A pol�tica p�blica de assist�ncia estudantil nas institui��es federais de ensino superior: conscientiza��o e educa��o libertadora em debate

 

Possibilities and challenges of student assistance in Federal Institutions of college education from the liberating education conception

 

La pol�tica p�blica de atenci�n estudiantil en las instituciones federales de educaci�n superior: conciencia y educaci�n liberadora en debate

 

 

D�rio Vaneli Junior

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brasil

vaneli.junior@ufms.br

 

Ademar de Lima Carvalho

Universidade Federal de Rondon�polis, Mato Grosso do Sul, Brasil

ademarlc@terra.com.br

 

Recebido em 27 de junho de 2021

Aprovado em 28 de agosto de 2021

Publicado em 02 de agosto de 2023

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar a pol�tica nacional de assist�ncia estudantil, materializada no Programa Nacional de Assist�ncia Estudantil (PNAES), no contexto do embate pol�tico, para o ensino superior no Brasil. A reflex�o parte da forma como essa pol�tica foi formulada e operacionalizada de 2007 a 2018, e como � avaliada e discutida, tanto em �mbito governamental quanto nas institui��es de ensino superior. A pesquisa � de car�ter bibliogr�fico e documental, dentro da perspectiva do pensamento Freiriano, fundado na conscientiza��o de que, para o autor, j� � m�todo, em uma an�lise da concep��o da realidade, vida e mundo no movimento da dialeticidade da pr�xis pol�tico-social. Diante da realidade sociopol�tica e econ�mica que desafia a possibilidade de acesso e perman�ncia do estudante na Universidade, compreendemos que se faz necess�rio inserir a pol�tica p�blica de assist�ncia estudantil no contexto maior de uma educa��o como pr�tica da liberdade, institu�da no di�logo e na participa��o.

Palavras-chave: Assist�ncia estudantil; Pol�tica p�blica; Educa��o libertadora.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the national policy of student assistance materialized in the National Program of Student Assistance (PNAES), in the context of political conflict, for higher education in Brazil. The reflection parts from the way this policy was formulated and managed from 2007 to 2018, and how it is assessed and discussed, in the government scope, as well as in the institutions of higher education. The research is bibliographical and documental, within the perspective of Paulo Freire�s thought, based on the awareness that, for the author, it is already a method, in an analysis of the conception of reality, life, and the world in the movement of �dialecticity� of political-social praxis. We comprehend that, given the sociopolitical and economic reality that challenges the possibility of access and permanency of the student in the University, it is necessary to insert a public policy of student assistance in the bigger context of an education as a practice of liberty, established in the dialogue and the participation.

Keywords: Student assistance; Public policy; Liberating education.

 

RESUMEN

Este art�culo tiene como objetivo analizar la pol�tica nacional de atenci�n al estudiante, materializada en el Programa Nacional de Atenci�n al Estudiante (PNAES), en el contexto del choque pol�tico, para la educaci�n superior en Brasil. La reflexi�n parte de la forma en que esta pol�tica fue formulada y operativizada de 2007 a 2018, y c�mo es evaluada y discutida, tanto a nivel de gobierno como en las instituciones de educaci�n superior. La investigaci�n es de car�cter bibliogr�fico y documental, en la perspectiva del pensamiento freireano, a partir de la conciencia de que, para el autor, es ya un m�todo, en un an�lisis de la concepci�n de la realidad, la vida y el mundo en el movimiento de la dial�ctica de la praxis pol�tico-social. Ante la realidad sociopol�tica y econ�mica que desaf�a la posibilidad de acceso y permanencia de los estudiantes en la Universidad, entendemos que es necesario insertar la pol�tica p�blica de atenci�n al estudiante en el contexto m�s amplio de la educaci�n como pr�ctica de libertad, instituida en el di�logo. y participaci�n.

Palabras llave: Atenci�n al estudiante; Pol�tica p�blica; Educaci�n liberadora.

 

Introdu��o

����������� Este artigo faz uma an�lise contextualizada da pol�tica nacional de assist�ncia estudantil, materializada pelo Programa Nacional de Assist�ncia Estudantil (PNAES), visando entender a que fins concretos ela serve, ou, dito de outra forma, quais objetivos reais tende a alcan�ar da forma como est� posta nas Institui��es Federais de Ensino Superior (IFES), tendo como recorte temporal os anos de 2007 a 2018[1]. O pressuposto da reflex�o fundamenta-se na concep��o de educa��o como pr�tica da liberdade, defendida por Paulo Freire, como a que prop�e a leitura do mundo a partir dos reais interesses dos oprimidos e das camadas populares. Portanto, pode fomentar uma pol�tica de assist�ncia que seja conscientizadora, suscitando, na universidade p�blica, a participa��o democr�tica e a solidariedade, caracterizando-se como libertadora.

A an�lise documental baseia-se na Portaria Normativa n� 39, de 12 de dezembro de 2007 que criou o PNAES e, no Decreto n� 7234, de 19 de julho de 2010 que a regulamentou. Associa-se ao estudo de bibliografias sobre o tema, problematizadas a partir do conceito de liberta��o proposto por Paulo Freire.

����������� Metodologicamente a pesquisa ancora-se na Conscientiza��o. Para Freire (1979a, p. 26), a conscientiza��o j� � m�todo, � �[...] um teste de realidade. Quanto mais conscientiza��o, mais se �desvela� a realidade, mais se penetra na ess�ncia fenom�nica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analis�-lo�. Nessa perspectiva a liberta��o � um processo cont�nuo de rela��o entre a��o e reflex�o para a leitura do mundo. Uma pol�tica p�blica pode auxiliar nesse processo de estudo da realidade social, ancorada na op��o metodol�gica relacionada ao movimento dial�tico da a��o transformadora.

A implementa��o de uma pol�tica de educa��o alicer�ada nessa concep��o visa precipuamente a constitui��o de uma sociedade capaz de superar a pol�tica de exclus�o consubstanciada na l�gica de oprimidos e opressores. A educa��o na perspectiva libertadora tem como finalidade (utopia), a forma��o do estudante como sujeito comprometido com a transforma��o e inclus�o social. A supera��o da cultura institu�da na sociedade, que produz a desumaniza��o fundada na forma de pensar subjugada, � um processo �rduo, essencialmente aos primeiros, a quem cabe romper com a atual estrutura da sociedade, de emers�o de um estado de aliena��o, de atitude fatalista diante da hist�ria e do mundo, das explica��es ing�nuas diante da vida e seus problemas, da hist�ria como uma sucess�o de fatos moldados por for�as externas, que aniquilam ou diminuem substancialmente o poder de decidir.

A liberta��o, argumenta Freire (1987, p. 23):

� um parto doloroso. O homem que nasce deste parto � um homem novo que s� � vi�vel na e pela supera��o da contradi��o opressores-oprimidos, que � a liberta��o de todos. A supera��o da contradi��o � o parto que traz ao mundo este homem novo n�o mais opressor; n�o mais oprimido, mas homem libertando-se.

� importante ressaltar que n�o cremos ou afirmamos que a educa��o promove, por si s�, a mudan�a das estruturas sociais e econ�micas, mas entendemos que, sem ela, tampouco se efetivar�. Por isso, compreend�-la em sua totalidade e fazer da assist�ncia estudantil uma possibilidade, um canal de liberta��o do indiv�duo, com o car�ter de conquista, Direito, renegando o car�ter de d�diva social, � princ�pio de uma educa��o superior com a real presen�a do Estado no atendimento �s demandas das camadas populares.

A pol�tica de assist�ncia estudantil, pensada na perspectiva da universidade popular, constitui um instrumento para produzir a ruptura com o particionamento dessa institui��o e individualismo do agir humano apenas em favor de si, visando � vit�ria sobre o outro, seja no mercado de trabalho ou em meros processos seletivos para acesso a uma bolsa financeira. Dessa forma, apresenta-se como mais um canal para uma sociedade humanizada de fato, que socializa os bens do capital e n�o aniquila a possibilidade criativa, reflexiva e de decis�o, de homens e mulheres estudantes universit�rios.

Posto isso, urge fomentar na sociedade e na educa��o superior a participa��o democr�tica, o viver em comunidade.

Uma das conceitua��es mais interessantes de comunidade, atribu�da a Marx, � a seguinte: um tipo de vida em sociedade �onde todos s�o chamados pelo nome�. Esse �ser chamado pelo nome� significa uma viv�ncia em sociedade onde a pessoa, al�m de possuir um nome pr�prio, isto �, al�m de manter sua identidade e singularidade, tem possibilidade de participar, de dizer sua opini�o, de manifestar seu pensamento, de ser algu�m. (GUARESCHI, 1996, p. 95, grifos do autor).

Em contradi��o a essa vis�o est� o sujeito autossuficiente, individualista, que se auto administra como uma empresa e investe em si, caracterizando o perfil neoliberal atual. O autor argumenta ainda que s� h� verdadeira democracia com uma participa��o efetiva, na qual as pessoas tenham voz e consci�ncia cr�tica na resolu��o dos problemas e condu��o de seus destinos coletivamente. Do contr�rio, mesmo acessando a educa��o superior e sendo assistidos com pol�ticas como a de assist�ncia estudantil, os estudantes continuam proibidos de ser, negando a voca��o ontol�gica do ser humano, que � ser mais, permanecendo em uma postura de leitura m�gica e ing�nua do mundo ou mesmo reprodutora da l�gica classista de exploradores e explorados.

Para que este ciclo seja rompido, faz-se premente a discuss�o em torno de um modelo de universidade que promova a real integra��o das pessoas umas com as outras e com o mundo, e n�o apenas a adapta��o ao modelo dominante, predat�rio da vida, ego�sta na ess�ncia.

Universidade fidedignamente democr�tica, sem privil�gios de classe, o processo pedag�gico respeitando as diferen�as individuais impostas pela priva��o econ�mica e cultural; e, na pesquisa aplicada e tecnol�gica levando na devida conta as necessidades da sociedade. Somente pela dial�tica a Universidade � transformadora, pelo ensino conscientizador, pela pesquisa cr�tica, e pela extens�o libertadora. (MACEDO, 2000, p. 38-39).

Assim estruturada, a universidade n�o serve apenas ao mercado, embora n�o seja alheia a ele. Suas necessidades nascem de seu entorno, de sua comunidade. Forma para a concep��o plural do mundo, rejeita uma consci�ncia fanatizada por concep��es filos�ficas ou religiosas. � rigorosa e nega o relativismo do conhecimento, este voltado primordialmente ao humano, a uma sociedade humanizada. �O humanismo � um compromisso radical com o homem concreto. Compromisso que se orienta no sentido de transforma��o de qualquer situa��o objetiva na qual o homem concreto esteja sendo impedido de ser mais� (FREIRE, 1978, p. 22). Ser mais, para o autor, � um aprimoramento humano: na valoriza��o do indiv�duo como homem, para a vida coletiva; na busca pela liberdade que n�o � doa��o; na certeza de que somos seres inconclusos, em constante aprendizagem. Assim, a vida � possibilidade e projeto, negados aos oprimidos e esfarrapados do mundo.

Construir uma universidade verdadeiramente dial�tica, voltada aos anseios da comunidade, interligada ao contexto externo, participativa, requer, ainda, romper com a cultura do fechamento em si, do fazer comunicados a se cumprir, da verticaliza��o das estruturas administrativas e das decis�es. Historicamente, somos marcados pelo mandonismo do �senhor de engenho�, dono das terras, dos meios de produ��o e das gentes. Posteriormente, na forma��o das cidades por essas pessoas quase sempre expulsas do campo (FREIRE, 1978, p. 68), o que caracteriza uma forma��o social verticalizada, com grandes entraves ao di�logo.

Assim, problematizar sobre a pol�tica de assist�ncia no ensino superior implica em compreender o contexto de cria��o dessa pol�tica de forma sistematizada em �mbito nacional, requer, tamb�m, uma r�pida retomada da luta dos estudantes, oriundos das camadas populares, por acesso e perman�ncia na educa��o superior ao longo da forma��o hist�rica do Pa�s. Esse n�vel de educa��o � caracterizado como excludente, concedendo a uma minoria � a elite econ�mica � a predestina��o para adentrar � universidade e, desse modo, formar os quadros para dirigir a sociedade e integrar o Estado (CUNHA, 2007).

O autor esclarece que as primeiras universidades surgiram no pa�s, de fato, apenas no in�cio do s�culo XX, de forma tardia em rela��o � maioria dos pa�ses da Am�rica Latina. Anteriormente a esse per�odo, portanto, havia apenas escolas e cursos superiores isolados. Por outro lado, o acesso das camadas populares � educa��o superior ocorreu de forma concreta apenas no in�cio deste s�culo, com a ascens�o do Presidente Luiz In�cio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, trazendo grande expectativa aos movimentos sociais e dos trabalhadores no atendimento de suas demandas.

No decorrer do s�culo XX, conforme Borsato (2015), as lutas pelo acesso � universidade se evidenciaram pela atua��o da Uni�o Nacional dos Estudantes (UNE), que, desde seu surgimento, na d�cada de 1930, defendeu o acesso, a perman�ncia e a garantia de assist�ncia estudantil universalizada. Por�m, nunca se efetivou uma assist�ncia estudantil como pol�tica nacional, garantida como Direito, restando sempre programas ou a��es isoladas em cada institui��o.

A redemocratiza��o do pa�s, nos anos 1980, abriu espa�o para o fortalecimento das discuss�es sobre a democratiza��o da universidade e do ensino superior. Nessa esteira foi que o F�rum Nacional de Pr�-Reitores de Assist�ncia estudantil e Assuntos Estudantis (FONAPRACE)[2] teve papel de protagonismo na defesa da assist�ncia estudantil para as IFES, juntamente com a Associa��o Nacional de Dirigentes das Institui��es Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Essas organiza��es visavam:

[...] garantir a igualdade de oportunidades aos estudantes das Institui��es Federais de Ensino Superior (IFES) na perspectiva do direito social, al�m de proporcionar aos alunos as condi��es b�sicas para sua perman�ncia e conclus�o do curso, contribuindo e prevenindo a erradica��o, a reten��o e a evas�o escolar decorrentes das dificuldades socioecon�micas dos alunos de baixa renda. (VASCONCELOS, 2010, p. 604).

Evidenciamos a preocupa��o das institui��es n�o s� quanto ao acesso, mas tamb�m � perman�ncia e ao combate � evas�o, suscitando o debate sobre a real necessidade de haver assist�ncia estudantil em quantidade e qualidade suficientes, no sentido de garantir o sucesso acad�mico dos estudantes em condi��es econ�micas, cognitivas, psicol�gicas etc. desfavor�veis.

O FONAPRACE tem, desta forma, destaque na formula��o de uma assist�ncia estudantil, ampla, de car�ter nacional. �Essa primeira proposta do FONAPRACE surgiu a partir da realiza��o de uma pesquisa entre 1996 e 1997 para conhecer o perfil socioecon�mico e cultural dos discentes de gradua��o das IFES [...]� (PINTO, 2015, p. 64). Uma nova rodada de estudos, efetivada nos anos de 2003 e 2004, visando mapear o perfil e as necessidades dos estudantes, acabou por embasar a cria��o do PNAES, em um governo que ampliou o di�logo, inclinando-se ao atendimento das demandas sociais.

Concretizado pelo Decreto Lei 7.234, de 19 de julho de 2010, o Programa permanece assim at� a atualidade, sem a garantia de estar efetivado em lei.

Cabe ressaltar a inequ�voca conquista que foi a cria��o de uma pol�tica nacional de assist�ncia estudantil voltada �s IFES, o que possibilita dar continuidade ao acesso e democratiza��o da educa��o superior j� anteriormente iniciados, oferecendo condi��es razo�veis para a perman�ncia e conclus�o dos estudos em n�vel superior.

O contexto de expans�o e democratiza��o da educa��o superior

Ao ascender ao poder em 2003, o governo do Presidente Lula (PT) iniciou um processo in�dito de expans�o, interioriza��o e democratiza��o da educa��o superior. Esse governo herdou de seu antecessor um arcabou�o jur�dico, sendo a principal refer�ncia a Lei de Diretrizes e Bases da Educa��o Nacional Lei 9.394/96 (LDBEN) que fomentou a abertura do setor educacional � iniciativa privada, em seu Artigo 3�, V, est� prevista a �coexist�ncia de institui��es p�blicas e privadas de ensino� (BRASIL, 1996).

Todavia, � importante salientar que, durante os oito anos (1995-2003) de governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Partido da Social Democracia Brasileira [PSDB]), apenas estruturou-se melhor o caminho para o crescimento vertiginoso do setor privado, ficando marcado por forte austeridade em rela��o �s IFES. J� o avan�o da expans�o no Ensino Superior, na perspectiva de garantir acesso e perman�ncia ao estudante oriundo das camadas populares, tem como marco referencial o governo subsequente.

A diferen�a para seu sucessor est� basicamente no fato deste ter ampliado massivamente as institui��es p�blicas em conson�ncia ao crescimento privado atrav�s de programas subsidiados pelo Estado, como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento ao Estudante da Educa��o Superior (FIES). O primeiro oferecendo bolsas de estudo para jovens de baixa renda, e o segundo, o financiamento[3] em condi��es e com juros mais acess�veis que os de mercado.

Desta forma, o governo do Presidente Lula, conforme Orso (2007), caracterizou-se por um pacto de classes, conciliando interesses e demandas populares e das elites detentoras do capital. �Nesse processo, a vis�o que o trabalhador tem da educa��o � a pedra de toque para a forma��o do cidad�o do s�culo XXI: produtivo, �til e mudo� (SILVA JR., 2005, p. 13). Nessa perspectiva, tanto Lula como sua sucessora, Dilma Rousseff (PT) coadunaram na reprodu��o da sociedade mercantilizada, sem um projeto capaz de romper com a l�gica do capital. O Estado ofereceu condi��es m�nimas de supera��o da pobreza e exclus�o do acesso a bens e servi�os, mas o fez, contudo, atuando dentro do paradigma perverso e explorat�rio do capital. Este, para M�sz�ros (2008) � irreform�vel em sua l�gica de acumula��o e explora��o do trabalho pelo capital, n�o havendo outra sa�da sen�o a supera��o deste sistema para uma sociedade livre de classes.

Antes de avan�armos sobre a cria��o do PNAES e seus objetivos, afirmamos, de antem�o, n�o considerar essas e outras pol�ticas como mera reprodu��o do sistema e como forma de arrefecimento de tens�es sociais, elas s�o valorosas conquistas das camadas populares. Neste caso, garantindo a concretiza��o do acesso e, especificamente, a perman�ncia na Universidade, n�vel de educa��o e institui��o historicamente marcados pela segrega��o classista, reflexo da sociedade de onde � produto e produtora.

Por outro lado, precisa ser entendido que essas pol�ticas, se criadas de forma participativa e implementadas conscientizando para a real leitura do mundo, atuam, sem d�vida, como produtoras de fissuras no sistema, abrindo espa�o para a forma��o e atua��o cr�tico-participativa do estudante na sociedade.

A vis�o dial�tica e da totalidade da pol�tica de assist�ncia nos permite entend�-la no contexto das pol�ticas neoliberais, atreladas e centradas �s prescri��es dos organismos multilaterais, como o Fundo Monet�rio Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organiza��o das Na��es Unidas (ONU). Assim implementada, em contradi��o ao real atendimento da demanda dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, tem a inten��o de descaracterizar o verdadeiro sentido e significado da assist�ncia. Na �tica da educa��o libertadora, pelo contr�rio, uma pol�tica p�blica objetiva o di�logo e a inser��o de todos no processo de decis�o, indispens�vel � consci�ncia cr�tica.� Embora a pol�tica implementada no governo do Presidente Lula tenha se caracterizado pelo vi�s de concilia��o de classes, da busca do consenso, houve tamb�m a amplia��o do di�logo e essa in�dita inser��o popular no or�amento p�blico e no ensino superior.

Para Almeida (2009, p. 115), �as pol�ticas (como s�o as a��es afirmativas) desempenham um papel importante na educa��o superior, destinando acesso a grupos que, em virtude de fatores econ�micos, sociais e culturais, n�o chegam a esse n�vel de ensino�. A contradi��o interesses do capital x interesses do trabalhador sempre existir� no sistema capitalista, mas avan�os nas condi��es de vida material e intelectual devem ser resguardados e apropriados de modo conscientizador, para que n�o se tornem mera doa��o com a possibilidade de agradecimento ing�nuo.

Embora imersos nos padr�es neoliberais, uma larga parcela da popula��o, antes exclu�da da oportunidade de acesso e perman�ncia na educa��o superior, tem chegado �s universidades. Em contradi��o, revigora-se a perspectiva da forma��o de capital humano, da pessoa que gere sua vida e forma��o como uma empresa, tendo em vista o conceito de�

[...] �sociedade do conhecimento�, aponta mais uma vez a rela��o de depend�ncia entre educa��o e desenvolvimento econ�mico e social, excluindo fatores estruturais que determinam as desigualdades de classe, enfatizando o valor do desempenho individual como determinante da condi��o de cada um na sociedade e da sociedade em seu conjunto. (MELO, 2013, p. 41, grifo da autora).

 

O essencial � penetrar na ess�ncia dessa contradi��o, pois n�o se trata apenas de solu��es paliativas para problemas estruturais do sistema, que gera mis�ria e explora��o em larga escala e, por outro lado, as atenua, para que n�o se rompa esse ciclo. Cria condi��es materiais de resist�ncia, participa��o, atua��o social, abrindo fissuras que permitem pensar uma nova configura��o que pelo menos avance sobre o quadro atual, em dire��o a um mundo menos feio, mais humano. Para Freire (1978, p. 22), �o humanismo � um compromisso radical com o homem concreto. Compromisso que se orienta no sentido de transforma��o de qualquer situa��o objetiva na qual o homem concreto esteja sendo impedido de ser mais�.

Para o autor, ser mais � a voca��o ontol�gica do humano, ancorado na liberdade e responsabilidade com o mundo e com o outro, em comunh�o na luta para a autotransforma��o social. Sendo assim, � fundamental entender que a media��o para o engajamento social tem como pressuposto metodol�gico a forma��o da consci�ncia cr�tica. Portanto, o ponto de partida tem centralidade na a��o-reflex�o, geradora da conscientiza��o como m�todo para conhecer o mundo, agindo de forma cr�tica nele.

A a��o n�o acontece no vazio, mas num contexto real, por isso, cabe ressaltar, ainda, que frente aos desafios e possibilidades da pol�tica p�blica de assist�ncia estudantil no contexto de uma pr�xis educativa libertadora, precisamos potencializar a quebra do paradigma do Estado ausente, do m�rito entre desiguais; assiste-se, atrav�s de pol�ticas sociais, os exclu�dos do acesso a bens e servi�os antes acess�veis a uma minoria de �bem-nascidos�.

 

O PNAES como pol�tica p�blica

A expans�o do ensino superior tem rela��o com a pol�tica socioecon�mica implementada pelo Estado, bem como como a import�ncia dada � educa��o como estrat�gia de desenvolvimento da na��o. Tendo caracterizado brevemente o quadro socioecon�mico de ascens�o dos governos petistas ao poder e a concep��o de pol�tica p�blica como conquista e viv�ncia cr�tico-participativa, passamos a discorrer sobre a cria��o do PNAES.

O PNAES surge para contemplar uma demanda popular por pol�ticas p�blicas voltada ao atendimento das necessidades de acesso e, neste caso, de perman�ncia na educa��o superior. O Programa foi criado no �mbito do Minist�rio da Educa��o (MEC) atrav�s da Portaria Normativa n. 39, de 12 de dezembro de 2007 e estabelecido como Programa Nacional pelo Decreto n. 7234, de 19 de julho de 2010 (BRASIL, 2010). Ele contribuiu para um processo mais amplo de expans�o, interioriza��o e democratiza��o da educa��o superior, iniciado no governo do Presidente Lula, e que teve grande impulso com o Programa de Apoio a Planos de Reestrutura��o e Expans�o das Universidades Federais (Reuni)[4].

O Decreto apresenta um misto de objetivos socioecon�micos e pedag�gicos, demonstrando que aquele governo n�o nega as disparidades regionais e problemas de desigualdades socioecon�micas, presentes na forma��o hist�rica do pa�s, atuando atrav�s da presen�a do Estado a fim de ameniz�-los. O Programa tem os seguintes objetivos:

I - Democratizar as condi��es de perman�ncia dos jovens na educa��o superior p�blica federal; II - minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na perman�ncia e conclus�o da educa��o superior; III - reduzir as taxas de reten��o e evas�o; e IV - contribuir para a promo��o da inclus�o social pela educa��o. (BRASIL, 2010).

A consecu��o desses objetivos deve ser avaliada em sua totalidade e em cada institui��o, pois elas t�m autonomia para a sele��o dos benefici�rios e avalia��o das a��es; conforme o Art. 5�, Par�grafo �nico, as institui��es dever�o fixar �II - mecanismos de acompanhamento e avalia��o do PNAES� (BRASIL, 2010). A quest�o econ�mica e o p�blico a que se remete ficam claros no Caput do mesmo Artigo, ao estabelecer que se destina a �estudantes oriundos da rede p�blica de educa��o b�sica ou com renda familiar per capita de at� um sal�rio m�nimo e meio, sem preju�zo de demais requisitos fixados pelas institui��es federais de ensino superior�.

A consolida��o da assist�ncia estudantil em �mbito nacional coroa a luta hist�rica da UNE e das institui��es p�blicas federais, ao fornecer condi��es razo�veis de perman�ncia na universidade para aqueles que, com seus pr�prios recursos � financeiros, cognitivos, psicol�gicos � n�o conseguiriam concluir uma gradua��o universit�ria. � encarar de forma concreta os desafios de uma sociedade de classes que historicamente excluiu a maioria da popula��o desse n�vel de educa��o, caracterizado por certa �predestina��o� das elites. Ressaltamos que desde sua cria��o a pol�tica de assist�ncia vem crescendo em recursos, ampliando as possibilidades de assist�ncia.

A seguir, o gr�fico 1 demonstra o quantitativo de recursos investidos de 2008 a 2017.

Gr�fico 1 � Recurso do PNAES em milh�es (2008 a 2017)

gr�fico: Recursos destinados ao PANAES de 2008 � 2017. Elaborado pelo autor

Fonte: BRASIL, 2017.

 

Vemos que os recursos cresceram vertiginosamente em dez anos, o que justifica a necessidade de pesquisas e avalia��es dos resultados. Neste estudo, consideramos pol�ticas p�blicas como o PNAES uma relevante conquista das camadas populares. O que importa � a forma de elabora��o, gest�o e avalia��o dessa pol�tica que, n�o ocorrendo de maneira cr�tica, participativa e dial�gica, pode recair em atenuante de tens�es e explora��o social do capital sobre a maioria e gerar, ainda, agradecimento ing�nuo por um Direito.

De 2003 a 2016 tivemos presidentes petistas, com dois mandatos do Presidente Lula e dois da Presidenta Dilma Rousseff, sendo o segundo mandato desta interrompido em seu segundo ano por um processo de impeachment, no m�nimo, duvidoso, quanto ao cometimento do crime de responsabilidade, levando o vice-presidente, Michel Temer, do Partido do Movimento Democr�tico Brasileiro (PMDB) a assumir, implantando uma agenda mais agrad�vel ao mercado, de retra��o de direitos e austeridade com os trabalhadores[5].

Essas gest�es, iniciadas por Lula, ficaram marcadas por certo consenso de classes e aumento do di�logo em rela��o aos anteriores (ORSO, 2007). Por outro lado, esse quadro escamoteia as contradi��es da explora��o do capital sobre o trabalho, atenuando tens�es sociais advindas desse cen�rio. A a��o-reflex�o pelo prisma de uma educa��o libertadora requer uma apropria��o dial�tica, participativa, de qualquer pol�tica. O que a faz libertadora ou atenuadora de tens�es (domesticadora) � a forma como � elaborada, gestada e avaliada.

A aut�ntica democratiza��o do ensino consiste precisamente em extinguir a predestina��o universit�ria. Para tanto, � necess�rio que o processo educacional, em todas as suas fases, seja franqueado �s massas trabalhadoras na totalidade, e estas atravessem, portanto, sem obst�culos intranspon�veis, os p�rticos das faculdades. (PINTO, 1986, p. 99).

Assim, a discuss�o deve se concentrar na universaliza��o da assist�ncia a todos que dela necessitam para permanecer na institui��o e concluir com �xito seus estudos. Refor�ar a vis�o da educa��o e suas pol�ticas como direito e n�o como mercadoria, buscar a forma��o onilateral[6] do ser humano e n�o apenas a qualifica��o t�cnica para o trabalho e para ser um consumidor �vido de produtos, tend�ncias e prescri��es quase sempre padronizadas pelo capital.

Compreendemos, ent�o, que o PNAES corrobora para romper com essa l�gica hist�rica excludente e seletiva que dificulta que o estudante das camadas populares n�o apenas ingresse, mas que se mantenha no ensino superior. A proposi��o do PNAES � assegurar as condi��es m�nimas para concretizar o ingresso e, sobretudo, a perman�ncia na Universidade, possibilitando que pessoas advindas das camadas populares tenham acesso ao saber acumulado historicamente e, assim, obtenham uma forma��o erudita que lhes assegure a condi��o de reflex�o e atua��o na vida e no mercado de trabalho, em posi��es e profiss�es antes inacess�veis.

 

Por uma assist�ncia estudantil que sirva aos reais interesses das camadas populares

 

O PNAES consolidou-se como pol�tica p�blica para a educa��o inserido em um projeto maior de acesso, perman�ncia, democratiza��o, expans�o e interioriza��o das IFES, a partir do in�cio deste s�culo. Diante disso, surgem indaga��es a respeito do conte�do das legisla��es que normatizam tais pol�ticas: esse conte�do � de cunho libertador? E a constru��o, gest�o e avalia��o da pol�tica � participativa, dial�gica? S�o quest�es que fundamentam a cr�tica, de modo propositivo, na perspectiva de melhorar a qualidade pol�tica e pedag�gica das a��es; do contr�rio, mesmo que com elabora��es pomposas ao olhar progressista, n�o passar�o de atenuadoras de tens�es sociais provocadas no bojo de uma sociedade desigual, predat�ria da vida e do planeta, formando novos cidad�os d�ceis.

Nossa reflex�o, por sua vez, parte da compreens�o de universidade dial�tica[7], comprometida com a forma��o do estudante capaz de produzir a an�lise cr�tica do mundo contempor�neo. Entendemos que a universidade, como espa�o de socializa��o e produ��o do conhecimento, tem um papel central no processo formativo da pessoa humanizada.

Nesse sentido, a educa��o como pr�tica da liberdade aparece como op��o, como um debate necess�rio, contraponto � vis�o de mundo e de educa��o neoliberal, que � parte do mercado, produto a ser oferecido a consumidores que escolhem de acordo com suas possibilidades financeiras. Isso implica em uma op��o radical pela perspectiva popular e dos oprimidos, no atendimento de suas demandas, visando �[...] construir um futuro eticamente mais justo, politicamente mais democr�tico, esteticamente mais irradiante e espiritualmente mais humanizador� (BOFF, 2011, p. 11).

Mesmo que o PNAES seja uma pol�tica voltada aos alunos, pensar a pol�tica de assist�ncia ao estudante e a educa��o no espa�o da universidade, sem a participa��o ativa dos docentes, constitui um equ�voco. Pensamos que isso pode incorrer em grave erro, pelo fato de que recorta e particiona a realidade educacional e o mundo enquanto totalidade. Implica inseri-los como lideran�a popular cr�tico-reflexiva, conhecedores da realidade de seu entorno, cada vez mais capazes de ler o mundo e encontrar solu��es para seus dilemas subjetivos e coletivos.

A atua��o docente para a liberta��o requer compromisso. Para Freire (1979b, p. 21): �N�o � poss�vel um compromisso aut�ntico se, �quele que se julga comprometido, a realidade se apresenta como dado, est�tico e imut�vel. Se este olha e percebe a realidade enclausurada em departamentos estanques�. Este compromisso est� associado a uma a��o libertadora constante, enquanto utopia de vida, e caracteriza um rompimento com as divis�es f�sicas, departamentais da universidade e da vida, bem como as simb�licas.

A assist�ncia estudantil comprometida com a supera��o da assist�ncia domesticadora representa um agir conscientizador na busca do ser mais, de um mundo novo que come�a na dimens�o local, fundada no di�logo e no amor ao pr�ximo, por�m, sem abandonar o rigor te�rico e metodol�gico no ato de educar e que exige a forma��o universit�ria.

A possibilidade de uma assist�ncia estudantil libertadora implica a forma��o do sujeito, capaz de assumir a resist�ncia coletiva ao modelo prescricional, verticalizado, que produz a reifica��o do indiv�duo e nega��o do di�logo e amor no �ch�o do campus�. Essa pr�tica de assist�ncia vira parte de uma educa��o �rida na busca de uma sociedade humanizada. Por outro lado, vale ressaltar que a concep��o pol�tica no interior da universidade, associada � l�gica da domestica��o, tem contribu�do como motor de cr�tica �s pol�ticas p�blicas de assist�ncia estudantil. Boa parte das cr�ticas est�o relacionadas a duas vertentes: de um lado, ao desconhecimento de seus objetivos; de outro, ao vi�s economicista, com foco no repasse financeiro aos alunos, sem uma aproxima��o e constru��o libertadora, que revele a assist�ncia como um direito social que garante o acesso e perman�ncia do estudante na universidade, favorecendo o sentido coletivo e unilateral da forma��o humana.

O capitalismo neoliberal � centrado no indiv�duo, este se gere como empresa, ao investir na pr�pria educa��o, por isso no individualismo e ego�smo massificante, que a todos padroniza nos gostos e consumismo direcionado. A educa��o e suas pol�ticas, mesmo inseridas nesse contexto, t�m uma margem de reelabora��o na realidade em que s�o inseridas, os sujeitos as ressignificam, abrindo espa�o para uma viv�ncia mais coletiva e solid�ria. Desta forma, s�o fomentados a participa��o, o di�logo e a solidariedade, implicando no questionamento de poss�veis prescri��es verticalizadas de pol�ticas, sejam elas quais forem.

Os objetivos e a exist�ncia do PNAES, em todas as IFES, possuem caracter�sticas de uma educa��o e, por conseguinte, de uma pol�tica, libertadora. Cabe indagar como cada institui��o recebe e trabalha essa pol�tica, como a constr�i com a comunidade acad�mica? Em que medida as pessoas t�m voz na sua elabora��o e avalia��o? Reproduzir uma cultura de fazer comunicados (doa��o), pode tornar esse poss�vel canal de di�logo e liberta��o mais um instrumento de domestica��o ao n�o fomentar a reflex�o e o empoderamento cr�tico (conscientiza��o) por parte, principalmente, dos benefici�rios, que precisam reconhec�-la como Direito social.

 

Considera��es finais

A partir do in�cio deste s�culo, ocorreu uma mudan�a expressiva quanto ao acesso das camadas populares � educa��o superior, refor�ado por programas que auxiliam na perman�ncia. � poss�vel afirmar que este cen�rio favorece a liberta��o dessa classe, embora o debate ressurja no devir constante que � a exist�ncia humana, movida pela busca do ser mais. Almejando uma pol�tica de assist�ncia estudantil que contribua para a emancipa��o e liberta��o, cabe lutar para que a elabora��o, gest�o e avalia��o dessas pol�ticas e seus programas, tanto em �mbito governamental, quanto nas IFES sejam fomentadores da autonomia, da conscientiza��o, do di�logo, da solidariedade, aspectos indissoci�veis de uma educa��o reconhecida como Direito social e uma sociedade humanizada.

Essa explana��o remete-nos a outra mais ampla, acerca da import�ncia da universidade p�blica, gratuita e de qualidade socialmente referenciada, inserida tamb�m na realidade das cidades do interior do Pa�s, proporcionando forma��o superior. A defesa desta institui��o e de pol�ticas de aceso e perman�ncia a ela, com vistas � forma��o cr�tica e libertadora, apresenta-se como objetivo inicial a ser almejado, resguardado e ampliado como conquista, diante do crescimento da explora��o e pauperiza��o dos trabalhadores, cen�rio que foi refor�ado pela ascens�o do governo de (extrema) direita, do Presidente Jair Messias Bolsonaro (PSL), associado ao conservadorismo religioso e ao autoritarismo.

Os estudos sobre pol�ticas p�blicas devem considerar, ainda, que as pol�ticas sociais e educacionais que visam � expans�o do Estado est�o seriamente comprometidas ap�s a aprova��o da Proposta de Emenda � Constitui��o (PEC) 55/2016, que limita os gatos (para n�s, investimentos) p�blicos pelo per�odo de vinte anos.

Posto isso, o desafio que se apresenta aos estudantes e � comunidade acad�mica que agora acessa esse n�vel de educa��o, bem como aos que vivem ou viver�o do trabalho, � assegurar essa conquista como Direito, com recursos que visem � universaliza��o, ou seja, assist�ncia a todos que com suas condi��es materiais n�o teriam possibilidade de permanecer na gradua��o. Em um prisma mais amplo, � garantir o v�nculo dessa pol�tica educacional com uma educa��o como pr�tica da liberdade, tal como prop�e Freire (1978), na utopia de se concretizar uma sociedade menos feia, humana de fato[8], onde seja poss�vel amar, livre do ego�smo individualista caracter�stico dos tempos neoliberais.

Por fim, o simples acesso ao ensino superior, bem como �s a��es que facilitam a perman�ncia, sem participa��o e reflex�o, podem refor�ar posi��es de competi��o e agradecimento ing�nuo. A pol�tica de assist�ncia estudantil conscientizadora visa melhorar a leitura real do mundo, questionar as desigualdades e garantir uma educa��o de qualidade, p�blica, gratuita e como Direito de todos, n�o como mercadoria, e que vise apenas forma��o t�cnica competitivista. � tamb�m uma ruptura � l�gica da aus�ncia do Estado no amparo �s camadas populares, �s suas reais necessidades, por isso, uma conquista! Neste caso, de condi��es materiais, pedag�gicas, psicol�gicas e socioculturais de perman�ncia no ensino superior e, de forma mais ampla, na educa��o superior.

 

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Notas



[1] O recorte desta abordagem n�o adentra o governo do Presidente Jair Messias Bolsonaro (atualmente sem partido), que ser� tema de estudos posteriores, com caracter�sticas de extrema direita. Houve, a partir da�, um revigoramento das posturas extremistas centradas no nacionalismo, xenofobia, cria��o de um inimigo comum e etc. No campo econ�mico e educacional, a pol�tica neoliberal intensificou-se o que refletiu o decr�scimo anual dos valores destinados ao PNAES. Dispon�vel em: https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/com-menor-orcamento-de-assistencia-estudantil-na-decada-alojamentos-universitarios-tem-inseguranca-falta-de-comida-1-25029469.

[2]� O FONAPRACE foi criado em 1987, ap�s a redemocratiza��o do pa�s e assumiu, desde ent�o, o protagonismo na estrutura��o da assist�ncia estudantil nas Institui��es de Ensino Superior (IES). Este F�rum foi o respons�vel pela apresenta��o do Plano Nacional de Assist�ncia Estudantil ao Minist�rio da Educa��o (MEC), em 2007, que resultou na efetiva��o do PNAES, atrav�s da Portaria Normativa n. 39, de 12 de dezembro de 2007, pelo MEC (BORSATO, 2015). Frisamos, contudo, que essa centralidade do pensar a pol�tica de assist�ncia, a partir de um F�rum de Pr�-reitores de IES, mesmo havendo di�logo com as entidades de representa��o estudantil, relega ao aluno benefici�rio, principal ator desse processo, uma participa��o diminuta e secund�ria em sua elabora��o, o que pode fomentar a perspectiva de doa��o. Compreendemos que a liberta��o n�o � doa��o e sim conquista, processo vivido nas pr�xis de buscar e criar solu��es para os problemas da vida, de tornar a vida e a hist�ria uma possibilidade, em comunh�o com o semelhante.

[3]� Kato e Brito (2020, p. 12), aborda essa quest�o demonstrando a forte influ�ncia do setor privado na cria��o de pol�ticas p�blicas, conforme seus interesses, com foco na atua��o do F�rum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular (FERESP). Demonstram que �De 1996 a 2017, as IES privadas cresceram num percentual de 202,5% enquanto as IES p�blicas obtiveram um crescimento em 40,2% em 21 anos�. Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), apesar de um forte est�mulo �s institui��es p�blicas, manteve e at� aprofundou o processo de mercantiliza��o da educa��o superior, consolidando o acesso e perman�ncia atrav�s dos dois setores.

[4]� O Reuni teve como objetivo �[...] criar condi��es para a amplia��o do acesso e perman�ncia na educa��o superior em n�vel de gradua��o, pelo melhor aproveitamento da estrutura f�sica e de recursos humanos existentes nas universidades federais� (BRASIL, 2007a). Recebeu cr�ticas de educadores e na literatura pertinente por estimular a concorr�ncia entre as IFES, favorecendo as mais fortes; por desresponsabilizar o Estado do financiamento constitucional previsto para a educa��o superior; e por refor�ar o papel regulador e avaliador do Estado, prejudicando a autonomia universit�ria. Por outro lado, fortaleceu a expans�o das IFES com a garantia de recursos; ao formular um plano de reestrutura��o para aderir ao Programa, previa, no Art. 2�, Item V � �amplia��o de pol�ticas de inclus�o e assist�ncia estudantil� (BRASIL, 2007b), fortalecendo as bases de cria��o de um programa nacional, o que ocorreu ainda em 2007.

[5]� Para L�wy (2016), o impeachment executado pelo Congresso Nacional, notoriamente, em grande parte, corrupto, n�o passa de uma farsa promovida pelos partidos de direita, reacion�rios, associada � aliena��o e insatisfa��o dos setores m�dios, que se sentiram exclu�dos dos avan�os conseguidos pelas camadas populares e pelos efetivamente ricos, igualmente insatisfeitos. Tudo isso envolto em um ambiente midi�tico de suposta corrup��o generalizada, que precisava ser combatida, tendo como foco a Opera��o �Lava-jato�, comandada pelo judici�rio federal e fortemente apoiada pela maioria dos que aplaudiram o golpe. Esse processo � e suas consequ�ncias para o pa�s � ainda est�o em curso. Como resultado, houve o governo de um (vice) presidente com aprova��o p�fia e sob fortes suspeitas de envolvimento com corrup��o, al�m de ser um dos principais personagens dessa farsa.

[6]� O conceito de onilateralidade, por seu turno, diz respeito a uma forma��o humana de car�ter mais amplo, que depende da ruptura com a sociabilidade burguesa, com correspondente divis�o social do trabalho, com as rela��es de aliena��o e estranhamento, com o fetichismo, com o antagonismo de classes. A forma��o onilateral n�o se restringe ao mundo do trabalho abstrato ou das institui��es formais de educa��o � por mais progressistas que sejam (SOUSA JR., 2010, p. 84).

[7]� A universidade dial�tica v� o conhecimento na sua unidade, de forma interdisciplinar; n�o exclui, nem isola saberes, estes s�o uma constela��o de um universo. Ela busca o conhecimento pela reflex�o, onde as ideias acordam-se aos fatos e aos acontecimentos, pelo prisma social e human�stico, ela � fidedignamente democr�tica, sem privil�gios de classe, respeitando as diferen�as individuais. Na pesquisa aplicada e tecnol�gica leva na devida conta as necessidades da sociedade. Somente pela dial�tica a Universidade � transformadora, pelo ensino conscientizador, pela pesquisa cr�tica e pela extens�o libertadora. A universidade, assim efetivada, v� o conhecimento na sua unidade, como s�ntese, produto da converg�ncia e da interdisciplinaridade (MACEDO, 2000).

[8]� Uma sociedade humana de fato apresenta-se como sin�nimo do conceito de humanizar, este � um compromisso radical com o homem, na transforma��o de sua situa��o objetiva. Assim, a sociedade n�o pode ser constitu�da por pessoas como quase coisas, irreflexivas, passivas, manipuladas e exploradas. Em tempos neoliberais requer, inicialmente, emergir de uma condi��o de consci�ncia ing�nua, manipulada, gerada pela priva��o do acesso ao saber, � cultura acumulada historicamente, como tamb�m � explora��o e impedimento do acesso a bens e servi�os essenciais para se viver com razo�vel qualidade de vida (FREIRE, 1978).