasse sobre a noção de reflexividade como categoria para compreensão das ‘ações sociais’ contemporâneas. Por outras palavras, gostaria que apresentasse a noção tal como a concebe, desde as condições para sua constituição como fato social hoje e, se possível, em diferenciação de interpretações que tendem a associá-la a reflexão, consciência crítica ou correlatos.
Enzo Colombo: O conceito de reflexividade se tornou, de modo significativo a partir dos anos 80, um dos instrumentos teóricos e metodológicos centrais no conjunto de ferramentas das ciências sociais. Em termos gerais, se pode dizer que ser reflexivo significa colocar o processo de produção de uma atividade particular no âmbito de tal atividade, como seu elemento constitutivo (ASHMORE, 1989). Em outros termos, a reflexividade busca assinalar a ideia de que o modo como se faz as coisas tem implicações sobre aquilo que se faz ou, no domínio específico das ciências sociais, que o modo como se produz o conhecimento sobre um aspecto particular da realidade social tem implicações sobre aquilo que se conhece e que há efeitos, ainda, sobre a realidade que nos propomos a conhecer.
Interrogar-se sobre relações existentes entre a ação individual e a realidade, sobre conexões entre a percepção, o conhecimento pessoal e as características constitutivas do mundo externo são, talvez, uma característica essencial do ser humano e tem sempre, em cada contexto, um significado consistente e problemático. O verbo refletir assinala essa particular ação humana, mas se trata de uma sinalização genérica e não livre de confusões. Na verdade, ao menos na língua italiana comum, refletir demanda pelo menos três planos de significados distintos – todos relevantes para esta discussão, no entanto, é necessário separá-las no plano analítico. Em primeiro lugar, refere-se ao próprio ato de interrogar-se sobre o estatuto da realidade e das próprias ações; assumir o significado de meditação, ponderação, avaliação; demanda a capacidade cognitiva de estar consciente da própria capacidade performativa e dos fios que unem desejos, ações e resultados. Em segundo lugar, expressa uma avaliação da natureza da relação que supostamente existe entre desejos, conhecimento, ação e realidade. Nesse caso, surge outra diferenciação: por um lado, essa relação pode ser indicada como correspondência imediata, direta, pontual e fiel, como quando o termo refletir é utilizado para sinalizar espelhamento ou manifestação; por outro lado, pode se apresentar de forma mais problemática, parcial, evocativa, como no caso em que se destaca, sobretudo, o sentido de influenciar, remeter, deixar transparecer. A pluralidade semântica do termo destaca que qualquer reflexão sobre reflexividade refere-se inevitavelmente a um campo complexo de questões relacionadas; campo que define um espaço dentro do qual se constrói o sentido: às questões epistemológicas (como conhecemos o que acreditamos saber); às questões de agência (que papel o ator social desempenha na definição da realidade; quanto à ação pode ser considerada ligada a vontade subjetiva e quanto pode estar ligada a questões estruturais); às questões de identidade (como posso me reconhecer em meus pensamentos e ações).
A importância do conceito de reflexividade para as ciências sociais tem conduzido inevitavelmente a certa sedimentação no termo, que contem diferentes significados, todos certamente importantes para a reflexão sobre epistemologia, teoria, metodologia e prática das ciências sociais, mas que, no entanto, sublinham diferentes aspectos e nem sempre coerentes entre si. Apenas a título de exemplo e sem pretender ser exaustivo, é possível destacar estes significados associados ao termo reflexividade nas ciências sociais:
§ Capacidade cognitiva de refletir, de considerar-se sujeito capaz de ação.
§ Capacidade cognitiva de explicar/realizar conscientemente aquilo que se faz (STUART MILL, 1843).
§ Capacidade de antecipar, em um diálogo interior, as possibilidades de respostas do outro e incluir nas nossas ações (MEAD, 1934 – Interacionismo simbólico).
§ Capacidade de inserir o observador e suas características na observação (GOULDNER, 1970).
§ Capacidade de tomar distância da doxa – do dado como certo incorporado nas categorizações utilizadas (BOURDIEU, 1982; Pós-estruturalismo).
§ Capacidade de tomar distância do objeto de estudo (epistemologia científica versus epistemologia prática) (BOURDIEU, 2001).
§ Capacidade de assumir um olhar situado, consciente das limitações e das possibilidades específicas do contexto social (HARAWAY, 1991; COLLINS, 2015; bell hooks, 1991; WOOLGAR, 1988).
§ Recursividade radical (GARFINKEL, 1967): em cada momento do seu desenvolvimento, a ação constitui - isto é, mantém, altera ou, ainda, elabora - o sentido do contexto em que se desenvolve e é, por sua vez, constituído por ela.
§ Recursividade da modernidade tardia (GIDDENS, 1990; MELUCCI, 1998; BECK, 1992): a capacidade de agir no mundo e de refletir criticamente sobre nossas ações, para que seja possível reconstruir como agimos e inserir os resultados dessa reflexão em nossas ações, a fim de remodelar a realidade do mundo.
§ Reflexividade dialógica (BAKHTIN, 1981) (social / relacional): enfatiza que o sentido está na troca, na resposta efetiva (que não pode ser antecipada) que o Outro dá às nossas ações.
§ Reflexividade social: condição social de constante questionamento de saberes e interpretações da situação que constitui o espaço de construção de significados e práticas compartilhadas.
Na variabilidade dessas concepções de reflexividade é possível reconstruir pelo menos três grandes conjuntos de significados: (1) a reflexividade como uma reflexão do sujeito atuante e conhecedor sobre si mesmo e sobre suas próprias práticas; (2) reflexividade como um processo recursivo no qual os produtos do conhecimento e da ação são constantemente incorporados ao conhecimento e às ações, modificando-os; (3) reflexividade como processo social, como prática relacional de produção de sentidos e ação na interação.
Todos esses aspectos da reflexividade são importantes para as ciências sociais. A predominância dada a um aspecto sobre os outros não depende de uma possível e estável hierarquia de mérito e valor aplicados aos diferentes significados atribuídos à reflexividade. Depende muito mais das situações e questões da pesquisa, da orientação teórica a partir da qual se parte e da abordagem ética e política que se segue.
A atenção à reflexividade, como ferramenta de reflexão sobre si mesmo e sobre as próprias práticas, é fundamental para desenvolver a consciência do caráter construído e processual do conhecimento social. Ajuda a refletir sobre o que significa fazer pesquisa social e como as ações realizadas em campo, as categorias analíticas que adotamos na interpretação, as perguntas que impulsionam a pesquisa, nossas características pessoais – idade, gênero, localização institucional, pertencimento a grupos sociais reconhecíveis (étnicos, religiosos, políticos, culturais) – influenciam o que podemos observar e o tipo de conhecimento social que somos capazes de produzir.
Esse tipo de reflexividade tem contribuído muito para enriquecer a metodologia das ciências sociais, desacreditando a ideia simplista e positivista de que era possível e suficiente observar os processos sociais de forma imparcial e racional, à distância e sem entrar em campo, para poder compreender o “verdadeiro” significado. Embora às vezes se corra o risco dessa discussão se esgotar, digamos, no próprio ego (uma reflexão do sujeito sobre o sujeito; uma dobradura da pesquisa sobre a observação do pesquisador) (WACQUANT, 1992), certo grau de reflexão sobre si próprio, do sujeito que faz a pesquisa contribui para dispor o pesquisador – com suas características, seu corpo, suas emoções, seus preconceitos, seus gostos e antipatias, seus interesses – no processo de pesquisa, produzindo uma reflexão constante sobre o que se faz e sobre a relação que essas características têm com a pesquisa que é produzida. Não é preciso seguir com profundidade a proposta de Alvin Gouldner, que, nos anos 1970, colocava como objetivo último da sociologia reflexiva o aprofundamento da consciência do sociólogo – correndo o risco de perder de vista o objeto de investigação e reduzir a pesquisa social a uma forma particular de autoanálise destinada a aumentar a autoconsciência do sujeito que conhece. Mas, é necessário reconhecer, como se sabe, que o pesquisador não está "separado" de seu objeto de pesquisa, que não pode produzir uma pesquisa puramente "objetiva" ou "neutra", que suas características influenciam a relação com o objeto de pesquisa e com os dados que produz.
Foi, sobretudo, o movimento feminista que chamou atenção ao caráter 'situado' do observador, instigando a reflexão sobre como conhecimentos que se apresentam como absolutos e universais, na prática, acabam reproduzindo e reificando as relações de poder existentes (HARDING, 1987; HARAWAY, 1988). A reflexividade, neste caso, quer ser uma ferramenta para desmascarar e desconstruir os enunciados “universais” do conhecimento, mostrando seu caráter “paroquial” e, neste sentido, a dependência inevitável não só das características e interesses do pesquisador, mas também das condições estruturais e das relações de poder que ordenam o campo de pesquisa e a posição do pesquisador no processo. A reflexividade promovida pelo pensamento feminista insiste no caráter situado de todo conhecimento, que é sempre um saber produzido por alguém, em um determinado momento, em uma situação particular, com interesses particulares e que tende a estruturar a realidade de acordo com relações de poder específicas (ANDERSON, 2020).
Cumpre enfatizar que conhecimento é sempre envolvimento, participação e responsabilidade; que qualquer conhecimento que se pretende apresentar como neutro e universal nada mais faz do que ocultar as relações de poder que o tornam possível, contribuindo para reproduzi-las e consolidá-las. A reflexividade situada nos convida a nos posicionar, a “entrar em campo”, denunciando a parcialidade de todas as formas de conhecimento e a dependência do que pode ser conhecido em relação à posição de quem observa; trata-se de uma reflexividade "política" que convida a uma identificação existencial com os mais marginais. A reflexividade situada requer muito mais do que uma simples listagem das características de identidade do pesquisador; deve considerar formas alternativas de conhecimento, formas alternativas de ação, posições diferentes – daquelas privilegiadas, institucionalmente investidas no papel de “pesquisador” – desde as quais se observa o campo de pesquisa (SWEET, 2020). Deve-se assumir a posição da margem (bell hooks, 1991), a posição de quem está colocado à margem, porque esta é um lugar de marginalidade, mas também um ponto distante da lógica do poder e do dado como certo em que o status quo se alicerça.
Bourdieu (2001) insiste na necessidade de ir além de uma reflexão sobre as características individuais do produtor de conhecimento, mirando as condições estruturais e as relações de poder que definem a posição do pesquisador no campo da pesquisa. A reflexividade, neste caso, implica uma exploração sistemática das "categorias impensadas de pensamento que delimitam o pensável e predeterminam o pensamento" (BOURDIEU, 1982, p.10) no que estas orientam a realização prática da pesquisa social (WACQUANT, 1992, p. 33). Seguindo Bourdieu, a reflexividade requer não tanto introspecção intelectual, mas uma análise e um controle sociológico permanente da prática de pesquisa e da produção de conhecimento. A reflexividade implica, neste caso, uma reflexão sobre o condicionamento social de quem fala/faz pesquisa/escreve, reconhecendo a influência que sua posição social exerce sobre o que ele produz como conhecimento social. Implica reconhecer o fundamento social das categorias que aplicamos à realidade social para analisá-la; reconhecer que essas categorias têm uma gênese sócio-histórica situada, ou seja, são inevitavelmente matizadas pelo habitus – pela internalização das condições estruturais – do pesquisador.
Para Bourdieu, a reflexividade diz respeito ao sociólogo cujo trabalho consiste em reconstruir o universo dos condicionamentos que determinam os comportamentos e a estrutura da realidade social (BOURDIEU, WACQUANT, 1992). A reflexividade é uma competência profissional específica que garante ao sociólogo um conhecimento privilegiado do mundo social. Então, para adquirir conhecimento objetivo (mas não positivista e a-histórico) do social, o sociólogo deve "voltar a si mesmo", isto é, aplicar as ferramentas críticas das ciências sociais a si mesmo e ao seu trabalho. Isso implica na capacidade do pesquisador social empregar as ferramentas de investigação específicas das ciências sociais para objetivar sua própria posição no campo e seu próprio trabalho de pesquisa (BOURDIEU, 2001). A reflexividade epistêmica proposta por Bourdieu consiste nas práticas pelas quais as ciências sociais, tomando-se como objeto, utilizam suas próprias ferramentas conceituais para se compreender e se controlar (PAOLUCCI, 2011). Esse tipo de reflexividade é uma forma de diferenciar e caracterizar a pesquisa social dos processos de produção da realidade social, da qual faz parte, porém, situando-se em um nível de reflexão diferente, mais “objetivo” e “crítico”. Aplicar a reflexividade epistêmica significa incluir na análise das ciências sociais observações e considerações sobre o pesquisador, seus modelos teóricos, seu percurso formativo, sua relação com o objeto de pesquisa, sua posição no campo acadêmico.
Esse tipo de reflexividade das ciências sociais – tanto a reflexividade que convida o pesquisador a uma autoanálise constante de suas próprias práticas e pensamentos, quanto àquela política, que convida a levar em consideração a posição social do pesquisador e as relações de poder que estruturam o campo do conhecimento social –, que poderíamos definir como reflexividade metodológica, promove um processo constante de reflexão, comparação e verificação do escopo da investigação a fim de entender como aprendemos e como usar esse conhecimento para melhorar as nossas práticas e nosso conhecimento (MORLEY, 2015). Trata-se de um processo que promove a conscientização sobre as características do pesquisador e como estas influenciam necessariamente no que se conhece – permitindo ver e saber algumas coisas e não outras, favorecendo certos tipos de relações com o objeto de pesquisa e obstaculizando outros. A reflexividade metodológica é útil para ter consciência do caráter situado e parcial de todo conhecimento social, o que necessariamente responde por uma parte específica e parcial da complexidade, ambivalência e contingência dos processos sociais. Também ajuda a ter um olhar crítico, questionando-se acerca dos pressupostos implícitos que movem a pesquisa e a interpretação das situações, das categorias de senso comum, dos interesses e relações de poder que orientam o pesquisador e definem sua posição no campo da pesquisa.
Uma segunda forma de entender a reflexividade consiste em sublinhar o caráter recursivo que vincula ação, conhecimento e realidade social. Na sociologia, essa ideia de reflexividade está ligada, por um lado, à etnometodologia, por outro, à ideia de modernidade reflexiva desenvolvida, entre outros, por Giddens, Beck e Melucci.
A etnometodologia usa o termo reflexividade para se referir ao caráter "corporificado" das práticas sociais, ou seja, o fato de que "as atividades por meio das quais os membros da sociedade produzem e gerenciam situações de relações cotidianas organizadas são idênticas aos procedimentos usados pelos membros para torna-las “explicáveis” (account-able)” (GARFINKEL, 1967, p.1).
O conceito se refere àquela característica especial das ações sociais pela qual, para que uma ação social seja possível, reconhecível como tal e dotada de sentido, devem ser pressupostas as condições de sua produção. Produção esta que, por sua vez, contribui para a construção de um sentido compartilhado em relação ao qual seja possível colocar e reconhecer tal ação. Ou seja, indica a necessária característica de circularidade que liga cada ação aos seus contextos, evidenciando como há plena equivalência entre descrever e produzir uma ação, entre entendimento e expressão do entendimento. Descrever uma situação é construí-la, e construir uma situação só é possível dentro de uma série de suposições – na maioria dos casos, necessariamente implícitas – que tornam essa construção sensata e viável.
Isso significa que, para poder agir de forma prática é sempre necessário "conhecer" desde o início as situações em que se atua; em outras palavras, não é possível agir na prática sem tomar como certo toda uma série de “saberes práticos compartilhados e/ou de senso comum”, que permitem aos atores reconhecer, demonstrar e tornar observável, um ao outro, o caráter racional de suas práticas. Um assistente social comprometido com a redução de danos no campo da toxicodependência não pode atuar e justificar suas ações sem recorrer a termos e conceitos – implícitos, para os quais não se percebe a necessidade de maiores esclarecimentos –, que se referem a teorias, classificações, conhecimento comum sobre normalidade e desvio, sobre o que pode ser definido e considerado droga e dependência, sobre o que é um especialista, uma instituição, um projeto, uma relação de ajuda, etc. Ao mesmo tempo, suas ações e as explicações (dadas por ele e outros às atuações) ajudam a compreender os conceitos implícitos do senso comum e a capacitá-los a fazer sentido, a serem usados para produzir novas explicações e descrições.
A reflexividade evidenciada pela etnometodologia é "essencial", porque é inevitável, constitutiva de toda prática e de toda explicação (LYNCH, 2000). Também é "trivial", porque é uma parte fundamental e essencial do que todos sabem, ou do que se presume que sabem, e "sem interesse" para aqueles que estão ativamente engajados na ação e na produção de explicações, porque, geralmente, não é considerado necessário para questionar os dados produzidos. A reflexividade, neste caso, é completamente distinta da capacidade de refletir sobre as próprias ações: aqueles que agem desse modo, muitas vezes, o fazem sem estar cientes da natureza reflexiva de suas práticas, nem estão interessados em colocar suas ações e os contextos práticos em que estão atuando sob escrutínio apurado. Todo tipo de prática, descrição e interpretação – desde a dos usuários de um serviço e das operadoras do mesmo até a de quaisquer analistas ou pesquisadores interessados em estudar aquele serviço específico – é necessária e inevitavelmente reflexiva, recursivamente ligada a definições mundanas, isto é, de senso comum, compartilhada e não definitivamente explícita fora do contexto em que é produzida.
As indicações etnometodológicas ajudam a desconfiar da possibilidade de se chegar a explicações e práticas “objetivas”, universalmente válidas, independentemente de seu contexto. Elas também ajudam a questionar uma suposta diferença substancial em práticas, métodos e verdades, entre o conhecimento produzido por atores comuns e observadores-especialistas. Estes últimos podem ter interesses específicos, ou seja, podem estar interessados em detectar a reflexividade endógena (como atores comuns constroem sua realidade por meio de práticas e explicações), mas não podem escapar da reflexividade referencial (como os próprios observadores constroem suas práticas e seu conhecimento) (POLLNER, 1991). O ponto de vista etnometodológico, sem negar a importância cognitiva de uma capacidade de reflexão, incluso radical, capaz de analisar as próprias práticas de conhecimento como imersas em processos, conceitos e práticas já tidas como certas e constitutivas do contexto em que se tornam explicáveis e plausíveis, considera esta mesma reflexão crítica irremediavelmente reflexiva, isto é, imersa num contexto de pressupostos e práticas do qual é impossível escapar, e que não pode ser descrita de forma autónoma e exaustiva. Pode ser útil destacar que determinada classificação ou uma prática particular produz os objetos com os quais lida – ilustrando, por exemplo, como a definição de uma "categoria de risco" não apenas descreve, mas literalmente cria seu próprio objeto de atenção –, mas mesmo esta análise crítica não pode escapar a seu caráter reflexivo.
Uma segunda perspectiva sobre a reflexividade como recursividade está ligada à reflexão sobre a sociedade moderna tardia (ou segunda modernidade, pós-modernidade, ou, precisamente, modernidade reflexiva). A ideia desenvolvida, embora com tons e nuances diferentes, por Giddens, Beck e Lash (1994), Melucci (1998) e Bauman (2000) (apenas para indicar os autores mais conhecidos) coloca como característica central da sociedade moderna contemporânea, o escrutínio permanente de saberes e atividades e a constante inclusão dos produtos destes conhecimentos e atividades, em percursos sucessivos de conhecimento e ação. Nesse caso, a reflexividade não é uma característica do observador, mas uma característica estrutural do sistema social moderno. A condição da modernidade contemporânea constitui uma radicalização dos processos subjacentes à sociedade moderna.
Seguindo Weber, a modernidade pode ser caracterizada como um processo de desencanto com o mundo tradicional, uma aplicação constante da racionalidade a áreas antes regidas pela tradição, pelo afeto, pela horizontalidade das relações pessoais (WEBER, 1919). A partir da Segunda Guerra Mundial, a modernização assume uma forma reflexiva (BECK, 1992): hoje o desencanto (que no início da modernidade tinha como alvo os privilégios de classe e as imagens religiosas do mundo) se dirige à compreensão da ciência e da técnica características da sociedade industrial clássica (às próprias noções de ‘progresso’ e ‘desenvolvimento’), às formas da vida familiar e de trabalho, aos papéis masculino e feminino, à racionalidade e à coerência como valores. Na modernidade reflexiva, as ciências são confrontadas com seus próprios produtos, seus defeitos e seus efeitos colaterais. A ciência se torna cada vez mais necessária para o funcionamento social, mas cada vez menos suficiente para a definição socialmente vinculante da autoridade do conhecimento. Assiste-se, então, uma desmonopolização das pretensões de legitimidade do conhecimento (geralmente concedida à ciência) e a proliferação simultânea de “outro” conhecimento, de baixo, difuso, generalizado, enraizado em práticas e experiências. Os “objetos” da pesquisa científica também se tornam seus “sujeitos”; os destinatários do conhecimento tornam-se co-produtores ativos. A distinção entre observador e observado torna-se mais nebulosa e complexa. Não é o observador que, graças às suas próprias competências e à posição privilegiada a partir da qual olha o observado, detém o monopólio da compreensão da realidade. Em vez disso, é a sua relação que constitui tanto o objeto quanto o produto da observação (MELUCCI, 1998). A reflexividade – o retorno recursivo de conhecimentos e práticas sobre si mesmas e a incorporação constante do que é socialmente produzido em futuras produções sociais – torna-se o princípio organizativo da modernidade tardia.
A modernidade reflexiva requer e produz processos de individualização (BECK, 1992; BECK, BECK-GERNSHEIM, 2001) e o desenvolvimento de determinadas habilidades pessoais (MELUCCI, 1996), a sublinhar que os indivíduos, dada a própria lógica da modernização, tornem-se produtores de si próprios (BRÖCKLING, 2016; DU GAY, 1996), tornem-se autorreflexivos, monitorem constantemente as próprias ações, fazendo escolhas e considerando suas ações e seu destino como uma consequência de suas escolhas, e não como uma consequência das forças estruturais que regulam as relações de poder dentro da sociedade (ATKINSON, 2010).
Outra forma de entender a reflexividade enfatiza seu caráter social. O que poderíamos definir como reflexividade construcionista ou performativa (PELS, 2000; COLOMBO, 2003), está atenta à dimensão dialógica, à construção do conhecimento sobre o social como processo; ela sustenta que todo conhecimento e toda investigação da realidade social tem um caráter circular e interacional e é precisamente nisso que reside sua capacidade explicativa. Nem o pesquisador, nem os sujeitos observados são guardiões de um saber objetivo em si, de uma interpretação privilegiada da realidade social – ambos o são em seus respectivos campos, para os fins práticos nos quais atuam, pelo que podem apreender desde sua posição específica. A pesquisa social, o questionamento sobre consistência da realidade social, é uma prática social específica diferente do agir cotidiano com fins práticos; é uma prática que abre um campo social específico, que permite produzir formas específicas de conhecimento sobre o social. Não se trata de um conhecimento "superior", "mais preciso" ou "mais verdadeiro", mas de um conhecimento específico que contribui para ampliar nossa capacidade de interagir com nossos contextos de ação; que contribui para ampliar o vocabulário à nossa disposição para contar histórias sobre nós e nosso mundo e para imaginar como mudá-lo. Esse conhecimento é produzido no próprio processo de pesquisa, não é produzido pelo pesquisador que observa seu campo de cima, nem é a tradução mecânica das verdades práticas dos atores no léxico e no campo das verdades epistêmicas do pesquisador. É um trabalho constante de tradução recíproca que produz um novo léxico e uma forma específica de conhecimento.
A reflexividade construcionista é dialógica (BAKHTIN, 1981). Mais que destacar a autorreflexão, evidencia a recursividade, o processo circular no qual o conhecimento e a ação social são produzidos. Como Kim Fortun (2000) observa:
A reflexividade exige que a etnógrafa que se posicione. A recursividade a situa em processos que ela afeta sem ter controle, em meio a interpelações concorrentes por resposta. A reflexividade pergunta o que constitui a etnógrafa como sujeito falante. A recursividade questiona o que a interrompe e exige uma resposta. Pensar em termos de recursividade é um modo de responsabilizar a etnografia por sua argumentação. A atenção à recursividade coloca em primeiro plano como toda articulação analítica – seja etnográfica ou em defesa direta – opera sobre articulações prévias, inserindo todo movimento e toda palavra em múltiplos discursos e mundos[2]. (FORTUN, 2000, p. 13)
Isso não significa desistir de desenvolver a autorreflexividade do pesquisador, mas sugere não se limitar a isso, pois o processo de pesquisa social não se limita a apreender uma realidade que existiria em sua verdade e autenticidade, sob as brumas e tropeços que surgem do olhar do pesquisador. Em vez disso, o processo de pesquisa é parte das maneiras pelas quais, coletiva e publicamente, confrontamo-nos, entramos em conflito na tentativa de impor uma ordem – momentaneamente e parcialmente – compartilhada à medida que a experiência flui.
Promover a reflexividade relacional significa reconhecer que o termo "reflexivo" não se aplica ao pesquisador, mas às relações entre o pesquisador e outros sujeitos participantes da pesquisa. A reflexividade, portanto, não se esgota completamente nem na capacidade de introspecção e de supressão da distância "experiencial" entre o observador e o observado – a capacidade de nunca separar o trabalho da conduta na vida, como entende Wright Mills (1959) – nem na capacidade de explicitar as condições e escolhas relacionadas ao trabalho de pesquisa. Trata-se, antes, de favorecer a construção e manutenção de um espaço dialógico, no qual os temas e a condição situada do conhecimento possam ser evidenciados em vez de ocultados e, portanto, sujeitos a revisão, comparação, refutação.
A ideia de reflexividade construcionista quer sublinhar como a produção de conhecimento social requer espaços institucionais favoráveis ao diálogo e ao confronto. O conhecimento social surge no momento em que ações e interpretações se confrontam, e o sentido emerge no momento da resposta que, por sua vez, para ser compreendida, aguarda uma nova resposta. O conhecimento social se concretiza quando há uma ruptura que exige a suspensão do pensamento usual (do pesquisador e dos atores sociais). A surpresa, a contestação, o obstáculo, o mal-entendido, o discurso violento, o confronto entre as questões morais, as acusações, o interrogatório, o pedido de esclarecimentos e justificativas, o conflito, são os momentos que tornam o conhecimento reflexivo – recursivo, revisto a partir das próprias suposições – e social o conhecimento sobre o social.
Abertura e manutenção de um espaço dialógico que possibilite a reflexividade relacional não podem ser garantidas pela simples vontade individual do pesquisador. Em vez disso, trata-se de favorecer aquelas condições coletivas que permitem um confronto contínuo na produção de conhecimento social.
Leandro R. Pinheiro: Diferentes autores e abordagens acabam por sinalizar contextos e práticas que parecem se relacionar com o tema da reflexividade, nem sempre em leituras estruturais. Poderia mencionar, por exemplo, a vertente disposicionalista (Pierre Bourdieu; Bernard Lahire), a sociologia pragmática da crítica (Boltanski), de um lado, e, a abordagem de certa estetização do capitalismo (Lipovetski e Serroy, 2016) e os autores da modernização reflexiva propriamente (Beck; Giddens; Lash, 1994), de outro. Entretanto, sua abordagem enfatiza a necessidade de uma compreensão detida da “construção social da realidade”. Então, se nos atemos ao cotidiano e sua relação com elementos estruturais, parece-lhe que poderíamos falar em relações sociais reflexivas nuançadas conforme o domínio social de ação e as condições para tanto (ativismo político; construção da identidade/diferença; agenciamentos morais; práticas astuciosas)?
Enzo Colombo: A perspectiva construcionista ocupa um espaço relevante nas ciências sociais contemporâneas. Não se trata, portanto, de estabelecer uma contraposição entre objetivismo ou realismo e construcionismo, mas sim de detalhar os processos de construção social da realidade, as condições de possibilidade, as questões envolvidas no processo, a forma como as construções sociais são tornadas, por um lado, 'objetivas' e 'reais', por outro lado, contestadas e modificadas. A sensibilidade para uma abordagem construcionista está muito presente nos autores que você citou e a concepção de reflexividade se constitui um aspecto central.
Bourdieu e Lahire, por exemplo, insistem que a relação entre o sociólogo e seu objeto de pesquisa não é "objetivamente" dada, mas construída no processo de pesquisa. No entanto, eles veem nisso um possível obstáculo para a pesquisa social ou, de qualquer modo, uma dificuldade ao identificar e legitimar um conhecimento 'específico' da sociologia, diferentemente do conhecimento prático de senso comum. Para superar essa dificuldade, sugerem a aquisição de uma consciência epistemológica capaz de libertar o pesquisador do empirismo ingênuo, além de dotá-lo de uma 'reflexividade' sobre sua posição social, seu papel, sobre seus pressupostos cognitivos e ideológicos, sobre sua posição no campo da produção de conhecimento social, sobre seus interesses, cujos efeitos diretos e indiretos influenciam a relação com o objeto de análise. Eles também veem a capacidade de 'refletir' sobre os contextos históricos e culturais em que se exercita a prática de pesquisa, uma condição fundamental para a objetivação do trabalho de investigação sociológica. A reflexividade – uma questão que, para Bourdieu, preocupa em primeiro lugar ao pesquisador – consiste em reconstruir a densa rede de imperativos interiores (disposicionais), a interiorização das condições estruturais da própria posição social (habitus), bem como da rede densa de restrições externas (contextuais) (BOURDIEU, WACQUANT, 1992; LAHIRE, 2007; FAOUBAR, 2015). A sociologia disposicional Bourdesiana introduz uma ruptura epistemológica entre o conhecimento do ator social, muitas vezes entendido como um produto secundário das estruturas sociais, e o conhecimento sociológico, que graças à própria reflexividade do pesquisador é capaz de fornecer uma interpretação 'científica', isto é, desvinculada dos vínculos estruturais e das restrições situacionais, revelando-se assim mais 'objetivas'.
Na proposta para uma sociologia pragmática da crítica de Boltanski (2009), a reflexividade não é uma característica específica do pesquisador social, mas uma característica do ator: a necessidade/capacidade dos seres humanos de reverem suas próprias ações e as dos outros para justificá-las moralmente. Essa capacidade reflexiva também compreende que os sujeitos reajam às interpretações dadas às suas características e às suas ações, inclusive as do sociólogo. Neste caso, a reflexividade, a partir do trabalho crítico do pesquisador, passa a ser, antes de tudo, o estudo das experiências de “críticas” veiculadas pelos próprios atores, em sua prática, em suas narrativas, em seus diversos motivos de sofrimento e descontentamento, de resistência e de rebelião a partir das situações concretas da vida. Um dos aspectos interessantes dessa ideia de reflexividade é a proposta de levar a sério a ação dos sujeitos e de ancorar a pesquisa social em uma dimensão empírica rigorosa, tendo como contribuição específica uma articulada descrição da ação situada dos diferentes atores sociais. No entanto, persiste uma lacuna entre a ação social e a interpretação sociológica que se apresenta como metainterpretação, metacrítica, uma construção de segundo grau que tem como matéria-prima as construções de atores sociais engajados em suas práticas cotidianas.
A ideia de modernidade reflexiva, conforme discutido acima, fornece insights interessantes para desenvolver a dimensão "recursiva" da reflexividade. Como a ideia de hipermodernismo de Lipovetsky (mas poderíamos citar muitas outras perspectivas críticas contemporâneas), a ideia de modernidade reflexiva tende a representar tendências gerais que são certamente sugestivas e capazes de apreender a dinâmica fundamental dos processos sociais contemporâneos, mas correm o risco de perder de vista a complexidade, a diversidade, as assimetrias de poder, a importância do posicionamento social. São instrumentos úteis para formular questões de pesquisa, mas precisam ser contextualizadas, matizadas, relativizadas e aplicadas seletivamente na análise empírica. Elas tendem a considerar a reflexividade como uma questão estrutural, um modo de organização da complexidade social que se impõe aos sujeitos.
Considero importante olhar para a reflexividade como um processo, um modo específico de produção de realidades sociais; um processo que está histórica e culturalmente situado e radicado não (apenas) no pesquisador, não (apenas) nos atores sociais e não (apenas) nas dimensões contextuais e estruturais, mas no tipo específico de relações que se estabelecem no desenvolvimento de pesquisas sociais. Meu interesse está na análise de práticas cotidianas, mundanas, nas quais os sujeitos produzem, na interação, o sentido de suas ações; está também nos contextos em que agem e na maneira como esse sentido das ações é reflexivamente reelaborado (como ele encontra 'resposta') nas práticas de quem faz pesquisa social. Boltanski me possibilita crer que a sociologia é uma disciplina empírica e Bourdieu, que as ciências sociais constituem um campo específico – com as suas lógicas e seus critérios de avaliação, com recursos específicos que permitem distinção e tomada de posição dentro do campo, com conflitos e disputas específicas – mas não exclusivo, de produção de saber sobre o social.
Portanto, acredito que as ciências sociais são, antes de tudo, um empreendimento histórico e situado. Elas propõem um relato sistemático (atento às relações e conexões) de questões contemporâneas e utilizam métodos científicos (lógica, matemática, experimentação – dedução, indução, hermenêutica), mas os resultados que obtêm não consistem em princípios científicos no sentido tradicional, de que eles ainda têm nas ciências naturais. Eles produzem discursos (no sentido de Foucault), regimes de verdade, singularidades, dispositivos. Acredito que as ciências sociais são uma atividade social prática plausível, não um ato puramente racional (de conhecimento do oculto, do verdadeiro). Seguindo Rawls (2001), uma prática razoável tem um caráter social, público e político (não é necessariamente equivalente a uma atividade racional). A razoabilidade define os termos de um acordo político básico sobre o qual os sujeitos se encontram. Isso significa que o conhecimento social produzido pelas ciências sociais tem um caráter político: contribui para organizar o mundo, vinculando as interpretações e os comportamentos. Daí uma ideia de ‘reflexividade’ que é, ao mesmo tempo, competência metodológica específica e processo social de construção de ações e significados que se dá no desenvolvimento da pesquisa social, na dimensão dinâmica e processual da produção – compartilhada, contestada, situada, plausível – de um discurso específico das ciências sociais sobre as relações sociais.
Não se trata, portanto, de reivindicar para o pesquisador social uma capacidade de compreensão da realidade superior à dos atores, nem de ajudar os atores sociais a desenvolverem a crítica da qual seriam portadores autônomos. Em vez disso, trata-se de ativar um campo relacional que produza uma compreensão específica da realidade social, que se torna 'discurso' reproduzido e traduzido em outras áreas, contribuindo para ampliar nosso vocabulário compartilhado e dar sentido à experiência, ajudando a configurar a realidade social de uma forma específica (um discurso que também tem múltiplas alternativas, é situado e temporário, sujeito à crítica; um discurso que privilegia algumas vozes e alguns interesses, silenciando outras; um discurso, enfim, capaz de criar formas específicas de inclusão e exclusão). Uma ideia de reflexividade ancorada na perspectiva construcionista tende a enfatizar que o conhecimento e a realidade do mundo não são independentes do envolvimento dos sujeitos que agem e conhecem, e que esse envolvimento dá forma à realidade, à ação e ao conhecimento. Nessa perspectiva, a reflexividade indica a tentativa e a necessidade de superar a distinção entre realidade objetiva e subjetiva, entre observador e campo de pesquisa. Como observa Alberto Melucci (Por Uma Sociologia Reflexiva, 2005, p. 33), a virada epistemológica
implica uma profunda redefinição da relação entre o observador e o campo. Pode-se dizer que a dicotomia observador/campo passamos à conexão observador-no-campo. Tudo o que se observa na realidade social é observado por alguém, que se encontra, por sua vez, inserido em relações sociais e em relação ao campo que observa. Por estas razões, o papel do observador e a relação entre o observador e o assim chamado objeto de pesquisa transformam-se em ponto crítico de reflexão sobre o estatuto da pesquisa social.
Penso, portanto, que seja interessante tentar desenvolver uma ideia de reflexividade que valorize a complexidade e proceda segundo um método alicerçado na procura de síntese e complementaridade. Uma reflexividade que se oponha, por uma lógica alternativa radical, à reflexividade essencial da etnometodologia, às formas tradicionais e modernas de reflexividade, à capacidade de sujeitar à análise contínua o modo como se está observando ou intervindo, ou à capacidade introspeção do observador, mas que saiba integrar essas perspectivas, incluindo uma reflexão sobre as condições sociais que tornam possível a observação e as implicações que essa tem sobre as suas próprias condições de possibilidade e sobre a realidade social que contribui para conhecer e construir.
Assumir a perspectiva de uma reflexividade construcionista implica aceitar um certo grau de relativismo. Reconhecer que, mais do que construir um conhecimento universal capaz de explicações deterministas e certas, o saber social abarca diferentes interpretações acerca do contexto, que são mais ou menos adequadas para dar conta das questões que as geraram e que são o resultado de escolhas, evidenciando alguns elementos e ocultando outros. Significa evidenciar o carater situado do conhecimento social, ou seja, o fato de que a posição a partir da qual se olha, as características sociais, expectativas, interesses e sensibilidade do observador, definem a realidade que se pretende observar. Por fim, significa considerar as diferentes posições não como equivalentes, mas marcadas por assimetrias de poder e disparidade de recursos, estruturalmente melhor equipadas para ver algumas coisas e ignorar outras. A realidade social surge, desse modo, definida como um campo conflituoso em que os elementos destacados são sempre uma parte dos recursos/meios disponíveis e são o resultado de acordos, confrontos e mediações entre diferentes posições e interesses. O conhecimento deste campo e a ação nele possível aparecem, portanto, como o resultado de formas mais ou menos abertamente conflitantes de diálogo e confronto. O ponto de vista reflexivo construcionista opta por colocar a dimensão relacional em primeiro plano: a reflexividade pode se manifestar sobretudo onde há um confronto real entre posições e vozes capazes de se expressar, onde existem as condições para um possível conflito. Se pensamos que o conhecimento e a mudança são produzidos apenas como fatos sociais, a reflexividade não pode estar na cabeça do observador individual, ela só pode existir como produto de uma relação, como um fato coletivo. O processo reflexivo é ativado, principalmente, quando se é chamado a questionar o próprio conhecimento, quando se é interpelado e pressionado a fornecer boas razões para as próprias interpretações e ações.
A abertura e manutenção de um espaço dialógico que permita uma reflexividade relacional não pode, portanto, ser garantida pela simples vontade individual do pesquisador. Antes, trata-se de favorecer aquelas condições coletivas que permitem um confronto contínuo sobre a produção do conhecimento social. O pesquisador pode, de todo modo, favorecer a criação deste espaço, por exemplo, mostrando ao leitor as escolhas feitas nos momentos relevantes da investigação de campo, ou tentando apresentar adequadamente na escrita a complexidade e a polifonia que caracterizam a experiência de pesquisa, incorporando comentários, críticas e conversas relacionadas ao próprio trabalho de investigação. Mas as admoestações etnometodológicas relativas à possibilidade de evasão de qualquer reflexividade radical, bem como as perplexidades sobre a sinceridade plena do pesquisador (SALZMAN, 2002), dificultam pensar que seja possível alcançar plena "transparência" dos processos de construção da pesquisa e de suas narrativas.
A abertura de um espaço dialógico de reflexividade implica posições éticas específicas. Um primeiro movimento ético necessário consiste em assumir a responsabilidade pela posição de observador, especialista ou operador. Ou seja, significa reconhecer a dimensão de poder e privilégio ligada ao estatuto social, mais ou menos institucionalizado, que permite “entrar no mundo dos outros”, intervir e poder falar sobre ele; reconhecer que o observador e o observado têm interesses e possibilidades diferentes de produção de conhecimento socialmente reconhecido. O observador não pode ignorar a autoridade de seus discursos e de suas descrições, nem ignorar as expectativas que sua própria presença cria, tanto para as pessoas que ocupam o campo que observa, quanto para os ambientes externos que legitimam sua presença (colegas, instituições, associações, mídias, clientes). Não pode ignorar que entra em campo, que sua presença é determinante, graças às competências e ao papel social que o credencia coletivamente. Não pode, portanto, considerar-se "igual aos demais", mas deve perceber as suas competências e o lugar social que torna a sua ação possível e legítima. Isso implica o reconhecimento da diferença de poder entre o observador e o observado, da irredutibilidade dos interesses do primeiro em relação ao segundo e vice-versa, portanto, implica um certo grau inevitável de conflito. O observador é chamado a refletir não só sobre as características dos atores ou contextos que observa, mas também sobre os seus próprios objetivos e sobre a relação que consegue estabelecer com quem quer observar. Na ação de refletir sobre a relação instaurada, assume também lugar de destaque a capacidade de avaliar criticamente a assimetria de poder que garante o papel de observador ou especialista. De fato, o observador está sempre presente no espaço de análise ou intervenção com as suas características biográficas, mas também com um "status", isto é, em nome de uma instituição, um grupo profissional, um sujeito coletivo mais ou menos explícito, que garante certo grau de autoridade em sua interpretação e ação.
Evitar que tais prováveis conflitos sejam resolvidos unicamente com base na força das partes em campo (assimetricamente favorável ao observador) torna útil uma segunda opção ética: facilitar a expressão de vozes e posições mais frágeis ou expressas em formas geralmente não reconhecidas como apropriadas ou legítimas. Uma escolha ética que torna necessário tomar partido e comprometer-se com a parte mais fraca, orientando-se a ouvir e a fortalecer os discursos mais marginais e mais facilmente silenciados. É a parte mais forte que tem a responsabilidade de mediar o conflito, justificando as próprias ações e se abrindo para acolher e ouvir. A atitude reflexiva não pode ser exigida da parte mais fraca como pré-condição para a escuta e o diálogo, mas pode ser objetivo do observador, construir as condições necessárias para uma reflexividade relacional, na qual as diferentes posições e diferentes perspectivas possam, reciprocamente, encontrar-se e confrontar-se, com mesma dignidade, ainda que dificilmente tenham igual poder e igual autoridade.
Por fim, definir as condições para uma reflexividade relacional implica um terceiro compromisso ético: reconhecer que a diversidade de perspectiva do outro introduz aspectos inesperados que podem favorecer os processos de produção de conhecimento e transformação da realidade. Significa reconhecer nos sujeitos a capacidade de construir o sentido de suas ações (MELUCCI, 1996) e a capacidade de transformar a realidade, não só aquela em vivem, mas também a do observador.
Isso leva ao nó central de uma perspectiva reflexiva construcionista: a ideia de que a reflexividade pode ser garantida sobretudo por processos sociais e arranjos institucionais, ao invés de vontades individuais. A reflexividade construcionista – entendida como a capacidade de se distanciar criticamente das próprias construções e como consciência do caráter construído do conhecimento social – não é um traço 'intrínseco' das habilidades cognitivas, nem pode ser ativada simplesmente de forma voluntária. A reflexividade construcionista se adensa no confronto, no conflito. Parafraseando Bakhtin, poderíamos dizer que seu sentido surge sempre como se estivesse em outro tempo, desdobra-se no tempo de espera da resposta do Outro. O esforço reflexivo, portanto, assume a forma de permitir que o Outro responda. É reflexiva – no sentido construcionista – uma afirmação, uma observação, uma pesquisa que ativamente solicita crítica, confronto, discussão. É reflexiva, assim, uma sociedade que ativa espaços de discussão, que protege a voz do dissidente, que garante que sempre haverá uma resposta. A reflexividade, enquanto recursividade consiste, principalmente, neste constante diálogo social sobre a realidade social, de modo que sejamos continuamente chamados a fundamentar as nossas razões. Requer que estejam presentes no espaço público diferentes perspectivas e narrativas, que permitam tomadas de posição, assunção de responsabilidades e discussão da voz dominante.
Tentar produzir conhecimento social reflexivo a partir de uma perspectiva construcionista significa, concretamente, colocar em prática movimentos que favoreçam o diálogo (também entendido como conflito, desacordo, refutação, confronto). Além de englobar as indicações da reflexividade metodológica (colocar o pesquisador no campo, falar sobre os métodos de produção da pesquisa), “levar a sério os atores sociais” e considerá-los produtores ativos de conhecimento, bem como considerar as condições estruturais e dinâmicas contextuais que produzem reflexivamente organizações sociais – todos os fatores que uma boa pesquisa social dificilmente pode abrir mão – uma reflexividade construcionista tenta implementar medidas que favoreçam a formação de espaços de diálogo e confronto. Isso pode acontecer tanto no campo da pesquisa quanto no campo social. No âmbito específico da pesquisa e metodologia em ciências sociais, alguns exemplos possíveis (mas é útil estar aberto e saber inventar outros) podem ser ações destinadas a favorecer formas "institucionalizadas" de reflexividade relacional, isto é, formas "externas" e "públicas" de confronto e crítica. Uma primeira possibilidade seria estabelecer um ou mais contatos externos: colegas que se encarregam de acompanhar passo a passo a evolução da pesquisa qualitativa. As referências externas podem ser ativadoras úteis da reflexividade relacional, tanto para estimular o pesquisador a ter mais consciência de suas escolhas, como para estimular o surgimento de pontos críticos, garantindo, enfim, maior controle profissional sobre a atividade de pesquisa. Os referentes também poderiam encontrar espaço autônomo na devolução dos resultados – no texto final da pesquisa –, reconstruindo, a partir de sua perspectiva, a história natural da pesquisa de campo. A escrita da pesquisa é outro campo em que o pesquisador pode utilizar, de várias maneiras, uma reflexividade construcionista (COLOMBO, 2016).
Uma segunda possibilidade poderia consistir em favorecer pesquisas realizadas em grupos ou, pelo menos, por dois pesquisadores (COLOMBO e NAVARINI, 1999; ERICKSON e STULL, 1998; SALZMAN 2002; BIELER, et al 2021). A presença simultânea em campo estimula processos de troca, comparação (e controle) que ativam uma reflexividade relacional, dando maior relevância e mais espaço aos momentos de “dialógo” de construção das interpretações e “fatos” etnográficos. Também neste caso se poderia introduzir no processo de pesquisa aquela dimensão processual que constitui o elemento peculiar da reflexividade construcionista.
Uma terceira possibilidade poderia consistir em favorecer a formação de redes interessadas em discutir e criticar o trabalho de pesquisa. Redes que possam interessar tanto ao grupo de pares, favorecendo uma maior visibilidade das pesquisas e contextos de discussão não só sobre o “produto acabado”, mas também sobre o processo de produção, e que esse seja um conjunto mais amplo de discussão dos interessados em pesquisa.
Esse processo revela a importância de ancorar a reflexividade construcionista não apenas no espaço das ciências sociais, mas, de forma mais ampla, no espaço público. Mesmo que seja um 'discurso' específico, o conhecimento das ciências sociais passa a fazer parte do processo de produção social da realidade quando é inserido em campos mais amplos do discurso, quando se torna 'político', no sentido de ser parte do modo pelo qual as decisões são tomadas em relação às coisas públicas, ao viver junto, às definições das situações. Entendo que este é o significado de 'sociologia pública': uma sociologia que aspira não fazer sugestões ao príncipe (ao governante) de como agir, não exige uma voz privilegiada nas decisões públicas, mas uma sociologia que saiba provocar a discussão que forneça linguagens, conceitos, pontos de vista, que estimulem o confronto, que coloquem hipóteses consideradas dignas de atenção, discussão e refutação. A reflexividade construcionista não é uma necessidade e não surge espontaneamente, é um produto social e é favorecida por um contexto social aberto, que valoriza positivamente o espaço público, que encoraja a participação. É favorecida por contextos sociais em que há lugar para o dissidente, para aquele que faz perguntas incômodas, que diz o que preferimos não ouvir. Disponibilizar um espaço para o dissidente permite garantir uma reserva de energia para mobilizar processos reflexivos. Permite a defesa de espaços de crítica e interpelação – elementos fundamentais de qualquer reflexividade relacional –, que se opõem à estabilização de pontos de vista hegemônicos, à formação de poderes que assumem evidências de normalidade e inevitabilidade. A presença do dissidente pode garantir a possibilidade contínua de subversão do discurso dominante, da perspectiva usual de observação e interpretação. Convoca o observador e o operador a justificar as suas próprias ações, a fornecer boas razões e então se questionarem sobre o que estão fazendo. Introduz elementos potenciais de ruptura e surpresa que constituem a matéria-prima para a construção de processos reflexivos. Se não há ruptura, necessidade e possibilidade de interrogar e interrogar-se, de fazer perguntas, é muito improvável que um processo reflexivo possa ser acionado.
Leandro R. Pinheiro: No âmbito da sociologia da infância, há pesquisas que procuram tomar as crianças como sujeitos de agência, como se já vivenciassem certo paradoxo da escolha. Por outro lado, colocam-nas como produtoras de cultura e portadoras da novidade pelo advento do seu nascimento, como preconiza Hannah Atendt (2010), a partir do princípio de natalidade.
De outra forma, a sociologia da juventude tem sinalizado a necessidade tomar jovens como co-produdores em seus processos de socialização. Para ambos os casos na América Latina, as situações de precarização (empobrecimento; imigração; fragilização de direitos humanos) parecem lançar os atores de forma drástica à necessidade de agenciamentos. Então, retomando suas elaborações sobre reflexividades e narrativas, como problematizaria as repercussões para a pesquisa sobre processos de socialização e/ou individuação, especialmente com jovens?
Enzo Colombo: Articular uma reflexividade construcionista ao estudo de crianças e jovens – minha pesquisa se concentra, principalmente, em jovens entre 18 e 30 anos – significa antes de tudo, em minha opinião, colocar as demandas do pesquisador em diálogo com experiências, interesses, vivências dos jovens. Não permitir que prevaleça nem o primeiro nem o segundo, mas que se construa um campo no qual se questionem e dialoguem. Significa também não situar esse campo de diálogo em um vazio a-histórico e separado do contexto social, mas inseri-lo nas dimensões estruturais e nos vínculos contextuais da realidade observada. Isso significa, em primeiro lugar, evitar generalizações excessivas. “Os Jovens”, na forma de uma categoria genérica, deve ser vista com desconfiança: é preciso introduzir complexidade, variabilidade, assimetrias, posição social, competências e habilidades, categorizações que favoreçam a inclusão ou a exclusão. E, ao fazer isso, penso que é essencial ter um olhar interseccional (CRENSHOW, 1991; COLLINS, 2015), buscando compreender como formas específicas de categorização se cruzam, não necessariamente e simplesmente se somando, originando formas específicas e situadas de discriminação e privilégio.
Fazer pesquisa, e considerar as questões postas acima, pode significar não reduzir os jovens a uma única categoria, definida por estereótipos ou suposições generalizantes geradas desde um pensamento superficial, preguiçoso; significa problematizar as diferentes posições sociais – as diferentes unidades de geração, se quisermos seguir Mannheim (1952) – que caracterizam o mundo juvenil. Isso significa reconhecer a especificidade da perspectiva, da ação, da voz e do saber dos jovens sem, no entanto, renunciar a polifonia e complexidade que circunscreve a juventude. Significa 'levar os jovens a sério' como portadores de interesses e conhecimentos sociais específicos. Para tanto, considero pessoalmente útil, como perspectiva epistemológica e como ponto de partida para a formulação de questões de pesquisa, aplicar uma perspectiva geracional, ou seja, olhar para as especificidades e rupturas que caracterizariam grupos específicos de jovens de hoje. Assumir a perspectiva geracional pode constituir um útil ponto de observação para apreender a dinâmica de construção da realidade social como um processo em que a capacidade de ação dos sujeitos e as dimensões estruturais institucionalizadas se entrelaçam, condicionando-se reciprocamente e encontrando espaço para ajustes dinâmicos. Dessa forma, é possível ver a experiência dos jovens não apenas como caracterizada por perdas, desvios, vazios, suspensões, adiamentos e incapacidades. Em vez disso, a atenção volta-se para os processos contínuos por meio dos quais as ações sociais e os significados sociais são produzidos como tentativas de criar a realidade social como “uma seção finita da infinidade privada de sentido do devir do mundo, a qual é atribuído sentido e significado do ponto de vista do ser humano” (WEBER, 1904, tradução italiana 1958, p. 96).
A geração pode ser considerada uma ferramenta heurística que aponta para as descontinuidades que caracterizam as experiências culturais, sociais e profissionais dos jovens, sem dar à geração um referencial normativo. Isso significa destacar como a geração pode ser um quadro comum, onde os significados de experiências diversas e mutáveis encontram terreno comum. A geração é uma referência útil sempre que tentamos dar sentido à experiência de indivíduos e grupos que enfrentam situações em que palavras, conceitos, rotinas e padrões de comportamento herdados de coortes anteriores não são mais satisfatórios ou úteis. Antes que um status, definido por experiências históricas comuns ou orientações comuns de ação, a geração é definida pela necessidade de construir, de uma nova maneira, o significado da experiência cotidiana. A geração, é antes de tudo, definida pela experiência subjetiva – não necessariamente plenamente consciente – da inadequação daquilo que se tem à disposição para administrar a complexidade e a novidade das situações mundanas, da impossibilidade de seguir rotinas consolidadas e compartilhadas. Concebido como uma ferramenta heurística, o conceito de geração pode nos permitir fazer novas perguntas, desafiar categorias existentes, colocar sob suspeita, duvidar do que é dado como certo. O que há de “novo” se nos colocamos na posição histórico-social dos jovens? O que nos dizem sobre as mudanças sociais as práticas e os significados implementados pelos jovens? Em vez de tentar esboçar uma lista de características que sintetizem uma suposta “essência” das atuais gerações jovens, acredito que seja útil usar a perspectiva geracional para evidenciar as condições históricas que impulsionam os jovens a encontrar novos caminhos de pensamento e ação para enfrentar os diferentes e específicos contextos sociais, econômicos e culturais nos quais atuam. Nesta perspectiva, a 'geração' ajuda a "explorar novos começos, estar atento ao que está emergindo do antigo e tentar apreender estruturas e normas futuras, na turbulência do presente" (BECK, 2016, p.3).
Além disso, ao fazer pesquisas com jovens, fica evidente o quão é importante abrir espaço de acolhimento para a reflexividade: não se trata de considerar os jovens como portadores de um saber mais verdadeiro, que somente deve ser conduzido ao ouvido do poder (ou à opinião pública), muito menos pensá-los como sujeitos passivos que devem ser formados a partir de interesse próprio, mas entender como ativar um espaço 'educativo' no qual o diálogo e a discussão permitem produzir um conhecimento diferente daquele das partes individuais, um conhecimento diferente daquele inicial, um conhecimento 'em processo'. Para construir a concepção desse novo espaço de produção de conhecimento, não posso deixar de citar Bakhtin em uma de suas reflexões sobre a obra de Dostoiévski:
Nosso ponto de vista não afirma de forma alguma uma passividade do autor, que faria nada mais do que fazer uma conexão dos pontos de vista dos outros, das verdades dos outros, renunciando completamente ao próprio ponto de vista, à própria verdade. Não se trata de maneira alguma disso, mas de uma interação completamente nova e particular entre a própria verdade e a verdade dos outros. O autor é profundamente ativo, mas sua atividade tem um caráter particular, dialógico [...] Dostoiévski frequentemente interrompe, mas nunca sufoca as vozes dos outros, nunca lhes dá um fim 'em seu próprio nome', isto é, em nome de outra consciência, a sua (BAKHTIN, 2000, p. 322).
A pesquisa com jovens – e especialmente com crianças e adolescentes em situação de precariedade – evidencia a assimetria de poder entre o pesquisador e os sujeitos que são objeto de sua pesquisa, colocando fortemente a questão da responsabilidade do pesquisador. A responsabilidade – entendida como capacidade de responder, como capacidade de ‘respons-habilidade’ (ou responsabilização) – é um elemento central da reflexividade construcionista acima descrita. É o modo de ativar e manter ativa a produção de conhecimento social compartilhado, é a capacidade de dar respostas sobre o que se está fazendo e dizendo. Nesse sentido, a pesquisa com crianças e jovens também é um espaço que estimula a reflexividade construcionista, pois crianças e jovens costumam fazer a pergunta indiscreta, ou perguntar constantemente o porquê das coisas, ou simplesmente lançar aquele olhar questionador e surpreso diante de algo não totalmente compreendido, que o pesquisador não pode ignorar, mas, antes, deve tentar reintroduzir em sua pesquisa, como um sinal de algo que requer um novo movimento, uma maior compreensão, uma nova justificativa. A pesquisa com crianças e jovens torna particularmente evidente que o conhecimento social surge das respostas que as questões geradas no campo – atores, situações, contextos, assimetrias, poderes – estimulam e como essas respostas modificam o campo e ecoam novamente nas condições do campo assim transformado.
A reflexividade construcionista é sempre uma reflexividade situada, é ativada de acordo com as características do contexto e dos participantes, suas especificidades, suas prioridades, seus interesses e suas relações de poder. Portanto, não pode ser traduzida em uma receita a ser aplicada em todas as situações. No entanto, as dimensões que, acredito, podem delinear o campo de pesquisa para que se possa desenvolver a reflexividade construcionista são: um espaço adequado para 'vozes do campo', para o ponto de vista dos sujeitos da pesquisa; uma apresentação clara e rigorosa da voz interpretativa do autor, que não renuncia à sua responsabilidade como tal, mas que justifica, argumenta, torna problemática a sua própria interpretação da situação; um posicionamento preciso da pesquisa no contexto estrutural mais amplo, destacando os recursos e condicionantes decorrentes da posição social específica dos sujeitos envolvidos, suas habilidades pessoais, as formas de categorização que geram inclusão e exclusão, privilégios e discriminações. É a articulação constante dessas três dimensões que abre espaço para uma compreensão dialógica.
Leandro R. Pinheiro: Por fim, não poderia deixar de perguntar pela articulação entre reflexividade e esfera política, e o faço propondo um contraste entre cenários de ação atuais. De um lado, que repercussões poderíamos destacar para as ações políticas juvenis? De outro, poderíamos traçar alguma associação entre a governamentalidade vigente no Brasil (mas não só aqui), em situação de pandemia e governo de ultradireita, e a produção social da reflexividade? O que, segundo entendo, significa perguntar também pela consistência ou nuance do fenômeno em contexto latino americano.
Enzo Colombo: Na minha perspectiva, a reflexividade chama atenção ao processo social de produção do discurso específico das ciências sociais a partir de outros discursos – aqueles dos atores sociais – para promover o discurso no espaço público, ou seja, traduzir experiências e problemas em questões 'políticas'. A reflexividade é o que mantém 'fluido' esse diálogo entre os discursos, acerca da consciência do caráter construído, situado e dinâmico da compreensão da realidade social. A reflexividade pretende sinalizar – e orientar a reflexão sobre – a circularidade e a interconexão que existe entre o conhecimento da realidade e a realidade, entre o olhar subjetivo e a percepção objetiva, entre a ação e a interpretação. Portanto, sinaliza um processo social – não uma capacidade individual – que pode ser ativado completamente apenas no nível social. Por esta razão, a reflexividade construcionista depende do contexto histórico, social e político. Não é uma necessidade da ação e compreensão humana, mas uma possibilidade dela. Possibilidade que, para ser viável necessita de condições contextuais específicas. Conforme sublinhado anteriormente, a reflexividade construcionista pretende sinalizar o caráter dialógico da construção social da realidade e, portanto, não reside (apenas) na consciência individual. A reflexividade é totalmente ativada quando se é chamado a responder e a resposta está na resposta do outro – especialmente quando é inesperada, perturbadora, crítica – mais do que na cabeça do indivíduo. Uma ambiência político-cultural em que fazer perguntas indiscretas é considerado um ataque à identidade coletiva, onde o dissidente é visto com desconfiança e o estrangeiro como uma ameaça, não constitui um ambiente favorável ao desenvolvimento da reflexividade.
O pesquisador social pode trabalhar duro para tornar sua pesquisa e seus resultados os mais reflexivos possíveis no sentido construcionista, mas isso não é suficiente. Do ponto de vista social, uma pesquisa é reflexiva – no sentido de que se torna um processo recursivo, que permite a inclusão do que é produzido na pesquisa social, na facticidade da realidade, ajudando a modificá-la e estimulando novas pesquisas e novas modificações – apenas se for 'discutida', se provocar diálogo e debate. O resultado de uma pesquisa não está apenas nas mãos do autor; o conhecimento social torna-se tal quando se torna coletivo, circula, torna-se léxico comum, perspectiva considerada digna de discussão. Como observa Bakhtin, o autor não é o único responsável pelo conteúdo do discurso que produz; participa dele também o destinatário, pelo menos como o autor o imagina: escreve-se de modo diferente dependendo a quem se dirige a escrita, se a um determinado público ou a outro. Mas nunca é possível saber com certeza como o outro agirá: o sentido é sempre adiado, fica à espera da resposta, está 'fora' do autor porque é um fato social.
Por isso, a reflexividade não pode ser considerada apenas uma questão metodológica, que pode ser resolvida dentro da disciplina ou, menos ainda, dentro da pesquisa individual. A reflexividade, entendida a partir do sentido construcionista, só pode ser realizada em um contexto social onde há espaço para discussão e crítica. Onde prevalecem as posições maniqueístas, onde dissensos e críticas são vistas como uma ameaça, onde a emergência, a proteção, a defesa – todas as perspectivas gnosiológicas que focalizam o presente e o passado e veem como problemática a complexidade e a mudança; perspectivas que inibem o diálogo porque veem o Outro como uma ameaça ao Eu e ao Nós – são as principais preocupações, não há muito espaço para a reflexividade dialógica. Na situação atual, acreditar na importância de criar espaços de pesquisa reflexiva também implica um compromisso sociopolítico constante para contrariar a propagação de uma governamentalidade que faz da emergência a razão da redução da democracia, da exceção a suspensão do direito (AGAMBEN, 2003), da simplificação a discriminação da variabilidade e da diferença, do convite à autenticidade, à identidade ou ao 'povo' a negação da complexidade e da ambivalência da experiência humana.
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Nota