Em defesa de uma educação jurídica humanista para além de um ocasionalismo prático nos processos educativos

 

In defense of a humanist legal education beyond practical occaionalism in ecucational process

 

En defensa de ua educación juríduca humanista más allá de la ocasionalidad práctica en los procesos educativos

 

Lana Lisiêr de Lima Palmeira

Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil

lana.palmeira@arapiraca.ufal.br - https://orcid.org/0000-0003-0443-7245

 

Edna Cristina Prado

Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil

wiledna@uol.com.br - https://orcid.org/0000-0001-8226-2466

 

Inalda Maria Santos

Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil

inaldasantos@uol.com.br - https://orcid.org/0000-0002-5520-2668

 

Givanildo Silva

Universidade Federal de Alagoas, Maceió, Alagoas, Brasil

givanildopedufal@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-5490-6690

 

Recebido em 05 de junho de 2021

Aprovado em 23 de agosto de 2022

Publicado em 26 de abril de 2023

 

 

RESUMO

Partindo-se da verificabilidade de que a formação propagada pelos cursos de Direito não favorecem uma preparação humanística sólida, já que seus currículos estão ainda muito arraigados aos ideais conservadores do positivismo clássico, objetivou-se no estudo em comento realizar uma análise em torno de como os currículos se originaram, buscando, para respaldar  a análise, estabelecer como ponto de partida a tradição romana e sua arqueologia do saber jurídico, para, em seguida, adentrar nas reflexões em torno da ciência e da técnica na modernidade, desnudando aspectos valiosos a fim de se (re)pensar uma pauta humanista nessa seara. Como opção teórico-metodológica, adotou-se a abordagem de natureza qualitativa, com ênfase na revisão de literatura. Assim, após todas as questões apresentadas e, tomando por base pensadores como  Paulo Freire, Walter Benjamin, Hannah Arendt, John Rawls, Jürgen  Habermas, dentre outros, ficou evidente a necessidade concreta de um modelo de educação jurídica que possa romper com a configuração socioeducacional atual e que seja capaz de assegurar a junção equilibrada entre o Humanismo, a Ciência, a Técnica, as Artes e, sobretudo, que seja apto a minimizar os flagelos ainda gritantes na segunda década deste século

 

 

Palavras-chave: Humanismo; Ensino Jurídico; Educação Democrática.

 

ABSTRACT

Starting from the verifiability that the training propagated by Law courses does not favor a solid humanistic preparation, since their curricula are still deeply rooted in the conservative ideals of classical positivism, the objective of the study under review was to carry out an analysis around how the curricula originated, seeking, to support the analysis, to establish as a starting point the Roman tradition and its archeology of legal knowledge, to then enter the reflections on science and technique in modernity, uncovering valuable aspects in order to of (re)thinking a humanist agenda in this area. As a theoretical-methodological option, a qualitative approach was adopted, with an emphasis on literature review. Thus, after all the questions presented and, based on thinkers such as Paulo Freire, Walter Benjamin, Hannah Arendt, John Rawls, Jürgen Habermas, among others, the concrete need for a legal education model that can break with the socio-educational configuration became evident. current and capable of ensuring a balanced union between Humanism, Science, Technique, the Arts and, above all, that it is able to minimize the scourges still glaring in the second decade of this century.

 

Keywords: Humanism; Legal Education; Democratic Education.

 

 

RESUMEN

Partiendo de la comprobabilidad de que la formación que propagan los cursos de Derecho no favorece una sólida preparación humanística, ya que sus planes de estudio aún están profundamente arraigados en los ideales conservadores del positivismo clásico, el objetivo del estudio analizado fue realizar un análisis en torno a cómo la Los currículos se originaron, buscando, sustentar el análisis, establecer como punto de partida la tradición romana y su arqueología del conocimiento jurídico, para luego adentrarse en las reflexiones sobre la ciencia y la técnica en la modernidad, destapando aspectos valiosos para el (re) pensar un humanista. agenda en este campo. Como opción teórico-metodológica se adoptó un enfoque cualitativo, con énfasis en la revisión de la literatura. Así, luego de todas las preguntas planteadas y, a partir de pensadores como Paulo Freire, Walter Benjamin, Hannah Arendt, John Rawls, Jürgen Habermas, entre otros, se hizo la necesidad concreta de un modelo de educación jurídica que rompa con la configuración socioeducativa. evidente, actual y capaz de asegurar una unión equilibrada entre Humanismo, Ciencia, Técnica, Artes y, sobre todo, que sea capaz de minimizar los flagelos que aún resplandecen en la segunda década de este siglo.

Palabras clave: Humanismo;Educación Legal; Educación Democrática.

 

Introdução

A ideia que norteia o presente trabalho surgiu após a constatação de que os cursos de Direito, em Alagoas, seguem formatações curriculares que apresentam, quase que predominante, uma preparação voltada à vertente técnico-profissional, deixando de contemplar adequadamente a formação humanística. Segundo Palmeira et al (2020), que analisaram, nesse estado, 18 currículos de cursos de Direito em um universo total de 19, restou constatada a ausência da disciplina de Direitos Humanos em 39% dessas matrizes curriculares. Ainda nesse estudo, ampliando o olhar, verificou-se que, quando se considera a categoria formação humanística como um todo, visualiza-se que apenas seis instituições destinam percentual igual ou maior a 5% de sua carga horária total às disciplinas propedêuticas, aqui nominadas humanísticas, levando à conclusão, por parte das autoras, que essa formação é negligenciada, o que confere a esses cursos um formato altamente tecnicista.

Assim, é dentro desse contexto que se busca enfrentar o problema em tela, solidificando uma exegese teórica sobre os preceitos pedagógicos que configuram os processos da estrutura dos currículos na área jurídica. Até porque, como se sabe, o transcurso do ensino jurídico no Brasil é consequência de um modelo atrelado ao Estado, sendo este, por sua vez, o reflexo dos modelos políticos advindos das investidas modernas.

Esse encadeamento conceitual moldou um perfil curricular positivista, que plasmou a maioria das instituições de ensino superior do país. Ressalta-se que o positivismo moderno se distingue do modelo positivo curricular clássico, em que a formação na área jurídica contemplava o estudo de Letras, da Lógica e das Humanidades. Trata-se de uma ideia positiva que restringe o programa curricular a uma especificidade que não permite uma postura ambivalente do exercício jurídico. Essa condensação do currículo visa atender aos interesses estatais e privados, em consonância com suas exigências econômicas.

Nesse sentido, toda vertente humanística apresenta-se no currículo como um subtema da ciência jurídica e um exercício subterrâneo na prática do Direito, o que faz com que a aludida pauta na matriz curricular desses cursos se torne secundária. E assim sendo, o currículo depara-se com o problema da Justiça, que não consegue, muitas vezes, ir além de um ocasionalismo prático.

            É oportuno sublinhar o desenvolvimento histórico do currículo tendo como fundamento os pilares da tradição romana, até porque os romanos sedimentaram todo um ideário dentro de uma arqueologia do saber jurídico, pela primeira vez na história ocidental, em um processo de estruturação curricular sobreposto ao ônus educativo da sua formação intelectual, o que foi decisivo no medievo e restaurado no humanismo do início da modernidade.

Após essa abordagem, foi apresentada a questão da ciência e da técnica no problema na atualidade, tendo como visão tripartida e pedagógica os reflexos do conceito de técnica no pensamento de Walter Benjamin, Martin Heidegger e Jürgen Habermas.

Dando sequência, foram invocados os problemas que circundam o humanismo contemporâneo, bem como sua proximidade com o ensino jurídico e os desafios de pensar o Direito em meio aos eventos atrozes que formaram a consciência do homem coetâneo, que, de forma geral, significa ruptura com os modelos contratuais clássicos. Nesse sentido, o neocontratualismo, que diverge desses modelos, foi registrado no pensamento de John Rawls com a ideia de que o pacto social não se restringe ao âmbito estatal ou econômico, mas, acima de tudo, ético e moral.

Esta ideia reflete diretamente na forma de se conceber o currículo, e, evidentemente, o conceito de Justiça. Nessa investida, o ensino jurídico descola dos direitos humanos para um posicionamento mais profundo teoricamente e com um significado mais relevante dentro da matriz formativa acadêmica.

            Nos momentos finais da reflexão, buscou-se amparo no pensamento de Hannah Arendt, voltando-o para uma relação entre direito e política, ou seja, a uma visão de diagnóstico das especulações que circundam o obscurantismo dos problemas políticos no mundo e no Brasil.

1. A projeção do currículo romano antigo no âmbito do ensino e sua propedêutica constitucional

            A relevância de compreender os preceitos originais situa este trabalho na construção do problema do ser, já que sua centralidade consiste no fenômeno humano. Além da ausência dos postulados do humanismo e dos direitos humanos nos currículos, ou, quando existindo, posto como um subtema, o que mostra a sua precarização nos processos educativos, retomar o trajeto de construção do ordenamento jurídico tem um impacto dicotômico: recuperar o caráter essencial do Direito e expandir o conceito das técnicas jurídicas para além dos modelos convencionais da academia. A precarização dos direitos humanos no currículo provoca um sintoma anacrônico nos processos educativos. Os princípios que formaram o Direito ocidental e o próprio decurso de ocidentalização dessa ciência em todo mundo são basilares para se conceber qualquer forma possível de Direito e, consequentemente, de Justiça. 

Dessa forma, a exclusão do estudo dos Direitos Romanos ou a minimização da sua importância por muitas instituições não é um indício apenas no caráter histórico, o que seria por si só pernicioso, mas um problema que afeta a formação integral do profissional da área jurídica, como a exclusão do latim, outrora existente nos currículos de Direito e os fundamentos clássicos da cidadania. O profissional do Direito perdeu sua áurea nas Letras e na História, tendo como consequência a desestabilização dos processos jurídicos, um verdadeiro contra direito, e todo contra direito é uma atitude contra humana. Por isso, reativa-se, nesse estudo, o status do Direito Romano na sua dimensão teórica.

            Apreende-se que o Direito Romano é uma lépida para pensar os processos de configuração, teórica e prática, das instituições cíveis e todo o seu legado cidadão. Maquiavel (2004) toma na sua filosofia política, os romanos como modelo exemplar – o que mostra a importância da história na reflexão do ensino jurídico – para unificar os estados italianos no início da modernidade em uma proposta de república que fosse erguida nos feitos dos grandes homens do passado, que na sua produção intelectual era visualizada no ideário republicano da Roma antiga. Atesta o filósofo na sua proposta de história exemplar:

[...] quanto aos exércitos da mente, deve o príncipe ler obras históricas e refletir sobre as ações dos homens excelentes, ver como se comportaram nas guerras, examinando as causas das vitórias e derrotas a fim de poder escapar destas e imitar aquelas. Mas, sobretudo, deve agir como antes agiram alguns homens excelentes que se espelharam no exemplo de outros que, antes deles, haviam sido louvados e glorificados, e cujos gestos e ações procuraram ter sempre em mente. (MAQUIAVEL, 2004, p. 157)

Essa visão histórica e sociológica do Direito Romano exige uma reflexão que ilumina o caráter crítico da disseminação do Legislativo, bem como as nuances políticas internacionais e sua submissão aos modelos mercadológicos da produção econômica, situando os programas curriculares do ensino jurídico em um modelo de vitrine para o mercado. Ressalta-se que o que se expõe aqui não é exatamente o mercantilismo jurídico, mas o reducionismo do seu ordenamento ao aparato burocrático normativo em prol da proliferação do capital, esquecendo-se de que o objetivo do Direito é a inclusão dos cidadãos nas práticas sociais.

Esse currículo transportou o lobo do homem hobbesiano para o protótipo do profissional jurídico. Ora, os cidadãos não entram em conflitos, pois contratam advogados que defendem seus interesses junto as mais diversas instâncias do Judiciário. Esse profissional deixou de ser um intermediário para ser o ponto da partida de justificativa do direito de guerra na realidade normativa e mercadológica, esquecendo-se de que nesse processo existe um humano que se encontra olvidado na técnica administrativa das ciências da justiça. Esse olhar para os direitos romanos rompe diretamente com as feições unicistas da formação do jurista. Formar esse profissional na diplomatização, sem a compreensão do estatuto original do Direito, é uma interrupção na formação integral desse especialista para o exercício da cidadania.

Todavia, os romanos rearticularam o pensamento grego, e, sobretudo, depois do fim dos seus principados, mostraram o caráter essencial da norma. Esse histórico de codificação à luz dos romanos se aproxima dos processos educativos por conceber o aspecto normativo – inversamente distinto dos modelos modernos – que superam os elementos da praticidade para se tornar uma questão cognoscível da psicologia social e que encontram na corporatura imperial o início do direito escrito e aspectos decisivos para o processo de formação do currículo jurídico. É justamente nesse momento que se funda o ensino jurídico, como atesta Guandalini (2015, p.167) que depois de uma série de investidas de codificações não oficiais, como o Códice Gregoriano de 291-292 d.C e o Códice Hermogeniano de 293-294 d.C, surgiu em 438 d.C o Códice oficial Teodosiano, sendo, inclusive, uma investida de reis bárbaros. Em seguida, já com a institucionalização romana promovida pelos fundamentos cristãos, surgiram os seguintes Códices: Edito de Teodorico, séc. V; Códice de Eurico, 470; Breviário de Alarico, 506; Lex Romana Burgundionum, séc.VI. 

Como ensina Cintra (1697), tais investidas no Ocidente foram essenciais para os modelos do Império romano oriental que, assumindo os princípios constitutivos da burocracia jurídica desses códices, alimentaram no cerne da sua cultura a jurisprudência romana, cuja organização em um conjunto de textos ficou conhecido na tradição do Direito como “Iuris Civilis”. Na ocasião da organização dos textos do Corpo Iuris Civilis, os estudos jurídicos estavam passando por uma guinada conceitual nas peças que dariam corpo aos primeiros objetos formais para o exercício pedagógico do ensino do Direito.

Nos séculos V e VI, na ascensão da capital oriental do mundo romano, a cidade de Constantinopla empreendeu uma longa pesquisa para recuperar os tratados jurídicos escritos pelos primeiros mestres, irredutíveis na autoridade e perspicazes na intelectualidade, o que gerou nos concidadãos do império um espírito de veneração e respeito ao legado do passado. O efeito dessa investida foi a construção do Codex, um códice universal que trazia em uma única obra o Códice Gregoriano, o Códice Hermogeniano e o Códice Teodosiano – configurando-se como uma espécie de acúmulos legislativos multisseculares. Alguns anos depois, foi confiado ao ministro Triboniano a tarefa de elaborar uma nova organização desses textos, inclusive os dos juristas mais antigos, como o Quinto Múcio Scevola do séc. I a.C, passando pelos Hermogeniano e Arcadio Cariso do séc. III d.C até os códices já supracitados. (ALVES, 1989).

Em seguida, o Digesto – grupo de professores romanos – tentaram reformular os textos em um Direito codificado, mas não se obteve o êxito esperado. Os textos encontrariam sua concretização e organização definitiva na Novellae Constitutiones, ponto máximo do ordenamento jurídico romano, composto para uma nova constituição imperial e publicada depois do Codex e pela Institutiones, formando os primeiros princípios do Direito em uma contenda pedagógica, ponto essencial para o estabelecimento do ensino Jurídico.(BEVILAQUA,1916).

            Como foi evidenciado até o momento, o problema da formação propugnada pelo ensino jurídico não é a compreensão da norma, tão pouco sua praticidade. É claro que o Direito deve ter funcionalidade, pois sem esse pragmatismo é impossível conceber as ciências jurídicas. Mas, o que é atenuante é visualizar que nos processos de ensino e aprendizagem desse campo do saber se tem uma reclusão dos procedimentos que configuraram o surgimento da norma e da própria filosofia positivista presente nos referidos cursos.

            Não se nega aqui o desenvolvimento teórico jurídico no ensino superior, inclusive, admite-se que se vive, no Brasil, um cenário de jovens profissionais na área jurídica com manejo de tecnicidade funcional no campo lícito, articulando uma notória compreensão dessas normas nas suas funções sociais, inclusive como artífices de combate à corrupção. Entretanto, esse cenário é ainda minoritário. Tem-se que buscar o entendimento de que memorizar e repetir leis não é uma garantia do alcance essencial do sentido da norma, nem da sua correta aplicabilidade. Como já fora externado anteriormente, os currículos dos cursos de Direito negligenciam os direitos humanos, tratando-os como uma transmissão que não se aproxima do desejável. Os romanos, mesmo influenciando o espírito das leis na sua normatividade e escrita, apostando no poder da lei escrita, viram que a legitimidade da lei passa pelo aparato educativo. O Direito é assim consequência de um desenvolvimento pedagógico: elementos distintos que caminham unidos por sua essencialidade operacional.

            A contemporaneidade é profundamente marcada pela ciência e suas conclamações tecnológicas. Uma educação jurídica que se possa pensar humana não se justifica na compreensão e execução da norma, mas no processo que fez a norma ser tal qual ela é, e esse estado originário demanda um ponto de partida histórico e pedagógico: histórico por lembrar que o direito é o direito da finitude, do atual momento histórico em que cada sociedade e indivíduo humano se encontra; pedagógico, porque sem a educação não é possível compreender os conceitos, e, consequentemente, formar sociedades humanas para a prática cidadã. Se porventura, a norma e o tecnicismo científico eternizarem a vida humana – é evidente que essa projeção não seria igualitária – ter-se-ia que redefinir toda natureza humana, toda ciência, artes e o próprio Direito. O ensino emancipatório, que reconsidere o caráter essencial do Direito, é um modelo da finitude, capaz de humanizar o mundo da vida desde o seu nascimento até os últimos momentos da existência do indivíduo humano.

Em virtude dessa análise, é preciso refletir sobre a legitimidade do Direito e o seu caráter educacional. Essa nuance educacional centraliza um dos pontos fundamentais desse trabalho, a saber: o problema do tecnicismo, colocando-o nesse momento dentro do pensamento atual, que terá sua incidência na reflexão de pensadores como Walter Benjamin, Martin Heidegger, Jüger Habermas e a própria Hannah Arendt.

2. A técnica na era da contemporaneidade

            Um dos problemas que perpassa o Direito contemporâneo é o de se pensar os limites, possibilidades e legitimação dos efeitos das ciências na vida humana. Hannah Arendt (1995) aponta que a impregnação normativa retira do humanismo o seu caráter ético. Em nome de superestrutura política e econômica, o Direito foi repensado no século XX com o intuito de atender interesses específicos de determinadas nações detentoras dos meios de produção, como os EUA e os países europeus. A operação do direito ganhou proporções visíveis por conta do desenvolvimento científico, e a ciência, que no decorrer dos séculos, melhorou a vida humana, segunda a autora, tornou-se o algoz do próprio humano. É evidente que a questão aqui não é a negação do desenvolvimento científico, mas os problemas que circundam a axiologia científica.

            Essa axiologia das ciências passa pelo problema jurídico porque as investidas estão ligadas aos limites do próprio Direito. Sem uma moral humanista os avanços das ciências assumem a contenda dos cientistas e se esquece da formação cidadã, configurando-se em um problema político.

Hannah (2001) aponta no início do prólogo da Condição Humana que o lançamento do primeiro satélite posto na órbita da terra confundiu o técnico com o natural. Diante do impacto desse evento, essa aproximação do técnico científico com o problema do humanismo são temas imprescindíveis para o pensamento pedagógico.

A autora assinala os preceitos morais para o qual viverá o homem na era da técnica. O técnico tornou-se a prefiguração da engenharia social e o principal artífice desse movimento é a sua relação entre política e direito. O que se enfatiza nesse trabalho é que se não existir uma pauta de discussão no currículo jurídico que se comprometa com os processos educativos e a formação humanística, tender-se-á a repetir o academicismo jurídico, reproduzindo um existencialismo pérfido diante dos anacronismos que os cursos de Direito propalam diuturnamente.

O problema da técnica vindo das ciências não se restringe à atividade das ciências da natureza, que acompanha na sua permutabilidade os problemas do mundo da vida. Dessa forma, é pertinente elucidar mais uma vez o pensamento de Hannah quando situa o problema existente entre ciência e técnica:

 

Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada — um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas a de saber se desejamos usar nessa direção o nosso novo conhecimento científico e técnico — e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais. (ARENDT,2001, p. 11)

O natural confunde-se com o técnico. Os instrumentos de ampliação dos órgãos sensoriais humanos transformaram a cognição humana em consonância à imagem e não ao fato. Walter Benjamin aponta que um dos eventos mais significativos da técnica para a reprodução social, foi a fotografia. Analisa o filósofo:

Com ela, pela primeira vez, no tocante à reprodução de imagens, a mão encontrou-se demitida das tarefas artísticas essenciais que, daí em diante, foram reservadas ao olho fixo sobre a objetiva. Como, todavia, o olho capta mais rapidamente do que a mão ao desenhar, a reprodução de imagens, a partir de então, pôde se concretizar num ritmo tão acelerado que chegou a seguir a própria cadência das palavras. (BENJAMIN,1983, p. 06)

            Por mais que a imagem da fotografia seja capaz de reproduzir um momento, ela não é capaz, segundo Benjamin, de reproduzir o “hic et nunc”, a experiência única da vivência, o momento da vida no seu preeminente existencial do fato dado ao espaço e tempo da emblemática condição de ser humano na contemplação do acontecimento. O que parece antagônico em uma ótica de pensamento sobre o ensino jurídico, é sem dúvida, o princípio de uma crítica ao normativo.

            A norma, como já evidenciado, é consequência de um processo substancialmente ligado à condição humana. No entanto, se ela é apenas uma reprodução dos manuais judiciais para discutir crimes, penas, tributos, dentre outros assuntos técnicos, ela perde sua essencialidade humana para atender necessidades burocráticas que raramente visualizam o humano na sua execução. O Direito deixa de ser uma ciência humana aplicada para ser uma ciência humana inócua, na qual tudo é elucidado, menos o humano. O ensino jurídico raramente assume o compromisso de pensar uma educação humanista. O peso da norma, assim como no exemplo da fotografia de Benjamin, que retira a sensação do toque das mãos na construção da imagem, perdeu o seu olhar sensível. Não existe intuição na norma pela norma, e, por esse motivo, faz-se necessário resgatar que o sentido original da norma é a constituição humana.

            Desse modo, ousa-se dizer que, assim como a obra de arte perdeu sua aura, tirou-se o véu da sua autenticidade, o Direito também perdeu o seu significado original, a razão maior da sua verdadeira existência social, já que se tornou uma reprodutibilidade processual. A palavra escrita da lei transformou-se em uma aluvião de papel para ser reformulado conforme equações prontas e pré-estabelecidas, e quando mudadas, vistas apenas nos artigos da modificação. A perda da aura jurídica é a perda do olhar humano sobre o ordenamento jurídico.

O que se postula é que a formação humanística não é contemplada adequadamente nas matrizes curriculares dos cursos de Direito, havendo, muitas vezes, uma verdadeira inoperância destas referidas matrizes, uma vez que as mesmas são incapazes de pensar uma educação para além da mera práxis formal. Não existe aura nas propostas curriculares do ensino jurídico e isso traz consequências na formação cidadã do profissional do direito. Essa ideia está arraigada na cultura jurídica brasileira, o que faz com que uma das perguntas mais comuns no período inicial dos alunos que ingressam em um curso dessa natureza recaia justamente sobre a importância das disciplinas humanísticas como Filosofia, Sociologia e Antropologia, indagando, até mesmo, porque elas existem em um curso de Direito. O técnico apropriou-se dos direitos e o próprio Direito, para muitos alunos, é uma fuga dos cursos de licenciatura, é um ausentar-se da educação.

 Além dessa ideia, plasmou-se entre muitos professores desses cursos que lecionar disciplinas jurídicas é meramente uma atividade secundária, sem muita importância prática, em que o essencial não é refletir o caráter original da norma, mas refletir equações jurídicas, o que funciona na formação do técnico jurídico. Perdeu-se a aura no intelectual do Direito, que outrora era o intelectual das letras e das humanidades. O professor dos cursos de Direito é, muitas vezes, um profissional híbrido, nunca dedicado totalmente à educação, revestindo-se em um técnico que ensina normas.

            Todavia, mesmo com a funcionalidade técnica do Direito, faz-se necessário compreender que o problema do técnico está justamente na redução ao técnico. O técnico sempre é posto como técnico, da mesma forma que a norma é posta como norma. Heidegger aponta que conceber a técnica no técnico é um equívoco teórico, pois se retira o caráter essencial da técnica para atender uma técnica que é técnica.

A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. Quando procuramos a essência da árvore, devemos estar atentos para perceber que o que domina toda árvore enquanto árvore não é propriamente uma árvore, possível de ser encontrada entre outras árvores. Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentaremos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfizemo-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem liberdade, atados a ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos apaixonadamente. Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro; pois essa representação, à qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica. (HEIDEGGER, 2006, p. 376)

            A educação é esse meio de alargamento do técnico para além dele mesmo. Isso não está correlacionado a práticas metodológicas, mas à ideia de que o humanismo e o ensino dos direitos humanos não é um procedimento que se encerra na norma. Salienta-se que essa proposta de pensamento não tem a pretensão de abdicar do estudo da norma, muito pelo contrário, ela é uma apropriação da essência da norma, do seu significado mais fundamental. Nessa visão de técnica elucidada por Heidegger (2006) não existe espaço para uma metodologia do ensino jurídico.

Importante registrar que esse estudo não propõe um método, pois o método pressupõe assumir uma corrente pedagógica para gerar um processo de ensino e aprendizagem. A investida desse trabalho é uma abertura, é deixar que o Humanismo seja apresentado pela educação como um curso, um caminho que não se coloca distante do humano. A pedagogia aqui não é correntista, ela é um acontecimento, e o seu verdadeiro alicerce, para abdicar da inoperância curricular, precisa ser um acontecimento. É claro que instaurar essas ideais em uma pauta estrutural demanda a intervenção institucional burocrata, mas a tomada de consciência axiológica de uma educação para a integralidade humana é fazer acontecer o que existe de mais essencial na condição humana, ou seja, fazer o humano ser o que ele é: humano.

            A partir desse acontecimento pedagógico é que se torna necessário lutar pela legitimidade do humanismo no campo curricular, como ponto central da formação cidadã, que consiste em atualizar o humano nele mesmo. Dentro dessa perspectiva, reside a crítica mais atenuante do trabalho em tela, qual seja: que o direito positivo, reafirmado no ensino jurídico, é consequência de inferências normativas correspondentes, por meios comparativos, das ciências da natureza, tema impulsionado pelo círculo de Viena, provocando essa independência das ciências jurídicas ao tecnicismo academicista, o que afeta toda sociabilidade humana.

            A visualização de submissão do técnico ao aparato jurídico se associa ao positivismo científico, isso não significa que o estudar a norma compreenda o desenvolvimento científico necessariamente, pois para se apropriar de instrumentos tecnológicos não é preciso conhecer as leis das mecânicas que comandam suas operações, o mesmo indicativo aparece nas tecnologias das ciências sociais aplicadas. Essa crítica instaura uma reflexão que busca esgotar o positivismo radical do ensino jurídico para vislumbrar a condição humana em um limiar iluminado pela autenticidade do homem em todo o seu dinamismo pluralista. É no espírito de ruptura, como abordado a seguir, que se tentará apontar meios práticos de fazer essa humanização acontecer no ensino jurídico.

3. A ruptura com o contratualismo: uma proposta de formação cidadã humanística

            Um dos pontos centrais desse trabalho baseia-se nas prescrições que fundamentam o caráter universal e singular dos conceitos éticos. Essa conexão entre a história universal absoluta e o singular subjetivo foi uma das questões fundamentais no desenvolvimento da concepção antropológica aqui abordada. Assim, o reconhecimento de uma estrutura universal capaz de pensar o humano faz com que esse humano reflita o compromisso de manter sua essencialidade, que é o tornar-se o que ele é. A educação é um dos meios que possibilitam esse acontecimento. Entretanto, faz-se necessário apontar um discurso capaz de transformar esse sujeito singular no artífice da sua própria libertação ideológica, em especial os mecanismos que reduzem o homem aos feitiços da sociedade mercadológica.

Ressalta-se, ainda, a importância do que prefigurou Francis Bacon, quando o concebeu o poder da técnica nas manifestações políticas como reduto de idealização da engenharia social liberal, que é marcada por um novo significado do currículo no início da modernidade, representando, sem dúvida, um rompimento com o modelo clássico e medieval de se pensar o currículo científico, e, por conseguinte, o fim do modelo clássico de universidade e o advento das academias científicas.

            Bacon torna-se o profeta da era industrial. A conclamação da técnica é posta no universo acadêmico como o lugar do currículo das ciências. Todavia, a grande questão é que as concepções vindas das ciências rapidamente foram transferidas para o mundo da vida, mais precisamente para o universo político.

 O que é imprescindível é que essas concepções modificaram o currículo nas universidades europeias, o que gerou um conflito no modo de se pensar a educação com ênfase ao mais notório conflito de classes da história: burgueses e nobres. É evidente que o capital superabundou suas forças, e, em dado momento, uniu nobres e burgueses em torno de uma superestrutura, que é o estado moderno. Daí, indubitavelmente, os conflitos históricos assumiram um ideário de uma cultura que prevalece na história por mais de seiscentos anos, os detentores dos meios de produção – chamados no início da modernidade de burgueses – e os trabalhadores – clarificados até a modernidade tardia como proletários.

            É nessa ilação que eventos históricos dessa natureza, que emanaram do técnico no técnico, reformularam o currículo na pauta dos interesses sociais. E é nesse cenário que o conceito de Humanismo e Direito terá o seu trânsito conceitual e antagônico, sendo, evidentemente, na educação que esse estado de coisa se torna exequível. Um dos modelos de superação desse currículo teve sua nuance categórica na investigação marxista, pois a filosofia de Marx – que se volta ao original como corolário para se pensar o movimento da matéria histórica na vida dos homens – foi fator decisivo para se refletir o problema da hegemonia de classes no cenário pedagógico, sendo a escola o espaço dessa dinâmica.

            Um fenômeno como os Direitos Humanos traz para sua problemática pedagógica os reflexos para se pensar o humano na sua visão pluralista. Uma hermenêutica geográfica do pensamento em torno dos problemas aqui suscitados é uma mudança de paradigma na forma de se conceber o ensino jurídico na integralidade teórica e humanística. Ora, se o currículo se tornou trivial, é preciso superar essa trivialidade no exercício do pensamento, num ato de ler e escrever o mundo capaz de recriar, de romper, de dizer o humano que é humano por ser plural.

            A geografia do pensar o Direito em um contexto de currículo que menospreza o humanismo traz a exigência de romper com o contratualismo político que passou a coabitar o espaço do pedagógico nas instituições sociais, em especial nas instituições educacionais, onde são formados seres humanos para a prática da cidadania. É preciso reconhecer, como aponta Hannah Arendt (1989), que o totalitarismo não morreu com a Segunda Guerra Mundial, mas que encontrou na técnica moderna os modelos econômicos de pensar a educação em consonância com a lógica do mercado, transformando o humano em um quantitativo estatístico, como os judeus no campo de concentração de Auschwitz.

 O pensamento é dinâmico. Como foi posto, é fora da cabeça, sendo preciso repensar o currículo no campo jurídico para salvaguardar os direitos humanos para além do capital, e, mesmo vivendo a cultura do capital, é necessário enfrentar o problema frontalmente. Uma das centelhas pedagógicas para a reflexão do Direito e a legitimação dos direitos humanos é a axiologia jurídica. É nesse sentido, que o pensamento do filósofo jurista John Rawls se aproxima de uma visão sobre o direito constitucional que seja capaz de romper com o contrato social clássico, que acometia a liberdade humana, para um contrato com princípios éticos e cidadãos, que ressignificam o sentido dos direitos humanos na realidade jurídica, que nessa tomada hermenêutica acompanhará o processo de curricularização. 

3.1 O Humanismo de John Rawls e a Educação Democrática

            Foi no campo democrático que os direitos humanos conseguiram manter sua existência. Embora eles sejam tratados de forma anacrônica na própria realidade jurídica, eles são consequência de um processo político que se desenvolveu historicamente, passando por uma transmutação conceitual ligada ao mundo da vida.

A prática democrática bem como o exercício da cidadania que emerge das relações sociais se desenvolveram em uma dinâmica teórica que foi subjugada em diversas performances da filosofia política, como o liberalismo e o socialismo. A atitude democrática foi impulsionada em diversas nações do mundo depois da Segunda Guerra Mundial com o intuito de proferir a paz entre as nações e manter a existência humana salvaguardada dos horrores do totalitarismo. Elucidou-se aqui que os processos educacionais nos cursos jurídicos trazem em sua estrutura interna resquícios do pensamento tecnicista que desenvolveu o Estado moderno, tornando-se um sintoma pedagógico na atual conjuntura em que se encontra o ensino jurídico. Ora, se a efetivação das instituições sociais no caráter burocrático e humano precisam dos profissionais do Direito, é imperioso um olhar atento aos modelos de ensino que as intuições de nível superior estão assumindo como ideário acadêmico.

Como foi posto, existe uma gama de profissionais na área jurídica sendo formados todos os anos em um quantitativo que supera as demandas do mercado, o que causa dois impactos: a formação desses profissionais para o ordenamento social do Direito, atingindo toda a sociedade, e, em seguida, o problema do ensino na formação cidadã desses profissionais.

 No entanto, é nesse panorama que a democracia permite a atitude reflexiva, o que gera um tenebroso assombro perante o ressurgimento do ideário técnico normativo no ensino jurídico brasileiro.

Assim, indaga-se: até quando se manterá o Estado Democrático de Direito – condição fundamental para se pensar o currículo – nas conjunturas em que se vive politicamente no Brasil? Sabe-se que o ideário democrático consiste em uma sociedade de cidadãos livres e iguais, que mesmo com pensamentos antagônicos em relação à educação, religião, política, sexualidade vivem com as mesmas garantias sociais, ao menos é o que prescreve os princípios constitucionais. Entretanto, é possível, além de manter esse estado democrático cidadão, legitimar os direitos humanos em sua durabilidade legal e eficiência social? É possível humanizar o currículo no ensino da principal instância sobre os direitos humanos, que o próprio judiciário?

Rawls começa a investir nessa problemática citando o exemplo vindo da relação entre indivíduo e religião:

Como é possível para aqueles que confessam uma doutrina religiosa que se apoia na autoridade religiosa, por exemplo, a Igreja, ou a Bíblia, também defenderem uma concepção política razoável que sustenta um regime democrático justo? (RAWLS,2011, p. 39)

            Essa indagação de Rawls não se restringe à religião. Como foi posto, o currículo jurídico no ensino brasileiro se aproxima do conceito freiriano de educação bancária. Assim, seguindo a ótica de Rawls, pode-se levantar a seguinte questão: como pensar em uma educação democrática e justa quando o próprio currículo é uma mercadoria vendida pelas instituições de ensino? Nesse enfoque, é preciso reafirmar os processos democráticos para não perder o caráter humanístico da educação, sem condições políticas para o pensamento cidadão, escondendo-se a intuição humana e vendendo-se um currículo para o profissionalismo mercadológico, um dos problemas fulcrais do ensino jurídico. Nesse sentido aponta Freire,

 

Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve, tem de ser uma operação simpática, no sentido etimológico da expressão. Isto é, tem de constituir-se na comunicação, no sentir comum uma realidade que não pode ser vista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem “comportada”, mas, na complexidade de seu permanente vir a ser. (FREIRE,1982, p. 118)

De acordo com Zambam e Aquino (2016, p. 96), o palco para promoção humana, e, consequentemente, uma formação humanística, passa pela manutenção da democracia, já que, segundo os mesmos, “a Democracia é o sistema político com as melhores condições para o exercício e reconhecimento da liberdade”.

            É no combate ao totalitarismo endêmico das sociedades modernas que se ergue um contraponto aos modelos de exploração do homem pelo próprio homem, que é justamente a existência da democracia, instrumento que possibilita a cidadania e a liberdade de pensamento perante os eventos sociais. Dessa forma, um ensino calcado no transumanismo, com bases pluralistas da multidimensionalidade humana, é erigido como condição universal dos direitos humanos.

            A educação inclusa no processo democrático torna-se um direito inalienável de toda pessoa humana, não somente por suas faculdades cognitivas como pensara Kant, mas por permitir que todo ser humano, mesmo aqueles desprovidos de qualquer habilidade intelectiva, sejam salvaguardados em toda sua dignidade.

            No humanismo de Rawls, a justiça é a verticalidade que liga às diversas performances políticas, não atribuindo um modelo único de orientação na promoção dos direitos humanos, sem nenhuma acepção ideológica como fator determinante da ordem social, pois os diretos humanos foram construídos no espírito da pluralidade filosófica, tema enfatizado nessa pesquisa.

            Continua o jurista, apontando as condições nas quais são possíveis a coabitação entre sociedade e pluralidade:

a) todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e de liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, neste projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da sociedade. (RAWLS, 2000, p. 47).

            No pensamento de Rawls, uma educação orientada por uma democracia pluralista admite que todo cidadão, livre e igual, mesmo em meio aos conflitos de ideias, sejam capazes de socializarem a dinamicidade da vida em comum acordo. Nesse sentido, o autor rompe com uma ideia de contrato social que retire o caráter singular de cada indivíduo humano e o transponha para um modelo político, prevalecendo aí, em seu pensamento, não um pacto social normativo, mas um pacto social axiológico, sendo na ética da multiplicidade humana que acontece o fenômeno da convivência.

É preciso conviver, e um dos campos de atuação da convivência humana, e talvez sua primazia, é o campo pedagógico. Com a gama de profissionais do Direito lançados no mercado, sem essa equidade das relações humanas, o domínio público torna-se prevaricado e contraditório. Rawls opta pelo equilíbrio das nuances políticas e econômicas da sociedade moderna.

 

Considerações Finais

O presente estudo assumiu no seu ideário um problema, o qual foi clarificado como um acontecimento, que se torna mais nítido quando se tem que seu despertar é especificamente o acontecimento humano.

            Pensar a educação como acontecimento estritamente humano, sem discorrer em um modelo científico ou pedagógico, mesmo se apropriando desses elementos para fazer esse curso educativo acontecer na essência mais fundamental do ser humano, é ter a ousadia de conceber que o grande objetivo do currículo é fazer que o próprio pensamento seja capaz de pensar. É nesse contexto que se defende uma educação que auto se educa, não significando jamais ausência de instrumentos de aprendizagem, mas uma tomada de partida que reafirma que cada indivíduo humano adquire o modo de ser do mundo, que no pensamento contemporâneo é especificamente uma atitude política.

É Nessa linha de ideias que o pensar curricular assume uma feição humanística. Quando os teóricos do currículo romperam com o crivo do tecnicismo pelo técnico, mostrando o currículo como uma alteridade do movimento indenitário da cultura humana, eles propuseram que dentro do currículo existe uma tensão humana. Mas o pensar leva ao ato indubitável de se refletir os processos educativos dentro de uma realidade ativa. O currículo é um pensamento de singularidades humanas em torno de um projeto da ação humana em consonância com o pensamento histórico e geográfico de cada contexto existencial de uma época, de um espaço, em uma identidade e alteridade, que no fundo, representa o caráter universal da pluralidade humana.

A questão basilar dessa ideia é se o ensino jurídico, que traz na sua estrutura a primazia da garantia de direitos, permite que sejam adotadas novas concepções nos fundamentos educacionais, pois o direito é ensinar, e nesse ensinado existe a eminência pedagógica na qual sem educação não existe direito e sem direito não existe efetivação das instituições, e, consequentemente, não é possível um pensar jurídico.

Em outras palavras, pode-se declinar que, a partir do momento em que se analisa praticamente a totalidade dos currículos dos cursos de Direito de um estado brasileiro e se passa a ampliar o raciocínio ora exposto, refletindo que tais cursos  são, muitas vezes,  mantidos por grandes grupos empresariais de ensino que comandam o mercado educacional em todo país, repetindo, de forma desenfreada, em seus projetos políticos pedagógicos os mesmos ideias onde quer que venham a se proliferar, acredita-se que os problemas aqui lançados assumem proporção quase que generalizada.

Por outro lado, se pararmos para analisar as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Direito no país, observa-se que parece existir, até mesmo por parte das instâncias governamentais e regulamentares, uma mínima preocupação com essas questões, já que ao lançarem mão do verbo poderão, facultam a cada instituição de ensino que oferta o curso de Direito no país a possibilidade ou não de realizarem a inclusão de disciplinas tão significativas ao contexto que vem sendo alvo de destaque ao longo desse estudo.

 O que deveria ser, quase sempre, a espinha dorsal de um curso, como conteúdos de direitos humanos, direitos  da criança e do adolescente, direito agrário, dentre outros, passa a ser uma opção institucional, deixando-se de lado a possibilidade de esgotar uma pauta humanitária tão vasta, que contempla aspectos cruciais vivenciados pelas minorias no Brasil, principalmente nos dias atuais, em que se tem, infelizmente, uma política norteada pela contramão dos direitos como um todo, chegando-se, inclusive, a ocorrer a proliferação de discursos nos quais se exaltam que as minorias devem se portar com cautela caso queiram continuar a existir.

Assim, tem-se que a posição de um currículo que veja na perplexidade sua própria estrutura é uma atitude da educação que educa a si, que visualiza os elementos do pensamento complexo no processo de configuração desse aspecto pedagógico, que é o fenômeno do currículo. É nessa dinâmica que o cuidado com o ato de educar é imprescindível quando se pensa a dinamicidade do currículo. Afirma Arendt:

A tarefa educacional é intrinsecamente complexa, pois educar é simultaneamente proteger a criança das pressões do mundo e proteger o mundo contra as pressões e transformações que advêm da capacidade humana para a ação e para o discurso em comum, própria dos recém-chegados. (ARENDT,1995, p. 190):

            É evidente que os anacronismos presentes nos cursos de Direito emanam da formação básica. Que essa criança citada por Hannah como recém-chegada é também o aluno recém-chegado ao curso de Direito, e, para ser mais preciso, aos cursos de nível superior. Quando o currículo é subalternizado, os agentes e receptores tornam-se o objeto dessa ação. Eis, portanto, o desafio do humanismo na discussão curricular, não como um problema inclusivo do Direito ou uma reflexão da Pedagogia, mas um problema da universalidade humana. O humano, que pode ser apresentado como um ser que pergunta por que existe o ser e não o nada, que é jogado no mundo e moldado na cultura sendo, por conseguinte, o ápice dessa reflexão. 

            O primado da Pedagogia é um legado de uma cultura que perpassa o mundo da vida desde o primeiro ato antropológico da história. É até possível deduzir que o primeiro ato da linguagem humana foi a expressão da própria angústia humana. A necessidade do humano de se manter no mundo, seja pelo trabalho ou pela linguagem, é um fenômeno existencial. Pensar na formação desse recém-chegado como formador da humanidade não é uma atitude restrita a uma área específica do conhecimento, ou vaidade teórica, tampouco uma atitude de transformação, é entender que qualquer decisão tomada no âmbito da educação, seja nos processos de ensino e aprendizagem, seja na gestão educacional, é uma atitude por toda humanidade. Toda decisão humana, mesmo particular, gera uma repercussão na humanidade.

Da mesma forma, qualquer decisão sobre a configuração curricular não é um ato isolado, mas um ato que reflete em toda uma sociedade. Eis, portanto, o que conclama este trabalho: a necessidade de uma educação jurídica humanista como o modelo de configuração sócio educacional capaz de buscar garantir a essência humana, a ciência, a técnica, as artes e, sobretudo, romper com os flagelos gritantes na segunda década desse século. 

Quando o currículo se torna inautêntico no seu humanismo existencial, há a prevalência de interesses dos grupos dominantes que controlam os processos educativos e, em muitos casos, são determinados pelas instâncias governamentais. Assim, refletir sobre o lado autêntico desse currículo significa que é possível pensar este ensino para além do que está positivado, ou seja, que existe a possibilidade de resgatar na essência do Direito o seu grau máximo de humanidade. O currículo pode ser repensado, pois ele é um produto da atividade humana.

Assim, o presente trabalho suscita um problema póstumo para a Educação Jurídica, não por mostrar uma inovação teórica, mas por tentar evidenciar que o dogmatismo jurídico é passível à criticidade. Isso, sem dúvida, faz com que o imaginário ressurja como uma atividade genuinamente humana, tornando essa pesquisa um ponto de fusão para repensar o problema da normatividade jurídica e, consequentemente, o seu lugar no ensino, já que se defende que o lugar do Direito na universidade é o lugar da liberdade e da dignidade humana.

 

 

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