Educação do campo no Brasil: da lona preta à academia
Field education in Brazil: from black canvas to the academy
Isaura Isabel Conte
Professora doutora na Universidade Federal de Rondônia (Unir) campus de Ji-Paraná, Departamento de Ciências Humana e Sociais (DACHS). Rondônia, Brasil.
isaura.conte@unir.br - http://orcid.org/0000-0002-5600-6984
Edivânia de Souza
Licencianda na Universidade Federal de Rondônia (Unir) campus de Ji-Paraná. Rondônia, Brasil. Bolsista voluntária Pibic 2019/2020
edivaniadesouza1991@gmail.com - http://orcid.org/0000-0003-4010-7702
Recebido em 11 de abril de 2021
Aprovado em 25 de outubro de 2021
Publicado em 27 de janeiro de 2022
RESUMO
Este artigo de revisão bibliográfica sistemática e também narrativa versa sobre Educação do Campo no Brasil, considerando sua gênese com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; sua trajetória na política pública brasileira; e, temas mais discutidos segundo artigos científicos publicados na base de dados da Capes entre 1998 a 2018. Destaca-se como relevante a não separação da Educação do Campo da luta dos movimentos sociais, caso contrário, se não fosse a lona preta/escola itinerante, não existiria e, entre articulações e embates se deram as conquistas na Legislação. Neste aspecto a articulação nacional Por Uma Educação (básica) do Campo teve um papel fundamental. Os temas mais estudados na academia são: formação de professores/currículo; movimentos sociais; escola do campo; legislação e políticas públicas. A pesquisa no Estado de Rondônia evidencia as Escolas Família Agrícolas com força, assim como, os eventos dão destaque a publicações sobre o Educampo do município de Ji-Paraná.
Palavras-chave: Educação do Campo; MST; Políticas Públicas; Pesquisa.
ABSTRACT
this article of systematic bibliographic review and also narrative deals with Fiel Education in Brazil, considering its genesis with the Landless Rural Workers Movement; his trajectory in Brazilian public policy; and, most discussed topics according to scientific articles published in the Capes database between 1998 end 2018. It stands out as relevant the non-separation of Field Education from the struggle of social movements, otherwise, if it were not for the black canvas / itinerant school, it would not exist and, between articulations and clashes the conquests in the Legislation took place. In this respect, the national articulation for a (basic) education in the field played a fundamental role. The most studied subjects in the academy are: teacher training / curriculum; social movements; country school; legislation and public policies. The research in the state of Rondônia shows the Agricultural Family Schools strongly, as well as, the events highlight publications about Educampo in the municipality of Ji-Paraná.
Keywords: Field Education; MST; Public policy; Search.
Introdução
Este texto discute a Educação do Campo (EdoC) no Brasil, no sentido de evidenciar a sua trajetória sob três perspectivas: 1) marcos referenciais anteriores à existência oficial da nomenclatura Educação do Campo, cuja origem está no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); 2) documentos legais do Ministério da Educação (MEC) devido a implementação na política pública educacional a partir de 2001/2002 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE); 3) pesquisa bibliográfica de artigos científicos disponibilizados na Comunidade Acadêmica Federada (CAFe/Capes) entre o período de 1998 a 2018;
Refletir sobre a trajetória da Educação do Campo anterior à sua existência oficial se torna importante à medida que afirma as suas origens, algo que não faria sentido se não houvesse disputas em torno do termo, segundo Caldart (2008; 2012). Outro objetivo deste texto diz respeito a análise do que foi sendo evidenciado na literatura desde o início da EdoC no âmbito da política pública até o momento. Por isso, a pesquisa bibliográfica busca mostrar e analisar, na medida do possível, quais assuntos estão sendo pesquisados e descritos na EdoC para percebermos o que indicam, tanto do ponto de vista da presença quanto da ausência de temas.
A Educação do Campo surgiu no Brasil a partir de demandas e lutas dos setores populares do campo, em especial, devido às necessidades que levaram a criação de experiências educacionais no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) desde o seu surgimento. Os primeiros textos públicos sobre a educação escolar no Movimento são do ano de 1987 (MST, 2017, p. 07), mas é reconhecido que “o período mais intenso dessa elaboração” se deu entre 1990 a 2001.
O marco referencial da Educação do Campo é do ano de 1998, com a realização da I Conferência Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, originada do 1º Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária (Enera) do MST, em 1997. Anterior ao início do chamado movimento Por uma educação básica do campo, cuja produção de materiais, em especial cartilhas, se deram a partir de 1999, o MST já produzia materiais próprios direcionados às escolas de assentamentos e de acampamentos. É importante destacar que quando esta educação escolar deixa de pertencer apenas ao âmbito do MST e se torna um Movimento, passa a envolver muitos outros professores (as), pesquisadores (as), Universidades, sobretudo públicas, além de entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Desse modo, este Movimento surge tecendo crítica à educação rural.
A Educação do campo nasce de um outro olhar sobre o campo. Interroga-nos porque sequer os governos democráticos, nem sequer o movimento educacional progressista conseguiram colocar em seus horizontes o direito dos camponeses à educação (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004, p. 11. Grifos dos autores).
Os mesmos autores enfatizam, ainda, que a EdoC busca “quebrar o fetiche que coloca o povo do campo à parte” (Idem, p, 11), a agricultura camponesa como atraso e a educação rural como um resíduo. Ao mesmo tempo, denunciam o silenciamento sobre os povos e populações do campo, usurpados de direitos. Arroyo, Caldart e Molina (Op. Cit.) questionam o próprio movimento pedagógico progressista e o movimento docente politizado, os quais não conseguiram pautar e perceber a escola rural e os sujeitos camponeses. No ano de 2004, quando escreveram o referido texto, afirmavam que a EdoC vinha se construindo “como uma inquietante surpresa para pesquisadores e formuladores de políticas, mas, principalmente para os próprios sujeitos do campo, seus movimentos sociais e seus educadores” (p. 11).
Caldart (2012) descreve a EdoC como um fenômeno recente na realidade brasileira, cunhada pelos movimentos sociais pela primeira vez no país na política pública, implicando em sua legitimidade pelo Parecer CNE/CEB/036/2001, endossado pela Resolução CNE/CEB/01/2002. Destaca, ainda, que o conceito de Educação do Campo implica em tensões devido ao fato de ir ocupando espaço nas esferas públicas – por onde passa a política educacional – em municípios, estados e federação, da educação básica às universidades e institutos federais; implica em posições políticas de gestores públicos, professores/as, pesquisadores/as e movimentos sociais populares; e, sofre pressão do setor do agronegócio, que se põe contrário aos interesses dos camponeses.
Este texto encontra-se organizado em três itens: 1) caminho metodológico da pesquisa e aprendizados; 2) resultados da pesquisa bibliográfica e discussões; e 3) considerações finais.
Caminho metodológico da pesquisa e aprendizados
Este item descreve como se deu o processo de pesquisa para a captura dos dados. Na CAFe/Capes, em vista de analisar a trajetória possível da EdoC, segundo registros escritos em artigos científicos, partimos de um projeto de pesquisa[1] que envolveu uma bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) com atuação entre meados de 2019 a meados de 2020. Desta parte, a metodologia que dá origem aos dados é a revisão bibliográfica sistemática de cunho qualitativo (GALVÃO; PEREIRA, 2014), e, relativo às demais fontes, utilizamos a revisão bibliográfica narrativa (ROTHER, 2007).
A revisão narrativa foi necessária para complementar e aprofundar a pesquisa realizada tendo como base os periódicos Capes e, desse modo, selecionamos dois materiais bibliográficos do MST, os quais consideramos fundamentais pelo fato de que mostram o caminho percorrido desde o primeiro barraco-escola de acampamento reconhecido na política pública, às primeiras escritas do Movimento que deram origem ao que se cunhou na legislação da EdoC. Assim temos: uma tese de doutorado do ano de 2009, sobre os primeiros formatos de escola do MST, nomeada como Escola itinerante e o caderno de educação de nº 14 - Educação no MST – memória – documentos de 1987-2015, publicado pela editora Expressão Popular. Além desses, nos valemos de documentos do MEC compilados em Marcos Normativos (2012), pois, demonstra a trajetória da EdoC na política pública brasileira.
Os autores tomados como referência para a pesquisa bibliográfica sistemática afirmam que esse tipo de pesquisa é utilizado nas ciências da saúde, sendo que na Educação, são raros os trabalhos encontrados. No campo educacional, o que é comum, é simplesmente pesquisa bibliográfica de revisão qualitativa e, nem sempre são descritos os passos e/ou as perguntas que encaminham a pesquisa e a análise.
Assim, um dos objetivos da pesquisa, que envolveu uma bolsista Pibic, era se apropriar de tipos de pesquisa bibliográfica, entendendo-as em profundidade e, assim, foi necessário estudos para diferenciar similaridades existentes e até mesmo os termos totalmente diferentes, mas que podem indicar um mesmo campo de análise (visto que trabalhamos com busca de termo e não descritores[2]). Em nosso caso, os termos eram: educação rural; escolas família agrícolas (EFAs); Pedagogia da Alternância (P.A.) por possuírem interlocuções, na atualidade, com a EdoC.
Sobre este aspecto é importante destacar que se não houvesse um entendimento das diferenciações necessárias entre os termos em questão, não seria possível desenvolver uma busca bibliográfica confiável. Por isso, desde início foi preciso a apreensão dos conceitos que envolveriam o processo de investigação. Os textos estudados foram do Dicionário de Educação do Campo (2012) devido a sistematização de verbetes por renomados pesquisadores do tema, além de autores (as) que são referências nacionais desde o surgimento desta especificidade de educação, tendo como expoentes: Roseli Salete Caldart; Miguel González Arroyo, Edgar Jorge Kolling e Mônica Castagna Molina.
O intuito do desenvolvimento do projeto de pesquisa que origina este texto era desvelar ao máximo o que vem sendo produzido/dito cientificamente sobre Educação do Campo no Brasil. As perguntas que nos colocamos como ponto de partida para a pesquisa foram as seguintes: qual o quantitativo de produção científica, em artigos científicos, disponíveis no Banco de dados da CAFe/Capes entre o período de 1998 e 2018? Qual o tipo de metodologia descrita (quando consta) desses artigos? Qual o número de produção por região brasileira (quando possível situar)? Quais os anos de publicação? Quais os assuntos tratados?
Para entender o conceito de Educação do Campo se fizeram necessários estudos, lançando mão de textos clássicos, ou considerados fundantes da EdoC, cuja preocupação central na pesquisa era a perspectiva de não a confundir com educação rural. Esta, por sua vez, é descrita por Fernandes e Caldart (2004) como uma educação em que o rural era visto como inferior, cujos projetos, pensados e elaborados sem a participação de seus sujeitos, ignorando a realidade com a qual se propunha trabalhar, nitidamente apêndice da educação urbana. Do ponto de vista metodológico, consideramos importante a conceituação da educação rural desde o paradigma da EdoC, pois esta última visa a superação da educação rural e assim, trata-se de campos teóricos distintos.
A pesquisa na base de dados foi realizada no período de 08/10/2019 a 31/10/2019, pelo termo “educação do campo”, adotando o campo “qualquer” sem aspas para que aparecessem todos os resultados possíveis. Selecionamos apenas artigos em língua portuguesa e apareceram pouco mais de 14.500 textos e, desses, num primeiro momento, foram selecionados 588, cuja descrição de como foram feitas as etapas de seleção faremos a seguir:
- análise dos artigos pela leitura do título e do resumo para uma primeira seleção. Neste caso, quando apareciam somente na língua inglesa, era feita a tradução e, selecionado ou não. Na dúvida, mantínhamos na seleção, pois haveria uma segunda análise, mais pormenorizada. Nesta primeira etapa eram selecionados todos os textos em que constasse o termo Educação do Campo em qualquer parte do trabalho. Os títulos com informações de autoria, ano e local de publicação, além do resumo, eram organizados em pasta específica.
De posse dos 588 títulos e resumos, verificou-se algumas duplicidades de artigos assim como as apresentações de cada edição da Revista Brasileira de Educação do Campo, pertencente à Universidade Federal de Tocantins (UFT), que apareciam como artigos, e, portanto, descartados. Nesta etapa constatamos expressões mal traduzidas da língua inglesa e espanhola para a portuguesa nos títulos e resumos e, assim aparecia o termo “educação rural” devido a inexistência do termo “educação do campo” com o mesmo significado existente no Brasil, nas línguas inglesa e espanhola.
Esta foi uma das primeiras descobertas ao fazermos ensaios para o início da pesquisa – o que não se dá sem reflexão - sobre os termos que usaríamos como palavras-chave, observando o número de artigos que apareciam utilizando uma ou outra opção. Nesse aspecto a busca em “qualquer” campo mostrava todos os textos em que aparecia isoladamente o termo “campo”, ou “campo epistemológico”, “campo de pesquisa”, “pesquisa de campo” “campo teórico” etc., o que aumentou consideravelmente a primeira fase da seleção, entretanto, não incorremos no erro de buscar o assunto EdoC somente pelos títulos, pois teríamos um número ínfimo para análise. Em nosso caso, o que estivesse relacionado a palavra Campo[3], nos interessava.
- a segunda fase da seleção, já em posse desse número bem menor de resumos para a leitura (588), era conferido um a um para verificar duplicidades, pois alguns textos chegavam a aparecer de duas a quatro vezes. Junto a isso, os resumos eram revisados outra vez para ver se tratavam de educação do campo ou de educação rural, devido a problemas com os termos “educação rural, escola rural, educação do campo e educação no campo” nas traduções.
Para tanto, por vezes era preciso abrir o texto completo para a averiguação em vista de selecionar ou não. Foi percebido que os artigos referentes às EFAs poderiam pertencer tanto ao campo da Educação do Campo quanto da educação rural, segundo a base teórica dos autores, uma vez que a Pedagogia da Alternância desses centros educacionais de formação surgiu três décadas anterior à Educação do Campo. Neste caso, os textos sobre EFA que a relacionavam com a EdoC eram mantidos.
- a terceira etapa compreendeu, de posse de um arquivo com 335 títulos e resumos selecionados, iniciar a análise, identificando e registrando o assunto de forma sintética. Por vezes o título amplo demais ou não muito claro levava à necessidade de ler novamente o resumo. Depois dessa classificação por assunto, procedemos à leitura de todos os resumos novamente para identificação ou não da metodologia de cada um, registrando, quando possuíam, e qual era. Após essa análise, no mesmo quadro, destacamos o ano de publicação de cada texto e o local, quando estava explícito. Assim, tínhamos: o assunto, o ano de publicação, os autores, o local e o nome do periódico onde fora publicado, e a metodologia. Metodologia e local referente a um estado ou município específico não constavam em um grande número de textos, segundo análise dos resumos e títulos. Esse fator nos levou a não inserir nos resultados a quantidade de publicação por estado brasileiro e região, visto que pouco mais de 50% dos artigos descreviam o local de origem do estudo, e, além disso uma boa parte dos textos tratavam genericamente da EdoC no país, em especial, aqueles que se referiam à política pública e à legislação.
Resultados da pesquisa bibliográfica e discussões
Neste item nos propusemos a apresentar os resultados dos dados coletados considerando: 1) principais marcos da educação do MST por meio do Caderno de educação nº 14 do ano de 2017, que apresenta uma compilação dos principais documentos deste Movimento relacionados à educação entre o período de 1987 a 2015. Nossa análise desses documentos foi do ano de 1987 a 1998, momento em que se dá início à concepção de Educação Básica do Campo. Para ser possível detalhes de algumas informações da coletânea de documentos, nos amparamos na Tese Escola itinerante dos acampamentos do MST: um contraponto à escola capitalista?; 2) dados levantados em documentos do MEC, em espacial dos Marcos Normativos/2012; 3) dados da pesquisa bibliográfica conforme descrito no item anterior, período de 1998 a 2018;
Primeiramente, destacamos elementos do Caderno de educação, com a necessidade de ir um pouco anterior a ele ainda: elucidar algumas informações sobre escola itinerante, por meio da qual se dá início à educação escolar reconhecida legalmente no MST, anterior a existência da Educação do Campo. A escola itinerante é oriunda da escola criada no primeiro acampamento da reforma agrária do MST, com a ocupação de terra no município de Encruzilhada Natalino em 1981[4], ao norte do Rio Grande do Sul, mas naquele momento, ainda não se chamava escola itinerante.
A princípio, em Encruzilhada Natalino, ainda quando não se pensava em escola, mães e professores do próprio MST, começaram a organizar atividades educativas e culturais devido à preocupação com a formação, pois os pequenos se encontravam ausentes das escolas oficiais (CAMINI, 2009, p. 115).
Camini (2009, p. 116) destaca que a primeira escola do MST, como escola de acampamento, foi criada por um grupo de famílias oriundas da Encruzilhada Natalino que ocuparam um local próximo, chamado de Passo da Estrada, em 1982, local previsto para o assentamento. Ali havia cerca de 180 crianças em idade escolar sem “escola oficial”. Esta primeira escola fora autorizada pelo governo do Estado/RS em 1984, quando já estava em funcionamento, no assentamento Nova Ronda Alta, mas ainda não era reconhecida em Lei. Sua origem era a necessidade de escolarização nos acampamentos e assentamentos que surgiam na luta por terra no MST e, assim, as primeiras professoras eram acampadas/assentadas com formação em magistério ou não, de modo geral, com experiência de catequese e trabalhos com metodologia popular.
A escola itinerante, surge legalmente em 1996, e vigorou em termos oficiais em cerca de dez Estados[5] do Brasil entre 1996 a 2008 segundo Camini (2009), embora esses dados sofreram alteração devido a conjuntura política vivida na ocasião, com avanços e retrocessos nas negociações com governos estaduais. É preciso demarcar, no entanto, que anterior à escola itinerante, existiam as escolas de acampamento como os primeiros embriões da educação no/do MST. A oficialização do Movimento ocorreu com o I Congresso, realizado no estado do Paraná, em Curitiba, no ano de 1985, ainda que as primeiras ocupações de terra por parte do que veio a ser este Movimento se deram entre 1979-1981. Camini afirma que a educação no MST nasce junto com o Movimento, pois mesmo antes de haver escola, nos moldes da escola itinerante, com o governo estadual assumindo algumas responsabilidades, aconteciam atividades culturais para envolver as crianças a fim de não as deixar sujeitas aos riscos de estarem “morando” na beira de uma rodovia.
A autora ainda destaca que o sentido de envolver um alto número de crianças era também para que as famílias pudessem entender o sentido da mudança drástica de estarem num acampamento – morando em baixo da lona preta. Mas, relata que a luta por escola, bem no início não era uma unanimidade no acampamento, devido ao entendimento de compreendê-la como algo fixo, conforme eram as escolinhas rurais que as famílias conheciam antes de serem acampadas. Foi aí que surgiu a ideia da escola itinerante, que pudesse “caminhar” com o acampamento, se necessário. Por sinal, uma grande parte dos acampados do MST eram analfabetos ou semianalfabetos e, por isso, logo de início nas escolas de acampamento e, posteriormente, escolas itinerantes também houve muitas turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Assim, se temos a formação oficial do MST em 1985, no ano de 1987 já se tem um primeiro Documento do 1º seminário nacional de educação em assentamentos. Nele é descrito a circular destinada “à direção e executiva nacional do MST, à comissão nacional de assentados, às secretarias estaduais e, aos professores e monitores das escolas de assentamentos”, cujo encontro ocorreu em São Mateus, estado do Espírito Santo, contando com representantes dos estados do Espírito Santo, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, e reuniu 13 professores e/ou monitores. Ele trata da escola oficial/tradicional e da necessidade de uma proposta alternativa, que tratavam como educação popular (MST, 2017, p. 09).
Conforme dá para perceber, a educação no MST se deu, de fato, com a constituição do próprio Movimento e, antes de ser educação escolar, reconhecida como escola itinerante, se dava num formato de educação popular – em vista de oferecer algo que se podia e se sabia, às crianças acampadas, ao mesmo tempo, em que as manteria em local seguro, com educadoras que iam se fazendo como tais, no processo do ensino-aprendizagem possível. Em diálogo com Freire (1987), poderíamos dizer que se tratava do inédito viável.
Constata-se que o Caderno de Educação nº 14 possui ao todo 34 documentos sobre educação no MST, escritos entre 1987 a 2015. O que nos chama a atenção no segundo documento intitulado Linhas básicas da proposta do MST para as escolas de acampamentos e assentamentos de 1990 é que ele faz avançar o debate do período anterior, envolvendo o setor nacional de formação. Nele constam objetivos da escola e princípios pedagógicos, papel dos professores dessas escolas e orientações metodológicas. Claramente este documento servia de base para uma educação do Movimento, que teria uma mesma linha político-pedagógica-ideológica, com diretrizes em âmbito nacional.
O terceiro documento é descrito como Proposta pedagógica do Movimento Sem Terra para as escolas de acampamentos e assentamentos assinado em Maceió, em 1991. Neste já aparece o Setor de Educação no MST, sendo descrito que a cada dois ou três meses o setor de educação dos estados realizaria encontros de professores das escolas do Movimento para troca de experiências. Os estados nomeados são: Paraná, Piauí, Bahia, Ceará e Maranhão.
Cita ainda que em 1991 houve a formatura da primeira turma de magistério na Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa (Fundep), no município de Braga/RS, numa parceria entre MST e Departamento Rural (DER) da Cut e outras entidades populares e eclesiais, entre elas, os padres Oblatos. O documento tirava como meta: organizar setores de educação em todos os estados onde o MST estava organizado; legalizar atividades escolares desenvolvidas nos assentamentos e acampamentos e estabelecer relações com instituições educacionais próximas às propostas do MST. Vejamos que nesse documento, surge a preocupação em ampliar experiências educacionais em todos os Estados e, fazer parcerias com entidades próximas ao Movimento, numa percepção de que o diálogo com outros setores populares era fundamental para avançar.
O quarto documento chama-se Educação no documento básico do MST (1989-1991), aprovado no 6º encontro nacional do MST ocorrido em Piracicaba/SP no ano de 1991. Ele reafirma o fortalecimento dos setores de educação e a criação de fóruns regionais e orienta a luta por contratação de professores do MST em escolas de assentamentos. O que parece inovador e um salto qualitativo é a definição pela elaboração de um manual nacional de educação com proposta curricular para as escolas do Movimento. Outro destaque é que o Movimento começa pautar a especificidade de professores para áreas de assentamento – não sendo qualquer professor ou professora.
O quinto documento vai tratar especificamente da EJA, no ano de 1994. O sexto documento é um Manifesto do 1º congresso infantil do MST, ocorrido em Porto Alegre/RS, em 1994. O sétimo possui como título: Ideias levantadas sobre o trabalho de educação no MST, oriundo de reunião nacional do MST, ocorrida em Vitória/ES, em 1997. O oitavo documento pode ser considerado um divisor de águas, pois é o Manifesto das educadoras e dos educadores da reforma agrária ao povo brasileiro, surgido do I Enera, no ano de 1997. Ele denuncia as injustiças, afirma a luta por justiça social e educação de qualidade, dizendo enquanto educadoras/es: “queremos o direito de pensar e de participar das decisões sobre a política educacional” (MST, 2017, p. 43).
O nono documento, também de 1997, é continuidade do oitavo, traz Linhas de ação a partir das propostas aprovadas no I Enera, constando definições para várias frentes: aborda educação de 2º e de ensino superior, sinalizando para um convênio de curso de Pedagogia (da Terra) com a Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí). No item 5º propõe um Seminário sobre educação (escolar) no meio rural com a promoção do MST; MAB; CNBB; Unicef e UnB, a discutir, para ocorrer em 1998, em Brasília, sendo que foi a I Conferência, marco da Educação do Campo.
O documento 10º é preparatório à I Conferência de Educação básica do campo, intitulado Reflexões do MST para a discussão preparatória à conferência nacional: por uma educação básica do campo. Nele aparece o termo escola do campo, sendo, portanto, mais amplo que escola do acampamento e do assentamento. O que merece destaque nestes últimos documentos é que o MST, ainda antes da existência da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/1996), já pontuava em seus materiais a Educação de Jovens e Adultos (EJA) abordando a especificidade da educação infantil no campo. Neste segundo ponto, se antecede ao Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI de 1997) e às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCEI), que veio a tratar com maior especificidade da infância do campo, somente no ano de 2009.
A partir da I Conferência contando com as definições dela própria, houve o fortalecimento do Movimento Por Uma Educação Básica do Campo, que posteriormente avançou para Por uma Educação do Campo, levando à criação de fóruns estaduais, regionais e nacional que impulsionava estados, municípios e a Federação a criarem legislações para amparar a EdoC, que já não era uma proposta somente do MST. Desse modo, há que se destacar como principais documentos os já citados: Parecer CNE/CEB/36/2001 e a Resolução CNE/CEB/01/2002 do MEC, como fundantes da EdoC na política pública.
Conforme é perceptível, a partir da análise do Caderno de Educação n. 14 (MST, 2017), o Movimento sistematizou e publicou em torno de dois documentos oficiais, sobre educação, por ano, desde 1987, mas enfatiza que havia muitos outros além desses. Ao nos debruçarmos sobre eles, verificamos que a construção da educação que antecedeu à EdoC foi uma trajetória coletiva, feita por pessoas leigas, com ajuda de algumas professoras rurais à luz de metodologias da educação popular. 10 anos após esse início, envolvendo todos os Estados onde o MST estava articulado, a educação no MST, coo escola de acampamento; escola itinerante ou escola de assentamento já estava consolidada e o Movimento seguia ousando em experiências de educação de segundo grau/ensino médio, e projetava cursos de nível superior. Para este salto quali-quantitativo era preciso juntar forças além do Movimento e, por isso, foi apontando e construindo possibilidades.
No âmbito dos principais documentos legais do MEC o próprio ministério disponibilizou uma compilação, tratada por Marcos normativos da educação do campo, reunindo 08 dos principais Decretos, Resoluções, Pareceres e Leis que regem essa modalidade de educação. O que fica evidente ao analisarmos esses documentos é que o conjunto de normativas iam sendo ampliadas e readequadas na política pública, devido à pressão dos movimentos sociais junto aos governos.
Nesse aspecto a EdoC dava passos frente ao funcionamento e à função das escolas do campo, de modo diferenciado do que se fizera na educação rural. Esse fator, segundo análise dos Marcos Normativos (2012) levava à reorganização de currículos; contratação e concursos específicos para professores da área rural; formação de professores sob outra óptica; transporte escolar adequado; recursos financeiros para atender, ao menos em parte, a educação em tempo integral, ou para maior quantidade de alimentação escolar se comparado à alunos da zona urbana; construção e reformas de escolas; acesso a laboratórios de informática com internet; inclusão das EFAs e suas especificidades com Pedagogia da Alternância, entre outros. As revisões e readequações de documentos legais demonstram, de um lado, ampliação de demandas/direitos e, de outro, o limite do direito conquistado. Neste aspecto Correia (2012) nomeia o fenômeno como direito à resistência, e, que dele surgem novos direitos, pois, diante de uma pequena conquista, surgia outra reivindicação em seguida.
Segundo o MEC (2012), além dos dois documentos já citados anteriormente (Parecer 36/2001 e Resolução 01/2002), o Parecer 01/2006 trata sobre a possibilidade de as escolas do campo utilizar como método a pedagogia da alternância. Este parecer faz a interlocução entre EFAs e EdoC, pois até então essas escolas funcionavam no país como particulares, com pouca incidência de políticas públicas. O Parecer 03/2008, que define orientações para as escolas do campo, amplia marcos conceituais da própria EdoC, que passa a abarcar a diversidade de sujeitos do campo brasileiro. Para termos uma ideia da elaboração dessa Resolução:
Na presença do relator responsável pelo processo, que fez exposição em torno do Parecer e justificativa do Projeto de Resolução, desenvolveu-se a reunião que contou com representantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação – CONSED, Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Confederação dos Trabalhadores da Agricultura – CONTAG, Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME, Coordenação-Geral de Educação Ambiental – CGEA/SECAD/MEC, Diretoria de Diversidade e Cidadania da SECAD/MEC, Confederação Nacional dos Municípios, Frente Nacional dos Prefeitos, membros da Câmara de Educação Básica e outros convidados (MEC, 2012, p. 51).
Neste caso estamos diante de um limite do conceito de Educação do Campo e, nitidamente, mais setores populares davam força ao debate, o que, evidentemente, colocava novas questões para gestores estatais. No ano de 2009, a criação da Lei nº 11.947 garantiu alimentação escolar em maior quantidade à alunos do campo, inclusive por meio de compra direta de produtores locais pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Tratava, ainda, do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Neste mesmo ano o Decreto 6.755 estabeleceu a política de formação de professores da educação básica, incentivando cursos de graduação a professores, pois havia um número elevado de profissionais apenas com ensino médio, atuando em escolas no meio rural em todo o Brasil.
O decreto nº 7.352/2010 dispõe sobre a Política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). Este programa já estava em vigor com algumas escolas e centros de formação do MST pelo país e, com o decreto, passa a ser ampliado a outras organizações do campo, inclusive sindicais. O documento dá destaque à Comissão Nacional de Educação do Campo (Conec), criado em 2007, como auxiliar do MEC para a formulação de políticas públicas (MEC, 2012).
Amparado no mesmo documento, foi publicado o Edital de seleção 02/2012- SESU/SETEC/SECADI/MEC/2012 com a chamada pública para 44 instituições de ensino superior (prioritariamente públicas) ofertarem cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC), de modo presencial, cuja implementação dos cursos se deu entre 2012 e 2015 em vários estados do país[6]. Anterior a este Edital, porém, o MST já efetuava convênios para cursos de Licenciaturas e Bacharelados com instituições desde o ano de 1998, sendo os primeiros convênios efetuados com a Unijuí/RS (comunitária) para o curso de Pedagogia da Terra e o segundo com a Unemat/MT (pública)[7] no ano seguinte.
A Lei nº 12.695/2012 instituiu o Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo) por meio da qual seria potencializada a formação de profissionais da educação, utilizando polos da Universidade Aberta do Brasil (UAB). Com o Pronacampo estava contemplada a formação docente na dimensão pedagógica, avaliação e gestão educacional; e garantiria recursos para infraestrutura física e recursos pedagógicos. Este programa recebeu muitas críticas devido a precariedade de funcionamento dos polos, em especial, por causa da falta de qualidade da internet em municípios longínquos de grandes centros urbanos. Além disso, grande parte dos professores do campo praticamente não possuíam internet em suas casas e comunidades, além de uma boa parcela não estarem familiarizados com computadores.
Após a abordagem feita aos documentos que evidenciam a trajetória da EdoC, daremos evidência para os dados coletados e as questões que eles nos colocam. Conforme já descrito, buscamos saber o que foi produzido em termos de Educação do Campo em periódicos qualizados, disponíveis no portal CAFe da Capes, entre 1998 e 2018. Elegemos 1998 em diante, pelo fato de ter ocorrido a I Conferência Nacional de Educação do Campo, ainda que demorou pouco mais de três anos, para a edição e publicação dos primeiros documentos oficiais do MEC, estabelecendo essa modalidade educacional, reconhecendo a diferença entre esta e a educação rural, conforme bem pontuado no Parecer 36/2001.
Logo, não se trata de toda a produção científica, é apenas uma parte, pois são inúmeras as teses, dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de curso (TCC) de graduação e pós-graduação lato sensu distribuídos pelo Brasil. Contudo, a produção dos periódicos para nós é significativa pelo fato de possibilitar um panorama, a partir de pesquisas de um grande número de doutores (as) e mestres (as) que se dedicam a essa temática, seja via projetos e grupos de pesquisa, seja, em divulgação de resultados de orientação de teses e dissertações. Assim, a primeira tabela que apresentamos mostra os assuntos estudados e a ocorrência deles.
Tabela 1 - Assuntos mais abordados na Educação do campo no Brasil (1998-2018)
Assuntos abordados em artigos |
n. |
O assunto está vinculado à
|
Licenciatura em EdoC |
37 |
Universidade; currículo; P.A. |
Escola do/no campo |
27 |
Currículo; evasão; ensino; prática pedagógica |
Legislação |
25 |
Trajetória da EdoC; direito |
Pedagogia da alternância (P.A.) |
25 |
EFAs; Casa familiar rural |
Formação de professores |
24 |
Currículo; Pedagogia (do MST) |
Políticas públicas |
22 |
Políticas públicas/acesso |
Movimentos sociais populares |
17 |
MST; Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); instituições populares e sindicais; currículo; lutas; camponeses/as |
Pronera |
13 |
Programas; MST |
Relação educação rural e EdoC |
12 |
Escolas; ensino |
Multisseriação |
11 |
Escolas rurais e do campo |
Saberes, fazeres, conhecimento e experiências |
11 |
Escolas e camponeses |
Educação infantil do campo |
8 |
Política pública; infância do campo |
Estudos pós-coloniais |
8 |
Identidade; interculturalidade; decolonial |
Escola rural |
5 |
Fechamento de escolas; política pública para o campo |
Assentamento |
5 |
MST |
EJA |
5 |
Política pública; currículo; formação de professores |
Projovem |
5 |
Programas |
Agroecologia |
5 |
|
Pesquisa em EdoC |
5 |
Produção do conhecimento |
Juventude |
5 |
Ensino médio; DH |
Escola ativa |
5 |
Programas |
Questão agrária |
4 |
|
Educação especial/inclusão |
4 |
Escola |
Ensino médio |
4 |
Ensino médio e técnico; escola |
Desenvolvimento |
3 |
Território; gênero e raça/etnia |
Etnomatemática |
3 |
Matemática; Escola |
Programa mais educação |
3 |
Programas |
Escola de tempo integral |
3 |
Política pública; escola |
Educação e trabalho |
3 |
|
Direitos humanos |
2 |
Direitos; política pública |
Trabalho docente |
2 |
|
Livro didático |
2 |
Ensino; escola |
Educação ambiental |
2 |
Escola |
Pesquisa-ação e extensão |
2 |
Universidade/escola |
Colonialismo |
1 |
|
Patrimonialidade |
1 |
|
Politecnia e omnilateralidade |
1 |
Assentamento; MST |
Base filosófica da EdoC |
1 |
|
Espacialidade |
1 |
|
Proeja |
1 |
Programas |
Conceito de natureza |
1 |
Escola |
Desigualdades sociais |
1 |
|
Agronegócio |
1 |
Território |
Análise da categoria campo |
1 |
|
Relação com o capital |
1 |
|
Mov social e democracia |
1 |
|
Pedagogia social |
1 |
|
Terapia ocupacional |
1 |
|
Pibid diversidade |
1 |
Universidade |
Educação escolar quilombola |
1 |
Escola |
Escola itinerante |
1 |
MST |
Pedagogia da Terra |
1 |
MST |
Total |
335 |
|
N= Número de artigos;
Fonte: as pesquisadoras
A tabela 1 nos mostra os assuntos mais refletidos na Educação do Campo, segundo os artigos em periódicos da CAFe, dizem respeito à formação de professores (atravessada pelo tema Currículo). Assim, se somado por proximidade e intercruzamento das temáticas vamos ter 61 textos que tratam da formação de professores, juntando esta com a especificidade da LEdoC. O segundo bloco, por aproximação, soma 51 textos e é relativo aos Movimentos sociais populares, aglutinando: Movimentos sociais; pedagogia da alternância/EFA; Pedagogia da Terra; escola itinerante, assentamentos; movimentos social e democracia; e, politecnia em escola do MST.
O terceiro bloco, em que são discutidos temas concernentes à Escola (também atravessada por Currículo), aglutina as temáticas: multisseriação; educação infantil do campo; escola rural; EJA; educação integral; educação escolar quilombola; livro didático; educação ambiental; ensino médio e educação inclusiva, etnomatemática, totalizando 48 textos. No quarto, aproximando legislação e política pública, que também dialogam amplamente com a trajetória construída na EdoC, soma 47 textos. O bloco seguinte, reúne os Programas (e não políticas públicas) juntando: Pronera, Projovem; Escola Ativa; e Proeja) que somam 27 textos.
As demais temáticas, como se pode observar no quadro, ficam um tanto isoladas e, no caso de algumas como agroecologia, saberes e fazeres, desenvolvimento, questão agrária, Pibid, pesquisa e extensão que podem transitar em vários campos, desde escolas, movimentos sociais, universidade etc., o que demonstra a interdisciplinaridade possível e presente na EdoC.
A formação de professores é o tema que salta, proporcionalmente, se comparado aos demais e isso pode apontar para, ao menos, duas direções, segundo pudemos constatar na análise das escritas dos resumos dos textos: 1) necessidade de qualificação de professores para os quefazeres da educação do campo frente a inseguranças e, 2) análises de como estão sendo feitos os processos formativos. O que mostravam os resumos, era grandemente, falta ou precariedade, pouco investimento e não continuidade nas formações de professores. Este fator, por sua vez, tem a ver com direcionamento de políticas públicas, tema que aparece em terceiro lugar. Não por coincidência, o segundo tema é Movimento social, aparecendo como que uma ponte entre o bloco Formação de Professores (as) e Escola; Política Pública e Legislação.
Abaixo, descrevemos as principais metodologias que os textos apresentam, destacando que a maioria deles trazem informações genéricas como “pesquisa qualitativa”, o que não ajuda muito para termos uma ideia mais precisa. A pesquisa bibliográfica, segundo análise dos resumos, também deixa em aberto questões pelo fato da maioria dos casos, vir junto à: pesquisa de campo; entrevistas e, uso de questionários.
Tabela 2 - Tipos de metodologias mais utilizadas
Tipos de pesquisa |
n. |
Pesquisa Bibliográfica |
56 |
Estudo de Caso |
17 |
Análise de Conteúdo |
17 |
Pesquisa Participante ou Observação Participante |
16 |
Materialismo Histórico Dialético |
13 |
Questionários (Somente) |
6 |
Entrevistas (Somente) |
5 |
Pesquisa-Ação |
5 |
Análise Documental |
4 |
Análise de Dados |
2 |
História de Vida |
2 |
Estudos Pós-Críticos |
2 |
Estudos Culturais |
2 |
Diagnóstico Participativo |
1 |
Inventário Descritivo |
1 |
Análise Estatística |
1 |
total |
150 |
N= número de documentos;
Fonte: as pesquisadoras
As pesquisas mais encontradas enquanto metodologia são bibliográficas, mas, conforme afirmamos, não é possível uma análise mais aprofundada porque poderíamos incorrer em erros ou ficar em suposições, pois, o número de artigos com detalhe de metodologia, segundo os resumos é menos da metade do total. O quadro anterior ajuda na percepção e nos deixa evidente a ideia de fragilidade na escrita dos resumos. Vale destacar, ainda, que grandemente os artigos descreviam como metodologia a junção de entrevista com questionário unidos à pesquisa bibliográfica, mas, por vezes, a pesquisa bibliográfica aparecia junto ao estudo de caso, materialismo dialético, pesquisa participante entre outras.
Tabela 3 - Ano e número de publicações
Ano |
n. |
|
1998-2003 |
0 |
|
2004 |
1 |
|
2005 |
0 |
|
2006 |
0 |
|
2007 |
1 |
|
2008 |
7 |
|
2009 |
6 |
|
2010 |
8 |
|
2011 |
10 |
|
2012 |
24 |
|
2013 |
29 |
|
2014 |
36 |
|
2015 |
30 |
|
2016 |
60 |
|
2017 |
68 |
|
2018 |
54 |
|
Total |
335 |
|
N= número de documentos;
Fonte: as pesquisadoras
O ano com maior publicação em Periódicos foi 2017. A primeira publicação em periódicos ocorreu em 2004, sendo que em 2005 e 2006 não houve nenhuma. Com exceção a 2009 e 2015, foi perceptível a evolução das publicações. Sobre 2018 voltou a haver um decréscimo, mas, há que se considerar o atraso das publicações de muitas edições de periódicos e, portanto, dá para supor que, em meados de 2019, quando realizada a pesquisa, ainda pudesse haver Periódicos em atraso com edições de 2018 que sairiam um pouco mais tarde. Além deste fator, percebemos que entre a publicação de um artigo em periódico e ele ser encontrado na Plataforma Capes, há um espaço temporal que pode variar em até um ano[8], o que impede a exatidão quando se trata de dados quantitativos.
Sobre o local a que se referia cada um dos artigos, que constituiu objeto de nossa pesquisa, observamos que em bem menos da metade dos textos era explicitado essa informação, sendo um total de 129 e, assim, não pudemos considerar e apresentar dados. Fizemos quadros com os respectivos estados e regiões, mas em nossa avaliação não seriam dados confiáveis para serem apresentados e discutidos. Dos estados citados em publicações, Acre não contava em nenhuma e isso nos chamou a atenção. Contudo temos que destacar que uma grande parte dos artigos que não faziam referência a um Estado ou município, abrangiam o contexto geral do país, em especial quando se referiam a política pública, legislação e formação de professores, que constitui a maioria das escritas.
Considerações finais
Ao tratarmos de Educação do Campo neste texto, com a opção por evidenciar o início da trajetória, o seu espaço na política pública e nas publicações acadêmicas damos destaques a algumas questões que servem para a reflexão. Assim, um primeiro ponto a ser considerado é que a aprendizagem sobre como fazer pesquisa bibliográfica envolvendo estudante de graduação é algo significativo e, ao mesmo tempo, muito exigente pelo fato da necessidade de acompanhamento constante e revisão do trabalho realizado. Junto a isso, para fazer pesquisa bibliográfica com seriedade é preciso domínio de conceitos, não de forma básica, pois poderiam haver grandes equívocos ao selecionar textos, o que implicaria em dados e resultados pouco confiáveis. Em nosso processo de pesquisa foi gratificante quando a bolsista expressou com surpresa o entendimento do sentido da pesquisa bibliográfica rigorosa e seus meandros.
A EdoC é um campo complexo de análise pelo fato de fazer relação com a educação rural e não há como negar esse fato, visto que ela surge da educação rural, ao mesmo tempo que visa suplantá-la devido a precariedade e descaso para com os sujeitos camponeses e camponesas. Outro fator a destacar é a forte articulação com temáticas políticas, seja política pública, seja movimentos estratégicos e alianças em vista de conquistas políticas e, sem isso ela não teria dado os passos que deu – desde a primeira escola-barraco de acampamento do MST.
Fazendo parte do que tratamos como complexidade, podemos afirmar que apenas uma pesquisa bibliográfica não daria conta de evidenciar reflexões mais profundas, se não fosse considerado a historicidade, desde o MST até os embates para as conquistas nas Legislações. Essas conquistas, por sua vez, não se deram sem tensões (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004) e só foram implantadas devido à pressão exercida por meio de articulações, fóruns, congressos e, sobretudo, utilizando-se de estratégias dos movimentos sociais, com força política – debate que apareceu com força nos resumos dos artigos que tratavam sobre formação de professores/LEdoC, ou seja: conquista de política pública no campo dos direitos.
Nesse aspecto do avanço da legislação, que fica evidente tanto na análise dos documentos do MEC quando dos artigos publicados, segundo as constatações dos assuntos discutidos, houve aprendizado tanto por parte dos setores de governo quando por parte dos movimentos populares que pautavam e apresentavam demandas, obviamente fundamentadas em necessidades, experiências e aportes teóricos. Caldart (2012) enfatiza esse campo de tensões na construção da política pública e obviamente quando demanda por um setor, chega à perspectiva governamental tendo que fazer-se em âmbito nacional, considerando a enorme diversidade brasileira, de povos, populações e formas de trabalho e relação com o campo e no campo, incluindo águas e florestas.
Se olharmos com cuidado para as temáticas que nesses 20 anos vieram sendo estudadas é forte a incidência sobre a política pública, ficando evidente muitas lutas que levaram a elas, com amparo nas legislações. Nesse viés, vai aparecer o tema formação de professores e escola, ambos perpassados por currículo, que pode indicar anseios por Esse Novo Currículo da escola do Campo e, também desafios de pôr em prática algo novo e sem receituário. Do mesmo modo, vários temas que aparecem como estudos uma só ou duas vezes, indicam um vasto campo que vem sendo debatido, mostrando necessidades outras, que a política pública deveria e deve ir abarcando, se há uma perspectiva de avanço.
As escolas itinerantes do MST foram o primeiro passo, nos marcos legais, de uma educação que deveria ser diferenciada e que respeitasse aquelas crianças, jovens e adultos camponeses (as) que estavam em baixo da lona preta a reivindicar tudo, a começar por terra para poderem trabalhar e ter dignidade, algo de que foram usurpados. Por isso, a trajetória da Educação do Campo não pode desconsiderar as origens, visto que políticas e programas existentes, e o próprio vínculo com Universidades e com a pesquisa, que leva a escrita e a publicação sobre o tema, não são isolados desse contexto – um contexto de luta constante e um porvir bastante incerto neste momento político (2021/2022).
Referências
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parecer CNE/CEB/036/2001. Diretrizes operacionais para as escolas de educação básica no campo.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução 01/2002. Estabelece as diretrizes operacionais para as escolas de educação básica no campo.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Educação do campo: marcos normativos. Brasília: Secadi, 2012.
ARROYO, Miguel Gonzalez; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica Castagna. Por uma educação do campo. Petrópolis (RJ), 2004.
CALDART, Roseli Salete. Educação do campo. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Dicionário da educação do campo. São Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 257- 264.
CALDART, Roseli Salete. Sobre educação do campo. In: SANTOS, Clarice Aparecida dos (Org.). Por uma educação do campo. Campo, políticas públicas, educação. Brasília: INCRA/MDA, 2008. p. 67-86.
CAMINI, Isabela. Escola itinerante dos acampamentos do MST: um contraponto à escola capitalista? Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 245. Porto Alegre/RS, 2009.
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Defesa de direitos. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (Orgs.). Dicionário da educação do campo. São Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 187- 190.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1987.
GALVÃO, Taís Freire; PEREIRA, Maurício Gomes. Revisões sistemáticas de literatura: passos para a sua elaboração. Revista Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília, vol. 23, n. 1. 183-184, jan-mar 2014. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ress/v23n1/2237-9622-ress-23-01-00183.pdf. acesso em 28 fev. 2019.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Caderno de educação nº 14. Educação no MST – memória. Documentos 1987-2015. São Paulo: Expressão Popular, 2017. (Roseli Salete Caldart; Edgar Jorge Kolling, Orgs.).
ROTHER, Edna Terezinha. Revisão sistemática x revisão narrativa. Revista paulista de enfermagem. vol 2, n. 20, 2007. (Editorial s/p.).
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Notas
[1] O projeto de pesquisa desenvolvido foi aprovado pela Propesq/UNIR e contou com apoio do CNPq.
[2] Na área da saúde, por exemplo, é bem mais utilizado o termo Descritor (ao invés de palavra-chave ou termo de busca) pelo fato dele já ser padronizado pela área de estudo (e não criado pelo/a pesquisador/a), sendo, portanto, preciso. O entendimento de palavra-chave ou termo de busca pode abarcar expressões criadas por quem está realizando a busca em determinado momento.
[3] Neste caso, Campo poderia estar relacionado a rural, que por sua vez também se relaciona às EFAs.
[4] Para maiores informações, a Fonte: https://mst.org.br/2018/10/04/encruzilhada-natalino-inicio-da-longa-caminhada/.
[5] Legalmente, as escolas itinerantes existiram em seis estados brasileiros: Rio Grande do Sul ( RS), Paraná, Goiás, Santa Catarina, Alagoas e Piauí. No RS essas escolas foram as primeiras, e reconhecidas no ano de 1996 pelo governo do Estado, Olívio Dutra e, em 2008 foram oficialmente banidas, pelo governo de Ieda Cruzius/tornadas ilegais. Nos dias atuais em alguns Estados, existem escolas de acampamentos, mas essas não são reconhecidas legalmente por governos. A escola itinerante no Estado do Paraná ainda está em vigor (2021). Fonte: As escolas itinerantes no Estado do Paraná. In: https://www.youtube.com/watch?v=FvUtvCTqVPg.
[6] O resultado da seleção das Instituições de ensino superior foi publicado no D.O.U nº 249, de 27/12/2012.
[7] O artigo da pesquisadora Maria Antônia de Souza com o título “Educação do campo, políticas pedagógicas e produção científica” publicado na Revista Educação e Sociedade/2008 detalha melhor sobre cursos e convênios existentes entre o MST e governos, via Pronera, até o ano de 2008.
[8] Percebemos que artigos publicados em revistas no segundo trimestre de 2019, ainda não estavam disponíveis na Plataforma Capes no primeiro trimestre de 2020.