A enunciação dos saberes discentes e o currículo cultural de Educação Física
The enunciation of student knowledge and the cultural curriculum of Physical Education
Flávio Nunes dos Santos Júnior
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil
flajnr@yahoo.com.br
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil
mgneira@usp.br
Recebido em 01 de junho de 2021
Aprovado em 17 de dezembro de 2021
Publicado em 22 de maio de 2023
RESUMO
Em meio à Modernidade, uma única forma de viver foi alçada como legítima e verdadeira, representando os efeitos do curso civilizatório. Essa dinâmica levou à consumação de inúmeras vidas, experiências foram desperdiçadas, conhecimentos exterminados e determinados modos de ser, apagados. A educação institucional e a ciência serviram a esse propósito de caráter colonial, patriarcal e capitalista. A pedagogia moderna é herdeira desse legado pautado na ideia de progresso por meio da razão e do desenvolvimento científico com a promessa da formação de um suposto sujeito autônomo, consciente e, sobretudo, livre. O currículo cultural da Educação Física faz frente a tais intenções ao assumir uma postura em defesa das diferenças. A presente pesquisa analisa se e como um professor que afirma colocar em ação a proposta valoriza os saberes dos alunos acerca da prática corporal tematizada. Para tanto, buscou apoio na forma qualitativa de investigação por meio da observação participante e de conversas em grupo. Os materiais produzidos quando submetidos ao confronto com o pensamento decolonial do grupo latino-americano Modernidade/Colonialidade, as epistemologias do Sul de Boaventura Sousa Santos e o pós-colonialismo de Homi Bhabha, indicam que os alunos percebem o ambiente propício à escuta, o que os motiva a expor seus gestos e saberes. Essa constatação permite inferir que ao colocar em ação a Educação Física culturalmente orientada, o professor se deixa guiar pelo princípio ético-político que favorece a enunciação dos saberes dos alunos.
Palavras-chave: Educação Física; Conhecimento; Cultura.
ABSTRACT
In the midst of Modernity, a single way of living was raised as legitimate and true, representing the effects of the civilizing course. This dynamic led to the consummation of countless lives, experiences were, knowledge exterminated and certain ways of being erased. Institutional education and science served this purpose of a colonial, patriarchal and capitalist character. Modern pedagogy is heir to this legacy based on the idea of progress through reason and scientific development with the promise of the formation of a supposed autonomous, conscious and, above all, free subject. The cultural curriculum of Physical Education faces such intentions by taking a stand in defense of differences. This research examines whether and as a teacher who claims to put the proposal into action, values students' knowledge about thematic body practice. To this end, it sought support in the qualitative form of investigation through participant observation and group conversations. The materials produced when submitted to the confrontation with the decolonial thought of the Latin American group Modernidade / Colonialidade, the epistemologies of the South of Boaventura Sousa Santos and the post-colonialism of Homi Bhabha, indicate that the students perceive the environment conducive to listening, which motivates them to expose their gestures and knowledge. This finding allows us to infer that when putting culturally oriented Physical Education into action, the teacher is guided by the ethical-political principle that favors the enunciation of students' knowledge.
Keywords: Physical Education; Knowledge; Culture.
Introdução
A educação escolarizada, uma maquinaria de governo da infância, conforme Varela e Alvarez-Uria (1992), confunde-se, em certa medida, com a proposta da Modernidade. Sua organização, permeada de universalismos, se sustenta nos princípios do progresso constante por meio da razão e da ciência, e do desenvolvimento do sujeito autônomo e livre (SILVA, 2015)
Transmitir os conhecimentos valorizados por certos grupos, formar um sujeito supostamente racional e moldar o cidadão e cidadã da moderna democracia representativa excitam a vontade escolar. É através desse sujeito racional, autônomo, unitário e democrático que se pode chegar ao ideal moderno de uma sociedade racional, progressista e democrática. Consequentemente, a escola se caracterizou como um dispositivo potente de colonização de diferentes populações e sujeitos.
Por fazer parte dessa estrutura colonial moderna, a Educação Física não passou incólume e foi utilizada como instrumento eficaz de supressão de corpos, saberes e modos de existir que não se encontravam na ordem desejada. Prova dessa condição é perceptível nas propostas ginástica, esportivista, psicomotora, desenvolvimentista, da saúde e crítica, todas elas comprometidas com a formação do sujeito da Modernidade. Entretanto, nos últimos anos tem despontado uma alternativa curricular que promete contrapor-se aos ditames da Modernidade, o chamado currículo cultural, pós-crítico ou, culturalmente orientado ou, simplesmente, Educação Física cultural.
O currículo cultural de Educação Física (NEIRA; NUNES, 2020; 2022) se anuncia como um currículo do conflito, do embaraço, que mexe com as naturalizações ao reivindicar a presença na cena escolar dos conhecimentos produzidos pelos grupos subjugados, potencializando a voz e vez daqueles que foram e são silenciados pelos discursos do dominador, do legislador, do opressor, dispondo-se a escutá-los e a valorizar suas formas de expressão.
Influenciado pela teorização pós-crítica,[1] considera fundamental o direito de todos e todas a terem uma vida digna e sensibilizar-se com significados como equidade, direitos, justiça social, cidadania e espaço público, o currículo cultural anseia pela ampliação e aprofundamento dos conhecimentos que os estudantes possuem acerca das práticas corporais e seus participantes.
As aulas de Educação Física culturalmente orientadas se configuram como espaço de experimentar e problematizar a ocorrência social das brincadeiras, danças, esportes, lutas e ginásticas, com vistas a propiciar uma leitura mais qualificada, e sua reelaboração conforme o contexto. Tomadas como artefatos da cultura, as práticas corporais carregam significados e representações de mundo e sociedade dos grupos que as produzem e reproduzem (NEIRA, 2010; NEVES, 2018).
Mapeamento, leitura, vivência, ressignificação, aprofundamento, ampliação, registro e avaliação são encaminhamentos pedagógicos que caracterizam o currículo cultural. Enquanto articulação com o projeto pedagógico da escola, justiça curricular, rejeição ao daltonismo cultural, descolonização do currículo, ancoragem social dos conhecimentos e reconhecimento do patrimônio cultural corporal da comunidade são princípios ético-políticos que agenciam os docentes durante o desenvolvimento da proposta. (NEIRA, 2016)
Seguindo os rastros do estudo de Santos Júnior e Neira (2019), a presente pesquisa se propõe a analisar como um professor que afirma colocar em ação o currículo cultural de Educação Física lida com os saberes dos estudantes a respeito das práticas corporais. Tal empreita se faz a partir do debate pós-colonial (BHABHA, 2013), do pensamento decolonial (MIGNOLO, 2003; 2005; 2007) e das epistemologias do Sul (SOUSA SANTOS, 2010a), submetendo os dados produzidos no campo à analise cultural.
Conexões teóricas
Ballestrin (2013) explica que o movimento pós-colonial é composto por um aspecto temporal e outro de contribuições teóricas. O primeiro diz respeito a um tempo histórico sucessor dos processos de descolonização de países chamados arbitrariamente de terceiro mundo, enquanto o segundo se refere à aproximação dos estudos literários e culturais.
Durante a década de 1980, a literatura pós-colonial se associou às discussões promovidas na Inglaterra e Estados Unidos. Com o passar do tempo as fronteiras geográficas e disciplinares se ampliaram. Edward Said, Paul Giroy, Stuart Hall, Achile Mbembe, Homi Bhabha, são alguns dos nomes de referência do movimento.
Dialogando com Costa (2006), o prefixo “pós” traz uma reconfiguração no campo discursivo, não trata apenas de algo que vem posteriormente, sua produção tem uma nova postura política, a de rechaçar as relações hierárquicas. Por sua vez, o “colonial” se alinha ao quadro de opressões variáveis que envolvem diferentes grupos e sujeitos, de ordem étnica, de gênero, racial.
Nas análises de Hall (2003), o pós-colonialismo está longe de ser uma sequência temporal do antes-depois, o movimento que parte da colonização para os tempos pós-coloniais não quer dizer que findaram os problemas do colonialismo, de supressão e opressão das vidas. Na verdade, as forças de dominação estão atualizadas, amarradas numa nova conjuntura de poder, mantendo firmemente os dilemas de dependência, subdesenvolvimento e marginalização do passado colonial.
Hall (2003) anuncia que esse sistema de relações desiguais da atualidade está situado na desregulamentação de livre mercado e de livre fluxo do capital. Dominado pelos países do chamado Primeiro Mundo e programas de reajuste estrutural, que simplesmente atendem às ordens e aos interesses e modelos ocidentais de controle, as vidas de boa parte do mundo seguem coisificadas.
Para Bhabha (2013), a pós-colonialidade é um lembrete das relações “neocoloniais” que compõem a nova ordem mundial e da divisão de trabalho multinacional. Isso vem permitindo não só histórias de exploração, mas também a construção de estratégias de resistência. A crítica produzida pelo pensamento pós-colonial representa um testemunho de países e comunidades de Norte a Sul, de Leste a Oeste, que constroem suas relações e conhecimentos, suas vidas, de outro modo que não a da Modernidade.
A intenção do pensamento pós-colonial é intervir em narrativas ideológicas da Modernidade que buscam construir uma normalidade hegemônica e naturalizar as diferentes histórias a respeito das nações, raças, comunidades e povos. Tal posicionamento vem acompanhado da compreensão do discurso colonial enquanto aparato de poder, que busca apoio no reconhecimento e repúdio das diferenças, e neste ponto se inserem as questões raciais, culturais, sexuais, de gênero (BHABHA, 2013).
A função do discurso colonial é proporcionar espaço para “povos sujeitos”, através da confecção de conhecimentos e saberes para exercício da vigilância. Assim, configura-se num modo de governamento, pois se dispõe a degradar e consolidar estereótipos, a fim de justificar a conquista e estabelecer um sistema de administração, expropriação, instrução e exploração (BHABHA, 2013).
Bhabha (2013) emprega o termo contramodernidade para se referir a esses processos da cultura pós-colonial, colocando-os como contingentes, descontínuos ou em desacordo com o modo de pensar da Modernidade. Pretende favorecer o desenvolvimento do diálogo entre sujeitos e grupos, ou seja, tornar possível a articulação de elementos contraditórios, antagônicos. Tal atitude dialógica, de negociação, cria brechas para o desenvolvimento de abertura de lugares e objetivos híbridos de luta.
O pensamento decolonial, produção política e teórica latino-americana do coletivo Modernidade/Colonialidade, busca intervir na discursividade das ciências modernas para configurar outro espaço para a produção do conhecimento (ESCOBAR, 2003). De acordo com Mignolo (2005), emergiu olhando para a base da Modernidade/Colonialidade. Os estudos de Quijano (2005) denunciaram o mito de fundação da Modernidade, ao afirmar que sua invenção decorreu das ações de grupos dominantes da Europa em contato com os povos da América.
Nesse sentido, a Modernidade foi um processo colonial, marcado incisivamente pelo eurocentrismo[2]. Isso quer dizer que a produção intelectual da época ocorreu dentro de uma perspectiva de conhecimento geradora do olhar único, baseado no padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado (QUIJANO, 2005). Nesse caso, não há Modernidade sem colonialidade, ou seja, esta é constitutiva daquela.
Quijano (1992) acena que a colonialidade é o modo mais geral de dominação do mundo, já que o colonialismo, enquanto ordem política explícita, foi destruído. Acompanhando essa discussão, Maldonado-Torres (2007) declara que o colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação, o que favorece a constituição de tal nação em um império. Colonialidade, por sua vez, se refere ao padrão de poder resultante do colonialismo moderno. Mais que se restringir a uma relação formal de poder entre povos e nações, diz respeito ao modo como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si por meio do mercado de capital mundial e da ideia de raça.
A modernização do projeto neoliberal representa hoje as novas formas de colonização. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a política exterior dos Estados Unidos e os países fortes da União Europeia são pontos de referência claros para pensar a colonialidade global hoje (MIGNOLO, 2003). Assistimos a uma transição do colonialismo moderno para a colonialidade global, processo que transforma as formas de dominação implementadas pela Modernidade, mas não a estrutura das relações centro-periferia numa escala mundial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
O padrão de poder inspirado na colonialidade fomentou um padrão cognitivo, uma perspectiva de conhecimento que oportunizou considerar o não europeu como atrasado e ligado ao passado, tido, ainda, como inferior, dentro de um estado primitivo, algo a ser superado. Logo, a Modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivos do europeu, uma clara relação dualista.
Para Mignolo (2007), é necessário um giro decolonial nas ciências sociais e em todas as instituições modernas, o que implica a incorporação do conhecimento subalternizado aos processos de produção do próprio saber, pois somente assim se produz a descolonização. Dessa forma, a complexidade das ciências sociais com a colonialidade do poder exige a emergência de novos lugares institucionais e não institucionais de onde os sujeitos posicionados numa condição de inferioridade possam não só falar, mas também ser ouvidos: “Há uma necessidade de pensar o conhecimento como geopolítica em vez de pensá-lo como um lugar universal” (MIGNOLO, 2003, p. 21).
Modernidade, colonialidade e decolonialidade formam um emaranhado. Se não há Modernidade sem colonialidade, se a colonialidade é constitutiva da Modernidade, logo, a decolonialidade se propõe a fraturar a Modernidade. A colonialidade representa as consequências (não) intencionais das narrativas da Modernidade, é o lado mais sombrio e oculto. Dessa forma, a grande tarefa, o verdadeiro desafio, da decolonialidade é denunciar esses processos que ficam escondidos na lógica da colonialidade, sentidos nas trajetórias das histórias coloniais, inscritos nos corpos e na sensibilidade (MIGNOLO, 2018).
O propósito de trazer à tona as narrativas modernas que oprimem diferentes grupos e sujeitos faz do pensamento decolonial um exercício político. Para Mignolo (2018), é preciso tratar do conhecimento que promove a interligação entre economia, sexualidade, gênero, política e história nas relações estabelecidas na sociedade, nas diferentes práticas que nos atravessam. Portanto, a descolonização do conhecimento representa um vir a ser, é tornar-se aquilo que a colonialidade obscureceu, impediu, é aí onde reside a tarefa fundamental da decolonialidade.
Nos dizeres de Sousa Santos (2018), as epistemologias do Sul surgem como uma oposição a esse estado de imposições universais, a tudo aquilo que é válido independente do contexto, pois o pretenso universalismo ou localismo globalizado conduziu a um epistemicídio generalizado, uma exclusão de experiências do conhecimento. O princípio é a desfamiliarização das epistemologias situadas ao Norte, ao passo que se busca o reconhecimento e legitimação dos conhecimentos produzidos a partir das perspectivas de quem sofre ou sofreu as violências fabricadas na conjunção do patriarcado, do capitalismo e do colonialismo.
Nos dizeres de Sousa Santos (2019), as epistemologias do Sul referem-se a um Sul epistemológico, e são vários suis, tendo em comum os conhecimentos nascidos na luta, em qualquer lugar que se demonstre a resistência contra o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado[3].
O Sul das epistemologias do Sul é o Sul anti-imperial, o Sul não geográfico composto pelas lutas de inúmeras populações do Sul e do Norte geográficos contra o domínio do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. Chamam-se epistemologias do “Sul”, porque, historicamente, as populações do sul global foram aquelas que sofreram de forma mais grave a expansão da dominação moderna do Norte e do ocidente. Para essas populações, a migração para o Sul do dinamismo do capital global não se afigura necessariamente positiva (SOUSA SANTOS, 2019, p. 180).
Ao lançar mão da metáfora ambígua Sul e Norte, Sousa Santos (2019) procura deixar evidente o cuidado necessário para não recair no essencialismo. Trabalhando a partir de duas esferas, o geográfico e o epistemológico, o autor defende que no próprio Sul geográfico (América Latina, Caribe, África, Ásia e Oceania) é possível perceber a operacionalização de elementos do Norte[4] epistemológico e o contrário se faz verdadeiro. Isto é, no Norte geográfico (Europa e América do Norte), também se observam as epistemologias do Sul, por exemplo, nas lutas protagonizadas por trabalhadores, imigrantes, mulheres, refugiados, ambientalistas etc.
Aqui as epistemologias não têm nada a ver com o seu sentido convencional[5]. O objetivo é identificar e valorizar algo que foi posto historicamente como não conhecimento, inexistente, bem como favorecer a ampliação das possibilidades de representar o mundo. Isso passa pela defesa de uma sociedade em que todos os grupos, tais como, os marginalizados e subalternizados, tenham o direito de anunciar seus modos de enxergar aquilo que os cercam e compreender o mundo como seu (SOUSA SANTOS, 2019).
Nesse horizonte de debates em torno dos diferentes modos de conhecer e ser, Sousa Santos (2018) é incisivo ao declarar que as epistemologias do Sul vêm no sentido de pensar outra maneira de construir conhecimento para a transformação social. Assim, propõe-se pluralizar o conhecimento e referir-se a conhecimentos, isso, por si só, representa uma transgressão, uma vez que, para as epistemologias do Norte, o conhecimento é universal.
Por sua vez, a existência de grupos e sujeitos também é requerida na ordem da coexistência. As epistemologias do Sul invocam ontologias outras, ressaltam modos de ser múltiplos, sobretudo, aqueles ligados aos grupos silenciados, sujeitos que historicamente foram ou têm sido afastados das condições de ser e conhecer fabricadas e legitimadas pelas perspectivas hegemônicas ocidentais. Considerando que tais coletivos e pessoas se produzem como ausentes devido a relações de poder extremamente desiguais, ter sensibilidade para com suas lutas é um gesto político relevante e crucial.
O debate promovido pelos movimentos supracitados possibilita entender as relações sociais que subjugam inúmeras práticas e seus representantes, além de construir coletivamente ações com potencial de enfrentá-las e desestabilizá-las. Nesse viés, a hibridização das manifestações culturais surge como possibilidade, uma vez que privilegia o permanente diálogo e o escape dos fechamentos e fixações da Modernidade que tenta estabelecer uma única maneira de performar a vida.
Procedimentos do pesquisar, o território da pesquisa e seus produtores
O pesquisar em tela se constituiu durante o próprio ato investigativo, numa situação de total movimentação e por isso adotamos a ideia de procedimentos. Buscou-se amparo no modo qualitativo de investigação, em função de o percebermos em harmonia com as novas demandas sociais e educacionais. Denzin e Lincoln (2006) anunciam que essa maneira de pesquisar é uma atividade situada que localiza o observador no mundo.
Flick (2009) nos lembra que os pesquisadores qualitativos não agem com neutralidade, pois tomam parte quando observam. Nesse contexto, recorremos a um pesquisar de inspiração decolonial/pós-colonial/epistemologias do Sul, sem perder de vista o objetivo proposto. Para tanto, junto com o professor, a partir de cada encontro, de cada aula, pensamos e organizamos as atividades seguintes; vivemos as atividades com docente e estudantes; fora do expediente de aula, conversamos com os estudantes e com o professor.
O cenário de realização da pesquisa foi escolhido com base na afirmação do docente que diz colocar em prática o currículo cultural de Educação Física, bem como no território escolar. Foram respeitados todos os procedimentos éticos[6] para realização de pesquisas científicas.
O professor Leandro[7] atua numa escola da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo localizada no distrito do Jardim São Luís, bairro Parque Santo Antônio. Ao longo do primeiro semestre letivo de 2018, acompanhamos semanalmente as aulas desenvolvidas junto a duas turmas do 5° ano do Ensino Fundamental.
Adotamos a observação participante (MARQUES, 2016) e as conversas em grupo (MOURA; LIMA, 2014) como procedimentos para produção dos dados, buscando compreender como o professor lidava com os conhecimentos referentes às práticas corporais. A observação possui um componente político, sobretudo por acontecer em meio a culturas heterogêneas e no encontro entre diferentes sujeitos. Quando a sua ocorrência permite a interação entre os envolvidos na pesquisa, a subjetividade dos presentes torna-se um fator de grande contribuição (JACCOUD; MAYER, 2008). Nesse contexto, os dados só podem ser produtos das relações estabelecidas (MARQUES, 2016).
Acompanhando os anúncios de Marques (2016) e Oliveira, Santos e Florêncio (2019) a respeito da observação enquanto técnica, procuramos registrar acontecimentos e falas no momento mais próximo possível da sua ocorrência.
Tomando por base as recomendações de Gatti e André (2011), Marques (2016), Oliveira, Santos e Florêncio (2019), os registros focalizaram aquilo que fora enunciado por professor e discentes, o local de realização da aula, a proposta inicial pensada pelo docente, além de nossas observações sobre o que foi sentido, vivido e visto. Para confeccioná-los, fizemos uso de caderno de campo, bem como o celular para fotografar e/ou filmar. Ao final de cada aula, pensávamos a seguinte em parceria com o professor. Foi um exercício coletivo, de demanda contextual.
Seguindo as recomendações de Moura e Lima (2014), também realizamos rodas de conversa. Alguns estudantes foram convidados para dialogar a respeito das suas vivências, a fim de identificarmos como percebiam seus conhecimentos permeando as situações didáticas produzidas na e pela escola, sobretudo nas aulas de Educação Física tomadas pelo currículo cultural.
O convite para participar das rodas de conversa foi aberto às duas turmas, tendo como única exigência a participação regular nas aulas de Educação Física. Buscamos ouvir tanto quem tinha um intenso envolvimento nas atividades propostas, como também quem não se entregava de igual modo, quem optava por contemplar os colegas performando a prática corporal tematizada. Os estudantes e o professor receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, após a devolutiva do documento assinado pelos respectivos responsáveis e pelo docente, a conversa transcorreu de uma forma descontraída.
Recorremos à análise cultural para tecer as interpretações, esmiuçando com rigor as construções do campo. A análise cultural dedica um esforço a pensar as relações humanas no contexto de inter-relação, procurando apoio em diversas áreas da sociedade e nos conhecimentos criados e desenvolvidos por inúmeros sujeitos. Toma como válido e legítimo qualquer elemento que tenha potencial para oferecer indícios de como operam as relações culturais, uma vez que tem como premissa a ideia de que as pessoas são complexas e atuantes em variadas esferas sociais (LISBOA FILHO; MACHADO, 2015).
No caso, a análise cultural deu-se mediante o confronto com os campos teóricos do pensamento decolonial, pós-colonial e das epistemologias do Sul, para dar visibilidade a aspectos e relações que fogem das tradições da ciência. Assume-se abertamente o caráter parcial, incompleto e contextual das novas histórias que emergem das análises tecidas a respeito das práticas culturais (WORTMANN, 2002).
Remontando a Costa (2004), a intenção da análise cultural é construir um exame das significações implícitas e/ou explícitas em determinado modo de viver, em certa cultura. Concebida como forma de ler os materiais produzidos pela pesquisa, a análise cultural prefere o caráter contextual e provisório, além de se sensibilizar com os modos de vida e conhecimentos que se opõem aos construtos hegemônicos.
Favorecer a enunciação dos saberes discentes
A análise dos registros evidencia que os conhecimentos dos estudantes sobre o tema selecionado pelo docente marcaram forte presença em toda trama. Não só isso, o professor culturalmente orientado fez um esforço para ocupar as discussões com uma atitude que se assemelha ao giro decolonial proposto por Mignolo (2007), já que buscou incorporar diferentes modos de olhar, compreender e vivenciar as práticas corporais.
Em conversa com os estudantes a respeito do que pensavam sobre os diálogos que atravessaram as aulas, um deles enunciou:
Estudante coautor[8] 01 – “Na aula de Educação Física, teve bastante conversa. A gente não ficou só na sala, a gente jogou também. [...] O professor precisa colaborar também, às vezes, se a pessoa está prestando atenção, não consegue responder, o professor precisa ajudar. Acho que é isso”.
Pesquisador-professor – “Você gostou da conversa?”
Estudante coautor 01 – “Sim, ajuda qualquer pessoa, aí quando crescer, por exemplo, você vai trabalhar ou fazer uma faculdade, daí você vai ter que explicar, tipo, daí você vai ter que ser ouvido”.
A forma como o estudante do 5º ano visualizou o diálogo nas cenas produzidas pelo coletivo expressa uma leitura instrumental, a serviço das relações de trabalho muitas vezes imbricadas nas intenções capitalistas e coloniais. A enunciação discente oferece indícios dos efeitos da colonialidade vivente na sociedade, de uma educação voltada a atender as demandas do mercado, de um cidadão empreendedor. O modo como percebeu as conversas tecidas nos leva a supor a existência de uma disputa pela forma de significar o diálogo em aula. Entretanto, o professor dialogou com outra intenção, a fim de artistar o currículo. Vejamos:
Estudante coautor 04 – “O professor sempre presta atenção no que a gente vai falar. Se alguém atrapalha, ele manda a pessoa calar a boca e prestar atenção no que a gente tá falando, se importa com a nossa opinião”.
Estudante coautor 02 – “A maioria da classe sugeriu mudar o jogo. O professor sempre perguntava o que a gente estava achando”.
Estudante coautor 01 – “A classe inteira quis mudar. [...] a gente conversou, nós foi falar com ele. Acho que não foi nós que fez ele mudar, foi ele que se mudou, porque ele que perguntou ainda”.
As transcrições acima transparecem a percepção dos educandos acerca do exercício da escuta e da fala dos diferentes atores. Os dados demonstram que os estudantes são suficientemente capazes de interpretar a conduta do docente. O fato permite aludir aos resultados alcançados na investigação de Bonetto (2016, p. 170), acerca de como os princípios ético-políticos atravessam o professor ou professora que assume colocar em ação o currículo cultural.
[...] ao invés de serem vistos diretamente na escrita curricular, os princípios incidem nos professores, ou seja, influenciam, “estão dentro”, “estão rondando” os sujeitos, que ‘pensam em um deles’. Em outras palavras, os enunciados pedagógicos do currículo cultural que tratam sobre os princípios, produzem efeitos indiretamente na ‘escrita-currículo’ e diretamente nos professores, como transformações incorpóreas.
A narrativa discente dá a perceber o quanto os princípios ético-políticos do currículo cultural de Educação Física, ao agenciarem o docente, geram efeitos na prática pedagógica organizada e promovida. Tamanho impacto leva-nos a desconfiar de um provável toque também nos estudantes. Importante frisar que é muito diferente da forma como ocorre com os professores. Os estudantes, ao se depararem com um contexto aberto para o encontro de conhecimentos, disponível para o diálogo, sensível para as negociações, buscam incluir-se na cena, participando da construção do processo, da escrita-currículo[9].
Permitir a narrativa discente soar o ambiente e se colocar atento para escutá-la é um gesto político que possui aproximações com o lema ‘andar perguntando’ do Movimento Zapatista (GROSFOGUEL, 2007), como também com a oratura de que Sousa Santos (2018) trata ao discutir as epistemologias do Sul. Isso pode significar uma tentativa de subverter a colonialidade, um permitir-se, um abrir-se, para uma luta criativa já que reconhece e valoriza a existência de conhecimentos outros no ambiente.
Influenciados pela crítica pós-colonial de Bhabha (2013), fomos invadidos por incômodos acerca dos princípios ético-políticos do currículo cultural. Segundo o autor, as narrativas ideológicas da Modernidade simultaneamente reconhecem e rejeitam as diferenças, o que nos leva a apresentar a seguinte questão: reconhecer o patrimônio cultural corporal da comunidade é suficiente quando se está disposto a organizar uma prática pedagógica sensível aos diferentes saberes, sujeitos e grupos, de modo a combater injustiças de toda ordem? Por estarmos em sintonia com as assertivas do filósofo indiano, percebemos a insuficiência de tal reconhecimento, é preciso ir além.
Portanto, levando em conta os processos vividos com estudantes e professor, julgamos ser pertinente destacar que o docente também foi agenciado pelo princípio de favorecer a enunciação dos saberes discentes. Bhabha (2013) traz a ideia de enunciação ao colocar em contraposição os significados de diversidade cultural e diferença cultural. O primeiro carrega consigo o reconhecimento de conteúdos e costumes culturais predados, enquanto o segundo diz respeito ao processo de enunciação da cultura como algo conhecível, legítimo. A enunciação coloca em questão as verdades ligadas à tentativa de dominação; introduz uma quebra da imposição de modelos culturais, estabilidade de sistemas e recusa de articulações. A enunciação da diferença cultural tensiona binarismos, a tradição da Modernidade, a repetição de um passado que justifica dominação. O enunciativo é um processo que permite a constituição de lugares híbridos, alternativos, de negociação cultural.
As aulas promovidas pelo docente, além de reconhecerem, possibilitaram assegurar o conhecimento, a cultura, dos estudantes a cada encontro por meio das situações didáticas desenvolvidas. Esses movimentos elevaram aquilo que os discentes traziam consigo como algo que se pode conhecer, que é legítimo, capaz de pertencer à discussão, de atravessar o currículo. O que viabilizou, em alguma medida, produzir interlocuções. Portanto, esteve atravessada constantemente pela gana de promover o que Sousa Santos (2010b; 2018; 2019) nomeia por justiça cognitiva.
Estudante coautor 03 – “antes no 4º, no 3º, eu nem jogava direito”.
Estudante coautor 02 – “ficava só sentado lá no parque brincando, eu nunca joguei assim”.
Estudante coautor 03 – “aí no 4º, só às vezes que eu ia jogar mais ou menos, ficava sentado”.
Pesquisador-professor – “o que você acha que ajudou você a jogar?”
Estudante coautor 02 – “é, a gente ficava mais sentado no 3º, ficava brincando mais, sentado vendo o jogo”.
Estudante coautor 04 – “é, no 2º e no 3º, a gente ficava sentado, brincando”.
Estudante coautor 02 – “tipo, a gente ia pra outra quadra ficar brincando, tinha vez que a gente ficava lá embaixo, no barranco”.
Quando não se criam espaços para a enunciação daquilo que as crianças apresentam, as aulas tendem a empurrar, literalmente, para o barranco, para o balanço, para a gangorra[10], determinados corpos, que não dominam os códigos exigidos na prática corporal em destaque, enquanto outros desfrutam de total vantagem por ter intimidade com o que é requerido. Assim, o currículo cultural em ação proporciona um rompimento na construção da não-existência (SOUSA SANTOS, 2010a), do espaço para povos sujeitos (BHABHA, 2013), ao estar atento aos enunciados discentes.
Ruminando esse processo com as contribuições de Bhabha (2013), Mignolo (2007; 2018) e Sousa Santos (2010a), à medida que se coloca atento para os diferentes corpos, narrativas e gestos, o docente aumenta as chances de produzir um conhecimento heterogêneo no ambiente, marcado pela negociação, uma vez que as relações a serem estabelecidas se revigoram pelas múltiplas verdades assumidas pelos estudantes a respeito da prática corporal em tela. Isso acaba contribuindo para a constituição de subjetividades outras, influenciadas por uma ecologia de saberes, indiciando a concretização de uma justiça cognitiva.
Olhando a produção com o professor coautor, chama atenção a vivência produzida coletivamente. No currículo cultural sua ocorrência ao longo da tematização não está condicionada ao alcance de uma ideia mais desenvolvida ou a serviço de outros componentes curriculares, mas a um momento de sentir no corpo a gestualidade e toda gama de conhecimentos e poder que configuram a prática corporal. Portanto, a vivência no currículo cultural é um convite a viver a prática corporal em tela, é um instante do viver como se acredita que deva ser vivido ou fazer como já fez (NEIRA, 2007).
Após a leitura do texto[11] que trata das primeiras regras do futebol, a turma foi convidada a vivenciar na quadra essa dinâmica. Ao chegar no local, formaram grupos. “Não quero ir pro gol”. “Vale gol por cima do travessão”. “Eu sou o juiz”. “Mas não tem juiz”. “Eram os jogadores que organizavam”. “Bola para frente só quando for cobrado tiro de meta”. O jogo começa, tensões surgem, a forma como promovem o futebol em outros espaços tenta aparecer. A confusão aumentou, as dificuldades em realizar o jogo conforme as regras do futebol conhecidas no texto só intensificaram. No meio da quadra, dizem com tom de reclamação: “Bola na mão, caramba”; “Vou sair, vou jogar mais não”. O professor reuniu todos e relembrou com os educandos trechos do texto. “Lembra que a gente leu que antes podia pegar a bola com a mão?”. “Sim”. “Então?”. Silêncio. Respiração acelerada. O jogo recomeça. Os corpos se batem, entram em disputa. Bola para um lado, bola para o outro. Cada um ao seu modo se posiciona no espaço de jogo, chuta e segura a bola como quer. O jogo acaba (15/08/2018).
A passagem ilustra o entrecruzamento entre os escritos do texto acessado pela turma, os saberes das crianças e do professor. Logo de chegada, as experiências obtidas em outros momentos temperaram o ambiente e as vontades surgiram, “Não quero ir pro gol”. Colocando mais caldo na situação, passagens do material acessado na aula anterior foram lembradas: “Vale gol por cima do travessão”. Tal anúncio se deu em virtude da descoberta do grupo da inexistência do travessão na composição do que hoje é conhecido por gol, baliza, trave ou meta, na prática do futebol. Em meio a tanta euforia, o docente provoca os discentes com o anúncio “Eu sou o juiz”, e não demorou muito para ser alertado pelas crianças - “Mas não tem juiz”, “Eram os jogadores que organizavam” -, baseadas nos conhecimentos disponibilizados pelo texto.
Nessa relação ímpar de saberes, percebe-se uma tentativa de considerar, de reconhecer, as tensões do momento. Deslocar-se até a quadra para vivenciar o futebol conforme suas primeiras regras foi novidade. O cenário foi coberto por um emaranhado de minúcias: as características do local, os materiais disponíveis, as regras que regulam as condutas das crianças e dos adultos no interior da escola, os conhecimentos que o coletivo tomou contato no encontro anterior e as subjetividades de cada um dos envolvidos.
Olhando para a dinâmica presente, a aula foi um território potente para constituição de saberes outros. Abandonando posturas de caráter determinista, o docente possibilita aos estudantes a aparição dos seus modos de performar o futebol, cada um teve a oportunidade de viver, de sentir no corpo a pulsão promovida pelo choque gerado entre o que já era sabido com as informações acessadas pela leitura. Refletindo com Neira (2016), isso tende a ocorrer quando o professor é agenciado pelo princípio ético-político evitar incorrer no daltonismo cultural, o que permite a recriação das práticas corporais e dos significados que rotineiramente lhes são atribuídos. Entretanto, tem muita proximidade com o querer do professor em propiciar espaços para enunciação da cultura, dos conhecimentos, dos discentes.
Nesse caldeirão de desejos individuais e conflitivos, o outro foi afetado e o processo de indecisão se intensificou. “Bola na mão, caramba”, “Vou sair, vou jogar mais não”. Em meio a tantas desavenças e tensões, o diálogo se fez presente, o docente se reuniu com as crianças e retoma uma questão. “Lembra que a gente leu que antes podia pegar a bola com a mão?” “Sim”. “Então?”
Estudante coautor 02 – o professor sempre perguntava o que a gente tava achando sobre o futebol. [...] a classe inteira sugeriu mudar o jogo.
As observações das aulas e os dizeres das crianças sobre o que viveram dão a entender que é no interior de um quadro de relações pedagógicas bem particular que a invenção do saber caminha, acompanhado pela criação de uma rede complexa de afetos, sensações, significados, prazeres, desejos. Nessa composição artística que estudantes e docente se permitem viver, o currículo se produz a cada encontro.
Na medida em que a prática pedagógica se constitui a partir do olhar sobre as relações entre os envolvidos e a escuta das narrativas a respeito do tema, abre-se um convite para entretecer o currículo, uma educação, uma luta, com e não para o outro. Assim, a artesania da prática, a artistagem, não é um trabalho solitário do docente, também se faz pelas mãos dos educandos. Logo, ao engajar-se nesse movimento, o coletivo assume o inesperado, a dúvida como parte do trabalho, pois ignora com o que vai deparar, escutar, sentir, ressoar.
Em meio a tanta negociação e diálogo, é difícil qualificar ou quantificar o que ficou, o que tocou cada um, sobretudo pela complexidade da trama. Os saberes que atravessaram as atividades de ensino se conectaram a diferentes pontos e ao mesmo tempo provocaram desconexões. Os estudantes foram convidados a buscar em fontes variadas os conhecimentos que ajudassem a compreender com mais profundidade e a produzir a prática corporal abordada.
Enunciando considerações
A pesquisa analisou aulas de Educação Física culturalmente orientadas e as colocações do professor e dos estudantes mediante o confronto com o pensamento decolonial, o pós-colonialismo e as epistemologia do Sul. Eis o seu aspecto inovador. Empreendemos um movimento com o currículo cultural que ele próprio se propõe a fazer, a descolonização. Não se trata de suprimir um conhecimento para inserir outro, mas sim ampliar a rede de inspirações para produzir uma prática pedagógica que cada vez mais afirme as diferenças. Assim, os campos anunciados somam-se aos Estudos Culturais, multiculturalismo crítico, pós-estruturalismo, pós-modernismo, teoria queer e estudos de gênero, referenciais com forte presença na teoria curricular cultural da Educação Física.
A respeito do currículo em ação, trouxe-nos surpresas a forma como o princípio ético-político reconhecer o patrimônio cultural corporal da comunidade toca o professor e gera ressonâncias em sua prática. A intensidade do atravessamento nos faz assumir o risco de dizer que há ressonâncias até mesmo nos estudantes que, ao se depararem com a organização de situações didáticas sensíveis à escuta e que possibilitam o encontro de conhecimentos, a presença de diálogos, a instalação de negociações, eles tendem a expor aquilo que sabem com mais intensidade, nutrindo todo o processo de enunciação.
Em razão desse contexto constituído pelo coletivo e a partir da análise dos resultados da investigação, parece-nos adequado sinalizar a presença de outro princípio ético-político, qual seja, favorecer a enunciação dos saberes discentes. Importante sublinhar que ao reconhecer, não é o professor quem se autoproclama o sujeito capaz de afirmar e enunciar a cultura corporal dos estudantes como legítima, como algo que deve ou pode ser conhecida. Longe disso, essa postura, por sinal, decorre dos processos coloniais, do colonizador, como alerta Bhabha (2013). O que se coloca a partir das análises pós-coloniais do currículo cultural em ação é que esse reconhecimento que influencia o educador vem acompanhado pela vontade de propiciar situações que tornam possível aos estudantes a enunciação de seus conhecimentos, sua cultura.
Ao se agenciar pelos princípios do reconhecimento do patrimônio cultural corporal da comunidade e do favorecimento da enunciação dos saberes discentes, o professor contribui na promoção da justiça cognitiva, pois está em cena a vontade de fazer da aula um espaço sensível às diferentes formas de conhecer e existir, sobretudo aquelas decorrentes dos grupos e sujeitos marginalizados sócio e historicamente.
Agenciado por tais princípios ético-políticos, o docente artista o fazer educacional em total consonância com as singularidades dos corpos, conhecimentos, subjetividades e culturas presentes no contexto. Conjuntura que nos permite salientar o potencial de subversão das estruturas ligadas à colonialidade que fomentam um constante pedagogicídio, um extermínio de práticas educacionais que não coadunam com concepções universais de educação, dinâmica que só tende a empobrecer as experiências de estudantes, professores e instituições afastadas do centro do poder.
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Notas
[1] Figuram entre as teorias pós-críticas os estudos culturais, o multiculturalismo crítico o pós-colonialismo, o pós-estruturalismo, o pós-modernismo, a teoria queer, os estudos feministas, entre outras.
[2] Importante frisar que a produção do grupo Modernidade/Colonialidade reforça a resistência ao pensamento europeu que se tornou hegemônico, posto como universal na própria Europa.
[3] Sousa Santos (2019) afirma que o colonialismo moderno é um modo de dominação que se articula com o patriarcado e o capitalismo. Todos os três assumem características peculiares conforme a época e o local de constituição.
[4] As epistemologias do Norte são caracterizadas pelos conhecimentos e dinâmicas implicadas com o colonialismo, o patriarcado e o capitalismo dentro de uma ordem ocidentalocêntrica (SOUSA SANTOS, 2019).
[5] O termo epistemologia inicialmente esteve centrado na crítica do conhecimento cientifico, atualmente, porém, ganhou novas configurações. Seu debate está mais próximo das análises de condições de produção e identificação do conhecimento dito como válido, ou seja, possui um caráter normativo (SOUSA SANTOS, 2019).
[6] Conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 510, de 07 de abril de 2016.
[7] O professor responsável pelas turmas autorizou a utilização do seu nome neste artigo. Ele recebeu e assinou o TCLE.
[8] Fazemos questão em posicionar os estudantes e o professor como coautores por reconhecê-los como responsáveis na produção dos dados da pesquisa e não como meros participantes.
[9] A escrita-currículo é uma alternativa à homogeneização, às fixações de signos da cultura hegemônica. Contém um caráter aberto, não determinista, não linear, não sequencial, um fluxo constante. É um fazer currículo dentro do viés pós-crítico, não havendo distinção alguma entre prática e teoria. A teoria é promovida sobre a prática (NEIRA; NUNES, 2022).
[10] Brinquedos disponíveis no parquinho da escola.
[11] BARBIERI, Fábio Augusto; BENITES, Larissa Cerigoni; SOUZA NETO, Samuel. Os sistemas de jogo e s regras do futebol: considerações sobre suas modificações. Motriz, Rio Claro, v. 15, n. 02, p. 427-435, abr./jun., 2009.
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