Representações de professoras aposentadas: imagens, discursos e sentidos para a leitura
Representations of retired teachers: images, speeches and meanings for reading
Representaciones de docentes jubilados: imágenes, discursos y sentidos para la lectura
Antônio Durães de Oliveira Neto
Universidade Estadual de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil
Universidade Estadual de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil
Recebido em 28 de junho de 2021
Aprovado em 18 de janeiro de 2023
Publicado em 02 de agosto de 2023
RESUMO
Nas sociedades contemporâneas, a leitura assume um papel de grande centralidade, presente nas mais diversas atividades cotidianas. Destarte, este artigo tem como objeto de estudo a leitura de professoras. O objetivo é analisar representações de leitura de docentes aposentadas, buscando compreender a constituição de suas práticas leitoras e as crenças nelas implícitas. Foi realizada pesquisa qualitativa e aplicado um questionário a 55 professoras com idades superiores a 60 anos e que já se aposentaram. Como revisão de literatura, lançou-se mão dos estudos de Chartier (1996, 1999, 2007); Batista e Galvão (1999); Britto (1998); Corsino (2010); Moscovici (2015), Guareschi e Jovchelovitch (1995), dentre outros. Constatou-se que as representações foram ancoradas em três categorias de sentidos para a leitura: instrumento para interação, ferramenta para a formação do indivíduo, possibilidade de fruição e entretenimento. Nestas representações, o livro e a tela são imagens que se despontaram, sendo que a leitura assume um caráter valorativo em todos os discursos das participantes.
Palavras-chave: Leitura; Representações de leitura; Professoras aposentadas.
ABSTRACT
In contemporary societies, the reading takes a role of great centrality, present in the most diverse daily activities. Thus, this article has as object of studying the reading of teachers. The objective is to analyze reading representations of retired professors, seeking to understand the constitution of its reading practices and their implicit beliefs. Qualitative research was carried out and a questionnaire was applied to 55 teachers aged over 60 years old and who have already retired. As a literature review, we used the studies by Chartier (1998, 1999, 2007); Batista and Galvão (1999); Britto (1998); Corsino (2010); Moscovici (2015), Guareschi e Jovchelovitch (1995), among others.It was found that the representations were anchored in three categories of senses: instrument for interaction, tool for the formation of the individual, possibility of enjoyment and entertainment. In these representations, the book and the screen are images that have emerged, and the reading takes on a value character in all discourses of the participants.
Keywords: Reading; Reading representations; Retired teachers.
RESUMEN
En las sociedades contemporáneas, la lectura asume un papel de gran centralidad, presente en las más diversas actividades cotidianas. Así, este artículo tiene como objeto de estudio la lectura de los docentes. El objetivo es analizar las representaciones de lectura de profesores jubilados, buscando comprender la constitución de sus prácticas lectoras y las creencias implícitas en ellas. Se realizó una investigación cualitativa y se aplicó un cuestionario a 55 docentes mayores de 60 años y que ya se jubilaron. Como revisión bibliográfica se utilizaron los estudios de Chartier (1996, 1999, 2007); Batista y Galvão (1999); Brito (1998); Corsiño (2010); Moscovici (2015), Guareschi y Jovchelovitch (1995), entre otros. Se constató que las representaciones estaban ancladas en tres categorías de significados para la lectura: instrumento para la interacción, herramienta para la formación del individuo, posibilidad de fruición y entretenimiento. En estas representaciones, el libro y la pantalla son imágenes que emergen, y la lectura asume un carácter evaluativo en todos los discursos de los participantes.
Palabras llave: Lectura; Representaciones de lectura; Profesores jubilados.
Introdução
Ao conviver com livros e leitura e fazer parte da cultura letrada, o indivíduo assume uma representação absoluta de leitura, que toma o saber ler e escrever como um valor, um instrumento que pode refletir de forma positiva na perspectiva individual e social. Em contrapartida, não saber ler é visto como condição que pode impactar negativamente e excluir pessoas que não tiveram acesso a essa tecnologia. Para além de uma atividade individual, a leitura tem um caráter social, compreendida como prática que promove a interação, sendo um alicerce para a sociedade moderna.
Inserida nas mais diferentes esferas, ler é uma prática valorizada socialmente, sobretudo por seus aspectos cognitivos e culturais. Conforme assertiva de Soares (2009), a leitura é compreendida por competências que vão desde a decodificação de sílabas à leitura de um livro complexo, sendo composta por habilidades, comportamentos e conhecimentos que determinam um longo caminho de aprendizagens.
Fundamental para a informação e difusão cultural, é na escola que a leitura se encontra de forma institucionalizada, já que esta é a principal agência de letramento (Kleiman, 1995), instância responsável por ensinar e promover a prática leitora e inserção na cultura escrita. Nesse ambiente, o trabalho do professor é essencial para conduzir o aluno pelo caminho dos saberes relacionados direta ou indiretamente às práticas de leitura, indiferente de qual seja o conteúdo ministrado. Ler pode ser considerado como aprendizagem primeira, inserida no projeto da escola. Como afirma Tardif (2010, p. 13), “o professor não trabalha apenas um ‘objeto’, ele trabalha com sujeitos e em função de um projeto: transformar os alunos, educá-los e instruí-los”. Considerando o seu poder transformador, a leitura torna-se primordial para atuação em sala de aula. Dada a circunstância, o professor faz uso da leitura como instrumento do seu ofício, e o seu contato com essa prática é constante.
Mas há de se pensar em como passa a ser a relação desses profissionais com a leitura, a partir do momento em que não mais exercem a docência, ou seja, quando se aposentam. A aposentadoria pode ser vista como resultado de uma vida de trabalho, significando uma ruptura com o ofício exercido durante anos. Para o profissional docente, ao se aposentar, suas práticas – principalmente as de leitura – podem ganhar novas configurações, dada a disponibilidade de tempo ou a vontade de exercer atividades que não eram comuns outrora. Se antes o professor tinha a necessidade de fazer uso da leitura para se preparar profissionalmente, depois de aposentar-se essa prática pode apresentar outras significações.
Sabendo do papel que a leitura sustenta, sobretudo para aqueles que estão ligados à educação e à profissão docente, este artigo tem como objeto de estudo as representações de leitura de professoras aposentadas, compreendidas à luz da Teoria das Representações Sociais, conceito cunhado por Serge Moscovici, em 1961. Representações sociais são compreendidas como teorias do senso comum, produzidas pelos sujeitos na qualidade de seres sociais. Não se trata de um fenômeno exclusivamente individual, pois são construídas a partir da relação cotidiana na qual o sujeito busca entender a realidade da qual faz parte (Moscovici, 2015).
Ao optar por compreender as significações de leitura de docentes aposentadas, com base na teoria de Moscovici (1978; 2015), intenciona-se ir além de meros levantamentos sobre as práticas leitoras e como são realizadas. O interesse estende-se em compreender as crenças e valores acerca da leitura, constituídos durante a vida das professoras e que orientam as práticas no tempo presente, em que não existe mais a necessidade de atuarem em sala de aula. Por essa intencionalidade, esta investigação parte da seguinte problemática: quais as significações que constituem as representações e ancoram as práticas de leitura de professoras aposentadas?
A escolha de professoras aposentadas foi feita devido ao papel outrora desempenhado por elas no processo de ensino da leitura e da formação de leitores no espaço escolar, já que são responsáveis por estabelecer mediações e intervenções pedagógicas para promover a relação entre a criança e a cultura escolar. A atenção especial dada a essa classe é uma forma de valorizar as profissionais que dedicaram anos de suas vidas à profissão docente e aos processos de ensino e aprendizagem. Além de reconhecimento e prestígio, entender suas representações de leitura permite lançar um olhar para a sua constituição enquanto leitoras e intuir sobre as mediações de leitura por elas exercidas em sala de aula durante a docência.
Este artigo divide-se em quatro seções: na primeira é apresentada a metodologia; na segunda é feito um levantamento de conceitos teóricos sobre leitura; na terceira aborda-se as significações de leitura a partir dos discursos das professoras. A quarta seção constitui-se da discussão dos conceitos teóricos da representação social, de suas faces simbólica e figurativa para que possamos compreender como se objetivam e ancoram as práticas de leitura das professoras aposentadas.
Percurso metodológico
O artigo, que se insere no campo das representações e práticas de leitura, foi desenvolvido por uma perspectiva qualitativa que, segundo Minayo (2010), trabalha com o universo das significações, crenças, valores, alicerçados na realidade vivida pelo ser humano e seus semelhantes, viabilizando a interpretação dos dados colhidos.
Para obter informações que permitissem identificar e analisar as significações e sentidos para a leitura, foi aplicado questionário para um total de 55 docentes, constituídos por 53 mulheres e 02 homens. O questionário foi escolhido como instrumento para coleta de informações pela possibilidade de alcançar um maior número de sujeitos, sendo que a modalidade impressa permitiu a inclusão de professoras que não são usuárias de ferramentas digitais. Para sua elaboração, foram priorizadas as perguntas subjetivas – dez das dezessete questões foram abertas – por considerarmos o alerta de Moscovici (1978), ao afirmar que questões padronizadas não exprimem todo o conteúdo da representação, que pode ser melhor identificado por meio de entrevistas e questões mais abertas.
Para aplicação do questionário foi construída uma rede de contatos e colaboração, em que as próprias participantes indicaram outros sujeitos que atendiam aos critérios de inclusão definidos na proposta de pesquisa. Essa opção metodológica foi pensada pela dificuldade de localizar docentes aposentadas a partir de órgãos oficiais consultados – Instituto Municipal de Previdência dos Servidores Públicos de Montes Claros (Prevmoc) e Diretoria de Desenvolvimento de Recursos Humanos (DDRH) da Universidade Estadual de Montes Claros –, que não puderam compartilhar informações e contatos, em função de questões éticas.
Após contatadas, por telefone ou presencialmente, as docentes receberam informações sobre a pesquisa – objetivos, método, riscos e cuidados éticos, direitos do participante. Nesse ato, foi coletada assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, momento em que as docentes receberam o questionário impresso e agendaram a data em que poderia ser buscado. As respostas foram digitadas, tabuladas e organizadas em tabelas, que facilitaram a análise e os cruzamentos que se mostraram essenciais para a identificação das representações e práticas das participantes.
Como critério de inclusão das professoras não foi determinada uma disciplina ou modalidade de ensino específicas, pois, pensamos com Yunes (1995, p. 190) que, “todas as disciplinas – todas – carecem do domínio da leitura para se desenvolver: das humanidades às ciências, das artes às matemáticas”. Sendo assim, obteve-se docentes graduadas em: Pedagogia (36,36%); Letras (18,18%); Magistério (9,09%); Direito (7,27%); Geografia (5,45%); História (5,45%); Normal Superior (5,45%); Ciências Sociais (3,64%); Estudos Sociais (3,64%); outras formações (14,55%).
No que se refere à aplicação, buscou-se fazer uma rede de contatos a partir da indicação das próprias participantes. Esta opção metodológica se originou a partir da dificuldade de localizar professoras aposentadas que comporiam o corpus. Assim, foi possível ter questionários respondidos por docentes das mais distintas regiões da cidade de Montes Claros e com variadas características. O instrumento foi respondido pelas participantes sem a presença do pesquisador, visando a maior tranquilidade na elaboração das respostas e uma menor disrupção na vida cotidiana das docentes.
Decidimos utilizar o termo professora/professoras para nos referirmos aos participantes, dada a predominância feminina não apenas neste estudo, mas também no ofício docente, além de colocar em evidência a atuação das mulheres no campo da educação.
Visando garantir a confidencialidade das informações prestadas e preservar a identidade das participantes, elas foram referidas como PA (professora aposentada) seguido de um número sequencial. Tendo em vista que trabalhos que envolvem seres humanos necessitam de procedimentos éticos, submetemos a pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, via Plataforma Brasil, sendo aprovada em 26 de dezembro de 2019, sob parecer 3.790.539.
Leitura: entre concepções distintas e caminhos diversos
Leitura é palavra polissêmica. Conceituá-la torna-se uma tarefa densa ao levarmos em consideração que pode ser pensada como uma atividade cognitiva ou como uma prática inserida no cotidiano das pessoas. Fischer (2006) ressalta que definir leitura não é um ato simples, já que se trata de uma prática variável e não absoluta, na qual “o leitor emprega os símbolos para orientar a recuperação de informações de sua memória e, em seguida, cria, com essas informações, uma interpretação plausível da mensagem do escritor” (Fischer, 2006, p. 11).
A leitura implica a constituição de sentidos, possibilita diferentes interpretações de um mesmo texto, atentando para diversos fatores que consideram o leitor, a época e a circunstância em que ele se encontra, como também o texto e o autor. O texto não vem com uma interpretação pronta. O leitor, muitas vezes sem perceber, faz investimentos afetivo e cognitivo para se apropriar do texto que lê. Para Chartier (Bourdieu; Chartier, 1996, p. 241), “[...] os leitores são sempre plurais, são eles que constroem de maneira diferente o sentido dos textos, mesmo se esses textos inscrevem no interior de si mesmos o sentido de que desejariam ver-se atribuídos”.
O autor concebe a leitura no tripé autor, texto, leitor. E, ao discutir a história da leitura, Chartier (1999) identifica três grandes revoluções na história da leitura, que não se relacionam à invenção da imprensa e às transformações advindas desta tecnologia. A primeira se situa na Idade Média e consiste na passagem de uma leitura oral para uma puramente silenciosa. A segunda acontece no século XVIII e opõe a leitura tradicional, dita intensiva, a uma leitura extensiva, que se tornou possível pelo crescimento da produção de livros e expansão das bibliotecas, possibilitando um acesso maior a diferentes livros, principalmente por meio do empréstimo de obras. Já a terceira revolução de leitura é situada na contemporaneidade, em que a transmissão eletrônica de textos produziu mudanças, não apenas o suporte material, mas também a maneira do leitor lidar com a leitura (Chartier, 1999). Ainda conforme o autor, nessa nova revolução, o leitor pode “indexá-lo, mudá-lo de um lugar para outro, decompô-lo e recompô-lo” (Chartier, 2007, p. 27).
Goulemot (1996, p. 108) define ler como “dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências”. Para a autora, ler vai além de encontrar o sentido desejado pelo autor, em razão de que isso determinaria que o prazer do texto somente se origina no encontro entre o sentido desejado e o percebido. Deste modo, ler trata de construção e não reconstrução de sentido.
A partir da tríade autor, texto e leitor, a materialidade textual permite a propagação de informações, levando em conta a organização textual, que vai desde a produção até a recepção por parte dos leitores, considerando o contexto em que o sujeito vive. De acordo com Marinho (1998, p. 13), “autor, texto e leitor estão aprisionados por laços móveis, que se movimentam segundo uma dinâmica de restrições e possibilidades do indivíduo no jogo social”. Segundo a autora, a materialidade do texto, além de acompanhar os indivíduos leitores em seus espaços sociais e culturais, também concebe um meio de compreensão.
Para Koch e Elias (2008), a concepção de leitura vai além de um conhecimento linguístico, posto que o leitor é estimulado a utilizar estratégias tanto de ordem linguística quanto cognitivo-discursiva para envolver-se ativamente com a construção do texto e, assim, “levantar hipóteses, validar ou não as hipóteses formuladas, preencher as lacunas que o texto apresenta” (Koch; Elias, 2008, p. 07). As autoras traçam uma concepção de leitura que pode focar o autor, o texto ou a interação autor-texto-leitor. Quando o foco é o primeiro, a leitura “é entendida como a atividade de captação do autor, sem se levar em conta as experiências e os conhecimentos do leitor” (Koch; Elias, 2008, p. 10). Por se tratar de um produto lógico do pensamento do autor, cabe ao indivíduo que lê apenas a recepção passiva, que consiste em captar intenções já definidas por quem escreveu.
No que tange à interação autor-texto-leitor, existe uma distinção dos focos anteriores, já que, de acordo com Koch e Elias (2008, p. 10), “os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto” (grifos das autoras). Nesse foco, o sentido é constituído a partir da interação entre sujeitos e texto e não de algo que anteceda essa interação. Nessa concepção, em que se focaliza a interação autor-texto-leitor, a leitura é vista como “uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos” (Koch; Elias, 2008, p. 10, grifo das autoras), que considera os elementos linguísticos e a forma de organização do texto, entretanto, leva em conta, principalmente, o conjunto de saberes dentro desse evento comunicativo. Nessa concepção na qual a leitura é vista como um ato interacional, a prática leitora leva em consideração as informações presentes no texto, bem como o conhecimento prévio do leitor e a intenção do autor, constituindo o sentido daquilo que está sendo lido.
Sobre os benefícios proporcionados pela leitura, há um consenso de que ler possibilita: ampliação de conhecimento, melhoria da capacidade de memorização, aprimoramento das habilidades linguísticas, desenvolvimento da capacidade intelectual e crítica, dentre outros. Além disso, é atribuído à leitura o poder de estimular a imaginação, atributo oportunizado pela leitura literária, que proporciona a fruição estética e o prazer em ler, sendo capaz de contribuir para a constituição humana, dada a profusão de sentidos do texto literário, que conduz o leitor para novas perspectivas e influi sobre a visão acerca do mundo e da vida. Corsino (2010) argumenta que a literatura, para além da introdução do indivíduo no mundo da escrita, traz dimensões ética e estética, desempenhando um papel fundamental na constituição do sujeito, pois “literatura ensina a liberdade, a alteridade fundamental para a constituição da subjetividade, possibilita a troca, a comunidade de ouvintes, o desfrute individual e coletivo” (Corsino, 2010, p. 199). A literatura abre-se como possibilidade de promoção das relações do indivíduo consigo e com os outros, com a cultura e o conhecimento, preenchendo espaços ligados à humanização, à empatia, à subjetividade e à identidade.
Considerando a pluralidade de perspectivas pelas quais se pode abordar a leitura, lançamos nossos olhares para aquelas que contemplam a produção de sentidos, interação, constituição do ser humano e fruição para que, na próxima seção, sejam descritas as representações sociais e as significações constitutivas dos discursos das professoras.
Representações de leitura de professoras: entre discursos e significações
A proposição das representações sociais, teoria desenvolvida por Moscovici (1978), é definida como formas de conhecimento elaboradas socialmente e encontram nas relações cotidianas, por meio de discursos, mensagens e comportamentos, formas de circular e se fixar. Desse modo, as representações sociais nos orientam a compreender, interpretar e nos posicionar acerca de fatos cotidianos, conduzindo-nos para que possamos nomear e determinar as circunstâncias da realidade.
A base teórica das representações sociais encontra no indivíduo e no social o seu campo de discussão. Trata-se de saberes populares, em muitos casos, do pensamento científico que se tornou comum e passa a constituir o conteúdo das representações. É “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos” (Moscovici, 1978, p. 26). Sua construção se dá pela interação entre sujeitos de um grupo social, resultado da busca de um modo de organização da realidade por meio da comunicação. De acordo com Minayo (1995), as representações sociais manifestam-se por meio de palavras, sentimentos e condutas. Sua análise deve partir do entendimento das estruturas e das condutas sociais, mediada pela linguagem, que é a principal responsável pela interação social. Sendo assim, após colher as respostas das docentes participantes, identificamos significações individuais que permitiram compreender os valores e crenças coletivas acerca da leitura, pois muito do conteúdo de suas representações foi constituído a partir de seus processos de formação e de suas experiências como leitoras. Suas representações multifacetadas indicaram temas emergentes que mostraram os investimentos cognitivos, afetivos e sociais delineados em suas atividades representacionais.
Dentre as representações produzidas pelos sujeitos, a leitura foi concebida como busca e ampliação de conhecimento (74,55% - 41 participantes), fruição (16,36% - 09 participantes) e interação (9,09% - 5 participantes). Majoritariamente, no âmbito da leitura instituída como busca e ampliação de conhecimento, o ato de ler é representado como ferramenta que visa à formação do indivíduo, à constituição do ser humano e ao aprimoramento em diferentes instâncias da vida, apontando para dois direcionamentos – o espaço escolar e a vida social, conforme sinalizado nos depoimentos das professoras, ao definirem o que é leitura:
A leitura é parte fundamental no processo educacional, resultando na construção do indivíduo (PA29, 72 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 26 anos).
Leitura, em seu sentido amplo, é o ato de ler, com prazer e espontaneidade, textos narrativos, descritivos e dissertativos, escritos em prosa, em verso, difundidos pelos meios de comunicação e Redes Sociais. Ao fazer uma leitura, penso que o leitor seja capaz de interpretar, compreender o que o autor mostra no texto (PA36, 71 anos, graduada em Letras, aposentada há 29 anos).
Direcionado para a escola, os discursos das professoras trazem um olhar formador – mesmo aposentadas, revelam preocupações docentes que as constituem, de modo que não pensam a leitura para si. É a leitura como procedimento voltado para a educação, parte da construção do estudante, conteúdo a ser ensinado pela instituição educacional, que atende às necessidades de interpretar e compreender. Esse modo pelo qual as professoras concebem o ato de ler se encontra com proposições de Chartier (1996), ao discutir a leitura como o resultado mais universalmente partilhado do aprendizado escolar. Para o autor, é importante reconhecer o contraste “[...] entre grandes leitores e leitores de ocasião, entre lectores profissionais, para os quais ler é sempre mais ou menos gesto de trabalho, e todos aqueles para quem o encontro com os textos é simples informação ou puro divertimento” (1996, p. 19).
Em nosso estudo, as representações que se voltam para dentro da escola mostram a força do exercício docente na vida das professoras que, mesmo aposentadas, reportam-se aos conteúdos da vida profissional na construção de sentido para a leitura. A prática docente mostra-se presente nas falas que concebem a leitura como dever da escola e a professora como responsável pelo seu ensino. Segundo Batista (1998), para grande parte da população brasileira, “a escola representa a principal possibilidade de acesso à escrita, seus professores são vistos como leitores e exercem a tarefa de fazer com que suas crianças se tornem leitoras” (Batista, 1998, p. 29).
Referir-se à leitura como forma de conhecimento não a limita ao âmbito escolar e cognitivo. A curiosidade intelectual e a necessidade de enriquecer as ideias permitem ampliar não apenas o saber intelectivo, mas também o conhecimento nas várias esferas com as quais os seres humanos se relacionam, indo desde o relacionamento interpessoal até o contato com a natureza, o que permite ampliar a perspectiva sobre as mais distintas temáticas, conforme as falas a seguir:
Leitura é uma forma de conhecer o mundo, as pessoas, os fatos, a natureza, te proporcionando uma visão maior de vários assuntos (PA02, 65 anos, graduada em História, aposentada há 02 anos).
O ato de ler nos leva a novos conhecimentos, descobertas, melhora a compreensão dos fatos, acontecimentos, se descobre o mundo (PA23, 71 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 29 anos).
No cotidiano das professoras, a leitura era exercida como instrumento de trabalho, mas agora, também tem o propósito de informar, entreter, divertir e aprender, tanto que não se limita a um tipo específico – vai da leitura formativa, passa pela informativa e aporta na distração. Tais depoimentos seguem o mesmo discurso de Yunes (1995, p. 185), ao afirmar que ler é “um ato da sensibilidade e da inteligência, de compreensão e de comunhão com o mundo; lendo, expandimos o estar no mundo, alcançamos esferas do conhecimento antes não experimentadas”. Essas concepções se fizeram presentes para uma minoria dos sujeitos – apenas 25,45% dos participantes veem a leitura para além do acesso ao conhecimento. Tais concepções encontram-se com ideias discutidas por Chartier (1996), ao afirmar as dificuldades dos leitores profissionais em aceitar que existem outras leituras diferentes da sua, que ultrapassam os gestos de trabalho, para se constituírem como simples informação ou puro entretenimento.
Ao estabelecerem um conceito, algumas professoras definem leitura como um modo de apreensão de conhecimento que é realizado pela linguagem, em suas mais variadas vertentes. Em sua elaboração conceitual, PA54 apresenta uma ampliação da ideia de leitura e se reporta aos diferentes códigos, assim como PA43, que se aproxima de uma definição que vai além do signo linguístico, considerando a leitura em diferentes modalidades:
[A leitura é] Um processo de compreensão de informação encontrada em suportes com diferentes códigos (visual, auditivo e táctil) como a linguagem (PA54, 60 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 2 anos).
Para mim, leitura é um processo de absorção do ou de conhecimento por meio de qualquer técnica de comunicação da linguagem, seja escrita, falada, desenhada, audiovisual, etc. (PA43, 69 anos, graduada em Contabilidade, aposentada há 5 anos).
Nos depoimentos, as docentes reportam para possibilidades audiovisuais e táteis presentes no mundo social e no espaço da instituição de ensino, já que a prática leitora pode ser definida como a capacidade de ler outras linguagens e não exclusivamente o texto escrito. Belmiro (2014) lembra-nos que as teorias linguísticas atuais ampliam a concepção de texto, conceituando-o “como uma produção, seja verbal, sonora, gestual, imagética, em qualquer situação de comunicação humana, estruturada com coerência e coesão” (Belmiro, 2014, on-line).
Tendo em vista que a produção das representações ocorre a partir de investimentos de cunho afetivo e cognitivo, há nos discursos das professoras a fruição como elemento constitutivo das suas significações. A leitura, vista por essa perspectiva, relaciona-se à apreciação estética, ao prazer de ler, caracterizando-se por sua gratuidade, sem que haja o cumprimento de uma rotina estabelecida ou que atenda necessidades pragmáticas. Dentre as professoras, 16,36% associam a leitura a um caráter fruitivo, que visa ao prazer, ao entretenimento. O ato de ler, sem a obrigação de exercê-lo, segundo Batista (1998), trata-se de um bem em si mesmo: “é por meio dele – e do direito de parar de ler, de saltar partes, de ‘levantar os olhos’ e mesmo de negar uma leitura que é controlada e controladora – que o sujeito afirmaria o desejo e a fruição” (Batista, 1998, p. 54, grifo do autor).
Há professoras que citam o prazer em ler, mas se alicerçam no aprendizado: exercitar a língua, vivenciar outras culturas, buscar e ampliar os conhecimentos, interpretar, conforme poder ser observado nos discursos a seguir:
Ler é interpretar, saber apreciar um bom livro. Ler é sentir prazer em ler. Mas a correria não me sobrava tempo (PA18, 74 anos, graduada em Ciências Sociais, aposentada há 21 anos).
Ler é prazer, é viajar pelo desconhecido, é buscar conhecimentos, é lazer. (PA33, 62 anos, graduada em Letras, aposentada há 02 anos).
A leitura como fruição desperta, além do prazer, a contemplação da obra, a ampliação cultural, sensações diversas e multiplicidade de sentidos. Não sendo o prazer do texto exclusividade da literatura, essa característica é comumente relacionada à leitura literária, que tem a finalidade de “tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas” (Cosson, 2012, p. 17). Essas sensações, unidas ao prazer de ler, têm como destino um mundo de entretenimento e distração, sem se desvencilhar da capacidade de contribuir para a formação do ser humano, pois, “a literatura se abre a múltiplas interpretações e permite o encontro de si mesmo e do outro, instaurando a linguagem na sua dimensão expressiva” (Corsino, 2010, p. 184). A autora recorre às palavras de Todorov (2009) para mostrar que a experiência humana é a realidade que a literatura busca compreender. Nessa perspectiva, PA26 relaciona o prazer com a possibilidade de ampliar o conhecimento, tanto pessoal quanto cultural:
Leitura é um meio prazeroso de ampliar conhecimento do mundo, do outro e de si mesmo; de exercitar o uso da língua pátria, de vivenciar outras culturas (PA26, 64 anos, graduada em Letras, aposentada há 16 anos).
A professora demonstra a preocupação em exercitar a língua pátria, provavelmente pensando em apropriação de conhecimentos sobre a língua: expansão do vocabulário, melhoria da escrita e ampliação das habilidades de compreender os textos lidos, sem desvinculá-la da fruição e do prazer.
Um terceiro grupo de professoras (9,09%) associa a leitura a um instrumento de interação. Segundo Castanheira (2014), interação é o uso que se faz da linguagem escrita e falada no cotidiano, sobretudo no convívio com pessoas. A interação pode ocorrer em conversas descontraídas, informais ou pela via dos textos. O sentido de interação ganhou maiores proporções a partir dos avanços tecnológicos digitais, sobretudo pela ascensão das mídias e redes sociais que permitiram às pessoas interagirem por meio de aparelhos eletrônicos, possibilitando que a leitura seja feita nas telas, visando, principalmente, à busca de informações. Esse sentido é identificado nas falas das professoras que, ao serem perguntadas se as tecnologias digitais interferiram em suas relações com a leitura, disseram:
No caso do computador sim. Porque dá para ler rapidamente aquilo que não se tem em mãos. Eu acho que o e-mail e importante, rapidamente você tem a informação que precisa. Você pede, a pessoa te manda, um texto que está precisando, por exemplo (PA50, 75 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 06 anos).
Atualmente leio muito, principalmente notícias e reportagens, no celular (PA12, 61 anos, graduada em Normal Superior, aposentada há 06 anos).
A gente troca leitura de jornais e revistas, muitas vezes, pelas dos celulares e computadores (PA18, 74 anos, graduada em Ciências Sociais, aposentada há 21 anos).
Nos discursos das professoras, a leitura encontra-se associada a uma finalidade imediatista, dada a celeridade com que os fatos acontecem no meio social e a necessidade de se informarem ou acessarem um texto de forma mais rápida. A leitura feita nas telas dos eletrônicos se destaca por características de interatividade e interconectividade, que permitem a conexão com os outros e com o mundo em tempo real. É mais prático acessar o celular para ler as notícias do que se deslocar até uma banca de revista ou esperar a entrega do jornal na residência, por exemplo.
As
professoras quando dizem que ler é interagir com o mundo, visam estar atualizadas
sobre os acontecimentos e assim discutir o que se passa em diferentes espaços
sociais. Indo além da aquisição de conhecimentos, ler inspira as professoras
que aspiram uma nova relação com o mundo, na qual se afirmam como sujeitos
sociais e cidadãos críticos. Dessa maneira, a leitura se apresenta por uma
perspectiva de socialização. Como afirma Cosson (2012), ler é uma troca de
sentidos entre leitor, escritor e sociedade, pois os sentidos resultam das
partilhas de visões de mundo entre os indivíduos no tempo e no espaço. Tal compreensão
é expressa nos depoimentos que se seguem:
[Leitura] É uma forma de interação com o mundo que nos cerca (PA12, 61 anos, graduada em Normal Superior, aposentada há 06 anos).
Nota-se que a leitura é vista como forma de contato com o mundo e com outros, viabilizando relações humanas, acesso às notícias, fatos e eventos do cotidiano. Essa interação, segundo Leffa (1999), acontece a partir do contato de dois elementos que, além do leitor, texto e autor, podem ser “as fontes de conhecimento envolvidas na leitura, existentes na mente do leitor, como conhecimento de mundo e conhecimento linguístico, ou ainda, o leitor e os outros leitores” (Leffa, 1999, p. 15).
É por meio da interação, mediante diálogos no cotidiano que as ideias se cruzam, constituindo as representações. No caso da leitura, é por meio dessas relações sociais, incluindo processos educacionais, que se difundiu a crença no seu poder. “É através da ação de sujeitos sociais agindo no espaço que é comum a todos, que a esfera pública aparece como o lugar em que uma comunidade pode desenvolver e sustentar saberes sobre si própria” (Jovchelovitch, 1995, p. 71). Assim, os sujeitos que integram um grupo social, a partir de referências construídas em conjunto, criam imagens que se tornam representações, já que, segundo a autora, a Teoria das Representações Sociais ergue-se sobre uma teoria dos símbolos.
As professoras produziram crenças, conceitos e práticas para a leitura, integrando-os ao seu sistema representacional. A partir das suas vozes, percebemos uma série de significações, que podem ter sido constituídas no decurso de suas formações, na condição de estudantes e também na de docentes. Isso implica dizer que das professoras se constituem por meio de suas vivências e experiências, investimentos afetivos e cognitivos realizados no decurso de sua trajetória pessoal e profissional. Suas representações são ancoradas em uma face utilitária que se complementa por uma face estética da leitura. Na perspectiva utilitária, a leitura visa à aquisição de conhecimentos e a interação com os mecanismos de informação. Já a perspectiva estética tenciona a leitura a um caráter de fruição e lazer, além de formação da sensibilidade e subjetividade. Conhecer o mundo, constituir-se enquanto sujeito social, desenvolver práticas de compreensão e interação, entreter-se e usufruir da arte literária são perspectivas que as professoras apresentam ao definirem leitura. Tais aspectos são vistos como fundamentais para constituir novos conhecimentos, propiciar reflexões, formar o cidadão e possibilitar distração.
Os discursos revelam que as professoras conceituam a leitura a partir da prática e de suas finalidades, sobretudo, no espaço escolar, e a tornam algo quase material. Mesmo sendo abordadas em perspectivas diferentes, é consensual uma visão positiva da leitura nas suas representações. De todas as respostas, nenhuma docente produziu significações que vinculam o ato de ler a uma ideia pessimista ou ineficaz. Isso porque os benefícios da leitura fazem parte das crenças que integram as representações e circulam nos espaços que partilham – ver a leitura de forma negativa e até mesmo caracterizar-se como não-leitora poderia ser prejudicial para a imagem da educadora. A leitura é concebida e discutida em função da escola, mesmo depois terem se aposentado.
Considerando as significações apontadas nas falas das docentes, contemplaremos na seção seguinte as imagens e sentidos que constituem as suas representações de leitura a partir da perspectiva teórica de Serge Moscovici (1978, 2015), verificando em quais conteúdos as práticas leitoras são ancoradas.
Leitura de professoras aposentadas: face figurativa e face simbólica
Moscovici (1978) pontua que a representação atribui a toda imagem um sentido e a todo sentido uma imagem, demonstrando duas faces indissociáveis: a face figurativa e a simbólica, como se fossem a frente e o verso de uma folha de papel, e encontra na objetivação e na ancoragem a produção dessas figuras e suas significações.
Esses mecanismos são formas de lidar com a memória e comunicar-se com o mundo social. A objetivação tem por função elaborar imagens a partir de conceitos, transformar o abstrato em concreto, a ideia em objeto, tornando a palavra quase material. “Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma imagem” (Moscovici, 2015, p. 71). A ancoragem classifica e rotula aquilo que é estranho, tornando-o familiar e reduzindo-o a categorias e imagens já conhecidas, pois “coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não existentes e ao mesmo tempo são ameaçadoras” (Moscovici, 2015, p. 61). Segundo o autor, ao nomearmos aquilo que não tinha nome, conseguimos imaginá-lo e, assim, representá-lo.
Foi possível demarcar a presença de duas imagens da leitura – o livro e a tela – esta última ganhando maiores proporções na contemporaneidade, devido à expansão tecnológica que possibilita a leitura em aparelhos eletrônicos. O livro se vincula à prática da leitura enquanto busca de conhecimento e fruição, já a tela relaciona-se à interação e busca de informações.
Essas imagens foram construídas no decurso das trajetórias pessoal e profissional das professoras, de maneira que, em relação à face simbólica, foram produzidas quatro categorias de sentido para a leitura: ampliação de conhecimentos; prazer e fruição; leitura como sobrevivência; e interação. Na construção destas significações, as professoras veem o livro – técnico, didático ou literário – como possibilidade de conhecer e ampliar o repertório cultural. Já a tela é vista como possibilidade de leituras mais rápidas, para interação e acesso às informações.
A respeito do sentido de leitura como ampliação de conhecimento, trata-se de um discurso amplamente disseminado, usado para incentivar os estudos, pois tornou-se convencional que, para novos aprendizados, aqueles sujeitos que não fazem uso da leitura enfrentam dificuldades maiores do que aqueles que o fazem. Nesta significação, a leitura é apresentada como instrumento para a aprendizagem e ganha forças na esfera escolar, a partir das próprias experiências das professoras. Segundo Batista e Galvão (1999, p. 18), na sociedade grafocêntrica, divulgar o poder benéfico do ato de ler é essencial para “que se veja na leitura um bem em si mesmo, um valor e uma necessidade a ser transmitida e difundida”. Assim enfatiza Cagliari (1993, p. 148), ao dizer que a leitura é a “extensão da escola na vida das pessoas. A maioria do que se deve aprender na vida terá de ser conseguido através da leitura fora da escola. A leitura é uma herança maior do que qualquer diploma.”
Ao tomarem o livro como imagem para a leitura, as professoras construíram o sentido de ler como fruição, prazer e entretenimento do leitor. Esse sentido abarca uma perspectiva mais sensível da leitura, que a associa aos livros de literatura e permite que ler seja visto como viagem. Para além de uma visão que privilegia o conhecimento escolar ou conteúdos educacionais, ver a leitura pela metáfora da viagem possibilita ao leitor ler por prazer, distrair e acessar outras culturas, realizando essa prática como hobby e como experiência sensível ao mundo do outro, como pontua PA14 e PA24 ao dizerem que leitura
é interação, uma viagem para outras realidades ou mundo fantástico (PA14, 60 anos, graduada em Geografia, aposentada há 11 anos).
é conhecer o mundo. É ser transportada, às vezes indo ao ápice. Já li bastante e até hoje na idade que tenho (PA24, 77 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 22 anos).
Viaja-se, comumente, com a intenção de se distrair, divertir, ter prazer e experimentar novos saberes, culturas e experiências. Estas possibilidades são características da fruição, possibilitadas pela leitura, sobretudo, a literária. O indivíduo, ao associar a leitura à viagem, traz à tona aspectos que são comuns tanto à prática de ler quanto à de viajar: a concentração para observar os detalhes; a sensibilidade para aproveitar cada instante; a identificação com personagens e situações; a empatia que permite a vivência de sentimentos; a possibilidade de conhecer lugares, desfrutando de uma atividade prazerosa que entretém e desvencilha dos problemas e também da realidade. Tudo isso culmina em outro atributo comum: a experiência e a lembrança daquilo que se viveu, seja na viagem, seja na leitura.
Nas representações das professoras, a gratuidade da leitura se faz presente nas suas significações, pois quando realizado com a função de distrair, o ato de ler faz com que o leitor se transporte para um mundo imaginativo, permeado pela magia e pelo devaneio. Corsino (2010, p. 184) pontua que o texto literário tem a função de transformar, possibilitando aos indivíduos “experimentarem sentimentos, caminharem em mundos distintos no tempo e no espaço em que vivem, imaginarem, interagirem com uma linguagem que muitas vezes sai do lugar-comum”. Assim, o leitor é convidado a imaginar cenários, personagens, situações, adentrando outros mundos e vivendo outras realidades, constituindo sua humanidade pelas vivências contidas nas formações imaginárias produzidas no texto literário. Essa perspectiva se faz presente nas falas de PA32 e PA33, que definem o ato de ler a partir da leitura literária:
[Ler] É mergulhar em sonho, pois a leitura provoca a sensação de que estamos numa viagem que nunca vai acabar. A leitura nos dá a oportunidade de nos integrarmos na cultura atual e de desenvolvermos nossa expressão criadora, indispensável e autorrealização (PA32, 80 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 22 anos).
Ler é prazer, é viajar pelo desconhecido, é buscar conhecimentos, é lazer (PA33, 62 anos, graduada em Letras, aposentada há 02 anos).
Nos discursos das professoras, outra significação para o livro, enquanto objeto que materializa a leitura, é o sentido de sobrevivência. Para viver, precisa-se compreender o mundo, conectar-se, raciocinar. Ao fazer essa referência, as docentes relacionam ao ato de ler a adjetivos que caracterizam a vida, deixando entendido que ambas são essenciais. Equiparar a leitura à vida e à sobrevivência mostra que a representação vai além de conhecimento e lazer: a leitura faz com que o indivíduo viva! PA17 e PA42 trazem essas afirmações no tempo presente, o que mostra a leitura com forte presença em suas vidas, mantendo a sua relevância:
Leitura é vida. Lemos para entender o mundo, para viver melhor. A leitura desenvolve o raciocínio, o senso crítico e a capacidade de interpretar e decifrar o mundo em que vivemos. Ele se situa entre a confluência do sério e do lúdico (PA17, 68 anos, graduada em Letras, aposentada há 12 anos).
Leitura para mim significa sobrevivência, aquisição de novos conhecimentos e entretenimento. A leitura sempre fez parte da minha vida. O meu instrumento de trabalho era a leitura. Leio de tudo, desde bulas de remédios a livros, revistas catálogos, etc. A leitura me ajuda a divertir, a passar o tempo me faz companhia nos momentos de solidão e principalmente a aprender coisas novas. Leitura é um impulso para a vida (PA42, 60 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 03 anos).
Associado ao sentido de leitura como vida, há nas representações das professoras a ideia da leitura como remédio, que institui o sentido de prevenir doenças e preservar a memória. As conexões neurais produzidas pela prática da leitura são fundamentais em sua função protetora e preventiva da doença mental, como recurso que ativa o cérebro, evita o envelhecimento das estruturas neuronais, agindo para acalmar e para estimular as funções mentais:
Quando estou lendo desligo da turbulência do mundo. Para mim, a leitura é essencial, principalmente, para preservar a mente jovem (PA15, 73 anos, graduada em Serviço Social, aposentada há 30 anos).
Leitura para mim é algo muito bom, amplia os conhecimentos, ativa a memória, etc. (PA20, 73 anos, graduada em Biologia, aposentada há 10 anos).
A leitura funciona como antídoto que ativa e exercita a memória. Desse modo, assumindo discursos do senso comum, as professoras diagnosticam e prescrevem a leitura para a prevenir doenças como Alzheimer, depressão, ansiedade e estresse:
A leitura mantém a mente ativa. Não há como amenizar a depressão e o Alzheimer se não a leitura (PA51, 65 anos, graduada em Letras, aposentada há 04 anos).
A pessoa auto domina os conhecimentos e desenvolve e fortalece a memória, se informa e alivia a ansiedade e o estresse (PA30, 66 anos, graduada em Pedagogia, aposentada há 22 anos).
O quarto sentido dado pelas professoras para a leitura – a interação – é representado pela leitura nas telas dos dispositivos eletrônicos, tendo em vista que essa prática se tornou comum para a busca de informações e notícias do mundo, sobretudo, no atual momento de popularização de smartphones e aplicativos de mensagens. O contato das docentes com aparelhos eletrônicos fica visível quando ressaltam a presença de celulares e computadores em seus cotidianos:
Hoje, logo pela manhã a minha primeira leitura é no celular. É uma fonte de informação rápida e atualizada. Os jornais escritos já não são importantes como antes da internet (PA03, 70 anos, graduada em Geografia, aposentada há 12 anos).
[As tecnologias digitais] Não deixaram de mexer comigo. Gosto da tecnologia, leio notícias no celular e computador (PA16, graduada em Psicologia, aposentada há 03 anos).
A leitura por meio da tela tem como característica a dinamicidade, por ser feita de forma mais rápida, visando um caráter mais utilitário ou descomprometido. São leituras de mensagens e notícias, que circulam com mais facilidade, tornando-se uma das principais fontes de informação e interação, já que as docentes não relataram ler livros de literatura pela tela do computador ou por outros recursos digitais.
Dado o caráter abstrato da leitura, ao defini-la, as professoras materializam-na buscando concretude em suas definições. Desse modo, gera-se o processo de objetivação, que se trata da representação de algo abstrato em concreto, como se realmente transformasse a ideia em um objeto. Dizer que a leitura é conhecimento, interação, viagem e sobrevivência é uma forma de objetivá-la no livro e na tela, pois são instrumentos que possibilitam que a leitura seja vista dessa forma, conferindo materialidade a algo não material que é o ato de ler. Entretanto, algumas professoras afirmam que a leitura é “tudo”, facultando um grande valor a ela. Mas essa associação torna-se imprecisa ao levarmos em consideração que não existe uma objetivação concreta que possa ser associada a essa palavra.
[A leitura é] Tudo de bom. Prazer, alegria, desconstrução, crescimento e aprofundamento cultural e espiritual (PA21, 75 anos, graduada em Letras, aposentada há 16 anos).
Já por meio do segundo mecanismo de produção das representações – a ancoragem –, as professoras ancoram a leitura em suas crenças e valores, reconhecendo-a como uma prática positiva para a formação cultural e intelectual do ser humano. A leitura é ancorada em práticas utilitárias e estéticas, de modo que a veem como ferramenta para o conhecimento, instrumento para a interação, possibilidade de fruição e sobrevivência, conferindo uma concretude à prática leitora, já que ela pode ser materializada e classificada em categorias já existentes na mente.
Ao mapear as representações, nota-se que as crenças e valores das professoras acerca da leitura acompanham as ideias em circulação, dado que, por consenso, foi atribuído à leitura um papel indiscutivelmente otimista. Relacionada aos intercâmbios de conhecimentos, informações, ideias e pensamentos, as representações de leitura constituem um mosaico, no qual o ato de ler toma sentido a partir da necessidade, concebendo a leitura como uma prática utilitária quando visa à busca de conhecimento e interação, e também uma prática estética, ao ser associada ao entretenimento, beleza, prazer e fruição.
As representações sociais de professoras aposentadas estruturam-se por imagens e sentidos diversos, sendo o pilar que sustenta os modos como praticam ou prescrevem a leitura, formas que ecoam valores, crenças e possibilidades. Destarte, procuramos analisar representações de leitura de docentes aposentadas, buscando compreender a constituição de suas práticas leitoras e as crenças nelas implícitas.
Suas representações de leitura se estruturam em duas perspectivas – utilitária e estética –, dispondo de elementos consensuais que, mesmo percorrendo caminhos diferentes, direcionam-se para um mesmo lugar, realçando o caráter assertivo da leitura, construído a partir de suas formações como discentes e, sobretudo, enquanto docentes, em consonância com os discursos difundidos no meio social.
A partir dos dados colhidos e da análise à luz da Teoria das Representações Sociais de Moscovici (1978; 2015), concluiu-se que as representações das docentes se apresentam como um mosaico, ancorando em três eixos de sentidos: ferramenta para o conhecimento; instrumento para interação e fruição da linguagem. A face figurativa da leitura se configura como ferramenta, instrumento, viagem e sobrevivência, e a face simbólica constitui a leitura em conhecimento, interação e prazer.
O estudo permitiu ver que, independentemente das práticas realizadas, ao se apropriarem de discursos socialmente difundidos, a leitura se apresenta com um papel valorativo e essencial para vida cotidiana. Além disso, é por meio dela que as professoras veem a possibilidade de preservar a mente jovem e prevenir doenças que atingem o cérebro, ressaltando a importância do ato de ler. Tais perspectivas foram fundamentais para ver que a leitura é um bem em si, mesmo quando não realizada, ela é preservada em sua função vital, encontrando-se inscrita no imaginário social, elemento central nas representações das professoras.
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