Afirmação trágica e pedagogia da escolha na animação Soul[i]

Tragic affirmation and pedagogy of choice in animation Soul

Afirmación trágica y pedagogía de la elección en la película Soul

 

 

 

 


Rogério de Almeida

Universidade de São Paulo, Butantã, São Paulo, Brasil

rogerioa@usp.br

 


Luiz Antonio Callegari Coppi

Universidade de São Paulo, Butantã, São Paulo, Brasil

luiz.coppi@usp.br

 

Recebido em 27 de julho de 2021

Aprovado em 30 de agosto de 2021

Publicado em 15 de junho 2023

 

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de analisar, por meio de uma leitura hermenêutica, a animação Soul, de Pete Docter. Para tanto, propomos duas dimensões de análise: uma mais filosófica e outra mais especificamente pedagógica. Na primeira, investigamos como o enredo do filme se contrapõe ao imaginário individualista e produtivista da contemporaneidade ao propor uma afirmação do viver destituída de justificativas grandiosas, absolutas – em outras palavras, uma afirmação trágica, como a concebem os filósofos Friedrich Nietzsche e Clément Rosset, a quem recorreremos a fim de sustentar a argumentação. A seguir, interessa-nos também observar como a relação pedagógica travada pelos protagonistas da história a partir dessa perspectiva trágica traz à luz a potência dos encontros fortuitos em Educação, colocando em cena as noções de experiência e de escolha.

Palavras-chave: Interpretação fílmica; Filosofia trágica; Pedagogia da escolha.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze, through a hermeneutic reading, the animation Soul, by Pete Docter.  In order to do so, we propose two dimensions of analysis:  one which is more philosophical and another which is specifically pedagogical.  Concerning the philosophical dimension, we investigate how the plot of the film contrasts with the individualistic and productivist imaginary of contemporary times by proposing an affirmation of living without grand, absolute justifications - in other words, a tragic affirmation, as Friedrich Nietzsche and Clément Rosset conceive it. Hence, we have resorted to their works to support our argumentation. Afterwards, we are also interested in observing how, from this dreadful perspective, the pedagogical relationship established by the protagonists of the story illustrates the power of fortuitous encounters in Education, highlighting the notions of experience and choice.

Keywords: Film interpretation; Tragic philosophy; Pedagogy of choice.

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar, a través de una lectura hermenéutica, la película animada Soul, dirigida por Pete Docter. Para ello, proponemos dos dimensiones de análisis: una más filosófica y otra más específicamente pedagógica. En la primera, investigamos cómo la trama de la película se opone al imaginario individualista y productivista de la contemporaneidad al proponer una afirmación de vivir desprovista de justificaciones grandiosas y absolutas, en otras palabras, una afirmación trágica, tal como la conciben los filósofos Friedrich Nietzsche y Clément Rosset, a quienes recurriremos para respaldar la argumentación. A continuación, también nos interesa observar cómo la relación pedagógica establecida por los protagonistas de la historia desde esta perspectiva trágica pone de relieve el potencial de los encuentros fortuitos en la Educación, poniendo en escena las nociones de experiencia y elección.

Palabras clave: interpretación cinematográfica; Filosofía trágica; Pedagogía de la elección

 

Introdução

            Os estudos sobre cinema e educação apontam que há muitas maneiras de articulá-los: como ferramenta didática em sala de aula (Napolitano, 2003), como conhecimento sociológico (Duarte, 2002), como linguagem a ser produzida na escola (Bergala, 2008; Fresquet, 2013), como produção de sentidos que substitui, limita, inclui e exclui realidades (Fabris, 2008), como uma pedagogia do olhar que ensina a ver certos temas de outro modo (Marcello; Fischer, 2011), como uma pressão pedagógica que contribui para a circulação de certos imaginários (Almeida, 2017), enfim, como discursos que fazem pensar (Xavier, 2008).

            De maneira geral, esses estudos demonstram que o cinema não se reduz a um dispositivo didático, mas exerce uma possibilidade educativa – embora a priori este não seja seu propósito – ao fazer circularem interpretações possíveis da realidade e de temas da atualidade. Assim, as narrativas ficcionais cinematográficas colocam em circulação interpretações de mundo por meio do mundo do filme, conceito correlato aqui ao “mundo do texto” de Paul Ricoeur (2008), pelo qual o hermeneuta escapa da armadilha da representação ao mesmo tempo em que defende o diálogo entre leitor e texto. A armadilha da representação ocorre quando se crê que um texto – ou no caso um filme – é a própria realidade, portador, portanto, da verdade, e não uma versão possível dentre as múltiplas projeções discursivas sobre a realidade. O que textos e filmes revelam são realidades (im)possíveis, sentidos (des)construídos para interpretar e, sobretudo, compreender a realidade; primeiro, a realidade do texto e do filme (o mundo do texto, o mundo do filme), para então refletir sobre as relações possíveis com o mundo concreto, este da experiência.

            Dados esses pressupostos, o desafio deste artigo é construir uma interpretação do filme de animação Soul (2020), da Pixar, o mais assistido do serviço de streaming Disney+. O IMDb registra 8,1 (de 10) de nota média do público[ii] enquanto o Metacritic registra 83 (de 100) de nota média da crítica especializada. O que nos chama atenção é menos a recepção, de certa forma já esperada dado o histórico precedente dos filmes produzidos pela Pixar, do que o fato de a animação propor uma interpretação de mundo divergente dos imaginários predominantes na atualidade.

            Em linhas gerais, o imaginário neoliberal do ocidente estimula o individualismo e entende que a vida se justifica pelo chamado sucesso pessoal, transformando – pela “corrosão neoliberal de toda forma de existência não monetizável” (Brown, 2019, p. 14) – em perdedores os que não se destacam. No filme, esse imaginário é encarnado inicialmente pelo professor Joe Gardner e seu sonho de sucesso como músico de jazz. Dada a premissa dos primeiros minutos, poderíamos pressupor que o filme enveredaria pelo leitmotiv do acredite no seu sonho, clichê que representa bem o imaginário do individualismo moderno, que emana da liberdade de mercado. Mas não é esse o caminho trilhado, uma vez que a película desloca a questão do indivíduo para a existência, destituindo-a de sentido ou propósitos e investindo na afirmação da vida, aos moldes nietzschianos: “nós, porém, queremos ser os poetas de nossas vidas e, em primeiro lugar, das coisas mais pequenas e comuns” (Nietzsche, 2012, p. 180).

            Nossa hipótese é a de que, ao se contrapor ao imaginário hegemônico do neoliberalismo, seja ela “conservador” ou “progressista”, como detectou Wendy Brown (2019), Soul aproxima-se da filosofia trágica, como proposta por Nietzsche (1983; 2007; 2012; 2016) e Clément Rosset (1989), potencializando narrativas disruptivas que afirmem incondicionalmente a vida. E essa afirmação não é resultado de uma ação individual, mas construída por meio do encontro, das trocas dele derivadas e da escolha, o que confere à animação a possibilidade de ser interpretada também em sua inflexão educativa.

O professor de música e pianista de jazz de meia-idade, Joe Gardner, depois de sonhar a vida inteira em tocar em uma banda reconhecida e, finalmente, conseguir uma oportunidade para isso, morre acidentalmente. Sua alma, porém, não se conforma com tal fatalidade e, em vez de seguir junto às outras rumo a uma diluição iluminada no “além-vida”, escapa para o pré-vida, ou a “Escola da vida”, em que as almas novas, isto é, as que ainda não encarnaram, são preparadas para a existência terrena já com os humores e as aptidões que apresentarão em vida. Confundida com um mentor, à alma de Gardner, nesta espécie de curso preparatório, é designada a alma 22, a qual, há séculos – se é que é possível tratar de séculos nesse cenário que foge ao tempo humano, demasiado humano em que vivemos – consegue driblar, e irritar, os mais renomados instrutores, como Abraham Lincoln, Madre Teresa e Carl Jung, mantendo-se, assim, sem encarnar.

É desse encontro e de suas consequências que se desenrola a maior parte do enredo do filme, o qual, dados os interesses deste artigo, será analisado a partir de duas dimensões: como a narrativa aborda a questão dos propósitos das existências individuais e como o processo educacional pode se desenvolver a partir do encontro e da experiência singular.

O objetivo deste artigo, então, é estudar como essa segunda dimensão, mais pedagógica, deriva da primeira, mais filosófica. Para tanto, após uma breve paráfrase narrativa de Soul, indicaremos os pontos de contato com a Filosofia Trágica, como concebida por Friedrich Nietzsche, em obras diversas, e Clément Rosset (1989). Para o pensamento trágico, o sentido da vida é a própria vida e não algo que se localize fora dela, em um além qualquer ou mesmo na construção racional de propósitos; sendo assim, não haveria nada exterior a ela que a justificasse, que a fizesse valer a pena: viver sob a perspectiva trágica, então, é afirmar essa ausência de ordem, de razão.

Pode parecer um despropósito, à primeira vista, querer enxergá-la em Soul, filme que dá a ver essa extrapolação existencial ao colocar em cena tanto o “pré-vida” quanto o “além-vida”; no entanto, essas instâncias extra-vida operam como hipóteses irônicas que se anulam ao desconstruir o imaginário produtivista de que a vida justifica-se racionalmente por uma missão a ser executada. Essa passagem torna-se fundamental, pelo modo como o enredo está elaborado, para a afirmação trágica da existência – o amor fati nietzschiano. É justamente seu reconhecimento que, a seguir, sustentará uma análise um pouco mais detida a propósito daquilo que a animação dá a pensar acerca do fazer docente e dos processos formativos. Em outras palavras, a constatação de uma realidade indiferente aos sentidos e aos projetos humanos engendra uma educação que não se pode pretender fora da vida e indiferente aos percursos singulares de cada existência – e, ao que parece, é uma educação nesse sentido que, a despeito mesmo de suas intenções, o mentor Joe Gardner acaba proporcionando a 22. Esse encontro educacional e seus efeitos serão interpretados a partir das noções de experiência e escolha, conforme as concebem, respectivamente, Jorge Larrosa (2014) e Almeida (2015). Para o primeiro, o que é da ordem da experiência é pessoal e intransferível, impossível de transformar-se num experimento reproduzível – mais uma vez, apesar de o filme criar mecanismos ficcionais para fazer acontecer essa transferência, eles serão compreendidos, neste artigo, como metáforas para uma possibilidade educativa profundamente ligada ao gesto de pôr em cena as experiências singulares a fim de fazer ver como alguém se torna o que é. Para o segundo, o que é da ordem da escolha é a possibilidade, derivada da experiência, inclusive a estética, de afirmar a vida incondicionalmente, tornando potente justamente as experiências vividas, as quais fazem ver como alguém se torna o que é.

Assim, a partir de uma abordagem hermenêutica (Ricoeur, 2008 e 2013), pretendemos percorrer o caminho filosófico que possibilita, de uma perspectiva trágica da existência, uma compreensão menos pretensiosa – e talvez mais potente – da educação.

O filme

Soul (2020) é a quarta animação dirigida por Pete Docter e produzida pela Pixar, depois de Monstros S.A., de 2001, Up – altas aventuras, de 2009, e Divertidamente, de 2015, filmes cujas narrativas já transitavam por questões ligadas tanto ao mundo infantil quanto à realidade adulta.

O filme começa em uma sala de aula, na qual Joe Gardner se esforça para ensinar a magia do jazz a seus alunos. Enquanto sola ao piano, o professor conta como se apaixonou pelo gênero, quando, ainda garoto, seu pai o levou pela primeira vez para assistir uma apresentação de jazz. Sua vida, no entanto, não parece ter ainda acontecido. Logo no início, ele recebe a notícia de que será efetivado no cargo de professor, que contará com horários cheios, com plano de saúde, com férias, com 13º salário, ou seja, com estabilidade, mas não se anima, e não demora para que saibamos o motivo: seu sonho é tocar em uma banda de jazz – a estabilidade no emprego, então, apenas o afastaria ainda mais desse objetivo. Mas as coisas começam a mudar ainda no primeiro ato, quando Gardner recebe o convite de um ex-aluno para substituir o pianista do quarteto de Dorothea Williams, uma excelente e exigente saxofonista. Após impressioná-la na primeira audição, Joe é aceito e, naquele mesmo dia, deveria voltar ao bar por volta das 19h para o ensaio final antes da apresentação. Entusiasmado, o personagem anda pela rua rumo a sua casa sem prestar atenção no que lhe cerca e, depois de escapar por um triz de três acidentes, acaba caindo num bueiro.

Na cena seguinte, já não há mais Joe, apenas sua alma sendo levada, por uma longa esteira, rumo a uma luz branca em que todas as almas se diluem.

Ainda preso ao compromisso de sua vida, Joe foge da esteira e cai numa outra dimensão: a das almas que ainda vão nascer. Nesse novo cenário, as almas são preparadas para encarnarem – é ali, na chamada “Escola da Vida”, que as personalidades de cada um são engendradas. É ali também que Joe é confundido com um mentor, alguém responsável por ajudar uma alma nova a encontrar sua missão, o que pode ser feito tanto no “Salão da vida”, um amplo espaço em que se encontram todas as coisas da Terra, embora sem as paixões, dores, cheiros e sabores; ou no “Salão da Sua Vida”, o qual reúne as experiências inspiradoras da vida do próprio mentor. Ao encontrar a inspiração, o emblema no peito das almas inatas se converte em um passe, e elas são autorizadas a descer à Terra. A Joe é designada a mentoria da alma 22, uma alma que já está há bastante tempo na Escola da Vida e já driblou mentores como Copérnico, Immanuel Kant, Maria Antonieta, Abraham Lincoln, Carl Gustav Jung, Mohamed Ali e Madre Teresa de Calcutá. 22, quando sozinha com Joe, argumenta que ele será mais um fracassado em tentar enviá-la à Terra – todos os outros, afirma, já haviam mostrado seus grandes feitos e as grandes questões da vida, mas, a ela, nada disso jamais interessou. Seu desejo é não nascer e ficar ali, no pré-vida, onde já tem sua rotina e conhece tudo.

Gardner, então, conta a 22 que não é um mentor, mas 22, crendo se tratar apenas de psicologia reversa, obriga-o a entrar no “Salão da Sua Vida” para comprovar o que diz. É aí, ao assistir a passagens do que viveu, que Joe se dá conta de que sua existência fora uma grande ilusão. Todas as recusas que ouviu se reuniam ali e, de não em não, a exibição de sua solitária vida se findava com seu corpo moribundo no leito do hospital. Tudo poderia ser diferente, acredita ele, se lhe tivesse sido possível tocar, naquela noite, com Dorothea Williams. É então que ele propõe a 22 ajudá-la a encontrar sua missão em troca do passe para que ele pudesse voltar a seu corpo.

Mesmo com o trato firmado, porém, 22 não consegue encontrar nada que a inspire. Ocorre-lhe então procurar ajuda. Há, entre a vida e o além, uma zona trevosa onde ficam as almas obcecadas, as quais já deixaram seus corpos ainda em vida. Lá, encontram Bicho Grilo, personagem que, por meio da meditação, consegue transitar por ali. Bicho Grilo diz a eles que pode tentar mandar Joe de volta, mas, para isso, será preciso que o pianista medite. Por meio desse mergulho interior, ainda que a contragosto, Joe consegue ver sua cidade, o hospital em que se encontra e, finalmente, seu próprio corpo estirado no leito e sendo submetido a uma terapia com um gato. Ele se entusiasma e, mais uma vez desastrado, acaba caindo e empurrando 22 junto consigo – acontece, porém, que sua alma encarna no felino, e é 22 quem ocupa seu corpo.

A animação se vale, a partir de então, de uma longa tradição do duplo, que se inicia com o Anfitrião de Plauto, passa pela Comédia dos Erros de Shakespeare, encontra na literatura de Hoffmann e Edgar Allan Poe as melhores expressões, embora numa inflexão de horror, e se atualiza no cinema, em filmes dedicados tanto ao duplo, de maneira mais abrangente, quanto mais especificamente a essa modalidade da troca de corpos, em comédias como Se eu fosse minha mãe [Freaky Friday] (1976) e a brasileira Se eu fosse você (2006).

O segundo ato do filme se desenrola, então, com as tentativas de Joe de recuperar seu corpo a tempo de participar da apresentação noturna. Para tanto, Joe e 22 são obrigados a dar atenção a questões triviais da vida, como ir ao barbeiro, experimentar um pedaço de pizza, um pirulito ou um pão doce, contemplar a queda das folhas das árvores no outono, estabelecer uma conversa franca com a mãe e cultivar a música: a música que ainda inspira uma talentosa aluna de Joe e a música que se faz nos metrôs, na rua, por artistas comuns. Toda essa banalidade, porém, toca profundamente 22, que, à hora de abandonar o corpo de seu mentor, recua receosa de deixar de experienciar a simplicidade da vida ordinária. Gardner, porém, encarnado no gato, persegue-a e, ao alcançá-la, voltam para a pré-vida. Surpreendentemente, o emblema no peito de 22 já se tornara passe, o qual é tomado por Joe, que consegue, enfim, retornar à sua grande noite.

O terceiro ato se inicia com a apresentação, que, de fato, o arrebata. Mas logo acaba. E ao fim, já à saída do clube de jazz, por volta do minuto 75 do filme, o músico estabelece o seguinte diálogo com Dorothea Williams:

Joe: então, o que vem agora?

Dorothea: A gente volta amanhã e faz tudo de novo.

(Joe parece abatido)

Dorothea: O que foi, Joe?

Joe: É que eu venho pensando nesse dia faz… Bom, a vida inteira. E achei que ia ser diferente.

Dorothea: Tem uma história sobre um peixe. Esse peixe foi até um ancião e disse: “tô procurando um negócio, um tal oceano”. “O oceano?”, o ancião falou. “Você está no oceano.” “Isso?”, disse o peixinho, “isso aqui é água; o que eu quero é o oceano!”

 

Pensativo, Joe volta para casa, senta-se ao piano, e encontra no bolso do paletó todos os objetos que haviam tocado 22: a borda da pizza, o pirulito roubado na barbearia, a folha da árvore, um carretel de linha com que a mãe lhe havia costurado o terno, o pão doce. Embalado por isso, começa a compor uma melodia; à medida que a música se produz, misturam-se aos objetos de 22, convertidos já em insígnias, as memórias de toda a vida do próprio Joe: os banhos que a mãe lhe dava quando bebê, as vezes em que escutava discos com o pai, a brisa no rosto ao andar de bicicleta, o toque frio das ondas ao pôr os pés no mar, a última vez que tocou piano para seu pai, e, no meio disso tudo, uma conversa com 22. A alma, extasiada enquanto ocupava seu corpo, lhe havia perguntado se ele não acreditava que “olhar o céu” pudesse ser o propósito dela. “Isso não é um propósito, 22”, respondera ele à ocasião, “isso é a vida”. Nesse instante, ele toma consciência de que o sentido da vida não é outra coisa que a própria vida e, voltando a tocar, consegue acessar, novamente, a zona das almas obcecadas desvinculadas dos próprios corpos – essa zona, já lhe havia alertado Bicho Grilo, também é convidativa àqueles que “viajam”. Lá, reencontra o maluco beleza e descobre que 22 virara uma alma perdida: tecnicamente, ela já havia vivido, mas se descolara do corpo e agora não conseguia retornar.

Quando a encontra, não depois de alguma dificuldade em apanhá-la e fazê-la escutá-lo, descobrem juntos que a vida não tem propósito. De posse de seu passe, 22 pode, finalmente, encarnar; a Joe, por sua vez, cabe a diluição. No entanto, já na esteira rumo à luz total, Joe é abordado por uma das criaturas responsáveis pela Escola da Vida. Motivar e inspirar não é tarefa pouca, diz-lhe a cubista figura, ainda mais uma alma como a 22. É por isso que, burlando o sistema, dão-lhe a oportunidade de voltar.

A cena seguinte, última do filme, mostra Joe saindo de casa, inspirando com gosto o ar, com a certeza de que, dali para frente, viveria, ainda que sem objetivo, cada segundo de sua vida.

Da negação à afirmação: o trágico em Soul

De um lado, a negação total, a recusa à vida; de outro, um esvaziamento: a dupla de protagonistas de Soul, ainda que de modos diferentes, começa a narrativa rejeitando a existência. Mas detenhamo-nos sobre cada uma dessas renúncias.

A alma 22, ainda que não o saiba, é herdeira de Sileno. Na versão do mito narrada por Nietzsche (2007, p. 33), Sileno, mestre de Dioniso, desperta o interesse de Midas, seduzido pela fama de sua sabedoria, que ordena que o tragam para que responda à sua pergunta sobre o que seria melhor e preferível na vida. Em tom sarcástico, Sileno responde: “estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer!” A 22, porém, ainda era possível não nascer, e é essa escolha que ela defende enfaticamente e de todas as formas. Nenhuma das conquistas humanas, nenhuma das histórias exemplares dos indivíduos da espécie a atraía; na balança, misturados aos aborrecimentos, os orgulhos da humanidade não pesavam o suficiente para fazê-la desejar viver.

Estamos diante, portanto, de uma negação niilista, cujo estado psicológico, nas palavras de Nietzsche (1983, p. 380), em seus fragmentos póstumos, afeta, entre outras categorias do pensamento, a finalidade: “a desilusão sobre uma pretensa finalidade do vir-a-ser como causa do niilismo”, isto é, busca-se nas ocorrências da vida um sentido que não está nela, uma finalidade que, sente-se, não pode ser alcançada. Essa “desilusão” anestesia a vontade, torna-a menos potente, como se vê no desinteresse de 22 de fazer parte da vida.

Por outro lado, Joe vive, quer voltar a viver e está mesmo disposto a tudo para recuperar sua vida. No entanto, à medida que a narrativa avança, torna-se patente que sua vontade não é de vida, mas dirigida ao não vivido, ao momento em que atingiria o ápice de sua existência, à realização da finalidade de sua vida. Toda sua existência, aliás, havia se dirigido a esse momento – tudo o que um dia foi presente encontraria sua justificativa, sua razão de ser, nesse ápice. Joe, em outras palavras, almejava não a vida em si, mas aquilo que lhe conferisse um sentido, uma finalidade, que lançasse luz sobre sua pretensa razão de existir. Eis outra forma de negação: em vez de uma recusa absoluta, uma condicional – a vida só se justifica caso cumpra sua finalidade, sua missão, sua razão.

Por essa postura – de condicionar o valor da vida a uma finalidade – Joe Gardner passa distraído por essa existência ordinária: a música não intensifica o real vivido pelo personagem, mas se reveste de uma aura que o distancia do dia a dia. Seu sentido verdadeiro, real, acredita ele, somente poderá ser acessado quando a grande oportunidade chegar, quando o sonho se realizar, quando for um músico reconhecido.

Ocorre aqui, então, uma espécie de deslocamento: do aqui e do agora efetivamente vividos subtrai-se qualquer sentido, o qual é deslocado para um alhures e para um depois, uma finalidade. Essa categoria de pensamento, para usarmos uma expressão de Nietzsche, perfila-se ao imaginário neoliberal, que subordina a finalidade escolar e universitária à formação profissional e a profissão ao poder de consumo, que passa a ser então não só a finalidade da existência como sua medida de valor. Em nome da proteção da esfera pessoal, o neoliberalismo desmantela a sociedade e destrona a política, misturando tradicionalismo moral e liberdade de expressão, termos contrários, mas que se tornam intercambiáveis na gestão da finalidade – produtivista, consumista, individualista – da vida. A consequência disso, na interpretação de Wendy Brown (2019), é o niilismo e o ressentimento. Ao não se realizar a finalidade prescrita pelo imaginário dominante, surge o sentimento de fracasso profissional, financeiro etc., que passa a ser o fracasso integral da própria vida. Nesse sentido, vale para Joe Gardner, assim como para muitos, o que Nietzsche (2016, p. 49) escreveu sobre o modo como Paulo coloca o “centro de gravidade não na vida, mas no além”, que é o mesmo que “no nada”.

Essa postura adotada pelos protagonistas no início da animação – negação da vida e aprovação condicionada à finalidade – pode ser definida como anti-trágica, o que requer que compreendamos o que vem a ser a filosofia trágica, já que o final da narrativa coincide com a escolha pela afirmação trágica. Como se chega a essa afirmação?

Em linhas gerais, o trágico tem a ver com a ausência de sentidos do real. Isso significa que a realidade como a conhecemos é uma percepção simbólica, uma criação, uma sucessão de convenções cuja origem é o acaso; portanto, não há causa, finalidade ou princípios exteriores que a justifiquem, a parametrizem ou a julguem. Nas palavras de Nietzsche (2012, p. 126):

O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos. [...] Guardemo-nos de atribuir-lhe insensibilidade e falta de razão, ou o oposto disso; ele não é perfeito nem belo, nem nobre, e não quer tornar-se nada disso, ele absolutamente não procura imitar o homem.

 

Segundo o filósofo, o mundo como o experimentamos diz sempre muito mais a respeito de nós mesmos do que do próprio mundo. O real é indiferente aos sentidos com que o tentamos capturar. Sendo assim, todas as grandes narrativas que conferem ordem e coerência à existência são invenções humanas – não há missões inatas, não há um além que julgará nossas ações. No entanto, a sensação de desamparo decorrente de uma absoluta desimportância humana não se converte necessariamente em tristeza, ressentimento, em niilismo passivo. O sujeito trágico, frente a essa total indiferença do real, aprova a vida. Clément Rosset (1989, p. 51) afirma que o único gesto que pode ser entendido como um acontecimento, o único gesto realmente potente, sob a perspectiva trágica, é a aprovação, aprovação dessa vida destituída de sentido externo a ela, aprovação que nos permite reconhecermo-nos criadores do que existe. “A existência do mundo só se justifica como fenômeno estético”, já nos alertara Nietzsche (2007, p. 16) e, de certa forma, levar a sério a hipótese de que os sentidos não vêm de fora da existência, mas são nela engendrados, coloca-nos na posição de artistas criadores desses sentidos. Nietzsche (2012, p. 167) faz o elogio dessa condição:

[…] vamos deixar em paz os deuses e também os prestativos gênios e satisfazer-nos com a suposição de que nossa própria habilidade prática e teórica em interpretar e arrumar os acontecimentos tenha atingido seu ponto alto. Tampouco vamos ter em bem alta conta essa destreza de nossa sabedoria, se por vezes nos surpreender muito a maravilhosa harmonia que surge de nosso instrumento: uma harmonia que soa bem demais para que ousemos atribuí-la a nós mesmos. De fato, aqui e ali alguém toca conosco – o querido acaso: ele eventualmente guia a nossa mão, e a mais sábia providência não poderia conceber música mais bela do que a que então consegue esta nossa tola mão.

 

É a mão humana, dançando com o acaso, que cria as belas harmonias que escutamos e que conferem sentido ao que vivemos. Desse modo, a experiência estética e a estética da experiência confluem para uma pedagogia da escolha, como possibilidade de aprovação da vida, com tudo o que há de efêmero, estranho e imprevisível (Almeida, 2015). Não à toa, a paisagem sonora do filme é o jazz, gênero musical calcado na improvisação que torna única cada execução de uma música, que se desenvolve a partir de variações de um tema. É bem verdade que a improvisação não ocorre sem regras, e que há frases melódicas e escalas que orientam o improviso, além de outras convenções musicais, mas como o próprio nome diz, são convenções, isto é, encontros sonoros que são mais ou menos agradáveis aos ouvidos, e que dependem de como os músicos da banda vão promovê-los ao decidir a próxima nota no próprio momento de executá-la. O jazz, então, ao abrir mão de uma finalidade previamente estabelecida – posso executar a seguir um lá bemol ou um mi bemol – se mistura à vida, no que ela pode ter de trágica: cada instante vivido em sua singularidade própria, ainda que a partir de certas convenções – ou modulações, se quisermos aproveitar a metáfora musical.

Desse modo, ainda que iniciem suas trajetórias com uma recusa à existência, Joe Gardner e 22, ao longo da narrativa, passam a aprovar a existência sem condicionantes. O motivo para essa adesão é a vida mesmo, em sua banalidade. No caso de 22, é interessante observar como a mudança de vontade em relação ao viver ocorre justamente quando seu mentor é um sujeito comum – Kant, Jung, Madre Teresa, nenhum desses indivíduos ilustres, responsáveis por empreendimentos notáveis para a história da civilização, havia sido capaz de inspirar a jovem alma, e o interessante aqui não é desqualificar essas figuras, mas perceber como a narrativa fílmica aponta justamente para o fato de que, ao tentarem estimular 22 para os grandes valores pretensamente universais, elas pouco diziam sobre a vida ela mesma.

Com Joe, o processo é um pouco diferente, mas também estimulado pelo que a vida tem de ordinário. Sua negação, vale lembrar, não era total, era condicionada: a vida passaria a fazer sentido quando entrasse num quarteto de jazz. Com o desenrolar da história, sua percepção muda, e o sentido se mostra em tudo o que o cerca – o sentido da vida é a própria vida. Sua aprovação, ao final, é tamanha que, mesmo sabendo dessa indiferença do universo, mesmo sabendo que tocar na banda não o modificaria substancialmente, mesmo sabendo que, ao final, quando tudo acabasse, independentemente do que fizesse durante sua existência, seria diluído na mesma luz que qualquer outra alma (metáfora para o nada da existência), mesmo com tudo isso – ou, melhor, por conta de tudo isso – resolve viver, aderindo ao que há mais comum e simples na vida.

No aforismo 341 de A gaia ciência, Nietzsche (2012, p. 205) afirma que o maior de todos os pesos é o “eterno retorno”: caso soubéssemos que tudo o que vivemos voltaria não uma ou duas, mas incontáveis vezes, sem mudança alguma, sem nenhum grande acontecimento diferente, seríamos capazes de desejar esse retorno? Qual deveria ter sido a vida daquele que ficaria feliz com essa repetição infinita? Joe Gardner responde, ao final de Soul, que uma vida banal poderia justificar, por si só, tal aprovação, pois o valor da vida é dado pela própria vida.

Essa afirmação, aliás, é construída no filme também a partir do Jazz. A partir de um tema – o acaso e a indiferença, talvez – os personagens percebem que o que faz a vida são as improvisações, o que foge de planos prévios, o que nem sempre sabe a que pode chegar. “Jazzando”, aliás, na narrativa, é um neologismo construído como sinônimo de “vivendo sem objetivo”, que é uma das divisas de Cioran (2001, p. 21): “viver, realmente, é viver sem objetivo”.

Ao reconhecer isso, Joe passa a compor a partir dessa banalidade, e não como fuga dela. A vida deixa de ser regida por uma finalidade – uma grande noite de exibição musical – e passa a ser apreciada pela potência do que é vivido: “o mundo parece apresentar, para os insatisfeitos, um catálogo infindável de razões para desaprová-lo”, enquanto, no imaginário trágico, “a aprovação exige que se descartem as expectativas para o gozo pleno do que aí está. Não se trata de evitar o desejo, dado que o desejo é sempre insaciável, mas de desejar tudo o que se tem, de modo a atingir a plenitude poética da vida” (Almeida, 2017, p. 174). Soul, ao final, parece também afirmar essa plenitude. Amor fati, escreveria Nietzsche, concretizando a máxima de uma aprovação da existência em sua dor e em sua delícia, em sua insignificância.

O encontro, a experiência e a escolha: uma educação jazzada

 

A perspectiva trágica, em Soul, não se apresenta, todavia, apenas como uma proposição de mundo, mas também como orientadora (ainda que isso se mostre somente a posteriori) de uma relação pedagógica. Nesse sentido, é bastante oportuno compreender como a ficção dá a ver essa relação fundamentada no trágico para pensar as possibilidades de uma educação que também, se não se fundamenta, ao menos leva em conta essa condição.

Em primeiro lugar, é incontornável para a reflexão sobre os aspectos educacionais do filme a nomenclatura conferida ao pré-vida: “Escola da Vida”. Tal escola é instituída como simultaneamente deslocada do mundo e preparatória para ele. Dessa forma, o mundo que ela toma em seus domínios é atenuado, desativado: das coisas, são suprimidas as paixões que lhe seriam características, e os sabores, para que possam ser experimentadas pelas almas jovens em busca de suas aptidões e de suas inspirações. O caráter preparatório, assim, implica uma dissociação em que, de um lado, fora da escola, fica a vida ela mesma, com toda sua potência arrebatadora, e, de outro, em segurança, essa vida pedagogizada que é despotencializada pela instituição com vistas a oferecê-la aos primeiros contatos daqueles que ainda não a podem vivenciar em plenitude. Segura, porém, ela deixa de ser a própria vida, e, a esse respeito, as duas cenas em que se mostra a relação de 22 com um pedaço de pizza são bastante ilustrativas. Na primeira, ainda na “Escola da Vida” e, mais especificamente, no “Salão de Todas as Coisas”, ela conhece a pizza, mas, ao comê-la, não sente o gosto. Não há sabor ali. Sabe-se da pizza, mas não se saboreia a pizza. Saber sem sabor, insosso. Na segunda cena, já no corpo de Joe e na Terra, a personagem começa a se sentir irritada e a perceber movimentos estranhos em sua barriga. Joe deduz que se trata de fome e busca para ela uma fatia de pizza – 22 se encanta. Na vida, saber a pizza é saboreá-la, e 22, ao colocá-la na boca, sente o gosto do queijo derretido, da calabresa, da massa, sente sua textura, engole-a, alimenta-se; sente o conforto recobrado, a potência da energia.

Masschelein e Simons (2014), ao recuperarem as origens etimológicas do termo “escola”, voltam-se ao grego skholé, que significa “tempo livre”, e, a partir daí, argumentam que a tecnologia escolar nasceu com o objetivo de inventar um tempo e um espaço livres das coerções e lógicas tanto do mundo doméstico quanto da realidade social. Suspendido o lado de fora, a escola seria capaz de oferecer uma vivência coletiva e comum entre os que a ocupassem independentemente das posses, dos sobrenomes, do gênero, da classe, da cor. Essa suspensão, todavia, não significa, para os autores, uma indiferença da escola em relação ao mundo em si e às suas configurações e mazelas. O mundo é convidado a se transformar em objeto de estudo no interior da sala de aula e, por isso, é, por um lado, desativado, desligado de suas implicações reais: um motor, dentro da escola, não serve para mover um carro, mas para ser desmontado, estudado peça a peça, exemplificam eles. Por outro lado, é também tornado comum, colocado ao alcance de todas as mãos e de todos os olhos e não só daquelas e daqueles a quem algum privilégio de nascença, fora da escola, tenha garantido o direito de vê-lo e de tocá-lo. É isso, defendem os autores, que configura a escola como a primeira instituição com vistas à igualdade; e é isso também, continuam, que fundamenta muitos dos ataques contra ela – e uma das mais comuns dessas invectivas é a acusação de que os conteúdos escolares, exatamente porque atenuados, porque dissociados da prática, tornariam a escola inútil. Nesse sentido, a um olhar apressado, talvez a sugestão pedagógica apresentada em Soul pareça alinhada a tal ataque, afinal, é somente quando deixa de lado a “teoria” e a preparação e parte, finalmente, para a vida, que 22 aprende, de fato, o que é viver.

Observando, todavia, o filme com mais cuidado, notaremos que a narrativa constrói a mudança da vontade de 22 a partir da experiência que ela tem ao ocupar o corpo de Joe, um sujeito banal. Mais do que isso: essa mudança se desencadeia a partir das experiências de contemplação, experiências cotidianas, conversas corriqueiras, ou seja, não é preciso que ela vivencie um grande acontecimento na existência de Joe para que comece a querer viver. O que está em jogo aí é, justamente, uma existência despropositada, insubmissa aos desígnios produtivos. Talvez, então, valha mais a pena investigar as proposições pedagógicas do filme não a partir da escola enquanto instituição, mas sim do encontro casual entre professor e aluno e da noção de experiência.

A relação entre Joe e 22, convertidos desde já em mestre e discípula, ocorre ao acaso. Tivesse Joe morrido um dia antes, provavelmente não se rebelaria contra a interrupção abrupta de sua vida e jamais tentasse fugir da aniquilação final. Tivesse morrido depois da apresentação com Dorothea Williams, idem, já que percebeu que tocar no quarteto não era algo que fundamentalmente lhe dava ganas de viver. Sua morte, no exato instante em que ocorreu, foi uma contingência assim como o foi, dentre todas as etiquetas identificadoras, pegar justamente aquela que seria destinada ao mentor designado a 22. O encontro entre essas duas figuras, então, não responde a uma necessidade, a um plano qualquer.

Seus efeitos tampouco poderiam ser previstos. Na verdade, Joe, tendo vivido como professor de música, poderia ter ensinado a 22 as notas, as partituras, a história dos instrumentos e das melodias; poderia ter seguido um roteiro similar àquele que seguia em suas aulas terrenas. Mas não é isso que ocorre. Do encontro, algo acontece, algo de excepcional e que talvez não encontre explicação mais complexa e verdadeira do que a tautologia a que Montaigne (2002) recorre quando precisa se justificar acerca de sua amizade com La Boétie: houve amizade, “porque era ele, porque era eu”, escreve – e haveria outra razão para o que ocorre com Joe e 22 na animação?

O filme, então, coloca em cena uma noção pouco apreensível pelos planos, pelas metas, pelos currículos em educação: o encontro. Rosset (1989), aliás, elenca o encontro como uma das noções ligadas ao acaso, o qual, por sua vez, diz respeito exatamente àquilo que a nada obedece. Na escola, evidentemente, professor e aluno não surgem do nada, como que caídos de paraquedas, tal qual ocorre em Soul – ambos são resultado de uma imensa cadeia causal que engloba legislações, vontades, obrigações, formações cursadas ou exigidas, e nada disso pode ser negligenciado para que um professor X qualquer e um aluno Y qualquer estejam numa manhã, numa tarde ou numa noite qualquer ocupando uma sala de aula qualquer. Todavia, não há nenhum elemento dessa cadeia causal que justifique serem exatamente X e Y em um horário e em um CEP específicos a se encontrarem. E, independentemente disso, esse encontro pode ser fundamental para as existências que decorrerão a partir daí.

Contudo, ainda que o encontro seja fortuito, há algo que ele mobiliza que não pode ser ignorado: a experiência. É essa estética da experiência que possibilitará o acontecimento, no sentido trágico do termo, que é a aprovação incondicional da vida.

Larrosa (2014), a esse respeito, propõe que pensemos a educação a partir do par “experiência/sentido”. Para ele, “pensar não é somente raciocinar ou calcular ou argumentar, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece” (p. 16). E é somente quando abertos ao que nos acontece que podemos, de fato, experienciar algo; para tanto, escreve Larrosa, é necessária certa porosidade, certa passividade. O sujeito moderno, afirma o autor, se caracterizou por uma postura ativa diante do mundo, por querer civilizá-lo, transformá-lo. Tão cheio de si e tão crente em si era esse sujeito, que não havia mais espaço para o que não fosse ele mesmo. Já o sujeito da experiência, como o concebe o professor catalão, é “como um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (p. 25). De certa forma, é essa a experiência que se coloca em cena em Soul. 22 experiencia o corpo de Joe e, ao fazê-lo, deixa-se tocar pelo que há de banal na vida do pianista, e essa banalidade afeta, inscreve marcas, faz viver. Larrosa, no entanto, nos alerta para a impossibilidade de a experiência ser transferida, ensinada:

O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). Por isso, também o saber da experiência não pode beneficiar-se de qualquer alforria, quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria (Larrosa, 2014, p. 32).

 

A ficção, nesse sentido, provoca: em que medida, enquanto professores, somos capazes de dar a ver nossas experiências? Embora a formação profissional enfatize conteúdo e técnica, o primeiro em referência ao que se ensina e a segunda a como se ensina, talvez seja válido incorporar também a experiência. Nesse sentido, as obras de ficção, como a literatura e o cinema, podem justamente propiciar experiências, pois as obras artísticas não se dirigem apenas ao intelecto, provocam também emoções, fazem pensar, sentir e, de certa maneira, viver, desde que se constituam, de fato, uma experiência, no sentido dado por Larrosa. São essas experiências de vida, mais do que um sentido vindo de fora, que convocam à escolha: queremos viver o que vivemos? Estamos aptos a aprovar a vida incondicionalmente? Não simplesmente suportar, mas amar nosso destino e o que nos acontece? É este o convite que Soul nos faz: vamos jazzar?

Considerações finais

O artigo procurou mostrar como a narrativa de Soul se alinha a princípios fundamentais da Filosofia Trágica, conforme a concebem Friedrich Nietzsche e Clément Rosset. Tal pensamento fundamenta-se, em linhas gerais, na hipótese de que o real é destituído de sentidos, ou seja, tudo aquilo de que, enquanto humanidade, valemo-nos para significá-lo, princípios e finalidades externos ao próprio real vivido, são tão somente, invenções humanas. Sendo-as, não há uma justificativa universal e absoluta para a vida. Diante disso, são muitas as formas de negação do que existe: adere-se a uma finalidade qualquer, como se pudesse justificar a vida; evita-se existir (como fazem 22 ou os suicidas); ilude-se; apela-se a um condicionante (quando isso acontecer, se isso acontecer) etc.; no entanto, só há uma forma de afirmar a vida: incondicionalmente. Diante da insignificância do real, frente à sua absoluta indiferença ao que é humano, aprova-se, ainda assim, o viver? Ao responder sim a essa pergunta, chega-se à postura trágica como a entendem os autores. É essa a escolha que a filosofia trágica põe em questão.

Em decorrência dessa concepção trágica, este artigo também colocou luz sobre as sugestões pedagógicas trazidas pela obra. Para tanto, construímos uma oposição entre uma compreensão tradicional da escola como um lugar de preparação para o mundo e uma educação pensada a partir do encontro, da experiência e da escolha. Enquanto a primeira despotencializa e atenua o que existe em nome de um primeiro contato seguro com o real, a segunda se volta ao que, a despeito de todos os programas curriculares, de todas as estratégias de ensino, ocorre num encontro singular entre professor e aluno.

No filme, a ideia de um grande propósito para o viver, definido rigidamente de antemão, num imaginário neoliberal e produtivista, dá lugar a uma vida que ganha sua razão de ser à medida que é vivida, de improviso – e não um improviso como excepcionalidade, mas como condição fundamental. A educação que daí emerge não é, por fim, uma educação que suprime do vivido o que se aprende, mas que vive o que lhe faz sentido.

Por fim, a argumentação filosófica que aqui se desenvolveu a partir da leitura hermenêutica de um filme de animação, almejou contribuir para as pesquisas em cinema e educação, por entender que as narrativas de ficção engendradas por esta arte – embora não apenas por esta arte – são fundamentais, ao lado dos demais saberes, para a formação humana.

 

Referências

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Notas



[i] Esta pesquisa apresenta resultados de pesquisa financiada pela FAPESP na modalidade Auxílio Regular e pelo CNPq, na modalidade bolsa produtividade. PQ-2.

[ii] Em junho de 2021.

 

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