Pesquisas do tipo Estado do Conhecimento: entendimentos na relação teoria e prática

State of Knowledge research: understandings in the theory and practice relationship

Investigación del tipo Estado del Conocimiento: comprensiones en la relación entre teoría y práctica

 

Julian Silveira Diogo de Ávila Fontoura

Univerdidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

julian.diogo@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-8507-6538

 

Recebido em 19 de junho de 2021

Aprovado em 27 de outubro de 2021

Publicado em 10 de julho de 2023

 

As pesquisas acadêmicas compreendidas como do tipo levantamento são extremamente importantes no desenvolvimento das investigações científicas, especialmente no que se refere a compreensão de produções bibliográficas que trazem em alguma medida o acúmulo teórico, metodológico e mesmo epistemológico junto a determinado campo do conhecimento sobre um tema específico. Esta tipologia de pesquisa surge como o reconhecimento do trabalho desenvolvido por outros, aqueles antes de nós, de forma a evidenciar o desenvolvimento do movimento dialético presente na produção científica. A obra Estados do Conhecimento: Teoria e Prática, desvela nesse sentido, a prática metodológica de produção de Estados do Conhecimento (EC), evidenciando as possibilidades do seu uso em diversos trabalhos acadêmicos a partir de reflexões teóricas e exemplos práticos de operacionalização desta abordagem metodológica no contexto da pesquisa acadêmica.

A obra das autoras Marilia Costa Morosini, Pricila Kohls-Santos e Zoraide Bittencourt, publicada pela Editora CVC, em 2021, reúne de forma singular o acúmulo teórico-metodológico sobre a produção acadêmica alinhada a metodologia de construção de EC diluída em uma série de artigos e discussões sobre a temática ao longo da prática acadêmica e profissional das pesquisadoras. Nesse sentido, a obra coliga informações basilares sobre a efetivação desta metodologia de pesquisa a partir de uma profunda imersão teórica, exemplificações e exercícios práticos de consecução do trabalho acadêmico, respeitando tanto o rigor quanto a postura epistemológica de vigilância constante e necessária do pesquisador. Cabe destacar que a obra se mostra como um marco no entendimento desta abordagem metodológica, especialmente na articulação da relação teoria e prática embasada na realidade das pesquisas acadêmicas produzidas no cenário nacional.

A construção desta obra contou com a expertise das autoras na condução de pesquisas com foco no mapeamento de produções bibliográficas, seus sentidos e significados junto a diferentes campos do conhecimento. As autoras possuem uma vasta produção acadêmica frente aos movimentos da construção do conhecimento junto as temáticas de pesquisa que trabalham, utilizando os subsídios dos EC, fundamentando parte de suas investigações, de forma a estimular seus alunos no desenvolvimento desta abordagem nos mais diversos temas de estudo, especialmente àqueles ligados ao campo da Educação Superior com foco na sua interface com a Internacionalização, as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, os Estudos da Linguagem e os Estudos sobre Infância. A expertise que apontamos não refere apenas a prática vivenciada e experienciada pelas autoras na utilização da abordagem dos EC, mas sim no acúmulo conceitual/teórico que as mesmas desenvolveram ao longo dos anos, culminando na iniciativa de proposição de um novo olhar para o potencial emergente deste tipo de pesquisa para além da indicação ou mesmo construção de uma listagem de estudos já realizados, considerando as possibilidades de leitura desse conjunto com foco no entendimento de determinada estrutura de um campo ou área de conhecimento.

De forma a sistematizar os conhecimentos sobre os EC, a obra está dívida em dois grandes eixos, desdobrados em cinco capítulos, a sua lógica interna presente no encadeamento do livro retrata dimensões fundamentais no entendimento teórico e operacional desta abordagem metodológica. Em síntese temos expostos os fundamentos teóricos e metodológicos que auxiliam no processo de auto regulação desta tipologia de pesquisa, discutindo ainda a relação entre ciência e produção científica no contexto da globalização. Para além do processo de conceituação, contextualização e instrumentalização, as autoras provocam ao longo do texto importantes reflexões sobre o modelo de produção científica adotado pelas comunidades de pesquisa, as possibilidades analíticas dos resultados obtidos e a indicação de critérios/padrões nas etapas constitutivas da produção dos EC.

A primeira parte da obra focaliza seus esforços na compreensão teórica da abordagem dos EC, no capítulo introdutório Estado do Conhecimento: Aspectos Teóricos e Metodológicos as pesquisadoras buscam evidenciar questões estruturantes que fundamentam o próprio debate sobre os EC. Este capítulo apresenta uma discussão de fundo que nos provoca a refletir sobre o quantitativo da produção científica mundial, a partir da relação estabelecida entre a produtividade acadêmica, ciência e desenvolvimento dos diferentes campos do saber no cenário da esfera de nacional e transnacional de produção de conhecimentos. As autoras destacam a ideia da produção científica como um “dos principais indicadores de desenvolvimento de um país” (p. 19), onde as diferentes nações utilizam este movimento de forma estratégica na base do seu crescimento nacional/global.

Dentro da perspectiva bourdieana adotada pelas autoras, os EC emergem como potência na “reflexão síntese sobre a produção científica de uma terminada área, em um determinado espaço de tempo” (p. 22), considerando a relação entre produto e produtor trazida por Pierre Bourdieu no seu entendimento de campo e a influência não apenas dos agentes na consecução do que chamamos de ciência, mas sim do campo científico constituindo por um habitus próprio e específico. No caso brasileiro, as pesquisadoras apontam os mecanismos de regulação e normatização presentes na centralidade da Educação Superior junto ao Governo Federal e a gestão/avaliação da produção acadêmica pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a partir de uma sistemática que “integra a comunidade científica da área, que cria e acompanha todo o processo” (p. 25).

Tendo como base os apontamentos teóricos e instrumentais presentes no primeiro capítulo, as pesquisadoras destacam no capítulo que segue, Estado do Conhecimento: Repositórios de Publicações Científicas, a importância das bases de dados na operacionalização das pesquisas de levantamento de cunho bibliográfico, especialmente na captação de materiais que farão parte do corpus analítico. Há o destaque de algumas bases de dados já consolidadas pelas comunidades de pesquisa nacionais, como o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES (BTD/CAPES) e a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (BDTD/IBICT) e internacionais como a Scientific Electronic Library Online (SciELO). Além de apresentarem as referidas bases, as autoras exibem uma espécie de tutorial operacional de manuseio destes repositórios de pesquisa, expondo alguns recursos bibliométricos e os fatores de impacto para a familiarização do leitor, na compreensão da complexidade dos processos de avaliação da qualidade da produção acadêmica.

No terceiro capítulo, A Metodologia do Estado do Conhecimento, nos é apresentado uma descrição direta das etapas metodológicas propostas pelas autoras, para isso esta seção é engendrada utilizando o exemplo da pesquisa junto a temática da inovação no cenário da Educação Superior. Elementos como a definição do objetivo do estudo, a escolha da base de dados utilizada, a construção do corpus analítico, a escolha dos termos/descritores que operam os gatilhos de busca nos repositórios e a manipulação dos filtros de procura são evidenciados, de forma a “auxilia[r] a manter o foco e evitar realizar esforços desnecessários e que não irão auxiliar a atingir o objetivo proposto” (p. 62). Detalhadamente são apresentadas as etapas metodológicas deste processo, dentro da perspectiva de construção de uma bibliografia anotada, bibliografia sistematizada e bibliografia categorizada. Diferente de outras obras das autoras, aqui é possível observar um importante avanço teórico, pois as pesquisadoras incluem uma nova etapa constitutiva nesta abordagem, a bibliografia propositiva.

Finalizando a parte teórica da obra o quinto capítulo, A Escrita do Estado do Conhecimento, se propõem em auxiliar o leitor a escrever os resultados desenrolados de sua pesquisa, pelo ponto de vista dialógico, presente na relação autor-leitor, considerando adequações linguísticas, exercícios de abstração, formulação de analogias e os elementos de coerência e coesão necessários na redação científica. Um breve roteiro é apresentado ao final do capítulo revelando as dimensões de planejamento, da escrita e do processo de revisão e reescrita. As autoras aliam a este capítulo instrumental de redação do processo metodológico dos EC, algumas perspectivas analíticas do campo das análises qualitativas, com foco na Análise de Conteúdo de Lawrence Bardin, vislumbrando da mesma forma possibilidades de uso com a Análise de Discurso de Michel Pêcheux e da Análise Textual Discursiva de Roque Moraes e Maria do Carmo Galiazzi.

A segunda parte da obra se dedica a exclusivamente a demonstrar o processo de construção dos EC na prática, exemplificado na obra a partir da efetivação de uma investigação sobre a temática da inovação na Educação Superior, resgatando os apontamentos trazidos ao longo do texto. Dessa forma o último capítulo do livro, O Estado do Conhecimento na Prática, evidencia esse percurso de pesquisa a partir de diferentes estratégias combinadas que possibilitam a leitura do fenômeno da inovação na Educação Superior no contexto emergente das transformações de cenário da Educação Superior à luz de uma educação de qualidade, especialmente na América Latina. As indicações de conceituação, operacionalização, redação e socialização dos achados presentes nas seções anteriores da obra são apresentadas aqui de forma contextualizada com um problema real de pesquisa, demonstrando de forma clara os movimentos provocados pela utilização desta metodologia no cenário das pesquisas acadêmicas.

A obra Estados do Conhecimento: Teoria e Prática está para além de um simples guia metodológico, em seu sentido “manualistico”, a sua propositura reflete de forma objetiva a preocupação com a dinâmica de produção do conhecimento a partir da assimilação da abordagem de construção de EC nos mais diferentes campos do saber. O princípio latente e presente nesta obra está na possibilidade de compreensão de que o fato científico é conquistado, construído e verificado” (p. 27): conquistado a partir de pré-conceitos, construído pelo movimento cognitivo da razão e verificado pela observação do fenômeno analisado, culminando na transformação do fato social em fato científico. A consecução deste livro surge como um marco teórico e metodológico de uma abordagem já testada, apurada, operacionalizada e reconhecida como um elemento na realização não apenas da fundamentação de estudos e investigações, mas sim da sua potência e pujança como produto e produtor de saberes científicos.

No campo dos estudos e pesquisas em educação, estávamos bastante carentes de uma obra que sintetizasse de forma clara e didática os meandros de funcionamento e aplicabilidades da metodologia de construção de EC, que incorporasse elementos da realidade nacional de produção de conhecimento. Nesse sentido, o livro se mostra como um novo e importante referencial didático-pedagógico na organização dos trabalhos de pesquisa do tipo levantamento de cunho bibliográfico, pois retrata, cria e organiza um direcionamento na consecução desta tipologia de pesquisa. A abordagem de produção de estudos de EC dentro da perspectiva das autoras já é de domínio público, é utilizada como subsídio em teses e dissertações, é fomentado seu uso em disciplinas eletivas em diferentes Programas de Pós-Graduação em Educação brasileiros e reconhecida como uma legítima estratégia metodológica junto à pesquisa científica.

Por fim, evidenciamos o efeito de socialização desta obra junto as comunidades de pesquisa, no sentido de provocar uma importante reflexão sobre a necessidade de se repensar as pesquisas de levantamento e seu enfoque muitas vezes dedicado a meramente descrição. Os EC revelam-se dentro de um conjunto de possibilidades de interpretação e análise sistemática da produção acadêmica em diferentes áreas e campos de saber, onde a etapa da descrição do que já fora produzido no curso da história é apenas um primeiro movimento de aproximação com o tema a ser desenvolvido nas intenções de pesquisa. Esse deslocamento contingencia uma leitura dos fenômenos sociais – especialmente – de forma a permitir interpretações multifacetadas, dinâmicas e articuláveis na esfera do fazer científico dentro da estrutura acadêmica de produção do conhecimento tangível e relevante, no sentido de destacar desafios, avanços e limitações em determinado campo de investigação.

Referências

MOROSINI, M.; SANTOS, P. K.; BITTENCOURT, Z. Estado do Conhecimento: Teoria e Prática. 1ª ed. Curitiba: Editora CRV, 2021.

 

 

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