Corporeidade e jogo como linguagem

Corporeality and game as language

 

Elizara Carolina Marin

Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil

elizaracarol@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-9031-3144

 

Recebido em 15 de julho de 2021

Aprovado em 01 de dezembro de 2021

Publicado em 31 de maio de 2022

 

RESUMO

Trata-se de uma resenha crítica sobre o livro Corporeidade, jogo, linguagem: A Educação Física nos anos iniciais do Ensino Fundamental de autoria de Mauro Betti e Pierre Normando Gomes-da-Silva, professores universitários proeminentes da Educação Física brasileira. Faz parte da Coleção Docência em Formação, publicado em 2018 pela Editora Cortez.

 

Palavras-chave: Educação Física; Corporeidade; Jogo.

 

 

ABSTRACT

This is a critical review of the book Corporeidade, jogo, language: Physical Education in the early years of Elementary School written by Mauro Betti and Pierre Normando Gomes-da-Silva, prominent university professors in Brazilian Physical Education. It is part of the Teaching in Training Collection, published in 2018 by Editora Cortez.

 

Keywords: Physical Education; Corporeality; Game.

 

 

            O livro intitulado Corporeidade, jogo, linguagem: a educação física nos anos iniciais do Ensino Fundamental faz parte da Coleção Docência em Formação, publicado em 2018 pela Editora Cortez, de autoria de Mauro Betti e Pierre Normando Gomes-da-Silva, professores universitários proeminentes da Educação Física brasileira. A sustentação teórica das pesquisas e publicações em livros, capítulos e artigos dos autores estão pautados na semiótica, em Betti, fundamentalmente, na correlação da Educação Física com a sociedade e com a escola e, em Gomes-da-Silva, com o jogo, o brincar e a Pedagogia da Corporeidade.

O livro apresenta uma sistematização de ensino para a Educação Física para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, dos 6 aos 10 anos de idade. É um convite à sentir, reagir e refletir sobre “o que”, “por que” e “como” ensinar Educação Física com o eixo na área das linguagens.

A inclusão da Educação Física na “Área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias”, já está expressa nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 2000) e na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018). Não há novidade nisso. A inovação está na fundamentação por meio da proposta teórica metodológica denominada de Pedagogia da Corporeidade. Inovadora no âmbito da Educação e da Educação Física Escolar, em particular, porque, pautada na semiótica de Charles Sanders Peirce (1990), compreende o movimento humano como uma situação de linguagem, onde ocorrem as condições, os processos e a multiplicação de signos, sendo que a metodologia de ensino-aprendizagem, de organização dos conteúdos, de formação de professores e do cuidado com o bem-estar estão descritos a partir das situações de jogo.

A obra, composta por quatro capítulos, foi projetada como um texto aberto para instar a interação, a construção de novos significados pelo professor ao intervir na sua aula, completando a “escritura” do ensinar, que é pessoal e coletiva, ao mesmo tempo. A tessitura fundante está na compreensão do conhecimento como um processo contínuo de produção de sentidos, portanto, sempre inconcluso e provisório.

Três categorias inter-relacionadas são centrais na Pedagogia da Corporeidade, como o título da obra indica: corporeidade, linguagem e jogo. O primeiro capítulo, de caráter mais epistemológico, aborda a compreensão de corporeidades e de linguagens. A afirmação, desde o princípio apresentada, “não é o corpo ou a mente que aprende, mas a pessoa na circunstância” (BETTI; GOMES-DA-SILVA, 2018, p. 45), assinala que a condição existencial humana, para além das dualidades (corpo e mente, teoria e prática, biológico e sociocultural, por exemplo), desenvolve-se num continuum ininterrupto de interações entre externo provocativo (meio ambiente, objetos, pessoas, conhecimentos etc.) e interno respondente (sensações, raciocínios, memórias, crenças etc.). Portanto, para Betti e Gomes-da-Silva (2018, p.45), “corporeidade é o modo frequente de estabelecer essa interação agente-ambiente. Sabendo que essa interação é externa, quando realiza a ação, e interna, quando internaliza as experiências fornecidas pelos modos de ação”. Essa tendência habitual de interação com o mundo é processo de modelização tanto socioambiental, histórico-político, quanto percepto-motor, afetivo-psíquico, enfim, civilizatório.

A simbolização, a representação e os conceitos são compreendidos como decorrentes da situação educativa e, na especificidade da Educação Física, conforme enunciam, nas “situações de movimento” postos em ação na relação com os outros, com os materiais, com o ritmo da atividade e com o espaço-tempo da aula. Nas circunstâncias, os processos cognitivos dos aprendentes são desafiados, são convocados a dar respostas e, nesse fluxo, reorganizam-se como corporeidade. Portanto, a concepção de aprendizagem aqui não é cognitivista, construtivista ou sociointeracionista, mas existencial (como produção de si mesmo e de investigação do real circundante).

Desse modo, o foco do ensino da Educação Física pela Pedagogia da Corporeidade, mesmo atentando aos significados socioculturais e biodinâmicos, está nas “situações de movimento” (SM), no engajamento do aprendente nessa situação, processando informações e conferindo a validade funcional das respostas no instante do acontecimento, o que é chamado de semiose da SM. A interação assume dimensão essencial, porque diz respeito ao envolvimento dos alunos, decifrando e subjetivando nas circunstâncias, gerando significações, singularizando-se e generalizando-se, enfim, conhecendo a realidade e expandindo-se.

Por isso, linguagem aqui, é compreendida como processo de mediação e autogeração, contiguidade entre objetividades e subjetividades, conhecimento do real e autoconhecimento, configurando corporeidades. Para utilizar as palavras dos autores, linguagem é a “capacidade humana de produzir sentidos, de articular significados sociais e pessoais, e compartilhá-los conforme as necessidades e experiências da vida em sociedade” (BETTI; GOMES-DA-SILVA, 2018, p.39). Por esse viés, a linguagem, objeto da Educação Física, são as “situações de movimento”, e, envolve, necessariamente, experiências corporais de percepção-ação-respiração, onde o professor e alunos dirigem-se ao “sentir”, “reagir” e “refletir” às circunstâncias e, portanto, reorganizarem-se como ser, como existentes corporais mais realizados. Nessas situações de movimento, professor e alunos são aprendentes do ambiente educativo que foi autogerado.

No segundo capítulo, Betti e Gomes-da-Silva dedicam-se à terceira categoria, ou seja, ao jogo, como conteúdo para trabalhar os processos de corporeidade e linguagem do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. O jogo é adotado como pivô da aprendizagem por seu potencial de imprevisibilidade, de solicitação de imersão na circunstância, de apelo socioemocional e de inteligência criativa. Num misto de tensão e alegria, o jogo provoca sucessivas reações dos jogadores, atesta a condição de inacabamento da corporeidade, do conhecimento e dos processos de aprendizagem.

Os jogos são tomados quanto à forma – “[...] como estruturas de conversação (processos comunicativos), já que em todos eles os jogadores estão sempre se pondo em diálogo, seja consigo mesmo, seja com o meio, seja com o outro jogador” – e ao conteúdo “[...] como gêneros da cultura lúdica” (BETTI; GOMES-DA-SILVA, 2018, p. 64). Os autores propõem gêneros de jogos, que gravitam temas socioemocionais, sensório-motores e cognitivos. Cada tipo de interação estabelecida com o meio ambiente (materiais, físico-estruturais), com o ajustamento postural e o posicionamento nos espaços, com os ritmos temporais de aulas e com as representações culturais, designam gêneros de jogos, sendo eles: sensoriais, ambientais, simbólicos, rítmicos, integrativos, de construção, de exercício, de luta, de invasão, de rebatida, de marca, de precisão e de raciocínio.

Num pressuposto de diálogo com o professor-leitor/escritor, ainda no segundo capítulo, debruçam-se às possíveis experiências ou efeitos que cada gênero favorece e à exemplificação de jogos com seus princípios didáticos, contribuições para a organização do trabalho pedagógico, visando alargar as experiências de ensino e de aprendizado dos alunos e dos próprios professores nos campos semânticos: emocionais, energéticos e lógicos.

A organização da aula a partir da Pedagogia da Corporeidade, foco do terceiro capítulo, foi pensada a fim de favorecer experiências do “sentir”, “reagir” e “refletir” como processo de linguagem. Como encontro comunicativo, a aula é regida pela possível convergência entre a intencionalidade pedagógica do professor, a volição dos alunos e as condições ambientais (que abrange estrutura física, material didático, organização e funcionamento escolar, cultura de gestão institucional e políticas públicas).

Nos termos da Pedagogia da Corporeidade, a aula envolve três modos comunicativos e interdependentes. A Primeiridade, como introdução da aula, é a instância da sensibilização, do encantamento, chamamento “sedutor” por parte do professor para despertar o desejo e o gosto dos aprendentes para entregarem-se a aula. A Secundidade, como instância do desenvolvimento da aula, caracteriza-se pela tensão, confronto ritmado entre o já sabido sobre a situação de movimento e o desconhecido, auto gestado pelo imprevisível do jogo, que exige reação e esforço para encontrar saídas possíveis para assim obter a experiência de síntese e completar a aprendizagem, ou seja, a Terceiridade. Esta, como instância final da aula e decorrente das duas anteriores, é o espaço da representação conceitual do vivido pela via da simbolização icônica, desenhos, modelagens e outras, e pela via da verbalização. A aula pela Pedagogia da Corporeidade compõe-se, em resumo, pela tríade interdependente das experiências do aprender a “perceber”, a “comunicar” e a “amar”.

Os autores destinam atenção no último capítulo para a construção do tornar-se professor nos contextos escolares. Apresentam, a partir de suas próprias experiências como professores de Estágio Supervisionado e como possibilidade de formação de professores da Pedagogia da Corporeidade, o método “Professor Experiencial, Colaborativo e Reflexivo”. Um aporte para aqueles professores, em processo de formação inicial ou formação continuada, que desejam ensinar-aprendendo a desenvolverem uma atitude e uma tecnicalidade de abertura e sensibilidade ao que viceja nas “situações de movimento” em cada aula e para cada turma, como uma aventura.

No conjunto da proposição teórico-metodológica para a Educação Física exposta na obra, evidencia-se que, incluir a corporeidade na pedagogia, significa abarcar:

a)    a percepção-ação-respiração dos aprendentes (professor e aluno) no ambiente comunicativo da aula;

b)    o espaço-tempo da aula como território para interpretação e respostas de movimento às diferentes situações, próprias de cada gênero de jogos (sistemas de signos) como processo de modelização, singularização e generalização dos aprendentes;

c)    o “perceber”, o “comunicar” e o “amar” ou o estético, o ético e o lógico como instâncias de aprendizagem, portanto, de sucessivas semioses, capazes de reconfigurar corporeidades, ou pelo menos por em crise as corporeidades homogeneizantes;

Enfim, evidencia-se que a Pedagogia da Corporeidade, ao privilegiar as “situações de movimento”, compreende a aula, os aprendentes, o conhecimento, a cultura, a saúde e o meio ambiente como circunstanciais e em configuração. Ao eleger o jogo como pivô da aprendizagem, objetiva a educação como um modo mais brincante de habitar o tempo.

Na obra Corporeidade, jogo, linguagem: a educação física nos anos iniciais do Ensino Fundamental, Betti e Gomes-da Silva (2018) apresentam uma metodologia de ensino inovadora e ousada, dirigida para a Educação Física, mas que transborda para áreas afins. Mostra-se, portanto, como uma leitura para professores de diferentes componentes curriculares que se permitem ensinar-aprendendo na circunstância, ou melhor, na imprevisibilidade do jogo.

 

Referências

BETTI, M.; GOMES-DA-SILVA, P. N. Corporeidade, jogo, linguagem: a educação física nos anos iniciais do Ensino Fundamental. São Paulo: Cortez, 2018. (Docência em Formação: Ensino Fundamental, v. 1).

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Brasília, DF: MEC, 2000.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018

PEIRCE, C. S. Semiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. (Estudos, v. 46).

 

 

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