Uma proposta de forma��o continuada de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental
A proposal for continuing education for teachers in the early years of elementary school
Una propuesta de formaci�n continuada de maestros de la Educaci�n Primaria
Cristhiane Carneiro Cunha Fl�r
Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
cristhianeflor@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-9175-1859
Andreia Francisco Afonso
Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
andreiaafonso25@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0107-2490
Reginaldo Fernando Carneiro
Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil
reginaldo_carneiro@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0001-6841-7695
Recebido em 13 de abril de 2021
Aprovado em 10 de junho de 2021
Publicado em 15 de maio de 2023
RESUMO
A forma��o continuada de professores � um espa�o importante para discutir e refletir sobre lacunas na forma��o inicial. Assim, tem-se como objetivo, neste artigo, compreender as contribui��es de uma forma��o continuada para professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para tanto, foi desenvolvida uma pesquisa em que se promoveram encontros quinzenais com a participa��o de professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, bolsistas de inicia��o cient�fica, licenciandos em Pedagogia, Matem�tica e Qu�mica, mestrandos, doutorandos e professores universit�rios. Neste texto, analisa-se um dispositivo constru�do a partir da escrita de um texto sobre o significado da participa��o nesses encontros. Emergiram tr�s categorias � In�cio da Doc�ncia, Conte�dos e Pr�ticas e Rela��es e Intera��es � que foram analisadas a partir de alguns conceitos da An�lise de Discurso francesa. A an�lise indicou que os participantes do estudo n�o conheciam a literatura nem as discuss�es sobre o in�cio de carreira de professores. Al�m disso, apontou que nos cursos de forma��o h� preponder�ncia da teoria sobre a pr�tica, embora haja um movimento na perspectiva de ouvir o professor e suas necessidades, considerando tamb�m suas hist�rias como aspectos que influenciam em suas aprendizagens e sua pr�tica. Ainda revelou a import�ncia dos processos de socializa��o para os professores iniciantes e dos encontros do grupo como um espa�o em que os participantes puderam compartilhar ideias, interagir, dialogar e aprender com os outros, rompendo com uma forma��o autorit�ria, para promover uma mais l�dica.
Palavras-chave: Forma��o continuada; In�cio de carreira; Anos iniciais.
ABSTRACT
The continuing education of teachers is an important space to discuss and reflect on gaps in initial education. Thus, the aim of this article is to understand the contributions of continuing education for teachers in the early years of elementary school. To this end, a survey was carried out in which fortnightly meetings were held with the participation of teachers from the early years of elementary school, scientific initiation scholarship holders, undergraduates in Pedagogy, Mathematics and Chemistry, master's students, doctoral students and university professors. In this text, a device constructed from the writing of a text about the meaning of participation in these meetings is analyzed. Three categories emerged � Beginning of Teaching, Contents and Practices and Relationships and Interactions � which were analyzed based on some concepts of French Discourse Analysis. The analysis indicated that the study participants were not familiar with the literature or discussions about the beginning of teachers� careers. In addition, he pointed out that in education courses there is a preponderance of theory over practice, although there is a movement in the perspective of listening to the teacher and their needs, also considering their stories as aspects that influence their learning and practice. It also revealed the importance of socialization processes for beginning teachers and group meetings as a space where participants could share ideas, interact, dialogue and learn from others, breaking away from an authoritarian training, to promote a more playful one.
Keywords: Continuing education; Beginning of career; Early years.
RESUMEN
La formaci�n continuada de profesores es un espacio importante para discutir y reflexionar sobre las brechas dejadas por la formaci�n inicial. As� que se tiene como objetivo, en este art�culo, comprender las contribuciones de una formaci�n continuada para maestros de Educaci�n Primaria. Para ello, se desarroll� una investigaci�n en la que ocurrieron encuentros quincenales con la participaci�n de maestras de la Educaci�n Primaria, becarios de iniciaci�n cient�fica, licenciandos en Pedagog�a, Matem�tica y Qu�mica, estudiantes de m�ster, doctorado e profesores universitarios. En este texto, se analiza un dispositivo construido a partir de la escrita de un texto sobre el significado de la participaci�n en eses encuentros. Emergieran tres categor�as � Inicio de la Docencia, Contenidos y Pr�cticas y Relaciones e Interacciones � que fueron analizadas a partir de algunos conceptos del An�lisis de Discurso francesa. El an�lisis indic� que los participantes del estudio no conoc�an la literatura y tampoco las discusiones sobre el inicio de la carrera de los profesores. Adem�s, apunt� que en los cursos de formaci�n hay la preponderancia de la teor�a sobre la pr�ctica, aunque haya un movimiento en la perspectiva de o�r el profesor y sus necesidades, considerando tambi�n sus historias como aspectos que influyen en sus aprendizajes y en su pr�ctica. A�n revel� la importancia de los procesos de socializaci�n para los profesores iniciantes y de los encuentros del grupo como espacio en la que los participantes pudieron compartir ideas, interactuar, dialogar y aprender con los otros, rompiendo con una formaci�n autoritaria, para promover una m�s l�dica.
Palabras-clave: Formaci�n continuada; Inicio de la carrera; Educaci�n Primaria.
Introdu��o
Pensar a profiss�o docente � considerar um cen�rio heterog�neo de atua��o e um fazer em constante mudan�a, afetado por quest�es sociais, pol�ticas, curriculares, entre outras. Essas mudan�as s�o justificadas � medida que consideramos a doc�ncia como aquela que proporciona intera��es educativas, sejam elas subjetivas ou intersubjetivas. Por isso, concordamos com Oliveira et al. (2020, p. 2), que, ao se referirem ao docente, afirmam que
[...] este profissional n�o pode ser definido apenas como o sujeito que est� em uma sala de aula transmitindo de forma autom�tica e pragm�tica seu conhecimento, e sim, aquele sujeito que estimula seus alunos a ter mais participa��o, a construir suas opini�es e a serem mais cr�ticos em rela��o a v�rios aspectos de sua vida, tanto acad�mico como social.
E � nesse universo que o licenciado rec�m-formado encontra seus primeiros desafios, que s�o muitos. Alguns deles s�o citados por Rausch e Silveira (2020), como por exemplo: a percep��o das lacunas na forma��o, que os deixam inseguros durante o exerc�cio da profiss�o; a exposi��o em p�blico; o confronto das idealiza��es a respeito do ambiente escolar, dos colegas de trabalho e dos alunos com a realidade vivenciada, etc. Veenman (1988) elenca outros, como a indisciplina na sala de aula; a motiva��o dos alunos; o tratamento das diferen�as individuais; a avalia��o dos trabalhos dos alunos; e a rela��o com os pais.
Esses fatores podem causar um sentimento de abandono e de isolamento, uma vez que o compartilhamento dos problemas com seus pares pode ser interpretado como incompet�ncia (RAUSCH; SILVEIRA, 2020) e pode causar at� mesmo o abandono da profiss�o (VEENMAN, 1988).
Isso acontece com o licenciado em in�cio de carreira, mesmo depois de ele ter passado uma grande parte de sua vida na escola. Segundo Johnston e Rian, citados por Marcelo Garc�a (1999, p. 114):
No seu primeiro ano de doc�ncia, os professores s�o estrangeiros num mundo estranho, um mundo que lhes � simultaneamente conhecido e desconhecido. Ainda que tenham passado milhares de horas nas escolas a ver professores e implicados nos processos escolares, os professores principiantes n�o est�o familiarizados com a situa��o espec�fica em que come�am a ensinar.
Por essas e outras raz�es, a pr�tica de professores iniciantes � um dos focos de interesse de nossos estudos, postos em movimento pelo desenvolvimento da pesquisa intitulada Pr�ticas docentes em Ci�ncias e Matem�tica de professores dos anos iniciais em in�cio de carreira, financiada pela Funda��o de Amparo � Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG[1]. Ela foi planejada por considerarmos a forma��o continuada um importante aporte ao professor que atua na Educa��o B�sica em seus primeiros anos de doc�ncia.
Em nossos estudos, tomamos como professores iniciantes aqueles que estavam atuando no Ensino Fundamental h� menos de cinco anos, em acordo com Nono e Mizukami (2006), que investigaram, no Brasil, os processos de forma��o vivenciados por professoras da Educa��o Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
E para alcan�armos nossos objetivos na referida investiga��o, fizemos reuni�es quinzenais com um grupo de aproximadamente 15 professores iniciantes que atuavam nos primeiros anos do Ensino Fundamental em escolas p�blicas e privadas localizadas na cidade de Juiz de Fora (MG). Nessas reuni�es, trabalhamos com textos, oficinas, rodas de conversa e outras din�micas, buscando compreender suas pr�ticas docentes nas disciplinas de ci�ncias e matem�tica. Al�m disso, ao longo do desenvolvimento das atividades, buscamos refletir sobre a pr�tica docente das participantes, ao mesmo tempo em que procuramos responder a suas demandas formativas.
A escolha das disciplinas ci�ncias e matem�tica ocorreu apoiada em pesquisas que versam sobre algumas lacunas presentes nessas duas �reas na forma��o inicial de professores, em cursos de Pedagogia. Ademais, a pr�tica profissional desses docentes parece reproduzir a dos professores que eles tiveram durante sua vida escolar, que, de acordo com Nacarato, Mengali e Passos (2009), t�m forte influ�ncia na sua identidade e na constitui��o do seu modelo de aula.
Essa problem�tica tamb�m � discutida no trabalho de Pires e Malacarne (2016, p. 189):
A ampla forma��o acad�mica requerida para esse profissional relacionada � carga hor�ria requerida para o curso levanta alguns questionamentos quanto � gama de conhecimentos necess�rios para uma atua��o fundamentada nas �reas espec�ficas do conhecimento.�� Observa-se que o ac�mulo de atribui��es reflete diretamente na pr�tica docente, pois este profissional dever� estar apto a lecionar as diversas disciplinas que comp�em a grade curricular dos anos iniciais do Ensino Fundamental, entre elas a disciplina de Ci�ncias.
Especificamente com rela��o � matem�tica, muitos cursos de Licenciatura em Pedagogia n�o trazem, nas grades curriculares, disciplinas com o objetivo de preparar os futuros professores para ensinarem conceitos e conte�dos pertinentes � �rea, ou aqueles que as t�m n�o se voltam a esse intuito. Nacarato, Mengali e Passos (2009) destacam que os licenciandos t�m pouco contato com aspectos metodol�gicos do ensino de matem�tica, em disciplinas com carga hor�ria bastante reduzida, e tamb�m n�o h� indica��o de que vivenciem os fundamentos da matem�tica e a pr�tica da pesquisa em Educa��o Matem�tica. Esse resultado tamb�m � encontrado na pesquisa de Szymanski e Martins (2018).
Em rela��o ao ensino de ci�ncias, a quest�o n�o � muito diferente. Campos e Campos (2016) discutem a forma��o dos professores para ensinar ci�ncias nos primeiros anos do Ensino Fundamental e destacam a import�ncia do fortalecimento da identidade e da forma��o te�rica dos pedagogos. As autoras apontam tr�s quest�es centrais que impactam na forma��o cient�fica do pedagogo, segundo a literatura da �rea de ensino de ci�ncias:
1) A forma��o espec�fica que visa o ensino de Ci�ncias Naturais corresponde, geralmente, a uma pequena parte da carga hor�ria do curso e n�o garantem forma��o completa no ensino em quest�o.
2) Aus�ncia ou inadequa��o dos espa�os f�sicos como laborat�rios e bibliotecas.
3) Falta de preparo de pessoas especializadas no assunto [Ci�ncias nos anos iniciais] capaz de oferecer respaldo na elabora��o dos planejamentos e treinamento dos docentes. (CAMPOS; CAMPOS, 2016, p. 139)
As autoras consideram a forma��o inicial um momento fundamental para os futuros pedagogos entrarem em contato com os conhecimentos, os saberes e as disposi��es iniciais e adquirirem esses saberes.
J� Rocha e Megid Neto (2010), por meio de uma revis�o na literatura, apontam que nos artigos selecionados para a pesquisa h� preponder�ncia do modelo pr�tico-reflexivo na forma��o inicial dos pedagogos. O professor que leciona ci�ncias nos anos iniciais
[...] traz a sua hist�ria de vida e profissional para dentro da sala de aula e que necessita fazer constantes reflex�es sobre suas concep��es do que � Ci�ncia, como, por que e para qu� ensinar Ci�ncias nessa fase escolar.� Para isso, rememorar sua trajet�ria de vida e profissional, rever e reviver suas concep��es e pr�ticas s�o a��es dos professores, deveriam ser somadas � busca de aprender sobre a(s) Ci�ncia(s) e sobre como ensinar Ci�ncias Naturais. (ROCHA, 2013, p. 75)
A respeito de professores de ci�ncias e de matem�tica que se encontram no in�cio da carreira, Ponte et al. (2001, p. 22) afirmam que
n�o basta a forma��o inicial que lhes � proporcionada, um est�gio bem sucedido e uma integra��o atenta e simp�tica por parte da escola. Para um in�cio de carreira bem conseguido, � necess�rio que os jovens professores estejam firmemente decididos a investir pessoalmente no seu trabalho e se identifiquem com a profiss�o.
Consideramos importante que as pesquisas sobre a forma��o dos pedagogos para o ensino de ci�ncias e matem�tica apontem, como mostrado nos estudos aqui tratados, que este � um processo cont�nuo, que n�o se encerra na forma��o inicial, mas segue por toda a vida profissional, aliando reflex�o te�rica e sobre a pr�pria pr�tica.
Embora este estudo tenha ocorrido dentro de uma pesquisa com professores que ensinam ci�ncias e matem�tica, as discuss�es aqui apresentadas podem ser ampliadas para a forma��o continuada de profissionais que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental de modo geral.
Apresentamos neste artigo a an�lise de uma produ��o textual realizada no �mbito dos encontros ocorridos ao longo da investiga��o. Com essa an�lise, buscamos compreender as contribui��es de uma forma��o continuada para professores dos anos iniciais, � �poca em come�o de carreira.
A profiss�o docente e o in�cio de carreira
A carreira docente, assim como muitas outras profiss�es, � marcada por desafios e possibilidades. Para atuar no magist�rio, faz-se necess�ria uma forma��o inicial, em n�vel superior, prevista na Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996, p. 20):
A forma��o de docentes para atuar na educa��o b�sica far-se-á em n�vel superior, em curso de licenciatura, de gradua��o plena, em universidades e institutos superiores de educa��o, admitida, como forma��o m�nima para o exerc�cio do magist�rio na educa��o infantil e nas quatro primeiras s�ries do ensino fundamental, a oferecida em n�vel m�dio na modalidade Normal.
Entretanto,
Em 2006, o CNE [Conselho Nacional de Educa��o], por meio da Resolu��o CNE/CP n� 1, de 15 de maio de 2006 definiu o curso de Pedagogia como a �nica gradua��o para a atua��o na educa��o infantil e nos primeiros anos do ensino fundamental (BRASIL, 2006, Art. 4�) que deveria ser ofertada nas institui��es de ensino superior. (SUFICIER; AZADINHO; MUZZETI, 2020, p. 1466)
De maneira geral, essa forma��o apresenta ao novo profissional os aspectos te�ricos e pr�ticos da doc�ncia, embora estudos como os de Gatti e Nunes (2009) apontem que, na maioria dos casos, os aspectos te�ricos t�m preponder�ncia sobre os pr�ticos durante a forma��o docente, e da� decorre que, ao chegarem �s escolas, os novos professores encontram-se despreparados para lidar com as quest�es pr�prias do dia a dia da sala de aula e da pr�tica escolar.
Essas autoras (2009) indicam que essa �nfase da teoria em detrimento da pr�tica est� presente nas grades curriculares dos cursos de forma��o inicial dos professores dos anos iniciais, em que somente 30% da carga hor�ria � de disciplinas da forma��o profissional. E, al�m disso, � destacado nas ementas o v�nculo entre teoria e pr�tica, que n�o � abordado nas rela��es do cotidiano escolar.
O futuro professor precisa ser formado da maneira que se espera que ele v� atuar e com o predom�nio da teoria em rela��o � pr�tica; provavelmente, ser� assim que ir� atuar em sua sala de aula.
Esse despreparo contrap�e-se � ideia muito comum de que, passada a forma��o inicial, o profissional est� �pronto� para a atua��o num campo de trabalho muitas vezes considerado como homog�neo e, de certa forma, �ideal�. Contudo, a aprendizagem da doc�ncia � um processo cont�nuo, que vai se compondo n�o apenas pela agrega��o de novos conhecimentos, mas tamb�m pela (re)significa��o e (re)constru��o dos conhecimentos docentes. Assim, destacamos a import�ncia da forma��o continuada.
Fl�r e Carneiro (2018, p. 116) prop�em que, a fim de pensar a forma��o continuada de professores em in�cio de carreira, quatro ideias sejam colocadas em suspenso: �a exig�ncia da completude formativa, a possibilidade em si da forma��o, a homogeneidade filiada ao termo professor e o tornar-se professor apenas ap�s a formatura�. Em seu estudo, os autores apontam ainda que, muitas vezes, professores em in�cio de carreira j� colocam essas ideias em suspenso,
[...] considerando que se tornaram professoras muito antes da formatura no curso de pedagogia, tendo optado pela profiss�o por raz�es diversas e constituindo-se professoras a partir de influ�ncias distintas. N�o apontamos, com isso, para novidades na pesquisa na �rea de educa��o. Propomos, por�m, que seja desenvolvido um novo olhar para essas quest�es, que supera a constata��o em busca de novas possibilidades de estar junto a professores que j� se delineavam antes de nossas interven��es acad�micas. (FL�R; CARNEIRO, 2018, p. 128)
Trabalhos na linha de estudos com professores em in�cio de carreira (PACHECO; FLORES, 1999; SOUZA; TOZETTO, 2011) apontam que, ao ingressar na carreira docente, o licenciado, agora portador de diploma universit�rio, adentra em um mundo de possibilidades e de desafios, n�o est�tico, como diversas vezes � proposto na forma��o inicial, mas din�mico, em constante mudan�a e fortemente dependente das suas condi��es de produ��o. Tudo o que � contextual e que foi apreendido na teoria como importante para a doc�ncia ganha vida e forma, e � com essa din�mica que o professor iniciante precisa aprender a lidar nos primeiros anos de atua��o. E esses aprendizados v�o moldando os sentidos que ele atribui � doc�ncia.
Para Huberman (1995), essa primeira fase do ciclo de vida dos professores, que � a entrada na carreira, compreende o per�odo de um a tr�s anos de doc�ncia. S�o os contatos iniciais com a sala de aula como respons�vel pelos alunos e pelas situa��es que ocorrer�o durante a aula, diferentemente do que aconteceu com esses docentes nos est�gios supervisionados, nos quais tiveram contato com turmas que n�o eram suas.
A prop�sito desse contato com a realidade, o mesmo autor (1995, p. 39) destaca dois aspectos nessa primeira fase: a sobreviv�ncia e a descoberta. A sobreviv�ncia � o �confronto inicial com a complexidade da situa��o profissional: o tactear constante, a preocupa��o consigo pr�prio, a dist�ncia entre os ideais e as realidades quotidianas da sala de aula, [...] dificuldades com alunos que criam problemas�.
J� a descoberta � o entusiasmo de ter sua pr�pria sala de aula, seus alunos, seu programa, etc. Entre a sobreviv�ncia e a descoberta, rela��es de sentido e de for�as v�o se desenhando, constituindo o discurso dos professores em in�cio de carreira sobre a profiss�o. Diante do exposto, Rausch e Silveira (2020, p. 230) ressaltam
[...] que � importante perceber que esse momento inicial da profiss�o como enriquecedor para o desenvolvimento da carreira docente, pois ser� uma fase de intensa avalia��o e reavalia��o de sua pr�tica, o que implica em crescimento profissional. � nos primeiros anos de efetivo exerc�cio da profiss�o que o professor define sua identidade profissional, e esta defini��o promover� seguran�a para se estabilizar/desestabilizar e transitar pela carreira docente, percorrendo suas diferentes fases e aprendendo com cada uma delas.
Por�m, a extens�o do per�odo de in�cio de carreira pode variar entre teorias de diferentes pesquisadores. Gon�alves (1995), por exemplo, em seus estudos desenvolvidos em Portugal com professores do Ensino Prim�rio para compreender seu desenvolvimento profissional e percurso de forma��o, considerou os quatro primeiros anos de doc�ncia como o per�odo de entrada na carreira.
Apesar de diferentes em termos de recorte temporal que caracterizaria o in�cio da doc�ncia, no geral, os autores apontam essa entrada na carreira como um contato inicial que coloca os professores como totalmente respons�veis pelas turmas nas quais atuam. Funcionam nesse momento as rela��es de for�a que s�o modificadas profundamente. Se nos est�gios havia a orienta��o tanto do professor supervisor, na escola, quanto do orientador, na universidade, agora muitas vezes n�o h� orienta��o. O professor est� sozinho. Ent�o, apesar de, nas rela��es de for�a, ter assumido um lugar de maior reconhecimento, ao mesmo tempo h� uma sensa��o de abandono e de solid�o que afeta as rela��es de sentidos em seus discursos sobre a doc�ncia.
Al�m disso, � importante salientar que o recorte temporal entre os estudos evidencia que esses momentos da carreira do professor n�o t�m fronteiras bem delimitadas e definidas em que, em dado momento, o professor deixe de ter todas as caracter�sticas que fazem parte da etapa anterior para vivenciar a pr�xima, pois esse processo ocorre gradualmente, e aspectos de diversas fases convivem por determinado per�odo.�
Caminhos da pesquisa
Olhamos de forma discursiva para o processo de forma��o continuada de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental em in�cio de carreira. Isso tem sua implica��o metodol�gica, pois n�o se trata de ir a campo coletar �dados� que estejam l�, est�ticos, � espera de serem descobertos. Trata-se antes de pensar a constru��o de um corpus que ser� posteriormente analisado. Nessa constru��o faz-se importante delinear as condi��es de produ��o dos discursos em seu sentido amplo e estrito.
Podemos considerar as condi��es de produ��o em sentido estrito, e temos as circunst�ncias da enuncia��o: � o contexto imediato. E se as consideramos em sentido amplo, as condi��es de produ��o incluem o contexto s�cio-hist�rico, ideol�gico (ORLANDI, 2005).
As condi��es em sentido amplo, ou seja, em seu sentido s�cio-hist�rico ideol�gico, dizem respeito ao projeto desenvolvido, a sua din�mica e aos princ�pios norteadores. A pesquisa Pr�ticas docentes em ci�ncias e matem�tica de professores dos anos iniciais em in�cio de carreira teve como objetivo principal compreender as pr�ticas docentes de professores iniciantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental no processo de aprender e de ensinar ci�ncias e matem�tica.
Para tanto, foram realizadas reuni�es quinzenais, �s quartas feiras, das 19 �s 21h, em uma sala na Faculdade de Educa��o da Universidade Federal de Juiz de Fora. As reuni�es aconteceram entre os anos de 2015 e 2019, e participaram delas professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, bolsistas de inicia��o cient�fica, licenciandos em Pedagogia, Matem�tica e Qu�mica, mestrandos, doutorandos e professores universit�rios. O n�mero de participantes variava a cada semestre, dependendo de encargos docentes, extens�o das bolsas, entre outros compromissos pessoais e acad�micos.
�Importante salientar, ainda no contexto s�cio-hist�rico ideol�gico, que na pesquisa tivemos como princ�pio de atua��o, tanto te�rico como metodol�gico, o trabalho junto com os professores, em que n�o colocamos em pr�tica a ideia cl�ssica de hierarquiza��o das falas e dos lugares dos participantes � todos aprendem e trabalham juntos. Dessa forma, �ramos todos, pesquisadores e professores, realizando todas as atividades: leituras propostas, pesquisas sobre suas pr�ticas, proposi��o de oficinas, escrita de trabalhos para eventos, etc.
Fazer pesquisa junto com os professores foi um dos pilares da investiga��o e deu forma � atividade de produ��o textual que foi realizada. Buscamos deslocar as condi��es de produ��o dos discursos das professoras participantes, de modo que as rela��es de for�a entre bolsistas, estudantes, pesquisadores e professoras ficassem mais equilibradas, buscando, nas rela��es de sentidos, fazer um deslizamento de um lugar solit�rio para um lugar colaborativo. O desenvolvimento da pesquisa foi aprovado pelo Comit� de �tica da UFJF[2], seguindo todos os cuidados �ticos necess�rios para a pesquisa cient�fica.
J� no que se refere �s condi��es de produ��o no sentido estrito, ou seja, referentes ao contexto imediato de enuncia��o, o texto que � objeto de an�lise no presente estudo foi produzido na primeira reuni�o do segundo semestre de 2016, no m�s de agosto, e estiveram presentes 14 participantes, sendo 3 professores do Ensino Superior, 2 bolsistas e 9 professoras.
Nos primeiros momentos da reuni�o, conversamos sobre o recesso, a volta �s aulas e os novos desafios a enfrentar. Refletimos sobre o Encontro de Pr�ticas em Ci�ncias e Matem�tica nos anos iniciais� - CIMAI[3] - e sobre as experi�ncias e as aprendizagens no estudo e com a organiza��o do evento. Em seguida, apresentamos a atividade de produ��o textual, que teve a seguinte din�mica: colocamos as carteiras em c�rculo e demos a orienta��o de que cada um dos participantes teria um minuto para escrever, em uma mesma folha de papel, o que a participa��o nos encontros no semestre anterior havia significado para si. A folha era dobrada a cada escrita, de forma que n�o fosse poss�vel ver o que o participante anterior escreveu. A escrita foi an�nima, sem necessidade de identifica��o e, ap�s todos escreverem, recolhemos a folha. Consideramos os participantes dessa atividade como autores de seus textos.
Contribui��es para forma��o continuada de professores
De posse dos textos escritos pelos participantes, constru�mos o dispositivo anal�tico, visando compreender como um determinado objeto simb�lico, nesse caso, os textos produzidos pelos participantes, produz sentidos.
A an�lise � um processo que come�a pelo pr�prio estabelecimento do corpus e que se organiza face � natureza do material e � pergunta (ponto de vista) que o organiza. Da� a necessidade que a teoria intervenha a todo momento para �reger� a rela��o do analista com o seu objeto, com os sentidos, com ele mesmo, com a interpreta��o. (ORLANDI, 2005, p. 64)
A partir do texto inicial, composto pelos fragmentos de textos escritos por cada participante, procedemos � de-superficializa��o, fazendo uma primeira leitura, recuperando as condi��es de produ��o estritas do texto e remetendo-o a essas condi��es. Ap�s essa primeira leitura, realizamos a an�lise, com a passagem que se faz
[...] entre a superf�cie lingu�stica (o material de linguagem coletado, tal como existe), e o objeto discursivo, este sendo definido pelo fato de que o corpus j� recebeu um primeiro tratamento de an�lise superficial, feito em uma primeira inst�ncia, pelo analista, e j� se encontra de-superficializado. (ORLANDI, 2005, p. 65)
Em um primeiro movimento de an�lise, selecionamos trechos dos textos escritos e os classificamos em tr�s categorias que emergiram das leituras pr�vias. No Quadro 1 apresentamos as categorias e os trechos dos textos que as representam. Denominamos os participantes de P1, P2... at� P14 e adotamos essa simbologia para identificar os trechos e manter seu anonimato.
Quadro 1: Categorias de an�lise
Categoria |
Trecho |
Participante |
In�cio da Doc�ncia |
Eu nunca havia pensado que existia uma etapa da doc�ncia que poderia ser chamada de �in�cio�[4]. |
P11 |
O projeto proporcionou a descoberta de novos conhecimentos... |
P6 |
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Conte�dos e Pr�ticas |
Consegui refletir sobre minha pr�tica e trabalhar os conte�dos de forma ativa e que atraia os alunos. |
P1 |
[...] lan�amos novos olhares para conte�dos �banais�. |
P3 |
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[...] aprender um pouco mais sobre o ensino de matem�tica e ci�ncias em sala de aula atrav�s de leituras e discuss�es em grupo. |
P14 |
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[...] mostrando a possibilidade de articular diversas atividades com o ambiente escolar. |
P4 |
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Rela��es e Intera��es |
O encontro nas quartas sempre foi de grande aprendizado, mas o momento mais marcante foi do evento CIMAI, que foi uma intera��o maravilhosa do grupo. |
P12 |
[...] foi um monte de surpresas e coisas legais com um monte de gente legal e animada! |
P8 |
|
[...] Companheirismo, parceria e aprendizagem s�o palavras que para mim resumem todos os nossos encontros. |
P10 |
Fonte: elaborado pelos autores
As categorias apresentadas no Quadro 1 emergiram dos textos escritos pelos participantes e se alinharam a tr�s eixos principais, apontados pela literatura, que d�o base � pesquisa realizada: o in�cio da doc�ncia em si, a preocupa��o com os conte�dos e os conceitos a serem ensinados e o desenvolvimento de rela��es interpessoais durante esse per�odo.
Em rela��o ao in�cio da doc�ncia, P11 afirma: �Eu nunca havia pensado que existia uma etapa da doc�ncia que poderia ser chamada de �in�cio��. Essa considera��o mostra que, apesar de a pesquisa e a literatura apontarem que existe toda uma produ��o cient�fica a respeito da carreira docente e do in�cio da doc�ncia e problematizarem esta como uma fase pr�pria da profiss�o, com caracter�sticas pr�prias (GON�ALVES, 1995; HUBERMAN, 1995; RAUSCH; SILVEIRA, 2020), para alguns professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental essa discuss�o n�o alcan�ou sua forma��o inicial. Huberman (1995), por exemplo, ressalta que no in�cio da doc�ncia os rec�m-licenciados passam por uma fase de sobreviv�ncia, caracterizada pelo contato com a complexidade da sala de aula, que agora n�o tem mais tutores, como nos est�gios.
O texto de P11 sobre o desconhecimento de uma fase chamada de in�cio denota que muitas vezes nos cursos de forma��o inicial em pedagogia a etapa referente ao in�cio da doc�ncia n�o � problematizada, o que traz uma impress�o de continuum entre forma��o inicial e atua��o. Ao n�o problematizar e abordar teoricamente o in�cio da doc�ncia, forma-se um silenciamento discursivo, que ser� vivenciado, como bem apontam Rausch e Silveira (2020), como um sentimento de abandono, isolamento e at� mesmo medo de ser considerado incompetente. Talvez por isso, como um efeito de sentidos, sejam recorrentes, em cursos de forma��o continuada com docentes, relatos como �pensei que somente eu sentia isso�, ou �n�o sabia que essa situa��o que ocorreu comigo era t�o comum�.
Por outro lado, tamb�m caracter�stica do in�cio da doc�ncia, segundo Huberman (1995), est� a chamada fase da descoberta, durante a qual os novos docentes vivenciam o entusiasmo por ter sua pr�pria turma, seu pr�prio planejamento, etc. No texto produzido, P6 e P9 apontam a participa��o no projeto como um momento de descobertas, novos aprendizados, crescimento pessoal e profissional. P6 afirma que �o projeto proporcionou a descoberta de novos conhecimentos...�.
����������� O sil�ncio, muitas vezes, vivenciado durante a forma��o inicial a respeito do in�cio da doc�ncia pode mobilizar, durante a forma��o continuada, o desejo por novos aprendizados, partindo da compreens�o de que vive um per�odo espec�fico da profiss�o, marcado por ang�stias, mas tamb�m por conquistas. � importante salientar que essas fases apontadas por Huberman (1995) n�o s�o consecutivas, ou seja, n�o acontece primeiro a sobreviv�ncia e depois a descoberta � na verdade, s�o concomitantes e podem durar al�m dos tr�s ou cinco anos que marcam esse per�odo. No entanto, nesse momento profissional s�o mais intensas.
A respeito da segunda categoria, que traz as reflex�es dos participantes sobre os conte�dos e as pr�ticas em ci�ncias e matem�tica a serem trabalhados nos anos iniciais do Ensino Fundamental, a literatura nas �reas de Educa��o e ensino tamb�m tem uma produ��o significativa, e geralmente aponta que a forma��o inicial � insuficiente e tem preponder�ncia da teoria sobre a pr�tica, com resqu�cios do racionalismo t�cnico ainda hoje (GATTI; NUNES, 2009; NACARATO; MENGALI; PASSOS, 2009), embora haja um movimento em dire��o a uma perspectiva reflexiva da forma��o, que considere os professores e suas hist�rias de vida como agentes de seu aprendizado constante (ROCHA; MEGID NETO, 2010).
Para pesquisadores das diferentes �reas, a forma��o continuada pode contribuir significativamente para uma produ��o de sentidos que ultrapasse a dicotomia entre teoria e pr�tica, entre completude e incompletude da forma��o, e possibilite a supera��o do discurso sobre o pedagogo como um profissional da falta.
Nos textos dos participantes da pesquisa, � poss�vel encontrar essa preocupa��o com os conte�dos e com as pr�ticas, tendo a forma��o continuada um lugar de aprendizagem permanente. P14 v� em sua participa��o a possibilidade de estudar e �[...] aprender um pouco mais sobre o ensino de matem�tica e ci�ncias em sala de aula atrav�s de leituras e discuss�es em grupo�. J� P4 considera que frequentar os encontros do projeto contribuiu com sua pr�tica, �[...] mostrando a possibilidade de articular diversas atividades com o ambiente escolar�. Os trechos permitem observar sentidos ligados � preocupa��o em manter-se estudando, atualizar-se, trazer para as pr�ticas as aprendizagens obtidas com a participa��o na pesquisa.
Na �ltima categoria, na qual organizamos os textos, encontram-se os trechos que se referem �s rela��es e �s intera��es ocorridas nos encontros. Como j� dito anteriormente, priorizamos uma atua��o junto com os professores, buscando deslocar os lugares de fala de uma posi��o autorit�ria para uma posi��o pol�mica ou l�dica nos discursos. Orlandi (2005, p. 86), a esse respeito, apresenta tr�s modos de funcionamento do discurso:
a.� Discurso autorit�rio: aquele em que a polissemia � contida, o referente est� apagado pela rela��o de linguagem que se estabelece e o locutor se coloca como agente exclusivo, apagando tamb�m sua rela��o com o interlocutor;
b.� Discurso pol�mico: aquele em que a polissemia � controlada, o referente � disputado entre os interlocutores e este se mant�m em presen�a, numa rela��o tensa de disputa de sentidos;
c.� Discurso l�dico: aquele em que a polissemia est� aberta, o referente est� presente como tal, sendo que os interlocutores se exp�em aos efeitos dessa presen�a inteiramente n�o regulando sua rela��o com os sentidos.
A autora considera que em nossa sociedade h� uma tend�ncia � predomin�ncia do discurso autorit�rio, sendo o l�dico aquele que se d� nas margens, nos deslocamentos de sentidos, e o pol�mico, um aceno a pr�ticas de resist�ncia. Em processos formativos, quer na Educa��o B�sica, no Ensino Superior, na P�s-Gradua��o ou em cursos de forma��o continuada, n�o � muito diferente do que ocorre no contexto social como um todo. Ponte et al. (2001, p. 8), em um estudo com seis jovens professores das �reas de ci�ncias e matem�tica, ressaltam a import�ncia dos processos de socializa��o no in�cio da carreira e apontam que
na verdade, as organiza��es escolares exigem a socializa��o dos seus membros nas pr�ticas que lhes s�o caracter�sticas, tendo implica��es tanto no interior como no exterior da escola. As rela��es que se estabelecem entre os elementos que comp�em o mundo escolar fazem com que se aceitem formal ou tacitamente as regras institu�das.
No geral, nesses processos de socializa��o de professores em in�cio de carreira no interior da institui��o escolar, o locutor � no caso, o conjunto dos colegas professores, orientadores, pesquisadores � tem a predomin�ncia da fala e controla os sentidos do que � dito, havendo pouco espa�o para outros dizeres e sentidos. E, nesse ponto, a pesquisa desenvolvida desloca as posi��es dos sujeitos, ao propor o trabalho juntos; e, ao faz�-lo, alinha-se a posicionamentos discursivos l�dicos em que os referentes, sejam as disciplinas escolares ci�ncias e matem�tica, seja o lugar de professores em in�cio de carreira, estejam abertos � produ��o de sentidos por todos os participantes.
P10, por exemplo, escreve que �[...] companheirismo, parceria e aprendizagem s�o palavras que para mim resumem todos os nossos encontros�. J� o trecho escrito por P8 relata que �[...] foi um monte de surpresas e coisas legais com um monte de gente legal e animada!�.
A anima��o e a alegria de estar juntos, considerando-se parte de uma equipe na qual existem parcerias e aprendizados m�tuos, s�o um deslocamento em rela��o a muitos relatos sobre forma��o continuada ou participa��o em projetos de extens�o ou pesquisa, em que o �n�s� � apagado e, geralmente, os participantes falam de uma perspectiva de unilateralidade do processo, de forma que apenas o curso ou projeto contribu�ram com seu aprendizado, e nada diferente ou novo aconteceu. A ideia de uma parceria formativa, de haver surpresas e gente legal e animada desloca os sentidos para uma forma��o l�dica, com os interlocutores expostos � presen�a dos referentes.
Essa forma��o l�dica, possibilitada pelos encontros do grupo, permitiu romper com forma��es continuadas autorit�rias, em que h� um modelo pronto, elaborado pelo formador, em que �basta que existam ocasi�es em que formalmente os professores s�o capacitados para que o processo de transfer�ncia da aprendizagem nas aulas se produza� (GARC�A, 2011, p. 12, grifo do autor).
Ainda nessa forma��o, os encontros possibilitaram o compartilhamento de ideias, de pr�ticas, de atividades, de estrat�gias metodol�gicas, das ang�stias, dos desafios etc., o que, via de regra, n�o ocorre nas forma��es continuadas. Os participantes tinham voz e puderam expressar suas necessidades formativas.�
Nessa categoria tamb�m � citada a participa��o no CIMAI, como na escrita de P12, que destaca o evento como ponto relevante da pesquisa: �O encontro nas quartas sempre foi de grande aprendizado, mas o momento mais marcante foi do evento CIMAI, que foi uma intera��o maravilhosa do grupo�. Ainda em rela��o � nossa busca pelo trabalho junto com os professores, todo o grupo contribuiu com a organiza��o do evento. Os participantes puderam propor oficinas e minicursos, participar da comiss�o organizadora, submeter e apresentar trabalho, propor temas, fazer parte da monitoria no evento, do credenciamento, enfim, todos os espa�os estavam abertos aos participantes, sendo que cada um optou por fazer parte como lhe fosse mais conveniente. Quando P12 menciona a intera��o do grupo, tamb�m permite entrever esse deslocamento do discurso autorit�rio para o discurso l�dico, que traz consigo um forte sentimento de pertencimento e possibilidade de contribui��o e fala.
Para a an�lise do texto, usamos o dispositivo proposto por Fl�r (2015), que descreve, na metodologia de sua pesquisa, o trabalho com dados oriundos das respostas de estudantes do Ensino M�dio a um question�rio � n�o identificado � sobre leitura. As respostas foram agrupadas por suas semelhan�as e, em seguida, a autora escreveu dois textos com essas respostas, de acordo com o gosto ou n�o dos estudantes pela leitura, contemplando as falas de todos os estudantes. Xavier (2014) utilizou a mesma metodologia para lidar com dados de entrevistas sobre saberes populares com produtores de doces caseiros.
� poss�vel ver o resultado da constru��o de um dos textos em Fl�r (2015, p. 113), onde os estudantes que responderam ao question�rio foram nomeados como E1 ... at� E31:
Quando eu era pequen@, peguei o h�bito de ler e n�o consigo parar (E15). Tipo tra�a, saca? (P) Acho que lendo voc� consegue escrever mais, aprende o significado das palavras e fala com mais facilidade. (E24) � muito raro encontrar algu�m que goste de ler. Particularmente, eu amo ler para obter novos conhecimentos (E27), desenvolver um h�bito diferente (E31) e, dependendo do que est� lendo voc� at� se diverte (E16)! Gosto de ler quando estou sozinh@, porque sil�ncio e leitura combinam (E18) e eu prefiro ler � noite, quando terminei tudo que tinha pra fazer e tenho um tempo s� pra mim (E17).
Este � um texto h�brido que contempla muitas vozes em busca dos sentidos produzidos para leitura por aquele grupo espec�fico. A autora ressalta que compreende o texto produzido com as respostas dos estudantes �[...] como um momento/espa�o de encontro, onde enquanto pesquisadora posso encontrar algumas de suas expectativas e compreens�es a respeito da leitura�.�
Com base nos trabalhos de Fl�r (2015) e Xavier (2014), escrevemos um �nico texto que contemplasse as escritas de todos os participantes, na busca pelos sentidos que atribu�am � participa��o na pesquisa, tanto individualmente quanto coletivamente.� Elaboramos um texto com contribui��es de todos os autores na atividade proposta e, para tanto, foram utilizadas as seguintes marca��es:
@ - para flex�es de g�nero.
� - quando o trecho em quest�o n�o fazia parte do que foi escrito pelos participantes e foi inserido para fazer a conex�o entre as falas.
(P1), (P2) ... (P14) - para identificar a qual participante pertencia o trecho em quest�o, assim como no Quadro 1. Essa indica��o foi feita ap�s o trecho escrito.
Segue abaixo o texto produzido:
Um lugar pra compartilhar ...
Na reuni�o seguinte, entregamos uma c�pia do texto sem as marca��es, para conversar sobre os pontos apresentados e, em seguida, entregamos uma c�pia com as marca��es para que os participantes conversassem com a marca da coletividade no olhar para a investiga��o. � semelhan�a dos achados descritos por Fl�r (2015), ap�s a leitura do texto, todos os participantes sentiram-se contemplados e viram nele a express�o de suas ideias e de suas reflex�es.
Em uma an�lise conjunta do texto, entendido aqui como uma s�ntese dos sentidos atribu�dos pelos participantes da pesquisa � participa��o no projeto envolvendo professores em in�cio de carreira e o ensino de ci�ncias e matem�tica nos anos iniciais do Ensino Fundamental, destacamos alguns pontos para reflex�o:
� Nem sempre as fases do desenvolvimento da profiss�o docente s�o consideradas nos processos formativos, de modo que o sentimento de solid�o muitas vezes relatado na literatura pode remeter a um desconhecimento de que o in�cio na carreira tem caracter�sticas pr�prias e que o docente n�o est� sozinho em suas d�vidas, ang�stias, descobertas. Isso faz parte desse momento da profiss�o, e todos passamos por ele.
� O papel do grupo � muito importante, e termos e express�es como compartilhar, rela��es interpessoais, intera��o, di�logo, motiva��o, aprender juntos, envolvimento, enfatizam a import�ncia do sentimento de pertencimento na constru��o da identidade docente.
� O deslocamento do discurso autorit�rio em dire��o ao discurso l�dico � enfatizado nos relatos sobre a participa��o no evento CIMAI, talvez porque, para alguns participantes da pesquisa, oferecer, eles pr�prios,� oficinas em um evento era at� ent�o uma possibilidade muito distante, pois na maior parte das propostas formativas os professores das escolas s�o aqueles que recebem, e n�o aqueles que compartilham conhecimentos.
� Os estudos e as descobertas em rela��o a conhecimentos e pr�ticas docentes tamb�m aparecem como um ponto importante da investiga��o, permitindo estudos, articula��es e renova��o das pr�ticas escolares, sempre enfatizando o papel do grupo nesse aprendizado.
Assim, a elabora��o deste texto fez emergir diferentes aspectos da participa��o na pesquisa, que destacam a contribui��o dos encontros para a forma��o continuada de professores que ensinam ci�ncias e matem�tica nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Considera��es finais
Tivemos como objetivo, neste artigo, compreender as contribui��es de uma forma��o continuada para os professores participantes. Para tanto, analisamos um texto elaborado a partir da escrita de cada um dos participantes da investiga��o, em que emergiram tr�s categorias.
As an�lises apontaram que os participantes n�o conheciam a literatura sobre o in�cio de carreira, pois n�o foi abordada na forma��o inicial, por�m o grupo possibilitou discuss�es sobre desafios e dificuldades encontradas nessa fase da carreira docente. E ainda propiciou �s professoras momentos de descoberta, de novas aprendizagens, de crescimento pessoal e profissional.
Al�m disso, nos cursos de forma��o de professores h� preponder�ncia da teoria sobre a pr�tica, como discutido por Gatti e Nunes (2009), embora haja um movimento na perspectiva de reflex�o, que deve considerar os docentes e tamb�m suas hist�rias como aspectos que influenciam em suas aprendizagens. Tamb�m ressaltamos que a forma��o continuada pode contribuir para que se supere o discurso sobre o pedagogo como um profissional da falta � faltam disciplinas de forma��o espec�fica, faltam horas de est�gio, falta uma forma��o cr�tica � e sobre o curso de forma��o inicial como pass�vel de ser completo, abordar todos os conte�dos e proporcionar todas as viv�ncias necess�rias � doc�ncia. Ao assumir a forma��o como incompleta, abre-se espa�o para novos aprendizados, cuja demanda se origina na entrada na vida profissional. N�o por faltar, mas por fazer parte dos novos aprendizados proporcionados pela pr�tica.
Apreendemos a import�ncia dos processos de socializa��o para os professores iniciantes e dos encontros do grupo como uma possibilidade de produ��o de sentidos por todos os participantes, na medida em que permitiram aprenderem mais sobre ci�ncias e matem�tica por meio das leituras e das discuss�es, o que contribuiu para a pr�tica docente.
Ressaltamos ainda o papel de uma parceria formativa que pode promover o deslocamento de sentidos de uma forma��o autorit�ria para uma l�dica, a partir da an�lise do texto que contemplava as ideias, as reflex�es, o grupo como um espa�o em que os participantes podiam compartilhar ideias, interagir, dialogar, aprender com os outros, etc. aspectos que consideramos importantes para a forma��o de professores.
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Notas
[1] Agradecemos o apoio financeiro da FAPEMIG (Processo APQ CHE 00771-14).
[2] Processo: 26963614.3.0000.5147
[3] Evento criado e realizado no contexto da pesquisa e que teve nesse ano sua primeira edi��o. O evento tem como objetivo a divulga��o de pr�ticas em ci�ncias e matem�tica de professores da Educa��o Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
[4] Mantivemos as aspas e as express�es lingu�sticas escritas pelos autores dos textos.