O Coordenador Pedagógico e a construção da escola democrática: reflexões à luz dos princípios do pensamento freireano
The pedagogical coordinator and the democratic school construction: reflections in the light of the principles of freirean thought
El coordinador pedagógico y la construcción de la escola democrática: reflexiones a la luz de los principios del pensamiento de Freire
Arnaldo Nogaro
Professor Doutor da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil.
narnaldo@uricer.edu.br - https://orcid.org/0000-0003-0517-0511
Jaqueline Moll
Professora Doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.
jaquelinemoll@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-5465-178X
Ivania Nogaro
Professora Mestre da Rede Pública Estadual do Rio Grande do Sul, Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil.
ivanianogaro@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-3260-2888
Dulcimar Baldissera
Professora Mestre da Rede Pública Estadual do Rio Grande do Sul, Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil.
dulcebaldissera@gmail.com - https://orcid.org/0000-0001-8457-8341
Recebido em 16 de abril de 2021
Aprovado em 21 de junho de 2021
Publicado em 21 de dezembro de 2022
O artigo em pauta resulta de pesquisa teórica, de natureza qualitativa, realizada para problematizar e compreender a respeito do trabalho do Coordenador Pedagógico (CP), no intuito da construção de uma escola democrática, orientada pelos princípios do pensamento freiriano. Acredita-se ser oportuna a discussão, não só pela relevância e escassez de escritos com esta especificidade, mas sobretudo, por neste ano comemorar-se o centenário de nascimento deste importante pensador autóctone, reconhecido mundialmente. O CP atua na gestão escolar, em espaços sociais e institucionais muito referidos por Paulo Freire. O texto emerge a partir da explicitação e articulação de categorias presentes no pensamento de Freire e estudiosos de sua obra. Definiu-se cinco grandes temas que sobre os quais Paulo Freire reflete e escreve:democracia, diálogo, respeito aos educandos, autonomia docente e humanização. Acredita-se que estas podem sustentar a compreensão do trabalho do CP rumo a uma escola democrática, humanizadora e focada no desenvolvimento integral dos estudantes.
Palavras-chave: Escola; Coordenador Pedagógico; Democracia; Diálogo; Humanização.
ABSTRACT
This article is a result of a theoric research, from qualitative nature, performed to understand and problematize about the Pedagogical Coordinator work (PC), in the perspective of a democratic school building, guided by the principles of Freirian thought. This discussion is believed to be opportune, not only by the relevance and scarcity of the writings with this specificity, but above all, for this year to celebrate the centenary of this important autochthonous thinker recognized worldwide. The PC works in the school management, in social and institutional spaces much mentioned by Paulo Freire. The text emerges from the explanation and articulation of the cathegories presented in Paulo Freire’s thoughs and scholar of his work. Five big themes were defined on which Paulo Freire reflects and writes; democracy, dialogue, respect for students, teacher’s autonomy and humanization. It is believed that these can support the understanding of PC’s work towards to a democratic, humanizing school focused on the integral development of students.
Key-words: School; Pedagogical Coordinator; Democracy; Dialogue; Humanization.
RESUMEN
El artículo en cuestión es el resultado de una investigación teórica, de carácter cualitativo, realizada para problematizar y comprender el trabajo del Coordinador Pedagógico (CP), con el fin de construir una escuela democrática, guiada por los principios del pensamiento de Freire. Se cree que la discusión es oportuna, no solo por la relevancia y escasez de escritos con esta especificidad, sino sobre todo, porque este año se celebra el centenario del nacimiento de este importante pensador brasileño, reconocido mundialmente. El CP trabaja en la gestión escolar, en espacios sociales e institucionales frecuentemente referidos por Paulo Freire. El texto surge de la explicación y articulación de categorías presentes en el pensamiento de Freire y estudiosos de su obra. Se definieron cinco grandes temas sobre los que Paulo Freire reflexiona y escribe: democracia, diálogo, respeto a los estudiantes, autonomía docente y humanización. Se cree que estos pueden sostener la comprensión del trabajo del CP hacia una escuela democrática, humanizadora y enfocada al desarrollo integral de los estudiantes.
Palabras-clave: Escuela; Coordinador Pedagógico; Democracia; Diálogo; Humanización.
Introdução
O pensamento de Paulo Freire transpôs fronteiras e territórios a ponto de ser reconhecido, como teórico e pensador, antes no exterior do que no Brasil. O pernambucano de simplicidade, lucidez intelectual e clareza política invejáveis, aos poucos, foi ganhando espaço nas universidades, movimentos sociais, nas ideias e na prática de muitos docentes e intelectuais brasileiros.
Neste artigo faz-se uma incursão pelo pensamento de Paulo Freire, através de obras e de estudiosos que ajudam a garimpar, em sua pedagogia, categorias que possam ser importantes para ancorar o trabalho do gestor e indicar direções, especialmente na perspectiva do Coordenador Pedagógico (CP), considerado gestor na escola pelas responsabilidades coletivas relacionadas ao apoio pedagógico aos professores, ao diálogo com a comunidades escolar, à orientação dos planejamentos e à mediação entre professores e estudantes, e, professores e a direção. A passagem da concepção de administração para gestão escolar não representa somente uma troca de nomes, aponta para uma mudança semântica, de concepções e práticas que caminham na direção da emancipação humana e de ações democráticas sustentadas nos princípios do diálogo, do reconhecimento do outro, da liberdade, da amorosidade, do respeito aos educandos e a seus saberes, do incentivo à autonomia docente, dentre outros.
Como ator do cotidiano da escola, o trabalho do CP perpassa o conjunto das atividades educativas, na perspectiva da articulação do projeto pedagógico e do trabalho docente e, ainda, do apoio, orientação e direção da prática educativa. Ao propor o debate sobre seu trabalho, à luz de algumas categorias do pensamento de Paulo Freire, pretendemos desnaturalizar o enfoque burocrático da sua função e evidenciar a repercussão desta atividade na comunidade escolar, em relação à organização do coletivo docente, aos objetivos da escola, ao incentivo à participação das famílias na vida dos estudantes e aos processos de aprendizagem e desenvolvimento.
A leitura de obras de Paulo Freire embrenha-nos em ideias, de tal forma, que somos instigados a pensar sob diferentes pontos de vista. Como o objetivo de reflexão deste artigo diz respeito ao trabalho do CP, vamos discorrer sobre cinco categorias da teoria de Freire que podem servir de parâmetro para sua atuação: democracia, diálogo, respeito aos educandos, autonomia docente e humanização. Embora a apresentação das categorias configure uma sequência, isto não estabelece ordem de importância ou prioridade da primeira para a última. Pode-se afirmar, inclusive, que na perspectiva do trabalho do CP, há equidade entre elas em termos de ressignificação, além de interfaces e reciprocidades. Constituem o que podemos denominar de conjunto de categorias que definem o background que sustenta o seu fazer.
Necessariamente tivemos que fazer opções, recortes possíveis dentro de uma vasta e densa obra como é a de Freire. Embora expressem um recorte e uma priorização dos autores/as, podem constituir-se em subsídios provocativos para pensar acerca da especificidade do CP, enquanto gestor educacional, sobretudo em relação à sua função na escola pública.
Assim sendo, a arquitetura deste artigo contempla a discussão das referidas categorias, na perspectiva específica do trabalho do CP, tendo como horizonte a qualificação e a humanização da escola pública como lócus de convivência, socialização e aprendizados imprescindíveis para a vida em sociedade.
Práticas democráticas na gestão escolar
A contribuição de Freire dissemina-se para campos do conhecimento para além das fronteiras da pedagogia, como por exemplo o campo da saúde e das ciências agrárias. Na visão de Gadotti (2001), o reconhecimento de Paulo Freire, fora do campo da pedagogia, demonstra que seu pensamento é também transdisciplinar e transversal. Para Romão (2002, p. 26),
Paulo será lembrado, sem dúvida, como um dos maiores educadores do século XX, mas certamente também será incluído nas antologias dos que deram uma contribuição ao avanço da ciência nessa mesma centúria, porque, mais do que um conteúdo novo, mais do que metas ou objetivos inéditos, ele propôs uma profunda transição paradigmática na maneira de pensar o mundo, dando continuidade à tradição crítico-transformador-libertária do pensamento ocidental.
Neste sentido o conceito de democracia perpassa sua obra. Conceito desgastado pela banalização do uso, apresenta certa dificuldade para definição de seu significado para a vida da escola, embora no cotidiano saibamos diferenciar as práticas democráticas das autoritárias. Mesmo assim, Apple e Beane (1997, p. 16), parafraseando Dewey (2007), afirmam que a democracia possui um “[...] significado poderoso que pode dar certo e que é necessária se quisermos manter a liberdade e a dignidade humana em nossa vida social.”
A defesa da democracia como pilar de uma sociedade, que reconheça o ser humano como sujeito, também é responsabilidade da escola enquanto espaço formador. As relações que ocorrem na vida cotidiana da escola, traduzem o que se pensa e acredita em termos de democracia, desde as decisões sobre questões administrativas até a elaboração de currículos e políticas educacionais, das decisões sobre a organização da sala-de-aula e a avaliação até o desenho das relações com a comunidade nas quais, impreterivelmente, o CP está envolvido.
O debate em torno do trabalho do CP vem de longa data no Brasil e em outros países. Segundo Placco, Almeida e Souza (2011) este trabalho é definido em torno de três eixos: articulador, transformador e formador. As referidas autoras (2011) apontam que o papel articulador se caracteriza pela mediação das relações interpessoais, pela elaboração conjunta do Projeto Político Pedagógico da escola (PPP), pelo planejamento, organização e condução das reuniões pedagógicas. Já na perspectiva de Franco (2008, p. 128), “[...] coordenar o pedagógico será instaurar, incentivar, produzir constantemente um processo reflexivo, prudente sobre todas as ações da escola, com vistas à produção de transformações nas práticas cotidianas.” Almeida e Placco (2001, p. 18) afirmam que
[...] a superação das necessidades cotidianas da escola, exige um trabalho coletivo, que, por sua vez, exige a presença e a atuação de um articulador, dos processos educativos que ali se dão. Esse articulador precisa agir nos espaços-tempos diferenciados, seja para o desenvolvimento de propostas curriculares, seja para o atendimento a professores, alunos e pais, nas variadas combinações que cada escola comporta.
O cotidiano da escola é atravessado por posições autoritárias e poluído por resíduos de práticas antidemocráticas que necessitam ser superadas. A compreensão deste quadro e a assunção da via democrática diferencia o trabalho do CP e redefine a perspectiva de mediação entre os diferentes atores do espaço escolar. Nesta direção pode constituir-se em um fomentador de práticas democráticas ao exercê-las e orientá-las nas interações que ocorrem na vida da escola em ações simples do dia a dia, na colaboração entre pares, no apoio coletivo, na cooperação e no rechaço de movimentos que levam à competição e à exclusão.
A sociedade democrática que desejamos é construída em ato contínuo no presente e, também, no interior da escola. Para Apple e Beane (2002, p. 31) as escolas democráticas distinguem-se “[...] em parte dos outros tipos de escolas progressistas pelo fato de procurarem explicitamente transformar as condições antidemocráticas na escola e na sociedade.”
Freire (1992), que viveu na pele as consequências do autoritarismo no Brasil nos anos obscuros da ditadura civil-militar, demonstrou sensibilidade e perspicácia apuradas em relação à democracia, considerando-a resultado da conscientização e do esclarecimento que abrem as avenidas da inteligência para saber discernir e identificar sua ausência ou abalo. Considerando que “[...] a democracia é, como o saber, uma conquista de todos,” Freire (1992, p. 20) deixou claro que sem a consciência crítica não há clareza política e compreensão da dominação e da privação da liberdade.
A escola constitui-se em um laboratório para práticas de diferentes naturezas que podem permitir a construção desta consciência e, nesse sentido, o trabalho do CP pode encorajar e criar mecanismos para dar vazão a práticas democráticas que sirvam de parâmetro para os estudantes compreenderem o significado da democracia na sociedade. Para Freire (2000, p. 33-34), é “[...] neste sentido que devo aproveitar toda oportunidade para testemunhar o meu compromisso com a realização de um mundo melhor, mais justo, menos feio, mais substancialmente democrático.” Ele é incisivo a esse respeito, ao reforçar que devemos trabalhar a unidade entre o discurso e as ações que nos movem.
Freire (2000) insiste no imperativo da coerência na ação dos educadores, que deve ser permanentemente lembrado e reforçado como aspecto importante da vivência ética na escola. Assim a transparência da prática pedagógica do educador e das ações do CP, como gestor, torna-se fundamental para demonstrar que há coerência entre o que dizemos e o que fazemos. Freire (2000, p. 38) lembra que se faz necessário testemunhar a coerência entre o que prego e o que faço, “[..] entre o sonho de que falo e a minha prática, entre a fé que professo e as ações em que me envolvo é a maneira autêntica de, educando-me com eles e com elas, educá-los numa perspectiva ética e democrática.” Trata-se, portanto, da democracia muito mais como experiência e exercício cotidiano do que como retórica ou conteúdo a ser conceitualmente ensinado.
Considerando-se tais pressupostos, aponta-se a necessidade de definir ou redefinir o campo de ação ou as atribuições específicas do CP, como tarefa necessária para outro horizonte de formação no campo da gestão escolar. Isto porque as inúmeras e variadas tarefas das quais ele se ocupa podem fazê-lo perder-se em meio à diversidade e urgência das demandas diárias e margear o que é essencial como tomadas de decisão que envolvem liderança e compromisso democrático com o coletivo da escola.
Na centralidade de sua ação, está a construção das condições coletivas para a materialização do projeto educativo garantidor do desenvolvimento pleno dos estudantes, definido pela LDBEN (1996), através da articulação do trabalho pedagógico que envolve diferentes profissionais que atuam na escola. Ocorre que o déficit em termos de pessoal e recursos materiais, na grande maioria das escolas, leva o CP a assumir tarefas, em geral, sem muita relação entre si, como o controle da entrada e saída dos estudantes; a substituição dos professores ausentes; a resolução de temas financeiros e administrativos; a solução de problemas de saúde ou odontológicos de estudantes, inclusive acompanhando-os aos locais onde são prestados os serviços. O cumprimento destas atividades, muitas de caráter burocrático e sem grande conexão entre si, exaure energias e lhe tira o tempo de planejamento, reflexão e articulação, atribuições próprias de sua função. Trata-se, portanto, de desnaturalizar a dispersão que dificulta e, em certos casos, impede o trabalho de articulação em torno de um projeto democrático e inclusivo, que efetive o trabalho da escola no enfrentamento das desigualdades educacionais e promova o desenvolvimento humano integral.
Considerando tal quadro, a sobrecarga, a dispersão de tarefas e atribuições no cotidiano escolar, tornam cada vez mais difícil criar espaço para troca de experiências, para reflexões acerca de situações desafiadoras, para estudo ou, simplesmente, conversar de maneira prazerosa, com colegas de trabalho. O diálogo informal e profícuo, com professores/as, com estudantes e gestores/as representa poderoso recurso na convivência complexa de uma instituição escolar, que pode resultar na orientação de estudantes, na escuta aos professores, e na solução de problemas que ficariam encobertos ou dissimulados sem a abertura propiciada pela prática dialógica. A prática da democracia só é possível onde há abertura e reconhecimento do outro e o diálogo cria as condições para isso, para além dos canais formais que, embora necessários, podem encobrir cotidianos silenciados por autoritarismos.
O diálogo na gestão escolar
No horizonte das experiências educativas democráticas o diálogo assume lugar de destaque, como apontamos anteriormente. Do ponto de vista concreto, ele acontece quando nos propomos o silêncio e a escuta para que emerja a voz do outro. No entender de Freire (1981, p. 93) o diálogo
[...] é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e a agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformando e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.
Saber colocar-se na condição de quem escuta e tem algo a aprender é condição para que se inicie e se produza a dialogicidade. Enquanto somente eu falar, silenciando o outro haverá monólogo e, neste, não há lugar para o respeito à identidade que cada um possui como ser humano e, muito menos, para as práticas democráticas. Brandão (1981, p. 103-104) traça esta ideia ao dizer que “[...] o diálogo não é só uma qualidade do modo humano de existir e agir. Ele é a condição deste modo e é o que torna humano o homem que vive.”
No entender de Gadotti (2001, p. 79), a análise da teoria do conhecimento de Freire possibilita ver que pensar e conhecer demandam a presença do outro. “O conhecimento precisa de expressão e comunicação. Não é um ato solitário. Além de ser um ato histórico, epistemológico e lógico, ele contém um quarto elemento, que é a sua dimensão dialógica.” Como pensar na existência de uma escola que se pretende um lugar educativo, de formação integral e para a democracia, que não se sustente no diálogo? Uma breve radiografia de escolas brasileiras aponta muitos exemplos do não lugar do outro, do não lugar de fala.
Contudo, na direção contrária também encontramos maravilhosas experiências que retratam a pedagogia dialógica de Freire e constroem, no dizer de Barbier (1993) a escuta sensível em educação. No Horizonte desenhado por esta perspectiva dialógica, condição para construção de experiências democráticas, queremos pensar na prática do CP amparada em processos dialógicos, nutridos pelo que Brandão (1981, p.103) chamou de permanente “[...] sentimento do amor tornado ação.”
Camargo (2001) destaca que a primeira virtude do diálogo consiste no respeito aos educandos não somente como indivíduos, mas também como expressões de uma prática social. Assim, a análise de elementos que constituem o cotidiano, aponta para a necessidade de o CP buscar, em referenciais epistemológicos e na própria análise de seu trabalho, formas de compreender e interpretar os comportamentos dos sujeitos e as situações, os episódios comuns e inusitados, as falas, expressões e manifestações escritas, bem como os silêncios que, em muitas ocasiões, dizem muito acerca das circunstâncias e dos contextos.
Neste sentido, os aportes teóricos de Paulo Freire podem constituir-se em fonte cristalina para a leitura da realidade e para acesso a conhecimento pedagógico e social. Desde a metáfora da fonte com água de qualidade, que se converte em alimento, pode-se qualificar o saber que emana da obra de Freire com um efeito contrário à saciedade, pela potencialização do desejo e sede de saber. Esta é, justamente, uma característica que encontramos quando lemos um clássico, como nos lembra Calvino (1993, p. 11) afirmando que “Um clássico é um livro que nunca termina de dizer aquilo que tinha para dizer.”
Embora o silêncio, em muitas ocasiões, abrigue questões não resolvidas na escola, segundo Mate (2012), um pouco de silêncio é necessário como espaço para que o exercício do pensamento dê vazão a novas ideias, para que projetos singulares sejam inventados, “[...] projetos que façam sentido para os indivíduos que deles participam em determinado contexto escolar'' (MATE, 2012, p.135). Torna-se importante interpretar o que o silêncio transmite, uma vez que pode ser fecundo como gerador de dúvidas e revelar inquietações que precisam ser resolvidas.
No entender de Ecco (2014), a disponibilidade docente para o diálogo é condição primordial para se instaurar relações pedagógicas humanizadoras. Para Freire (1986, p. 101) “[...] uma experiência dialógica que não se baseia na seriedade e na competência é muito pior do que uma experiência ‘bancária’, onde o professor simplesmente transfere conhecimento.” (grifo do autor). Em contextos de restrição de liberdades e de renascimento de posições conservadoras, como as que vivemos no Brasil de nossos dias, a escola precisa constituir-se como vanguarda e protetora da liberdade de expressão, da possibilidade de se fazer ouvir, de empoderar as pessoas, de sentir-se responsável politicamente, de criar as condições para que emerja a “palavra”.
Nesta perspectiva “[...] o diálogo não existe num vazio político” (FREIRE, 1986, p. 127). Como externa Torres (1979), Freire não é um mágico que oferece receitas aplicáveis a qualquer tempo e lugar, mas um investigador, portador de uma pedagogia da consciência que reconhece a incompletude humana como espaço para encontro, aproximação e comunhão dos homens e mulheres, nos diferentes tempos da vida.
Ao olharmos para a função do CP na escola veremos que a capacidade e abertura ao diálogo torna-se uma virtude necessária na interação com a comunidade escolar. São diferentes grupos, que expressam diferentes lugares de fala, a partir das quais o CP necessita criar teias de relacionamento, exercitando estratégias sustentadas no diálogo como chaves para o desempenho sério e qualificado de sua função. Segundo Freire, (1986, p. 64) “[...] o método dialógico também envolve trabalho, mas traz um potencial de criatividade e ruptura que oferece recompensas inesperadas, a iluminação para ambas as partes.” Ao mesmo tempo, exige-se que o CP saiba reconhecer a incompletude humana e, que, por atuar em um ambiente educativo, aceite educar-se e invista, sempre e mais, no estudo e no convite ao diálogo.
Na Pedagogia da Autonomia (1997) Freire faz questão de reforçar que só pode haver diálogo quando eu respeito as diferenças dos outros em relação a mim. Não se trata de conquistar e homogeneizar, mas de colocar-se disponível, demonstrando abertura por gestos, atitudes e pensamentos, no sentido apontado por Freire (1997, p. 153), de“[...] viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tornar a própria prática de abertura ao outro como objeto de reflexão crítica que deveria fazer parte da aventura docente.” Quando o ser humano se apresenta ao outro como autossuficiente limita a realização da experiência de inacabamento que possibilita o processo educativo. Só tem sentido a educação quando se tem algo a ensinar e alguém tem algo a aprender. Quando se assume a postura arrogante de alguém que sabe tudo, fecha-se qualquer iniciativa que advoga em favor do devir humano, condição ontológica que nos define. Saber o que nos caracteriza e o que caracteriza o outro desenha limites e auxilia para que saibamos respeitar o humano que há em cada um, no próprio sentido apontado por Santos (2010) e que encontra muitos ecos no pensamento freireano: temos o direito a igualdade quando a desigualdade nos inferioriza e temos direito a diferença quando a homogeneidade nos oprime.
A gestão que respeita os educandos e seus saberes
Arroyo (2004) debruça-se sobre as imagens e autoimagens de crianças e adolescentes, especialmente no que diz respeito à colonização e à distorção de suas identidades. Clama pela necessidade de respeitar seus modos de ser e de viver, mas importando-se e lutando para mudar sua condição de infância negada: “[...] as imagens dos educandos estão no cerne dos debates docentes porque nos obrigam a redefinir quem somos.” (ARROYO, 2004, p. 67).
A escola trabalha com modelos padronizados que, em muitas circunstâncias nos impedem de entender as trajetórias dos estudantes e dar-lhe a atenção que necessitam. Freire (1992 a), em muitas passagens de suas obras, insiste que ensinar não se reduz a transferir conhecimentos em torno de um objeto ou conteúdo. Constitui-se em um ato muito mais profundo cuja validade se dá quando os educandos aprendem a aprender ao aprender a própria razão de ser do objeto do conhecimento, por isso, “[...] ensinar é um ato crítico e não mecânico.” (FREIRE, 1992 a, p. 81). Neste sentido, Arroyo (2011, p. 279) desafia-nos a colocarmo-nos em lugar dos educandos e nos perguntarmos: “[...] de que nos servem conhecimentos que não nos ajudam a conhecer-nos.”
Trata-se, de como apontamos anteriormente, criar condições no contexto escolar para garantir o direito à igualdade e o direito à diversidade e, nesta direção, o trabalho do CP é fundamental, inclusive, por sua visão, desejosamente abrangente do contexto escolar. Para que isso ocorra, a sensibilidade pedagógica dos professores/as precisa ser posta em ação, de forma coerente “[...] com seu sonho democrático, respeitando os educandos e jamais, por isso mesmo, os manipulando” (FREIRE, 1992a, p. 80). Portanto, parte-se da premissa de que o estudo, a reflexão e o diálogo constantes, permitem a construção do olhar e posicionamento críticos acerca da articulação do currículo com a realidade dos sujeitos inseridos no contexto escolar, e que esta seja a força que mobilize o professor e os gestores, sobretudo o CP, cujo trabalho pode desencadear estes processos.
A escola, como espaço de relações, abriga estudantes cujas características constituem a própria diversidade social, cultural, racial, sexual, política da sociedade em que vivemos e que, podem, neste ambiente, expressar-se e traduzir-se em oportunidades de trocas, de experiências de convívio, potencializadoras dos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Abre-se, nesta perspectiva, como espaço pedagógico de saberes e conhecimento, a possibilidade para construção de valores e incentivo ao desenvolvimento de atitudes de cooperação, solidariedade, respeito mútuo, resolução de conflitos pela palavra, entre outras possibilidades. Estas relações, interfaces e possibilidades compõe o currículo escolar e precisam ser visibilizadas e valorizadas.
A reflexão, sistematização e organização da ação, a partir da realidade cotidiana vivida, constituem-se desafios permanentes para a comunidade escolar e, especialmente, para o CP. Trata-se, neste contexto, de explicitar as pequenas e inúmeras, mas não menos importantes, ações que geram mudanças, tecidas coletivamente, repensando os objetivos estabelecidos e perseverando, sempre, cientes das dificuldades, acreditando que as possibilidades de mudar e de fazer de outras maneiras são possíveis. A este respeito, fazendo alusão à vida que os estudantes trazem para a escola, Freire (1992 a, p. 85) assevera: refiro-me à insistência com que, “[...] desde faz longo tempo, defendo a necessidade que temos, educadoras e educadores progressistas de jamais subestimar ou negar os saberes de experiência feitos, com que os educandos chegam à escola ou aos centros de educação informal.”
Espera-se que a arquitetura do currículo desenvolvida na escola, consideradas as premissas do diálogo, da diversidade, da experiência, proporcione ao estudante seu desenvolvimento pleno como sujeito de aprendizagens, de convivências e como cidadão/cidadã, como defendem Lima e Santos (2007), Sacristán (2000) e Moll (2012). Ou seja, insiste-se para que a razão de ser e a função social da escola priorizem o estudante, vendo-o como sujeito com singularidade e necessidades específicas para o seu desenvolvimento e convívio na sociedade complexa contemporânea. O pensamento de Freire (1992a, p. 86) ratifica esta perspectiva ao dizer “[...] que tem dito sem cansar, e redito”, é que não podemos deixar de lado, desprezado como algo “[...] imprestável, o que educandos, sejam crianças chegando à escola ou jovens e adultos a centros de educação popular, trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática social de que fazem parte.” Neste processo os próprios educadores/as educam-se.
O trabalho do CP articula-se, de modo incansável, a esta concepção pedagógica e compreensão que retoma, revisa, reescreve, de modo permanente o PPP, as normas cotidianas, a prática docente, o currículo escolar e o próprio modus operandi da gestão. Neste sentido, os contextos complexos do cotidiano da escola, demandam que o CP, com seu protagonismo promova o trabalho interdisciplinar, na construção de interfaces entre as áreas do conhecimento e destas com a vida escolar, nos seus temas e desafios. Silva (1999) destaca que não compete mais ao estudante efetuar a unidade do conhecimento mediante seu próprio esforço: a escola, através de seus docentes, deve viabilizar a oferta aos seus estudantes de um conhecimento interdisciplinar, com a contribuição das diferentes áreas de conhecimento mediatizadas pelo mundo da vida vivida pela comunidade escolar. Estabelecer relações interdisciplinares não é uma tarefa que se reduz a uma readequação metodológica curricular, trata-se de uma questão epistemológica e relaciona-se a uma abordagem teórica e conceitual dada ao conteúdo em estudo, concretizando-se na articulação das disciplinas, cujos conceitos, teorias e práticas, enriquecem a compreensão desse conteúdo em interface com os temas da vida.
O contexto e os aspectos sociais que envolvem a escola necessitam ser levados em consideração e contemplados no planejamento educacional, seja em nível micro (plano do professor) ou em nível macro (PPP). Demanda-se, para a efetivação desta tarefa, no âmbito do projeto coletivo de cada escola, a figura e o trabalho do CP. Sua visão precisa contemplar os cenários em que ocorrem as práticas, o trabalho do professor e as fronteias da escola na sua relação com outras organizações sociais e com a própria comunidade. Segundo Vasconcellos (2002, p. 169), o PPP é a
[...] sistematização, nunca definitiva, de um processo de planejamento participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que se define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. É um importante caminho para a construção da identidade da instituição. É um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição neste processo de transformação.
Na Pedagogia da Autonomia (1997), Freire retoma a ideia do respeito aos saberes dos educandos, especialmente aqueles oriundos das classes populares que chegam à escola, e abre espaço na prática pedagógica para o debate destes saberes. Segundo Freire (1997, p. 33-34), “[...] porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida?” Se pensarmos na organização do trabalho da escola e no currículo a partir do qual se desenvolve o processo pedagógico, poderíamos pensar que não há lugar para o que Freire (1997) propõe. Por outro lado, se entendermos que o planejamento é feito pelo professor, sob a supervisão do CP, surge uma fagulha de esperança. Quando o professor não prioriza os saberes que os estudantes carregam, quem tem que ter a lucidez acerca da necessidade de explicitá-los é o CP. No entanto, isso não isenta o professor/a do compromisso de priorizá-los em seu trabalho com os estudantes. Cabe apontar que apesar de determinados limites, sempre há possibilidades, há espaço para protagonismo e criação, daí a responsabilidade em exercer sua autonomia.
Gestão democrática, dialógica e autonomia docente
Quando nos referimos ao fato de que o CP tem a tarefa de incentivar a autonomia docente, encontramos eco na passagem de Arroyo (2004, p. 18) que afirma: “[...] tempos não são de dar remédio e receitas fáceis, mas de aguçar o pensar, de ir à procura de densidade teórica para entender ocultos significados.” A precisão desta ideia justifica por que o professor necessita exercitar seu protagonismo e sair das dependências que, geralmente, o entorpecem. Na visão de Gadotti (2001, p. 97), na escola cidadã “[...] a presença do professor é importante, mas de um novo professor, mediador do conhecimento, sensível e crítico, aprendiz permanente e organizador do trabalho na escola, um orientador, um cooperador, curioso e, sobretudo um construtor de sentido, um cidadão” (grifo do autor). O apoio do CP ao professor, no sentido de incentivar e fortalecer sua autonomia, é crucial. Tão importante quanto as mãos de uma mãe que ampara os primeiros passos de um bebê que se desafia a caminhar pela primeira vez.
A autonomia pressupõe como pano de fundo a liberdade. Só é possível falar de autonomia quando a pessoa pensa e age livremente, de acordo com um plano próprio e com princípios claros, ou seja, a partir de concepções construídas de forma consciente ao longo dos anos de sua vida, não se tratando, portanto, de um laissez-faire. Freire (1997, p. 121) concebe a autonomia como amadurecimento do ser para si, como processo, como vir a ser: “[...] não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade.” Trata-se, portanto, de um empreendimento da pessoa que procura orientação para suas ações e pretende chegar a resultados coerentes a partir do que pensou construir.
O direito de preservar a identidade humana e profissional nos autoriza a tomar determinadas decisões como mecanismos de proteção e de sobrevivência no seio do grupo em que vivemos. Assim, a autonomia desenvolve-se em um contexto de relações. Mas há um ponto nevrálgico a ser levado em consideração: embora ela ocorra nas relações, é primordialmente uma decisão dos sujeitos, o que a caracteriza como tal. “O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros” (FREIRE, 1997, p. 66). Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir, a autonomia vai acontecendo pelas inúmeras decisões que vão sendo tomadas em nossa vida.
Arroyo (2011) refere-se às disputas pela autoria nos currículos e nas práticas educativas e reforça a necessidade de lutar pela autonomia profissional. Situa a relevância da reação docente em relação à rigidez e ao caráter impositivo dos ordenamentos curriculares e das avaliações. Ressalta a criatividade da sala de aula, na construção do PPP e na pluralidade de projetos, que demonstram que é possível seguir por este caminho.
Na elaboração do PPP, sugere-se avançar em duas direções que se complementam: de um lado abrir novos tempos-espaços e práticas coletivos de autonomia e criatividade profissional; de outro, aprofundar no entendimento das estruturas, das concepções, dos mecanismos que o limitam. Bruno (2016), ao trazer a teoria de Freire para o campo do trabalho colaborativo do CP na escola, observa que as mudanças nas relações sociais, culturais, ambientais demandam uma compreensão de sua estreita vinculação com a autonomia e a solidariedade. Para ele (2016, p. 76), a
[...] autonomia vai se constituindo da experiência de inúmeras decisões que vão sendo tomadas juntamente com muita responsabilidade para a construção de uma ética da solidariedade. A ética instaura sua necessidade no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção.
Também é função do CP trabalhar conhecimentos a respeito da singularidade de cada pessoa e de como isso repercute nas relações humanas e sociais, entendendo o jeito de ser e de fazer escolhas de cada um/uma e que repercute no contexto coletivo do fazer escolar. Em relação ao professor, tem suas razões ou motivos para exercer a profissão, mas estas não podem se constituir em argumentos que justifiquem comportamentos egocêntricos, de encasulamento docente. Os interesses coletivos e propósitos mais elevados de formação humana devem estar acima de interesses individuais e esta é uma construção a ser retomada insistentemente. O trabalho do CP incide nesta perspectiva, ajudando a construir parâmetros coletivos com espaço para expressões individuais, inclusive desafiando o marasmo da mesmice, comum no contexto escolar.
Faz-se necessário destacar a responsabilidade do CP na articulação da práxis autônoma docente, através de processos permanentes de reflexão-ação-reflexão, superando a condição passiva para tornar-se sujeito da ação. Condição esta que demanda superar as generalizações dos conteúdos abordados, assumindo postura crítica, tornando-se agente de mudanças, capaz de construir possibilidades pedagógicas e curriculares diversas a partir da especificidade do contexto escolar. O educador, ao desenvolver uma postura reflexiva acerca da prática, ao interrogar-se acerca da coerência de sua ação em relação aos seus objetivos e compromissos, abre caminho para a autonomia docente, como alerta Freire (1983, p 27), o
[...] conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito face ao mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o "como" de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato.
Com base nesta premissa, o CP auxilia o docente a assumir e fortalecer seu compromisso com a educação integral dos estudantes, considerando a perspectiva do desenvolvimento humano em suas dimensões cognitivas, éticas, estéticas, físicas, políticas, entre outras.
O CP pode desenvolver e fomentar atitudes de liderança junto ao coletivo docente para estabelecer e perseguir as metas propostas, com comprometimento, cumprindo os objetivos pedagógicos da escola. Espera-se dele inteligência para saber fazer escolhas diante das urgências em relação a projetos perenes, evitando que tudo se transforme em rotina, prejudicando a fruição do tempo e do seu trabalho junto aos professores.
Nesta perspectiva, construir processos que levem à reflexão acerca de seu fazer, avaliando decisões e pontos de vista, são desafios para o CP no sentido de que identifique aspectos que possam interferir no desejo de trabalhar, de pertencer à escola, sentindo-se encorajado a pertencer a um coletivo, tendo como centro do seu fazer a tarefa ética de que educar é humanizar.
Trabalho coletivo e humanização como horizontes para a gestão
Gadotti (2001) destaca que Freire foi um dos últimos humanistas por afirmar e difundir a crença de que era possível mudar a ordem das coisas, mostrando como fazê-lo. No seu entendimento, há quatro pontos fundamentais na sua teoria que orientam a mudança: “1) Para construir o futuro é preciso primeiro sonhá-lo e imaginá-lo; [...] 2) A pedagogia é um guia na construção do sonho; [...] 3) A pedagogia vê primeiro o futuro, um futuro melhor para todos, a utopia; [...] 4) A pedagogia freireana é dialógico-dialética, não mecânica”(GADOTTI, 2001, p. 88-89).
A humanização foi um dos pilares da teoria de Paulo Freire, sendo tratada em diferentes obras. Abraçou-se a ela na defesa da pessoa humana frente a tudo que a alienava e a descaracterizava. Reforçou sua necessidade para resgatar o ser humano da dramática exclusão social que ainda hoje assola a humanidade. Para Zitkoski (2006, p. 16), a humanização do mundo exige que repensemos muitos aspectos da vida em sociedade. Dentre eles, destaca a necessidade de repensar a educação que praticamos, “[...] as relações humanas na sua cotidianidade prática da economia da vida privada, as posturas políticas e as relações sociais delas resultantes e a produção do conhecimento técnico-científico, que está na base da reprodução dos sistemas hegemônicos da sociedade.” A escola ganha especial significado nesta tarefa. E a clareza em relação a isso começa a ter seus contornos definidos na sua filosofia, na definição dos currículos, na elaboração do PPP.
A construção do PPP da escola requer estratégia política que pode ser articulada pelo CP no intuito de evitar práticas autoritárias, burocráticas ou formais, cumprindo apenas a legislação, mas agir para referendar a participação de professores, alunos, pais e comunidade. O objetivo do processo político-pedagógico, precisa ser a construção de uma proposta coletiva de trabalho, de responsabilização e de autonomia. É fundamental lembrar aqui, que o CP tem a incumbência de mobilizar, articular e manter todos os atores do processo educativo em torno de um único objetivo: corporificar o PPP nas ações práticas do cotidiano escolar. O PPP, nas palavras de Vasconcellos (2002, p. 169), é o “[...] plano global da instituição”, assim, pressupõe consciência da comunidade envolvida, no sentido de compreender que não se trata de algo pronto, acabado, definitivo, mas de processos que vão adquirindo densidade com o passar do tempo, com as ações, metas e proposições da escola.
A responsabilidade de fomentar o PPP é uma atribuição do CP no contexto da gestão da escola em parceria com professores/as, estudantes, pais/mães e equipe administrativa, refletindo, debatendo e promovendo ações com ênfase no trabalho coletivo e no envolvimento de todos/as para que o pensado seja realizado, seja materializado nas práticas cotidianas da escola. Atuar como CP implica em “[...] criar e estimular oportunidades de organização comum e de integração do trabalho em todas as suas etapas. [...] O qualitativo pedagógico, tem como significante o estudo da prática educativa” (RANGEL, 2008, p. 77). Vasconcellos (2007) também enfatiza o trabalho articulador do CP na construção PPP da escola. O CP é o articulador do PPP da instituição no campo político-pedagógico, organizando a reflexão, a participação e os meios para sua concretização. Aparece, então, o aspecto político do trabalho pedagógico, quando a escola define suas opções e decide investir suas energias em favor de um determinado projeto de sociedade, pensado e pactuado coletivamente com base nas normativas legais e nos compromissos éticos com um mundo de justiça e paz. Em relação ao CP, espera-se que conduza seu trabalho de tal forma que possa cumprir a tarefa de criar as condições para que todos os estudantes aprendam e desenvolvam-se como seres humanos, tendo como ponto de referência o princípio de que todos são sujeitos de direitos e são capazes de aprender, com ritmos, particularidades próprias e meios para isso.
Olhando para a identidade do CP, almeja-se que tenha sensibilidade e perspicácia em trabalhar como articulador do projeto educativo e curricular que transcende os muros escolares, uma vez que se relaciona com todos os atores da comunidade escolar, tendo a incumbência de pensar estratégias para que se criem vínculos entre eles, contribuindo para o debate acerca do próprio sentido do fazer escolar, acompanhando as práticas na escola, construindo pontes de diálogo, fomentando diversidades e compromissos comuns.
Considerações finais
O contexto de ressurgimento de velhos preconceitos e conservadorismos na sociedade brasileira carrega traços inimagináveis, em períodos de normalidade democrática, como por exemplo a negação e o desprezo ao pensamento e as proposições educacionais de Paulo Freire. Tal posicionamento reflete desconhecimento ou má-fé em relação ao grande educador, que se constitui em um dos mais importantes pensadores autóctones do século 20, cuja influência é notável nos sistemas educacionais dos países mais desenvolvidos do planeta. Ataques e tentativas de descaracterização são, relativamente, comuns em relação a pensadores clássicos que ficam imortalizados pelas suas obras. Apesar disto sua influência e representatividade no pensamento pedagógico e social não será abalada, muito menos apagada.
Freire vive! Vive na luta do camponês por dignidade; no operário que defende seu trabalho e que traz o pão para a mesa de seus filhos; no trabalho do/a professor/a que utiliza seu conhecimento para libertar das amarras da ignorância e da alienação; na mulher que defende seus direitos em uma sociedade machista; na criança que, mesmo com fome, encontra na escola o alimento para seu sustento físico e o conhecimento para manter lúcida sua mente; no gestor/a da escola que vislumbra em seu trabalho formas de mudar o mundo e contribuir para o processo de humanização de quem por ela passa.
As contestações a Paulo Freire explicitam, com vigor, suas opções e a direção de sua teoria em relação a emancipação e a humanização, em sociedades excludentes e violentas como a nossa.
Para pensar a ação do CP à luz dos princípios da teoria de Freire, optamos por cinco categorias de seu pensamento que foram problematizadas ao longo do texto (democracia, diálogo, respeito ao educandos e a seus saberes, autonomia docente e humanização) e acreditamos ter conseguido demonstrar sua atualidade e substancialidade para dar vida ao trabalho pedagógico e manter acesa a chama da esperança em uma sociedade onde sejam reconhecidos os direitos e revigorada a crença no valor da pessoa humana.
Na perspectiva do trabalho do CP, especificamente abordado nesta reflexão, a contribuição de Paulo Freire é determinante para a compreensão de que na ação dialógica e colaborativa, legitimadora da diversidade e da dignidade humana, o projeto educativo desenvolvido no âmbito da escola pode constituir-se como o amálgama para a construção de sociedades densamente democratizadas e humanizadas.
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